A poesia-seiva
“Thiago de Mello é um
poeta na contramão da modernidade e isso bastaria para distanciá-lo de seus
pares, mas há ainda um fator circunstancial a considerar: desde que retornou do
exílio, em 1978, voltou a viver na distante Barreirinha, pequena vila de 5 mil
habitantes encravada no Baixo Amazonas, em pleno coração da floresta. Quando
volta do sul do País, depois de voar até Manaus e de lá num pequeno avião até
Parintins, o poeta ainda é obrigado a enfrentar uma longa viagem de barco, de
mais de cinco horas, até chegar em casa.” (JOSÉ
CASTELLO)
“Precisamos do menino que você guarda em você e que ajuda a ser
mais homem o homem que você é. Agüente o barco, querido amigo! Muitas
madrugadas, cheias de orvalho macio, esperam por você. Andarilho da liberdade,
você tem ainda muitos trilhos a percorrer; seus braços longos, muitas crianças
a abraçar; suas mãos, muitos poemas a escrever."(PAULO FREIRE)
Thiago de Mello
é de Barreirinha, coração do Amazonas, do dia 30 de março de 1926. Em
Manaus, capital do Estado, fez seus primeiros estudos. Foi para o Rio de
Janeiro (RJ) e fez Faculdade de Medicina até o quarto ano (trocou o curso por
poesia!).
Os poetas Moises de Melo Neto e o Mestre Thiago de Mello
Luta
direitos humanos, pela ecologia e pela paz mundial, sendo perseguido pela
ditadura militar implantada no Brasil em 1964 se exilou no Chile, até a queda
de Salvador Allende. Tem trabalhos publicados no Chile, Portugal, Uruguai,
Estados Unidos da América, Argentina, Alemanha, Cuba, França e outros mais. É
tradutor de Nicolas Guillén, Pablo Neruda, T. S. Elliot, César Vallejo, Eliseo
Diego e Ernesto Cardenal.
Eis
um trecho de um dos seus mais belos poemas:
A fruta aberta
Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
(...) Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.
(Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962)
Thiago declarou: Trabalho muito para
alcançar a simplicidade. Escrever difícil é muito fácil. Difícil e trabalhoso é
chegar a uma linguagem que, sem perder o seu compromisso fundamental que é com
a arte poética, seja acessível, a metáfora se abrindo feliz, ambígua, deixando
que o leitor veja nela o que os seus olhos sabem enxergar. Você lê bem:
preservo a métrica e o ritmo. Mas os meus versos livres, que não são poucos,
têm cadência e principalmente música. A música é matéria prima do verso.
Porventura a inclinação natural pelo verso medido me venha da infância, da
leitura em voz alta, no Grupo Escolar José Paranaguá, em Manaus, dos versos
cadenciados dos Meus oito anos, do Casimiro, do Y-Juca-Pirama, do Gonçalves
Dias, do A Carolina, do Machado de Assis a quem aprendi a amar menino e
não o largo até hoje. Vou lhe contar: os meus primeiros versos já me saíram
medidos. Vi quando um colega meu morreu afogado, na ribanceira do meio dia, de
tardinha. Quando foi de noite, disse em voz alta e fui logo escrevendo: “Vi meu
amigo morrer/ Afundando no perau./ O que vai acontecer?”. Era um terceto em
redondilhas, só mais tarde é que aprendi. Bandeira gostava do meu
tercetozinho, ria muito me advertindo: “Você já andava de criança mexendo com a
morte!”
