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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Breves notícias deThiago de Mello


 A poesia-seiva

 

“Thiago de Mello é um poeta na contramão da modernidade e isso bastaria para distanciá-lo de seus pares, mas há ainda um fator circunstancial a considerar: desde que retornou do exílio, em 1978, voltou a viver na distante Barreirinha, pequena vila de 5 mil habitantes encravada no Baixo Amazonas, em pleno coração da floresta. Quando volta do sul do País, depois de voar até Manaus e de lá num pequeno avião até Parintins, o poeta ainda é obrigado a enfrentar uma longa viagem de barco, de mais de cinco horas, até chegar em casa.” (JOSÉ CASTELLO)

“Precisamos do menino que você guarda em você e que ajuda a ser mais homem o homem que você é. Agüente o barco, querido amigo! Muitas madrugadas, cheias de orvalho macio, esperam por você. Andarilho da liberdade, você tem ainda muitos trilhos a percorrer; seus braços longos, muitas crianças a abraçar; suas mãos, muitos poemas a escrever."(PAULO FREIRE)

 

 

Thiago de Mello é de Barreirinha, coração do Amazonas, do dia 30 de março de 1926. Em Manaus, capital do Estado, fez seus primeiros estudos. Foi para o Rio de Janeiro (RJ) e fez Faculdade de Medicina até o quarto ano (trocou o curso por poesia!).
 
Os poetas Moises de Melo Neto e o Mestre Thiago de Mello
 

Luta direitos humanos, pela ecologia e pela paz mundial, sendo perseguido pela ditadura militar implantada no Brasil em 1964 se exilou no Chile, até a queda de Salvador Allende. Tem trabalhos publicados no Chile, Portugal, Uruguai, Estados Unidos da América, Argentina, Alemanha, Cuba, França e outros mais. É tradutor de Nicolas Guillén, Pablo Neruda, T. S. Elliot, César Vallejo, Eliseo Diego e Ernesto Cardenal.

Eis um trecho de um dos seus mais belos poemas:

 

 

A fruta aberta


Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.


Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.


(...) Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

(Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962)

 

Thiago declarou: Trabalho muito para alcançar a simplicidade. Escrever difícil é muito fácil. Difícil e trabalhoso é chegar a uma linguagem que, sem perder o seu compromisso fundamental que é com a arte poética, seja acessível, a metáfora se abrindo feliz, ambígua, deixando que o leitor veja nela o que os seus olhos sabem enxergar. Você lê bem: preservo a métrica e o ritmo. Mas os meus versos livres, que não são poucos, têm cadência e principalmente música. A música é matéria prima do verso. Porventura a inclinação natural pelo verso medido me venha da infância, da leitura em voz alta, no Grupo Escolar José Paranaguá, em Manaus, dos versos cadenciados dos Meus oito anos, do Casimiro, do Y-Juca-Pirama, do Gonçalves Dias, do A Carolina, do Machado de Assis  a quem aprendi a amar menino e não o largo até hoje. Vou lhe contar: os meus primeiros versos já me saíram medidos. Vi quando um colega meu morreu afogado, na ribanceira do meio dia, de tardinha. Quando foi de noite, disse em voz alta e fui logo escrevendo: “Vi meu amigo morrer/ Afundando no perau./ O que vai acontecer?”. Era um terceto em redondilhas, só mais tarde  é que aprendi. Bandeira gostava do meu tercetozinho, ria muito me advertindo: “Você já andava de criança mexendo com a morte!” 
Estou de acordo com a primeira parte da pergunta final: acho, sim, que os jovens estão complicando o caminho de dar com a poesia, me chegam originais que sinceramente não consigo entender e alguns mostram deficiente manejo do idioma. Os poetas moços são pouco lidos, porque raros os que encontram editores, muitos pagam o custo da edição (o que autores maduros também fazem), alguns publicam por conta própria. Por sorte, cresce o número de revistas e publicações que dão acesso aos poetas e escritores moços.  No mais, o forte do Brasil nunca foi a leitura. A população aumenta, a tiragem dos livros diminui. Edita-se para iniciados.  (Trecho da Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar)

