José Saramago: a entrevista
(esboço para um texto de Moisés Neto)
MOISÉS NETO- A arte romanesca multifacetada e
obstinadamente criada por Saramago, confere-lhe um alto estatuto. Em toda a sua
independência Saramago invoca a tradição que, de algum modo, no contexto atual,
pode ser classificada de radical. A sua obra literária apresenta-se como uma
série de projetos onde um, mais ou menos, desaprova o outro mas onde todos
representam novas tentativas de se aproximarem da realidade fugidia. Estou tão
emocionada! O homem está aqui ao meu lado. E ele tem fama
de...ser...tão...tão...severo!
SARAMAGO- Bobagem sua, Moisés. Vamos direto ao assunto e
deixe de besteiras que não temos muito
tempo.
MOISÉS NETO- Antes de mais nada ...estou tão emocionado por entrevistar um prêmio Nobel...
SARAMAGO- Então comece logo que passa este
nervosismo.
MOISÉS NETO- Como começou sua vida de escritor?
SARAMAGO- Nasci em Portugal... 1922. Pobre! Fui
serralheiro mecânico, desenhista, funcionário de saúde e de previdência social,
editor, tradutor, jornalista.
MOISÉS NETO—E seu primeiro livro?
SARAMAGO- Meu primeiro livro? Um romance, em 1947. Só
em 1976 passei a viver exclusivamente do meu trabalho
literário, primeiro como tradutor, depois como autor.
MOISÉS NETO- O que você acha da campanha para
incentivar a leitura?
SARAMAGO- Bobagem, caro Moisés Neto. Bem sabes que ler
é para poucos!
MOISÉS NETO- O senhor foi laureado com o Prêmio
Nobel da Literatura 1998...
SARAMAGO- De novo esta pergunta?
MOISÉS NETO - Como é o seu estilo?
SARAMAGO- Com parábolas portadoras de imaginação,
compaixão e ironia torno constantemente compreensível uma realidade fugidia
MOISÉS NETO-O senhor só atingiu a celebridade quando
cumpriu os 60 anos. Desde então alcançou a notoriedade e tem visto a sua obra
ser freqüentemente traduzida. Vive presentemente nas ilhas Canárias?
SARAMAGO- É.
MOISÉS NETO- O seu "Manual de Pintura e
Caligrafia: um romance", que saiu em 1977, ajuda-nos a entender o que
viria a acontecer mais tarde. No fundo, trata-se do nascimento de um artista,
tanto o do pintor como o do escritor. O livro pode, em grande parte, ser lido
como uma autobiografia?
SARAMAGO- Na sua intensidade, ele encerra também o tema
do amor, assuntos de natureza ética, impressões de viagens e reflexões
sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. A libertação alcançada com a
queda do regime salazarista transforma-se numa imagem final portadora de
abertura.
MOISÉS NETO- E quanto a "Memorial
do Convento",
de 1982, é o romance que o tornou célebre?
SARAMAGO- É
um texto multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo, uma
perspectiva histórica, social e individual.
MOISÉS NETO-Eu queria que o senhor falasse sobre "O
Ano da Morte de Ricardo Reis", publicado em 1984, um dos pontos altos da sua produção literária.
SARAMAGO- A ação passa-se formalmente em Lisboa no
ano de 1936, em plena ditadura, mas possui um ambiente de irrealidade
superiormente evocado. Este ambiente de irrealidade é acentuado pelas repetidas
visitas do falecido poeta Fernando Pessoa a casa da personagem principal
(que é extraída da produção pessoana) e das suas conversas sobre os condicionalismos da existência humana.
Juntos deixam o Mundo após o seu último encontro.
MOISÉS NETO- Em "A Jangada de Pedra",
publicada em 1986, onde o senhor recorre a um estratagema típico. Uma série de acontecimentos
sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vogar no Atlântico,
inicialmente em direção aos Açores.
SARAMAGO- (ri um pouco) Esta situação criada por mim
deu-me um sem-número de oportunidades para, no meu estilo muito pessoal, tecer
comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar sobre as
autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os atores dos
jogos de poder na alta política.
MOISÉS NETO -
Muito engenhoso
SARAMAGO- Pois pois...
MOISÉS NETO – Em relação ao livro
"História do Cerco de Lisboa", de 1989, um romance sobre um romance?