Estou de acordo com a primeira parte da pergunta final: acho, sim, que os jovens estão complicando o caminho de dar com a poesia, me chegam originais que sinceramente não consigo entender e alguns mostram deficiente manejo do idioma. Os poetas moços são pouco lidos, porque raros os que encontram editores, muitos pagam o custo da edição (o que autores maduros também fazem), alguns publicam por conta própria. Por sorte, cresce o número de revistas e publicações que dão acesso aos poetas e escritores moços. No mais, o forte do Brasil nunca foi a leitura. A população aumenta, a tiragem dos livros diminui. Edita-se para iniciados. (Trecho da Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar)
"Misturando prosa e poesia, crônica e até anúncio imobiliário, o amazonense de Barreirinha, o cidadão do mundo, o personagem de nossa época, o poeta de A Canção do Amor Armado penetra na memória, obtendo a síntese do urbano e do telúrico, do lírico e do social. Comprometido com a sua terra e com a sua gente, de uma vez por todas Thiago de Mello assume a expressão de um poeta verdadeiramente universal.(CARLOS HEITOR CONY)
“A candente autenticidade de seus versos decorre, além do mais, da firme coerência que existe entre a obra e o modo de ser do poeta. Não se fechando em gabinetes, ele se põe por inteiro nessa luta em busca da justiça e da dignidade, e tem pago duro preço por isso, inclusive detenções arbitrárias e o amargor do exílio."(ÊNIO SILVEIRA)
Estou de acordo com a primeira parte da pergunta final: acho, sim, que os jovens estão complicando o caminho de dar com a poesia, me chegam originais que sinceramente não consigo entender e alguns mostram deficiente manejo do idioma. Os poetas moços são pouco lidos, porque raros os que encontram editores, muitos pagam o custo da edição (o que autores maduros também fazem), alguns publicam por conta própria. Por sorte, cresce o número de revistas e publicações que dão acesso aos poetas e escritores moços. No mais, o forte do Brasil nunca foi a leitura. A população aumenta, a tiragem dos livros diminui. Edita-se para iniciados. (Trecho da Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar)
"Misturando prosa e poesia, crônica e até anúncio imobiliário, o amazonense de Barreirinha, o cidadão do mundo, o personagem de nossa época, o poeta de A Canção do Amor Armado penetra na memória, obtendo a síntese do urbano e do telúrico, do lírico e do social. Comprometido com a sua terra e com a sua gente, de uma vez por todas Thiago de Mello assume a expressão de um poeta verdadeiramente universal.(CARLOS HEITOR CONY)
“A candente autenticidade de seus versos decorre, além do mais, da firme coerência que existe entre a obra e o modo de ser do poeta. Não se fechando em gabinetes, ele se põe por inteiro nessa luta em busca da justiça e da dignidade, e tem pago duro preço por isso, inclusive detenções arbitrárias e o amargor do exílio."(ÊNIO SILVEIRA)
Os
estatutos do homem
ARTIGO I.
Fica
decretado que agora vale a verdade,
que agora
vale a vida,
e que, de
mãos dadas,
trabalharemos
todos pela vida verdadeira.
ARTIGO
II.
Fica
decretado que todos os dias da semana,
inclusive
as terças-feiras mais cinzentas,
têm
direito a converter-se em manhãs de domingo.
ARTIGO
III.
Fica
decretado que, a partir deste instante,
haverá
girassóis em todas as janelas,
que os
girassóis terão direito
a
abrir-se dentro da sombra;
e que as
janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas
para o verde onde cresce a esperança.
ARTIGO
IV.
Fica
decretado que o homem
não
precisará nunca mais
duvidar
do homem.
Que o
homem confiará no homem
como a
palmeira confia no vento,
como o
vento confia no ar,
como o ar
confia no campo azul do céu.
PARÁGRAFO
ÚNICO:
O homem
confiará no homem
como um
menino confia em outro menino.
ARTIGO V.
Fica
decretado que os homens
estão
livres do jugo da mentira.
Nunca
mais será preciso usar
a couraça
do silêncio
nem a
armadura de palavras.
O homem
se sentará à mesa
com seu
olhar limpo
porque a
verdade passará a ser servida
antes da
sobremesa.
ARTIGO
VI.
Fica
estabelecida, durante os séculos da vida,
a prática
sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo
e o cordeiro pastarão juntos
e a
comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
ARTIGO
VII.
Por
decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado
permanente da justiça e da claridade,
e a
alegria será uma bandeira generosa
para
sempre desfraldada na alma do povo.