SARAMAGO- Ah! Essa história nasce da obstinação de
um revisor ao acrescentar um não, um
estratagema que dá ao acontecimento histórico um percurso diferente e, ao mesmo
tempo, ofereceu-me um campo livre à sua grande imaginação e alegria narrativa,
sem o impedir de ir ao fundo das questões.
MOISÉS NETO – E o polêmico "O Evangelho segundo
Jesus Cristo", de 1991, que culminou com o seu auto-exílio na Espanha?
Conta só pra gente. Vai!
SARAMAGO- Não há mistérios! Trata-se de um romance
sobre a vida de Jesus encerra, na sua franqueza, reflexões merecedoras de
atenção sobre grandes questões. Deus e o Diabo negociam sobre o Mal. Jesus
contesta o seu papel e desafia Deus.
MOISÉS NETO - Publicado em 1995, "Ensaio sobre
a Cegueira". O narrador onisciente leva-nos numa horrenda viagem através
da interface que é formada pelas percepções do ser humano e pelas camadas
espirituais da civilização.
SARAMAGO- A riqueza efabulatória, excentricidades e
agudeza de espírito encontram a sua expressão máxima, de uma forma absurda,
nesta obra cativante. "Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não
cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não
vêem.".
SARAMAGO- Isto.
MOISÉS NETO- Virou filme, dirigido por um
brasileiro. O senhor gostou.
SARAMAGO- Fiquei emocionado.
MOISÉS NETO- O senhor tem uma maneira peculiar de
escrita. Sua marcação de parágrafos, sua sintaxe... marcar diálogos com
vírgulas... mesmo assim, o seu texto é tão claro. O senhor se considera um
escritor hermético?
SARAMAGO- Não. Não me considero um escritor
hermético.
MOISÉS NETO- E quanto a verter os seus livros para o
português usado no Brasil?
SARAMAGO- Ah, isto eu sou contra. Por exemplo verter
a prosa genial de Guimarães Rosa para o português de Portugal seria um crime.
MOISÉS NETO- E a respeito do seu livro "Todos
os Nomes"?
SARAMAGO- Ora! É uma história sobre um pequeno
funcionário público da Conservatória dos Registos Centrais de dimensões quase
metafísicas. Ele fica obcecado por um dos nomes e segue a sua pista até ao seu
trágico final.
MOISÉS NETO-
Diga-nos agora: e As Intermitências da
Morte?
SARAMAGO- Pode-se dividir a obra
em três partes. A primeira é a intermitência da morte, uma visão panorâmica dos
fatos a partir do dia 1º de janeiro, quando ninguém mais morreu
naquele país. Aqui são abordados os paradoxos da ausência da morte, conflitos,
discussões e soluções para o problema dos que não morrem nem podem voltar a
viver, os moribundos.MOISÉS NETO- No sétimo capítulo há uma carta encaminhada pela morte a uma emissora de televisão, para que seja levada a público a notícia de seu retorno. Contudo, o retorno dar-se-á sob novas regras: “a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (...) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (...) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.
SARAMAGO- Para cada um a quem estivesse a chegar a temida hora da partida sem volta, o tal prazo de sete dias seria precedido pelo recebimento de uma carta, de autoria da morte, anunciando-lhe a “rescisão deste contrato temporário a que chamamos vida”. Este novo sistema de anunciação e a reação das pessoas - também calamitosa - tomará os próximos três capítulos.
MOISÉS NETO- No décimo capítulo, uma dessas cartas - que deveria ser recebida por um violoncelista - é devolvida à remetente, isto é, à morte..
SARAMAGO- Nesta parte a morte é humanizada, para muitos o ponto alto do livro. A personificação da morte e a necessidade que esta sente de ser amada.
MOISÉS NETO- (tosse) Mas há outros livros seus que são muito comentados: é o caso de O conto da ilha desconhecida... ou o mais recente: Caim. E quanto aos seus livros de Poesia?
SARAMAGO-
Gosto de Provavelmente Alegria e de Os Poemas Possíveis e da peças de Teatro
que escrevi: Que Farei com Este Livro, In
Nomine Dei, A Segunda Vida de Francisco
de Assis e A Noite?
Vamos parar agora, certo?
Vamos parar agora, certo?
MOISÉS
NETO- O senhor manda. Em nome dos nossos internautas
lhe agradeço a entrevista.
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