ARTIGO
VIII.
Fica
decretado que a maior dor
sempre
foi e será sempre
não poder
dar-se amor a quem se ama
sabendo
que é a água
que dá à
planta o milagre da flor.
ARTIGO
IX.
Fica
permitido que o pão de cada dia
tenha no
homem o sinal de seu suor.
Mas que
sobretudo tenha sempre
o quente
sabor da ternura.
ARTIGO X.
Fica
permitido a qualquer pessoa,
a
qualquer hora da vida,
o uso do
traje branco.
ARTIGO
XI.
Fica
decretado, por definição,
que o
homem é um animal que ama
e que por
isso é belo,
muito
mais belo que a estrela da manhã.
ARTIGO
XII.
Decreta-se
que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será
permitido,
inclusive
brincar com os rinocerontes
e caminhar
pelas tardes
com uma
imensa begônia na lapela.
PARÁGRAFO
ÚNICO:
Só uma
coisa fica proibida:
amar sem
amor.
ARTIGO
XIII.
Fica
decretado que o dinheiro
não
poderá nunca mais comprar
o sol das
manhãs vindouras.
Expulso
do grande baú do medo,
o dinheiro
se transformará em uma espada fraternal
para
defender o direito de cantar
e a festa
do dia que chegou.
ARTIGO
FINAL.
Fica
proibido o uso da palavra liberdade,
a qual
será suprimida dos dicionários
e do
pântano enganoso das bocas.
A partir
deste instante
a
liberdade será algo vivo e transparente
como um
fogo ou um rio,
e a sua
morada será sempre
o coração
do homem.
A vida
verdadeira
Pois aqui
está a minha vida.
Pronta
para ser usada.
Vida que
não se guarda
nem se
esquiva, assustada.
Vida sempre
a serviço
da vida.
Para
servir ao que vale
a pena e
o preço do amor.
Ainda que
o gesto me doa,
não
encolho a mão: avanço
levando
um ramo de sol.
Mesmo
enrolada de pó,
dentro da
noite mais fria,
a vida
que vai comigo
é fogo:
está
sempre acesa.
Vem da
terra dos barrancos
o jeito
doce e violento
da minha
vida: esse gosto
da água
negra transparente.
A vida
vai no meu peito,
mas é
quem vai me levando:
tição
ardente velando,
girassol
na escuridão.
Carrego
um grito que cresce
cada vez
mais na garganta,
cravando
seu travo triste
na
verdade do meu canto.
Canto
molhado e barrento
de menino
do Amazonas
que viu a
vida crescer
nos
centros da terra firme.
Que sabe
a vinda da chuva
pelo
estremecer dos verdes
e sabe
ler os recados
que
chegam na asa do vento.
Mas sabe
também o tempo
da febre
e o gosto da fome.
Nas águas
da minha infância
perdi o
medo entre os rebojos.
Por isso
avanço cantando.
Estou no
centro do rio,
estou no
meio da praça.
Piso
firme no meu chão,
sei que
estou no meu lugar,
como a
panela no fogo
e a
estrela na escuridão.
O que
passou não conta?, indagarão
as bocas
desprovidas.
Não deixa
de valer nunca.
O que
passou ensina
com sua
garra e seu mel.
Por isso
é que agora vou assim
no meu
caminho. Publicamente andando.
Não, não
tenho caminho novo.
O que
tenho de novo
é o jeito
de caminhar.
Aprendi
(o
caminho me ensinou)
a
caminhar cantando
como
convém
a mim
e aos que
vão comigo.
Pois já
não vou mais sozinho.
Aqui
tenho a minha vida:
feita à
imagem do menino
que
continua varando
os campos
gerais
e que
reparte o seu canto
como o
seu avô
repartia
o cacau
e fazia
da colheita
uma ilha
de bom socorro.
Feita à
imagem do menino
mas à
semelhança do homem:
com tudo
que ele tem de primavera
de
valente esperança e rebeldia.
Vida,
casa encantada,
onde eu
moro e mora em mim,
te quero
assim verdadeira
cheirando
a manga e jasmim.
Que me
sejas deslumbrada
como
ternura de moça
rolando
sobre o capim.
Vida,
toalha limpa,
vida
posta na mesa,
vida
brasa vigilante,
vida
pedra e espuma,
alçapão
de amapolas,
o sol
dentro do mar,
estrume e
rosa do amor:
a vida.
Há que
merecê-la.
A aprendizagem
amarga
Chega um
dia em que o dia se termina
antes que
a noite caia inteiramente.
Chega um
dia em que a mão, já no caminho,
de
repente se esquece do seu gesto.
Chega um
dia em que a lenha já não chega
para
acender o fogo da lareira.
Chega um
dia em que o amor, que era infinito,
de
repente se acaba, de repente.
Força é
saber amar, perto e distante,
com o
encanto de rosa livre na haste,
para que
o amor ferido não se acabe
na
eternidade amarga de um instante.
Botão de
rosa
Nos
recôncavos da vida
jaz a
morte.
Germinando
no
silêncio.
Floresce
como um
girassol no escuro.
De
repente vai se abrir.
No meio
da vida, a morte
jaz
profundamente viva.
EPITÁFIO
O canto
desse menino
talvez
tenha sido em vão.
Mas ele
fez o que pôde.
Fez sobretudo
o que sempre
lhe
mandava o coração.
Algumas obras do autor:
Poemas:
Silêncio e Palavra, 1951
Narciso Cego, 1952
A Lenda da Rosa, 1956
Vento Geral, 1960 (reunião dos livros anteriores e mais dois inéditos: Tenebrosa Acqua e Ponderações que faz o defunto aos que lhe fazem o velório)
Faz Escuro, mas eu Canto, 1965
A Canção do Amor Armado, 1966
Poesia comprometida com a minha e a tua vida, 1975
Os Estatutos do Homem, 1977 (com desenhos de Aldemir Martins)
Horóscopo para os que estão Vivos, 1984
Mormaço na Floresta, 1984
Vento Geral – Poesia 1951-1981, 1981
Num Campo de Margaridas, 1986
De uma Vez por Todas, 1996
Silêncio e Palavra, 1951
Narciso Cego, 1952
A Lenda da Rosa, 1956
Vento Geral, 1960 (reunião dos livros anteriores e mais dois inéditos: Tenebrosa Acqua e Ponderações que faz o defunto aos que lhe fazem o velório)
Faz Escuro, mas eu Canto, 1965
A Canção do Amor Armado, 1966
Poesia comprometida com a minha e a tua vida, 1975
Os Estatutos do Homem, 1977 (com desenhos de Aldemir Martins)
Horóscopo para os que estão Vivos, 1984
Mormaço na Floresta, 1984
Vento Geral – Poesia 1951-1981, 1981
Num Campo de Margaridas, 1986
De uma Vez por Todas, 1996
Prosa:
Notícia da Visitação que fiz no Verão de 1953 ao rio Amazonas e seus Barrancos, 1957
A Estrela da Manhã, 1968;
Arte e Ciência de Empinar Papagaio, 1983
Manaus, Amor e Memória, 1984
Amazonas, Pátria da Água, 1991 (edição de luxo, bilíngüe (português e inglês), com fotografias de Luiz Cláudio Marigo).
Amazônia — A Menina dos Olhos do Mundo, 1992
O Povo sabe o que Diz, 1993
Borges na Luz de Borges, 1993.
Notícia da Visitação que fiz no Verão de 1953 ao rio Amazonas e seus Barrancos, 1957
A Estrela da Manhã, 1968;
Arte e Ciência de Empinar Papagaio, 1983
Manaus, Amor e Memória, 1984
Amazonas, Pátria da Água, 1991 (edição de luxo, bilíngüe (português e inglês), com fotografias de Luiz Cláudio Marigo).
Amazônia — A Menina dos Olhos do Mundo, 1992
O Povo sabe o que Diz, 1993
Borges na Luz de Borges, 1993.
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