"Misturando prosa e poesia, crônica e até anúncio imobiliário, o amazonense de Barreirinha, o cidadão do mundo, o personagem de nossa época, o poeta de A Canção do Amor Armado penetra na memória, obtendo a síntese do urbano e do telúrico, do lírico e do social. Comprometido com a sua terra e com a sua gente, de uma vez por todas Thiago de Mello assume a expressão de um poeta verdadeiramente universal.(CARLOS HEITOR CONY)

“A candente autenticidade de seus versos decorre, além do mais, da firme coerência que existe entre a obra e o modo de ser do poeta. Não se fechando em gabinetes, ele se põe por inteiro nessa luta em busca da justiça e da dignidade, e tem pago duro preço por isso, inclusive detenções arbitrárias e o amargor do exílio."(ÊNIO SILVEIRA)


 

Os estatutos do homem

 

ARTIGO I.

 

Fica decretado que agora vale a verdade,

que agora vale a vida,

e que, de mãos dadas,

trabalharemos todos pela vida verdadeira.

 

ARTIGO II.

 

Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

 

ARTIGO III.

 

Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.

 

ARTIGO IV.

 

Fica decretado que o homem

não precisará nunca mais

duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem

como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar,

como o ar confia no campo azul do céu.

 

PARÁGRAFO ÚNICO:

 

O homem confiará no homem

como um menino confia em outro menino.

 

ARTIGO V.

 

Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.

 

ARTIGO VI.

 

Fica estabelecida, durante os séculos da vida,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

 

ARTIGO VII.

 

Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.

 

ARTIGO VIII.

 

Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre

não poder dar-se amor a quem se ama

sabendo que é a água

que dá à planta o milagre da flor.

 

ARTIGO IX.

 

Fica permitido que o pão de cada dia

tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha sempre

o quente sabor da ternura.

 

ARTIGO X.

 

Fica permitido a qualquer pessoa,

a qualquer hora da vida,

o uso do traje branco.

 

ARTIGO XI.

 

Fica decretado, por definição,

que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo,

muito mais belo que a estrela da manhã.

 

ARTIGO XII.

 

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.

Tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.

 

PARÁGRAFO ÚNICO:

 

Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

 

ARTIGO XIII.

 

Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.

 

ARTIGO FINAL.

 

Fica proibido o uso da palavra liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

 

A vida verdadeira

 

Pois aqui está a minha vida.

Pronta para ser usada.

 

Vida que não se guarda

nem se esquiva, assustada.

Vida sempre a serviço

da vida.

Para servir ao que vale

a pena e o preço do amor.

 

Ainda que o gesto me doa,

não encolho a mão: avanço

levando um ramo de sol.

Mesmo enrolada de pó,

dentro da noite mais fria,

a vida que vai comigo

é fogo:

está sempre acesa.

 

Vem da terra dos barrancos

o jeito doce e violento

da minha vida: esse gosto

da água negra transparente.

 

A vida vai no meu peito,

mas é quem vai me levando:

tição ardente velando,

girassol na escuridão.

 

Carrego um grito que cresce

cada vez mais na garganta,

cravando seu travo triste

na verdade do meu canto.

 

Canto molhado e barrento

de menino do Amazonas

que viu a vida crescer

nos centros da terra firme.

Que sabe a vinda da chuva

pelo estremecer dos verdes

e sabe ler os recados

que chegam na asa do vento.

Mas sabe também o tempo

da febre e o gosto da fome.

 

Nas águas da minha infância

perdi o medo entre os rebojos.

Por isso avanço cantando.

 

Estou no centro do rio,

estou no meio da praça.

Piso firme no meu chão,

sei que estou no meu lugar,

como a panela no fogo

e a estrela na escuridão.

 

O que passou não conta?, indagarão

as bocas desprovidas.

 

Não deixa de valer nunca.

O que passou ensina

com sua garra e seu mel.

 

Por isso é que agora vou assim

no meu caminho. Publicamente andando.

 

Não, não tenho caminho novo.

O que tenho de novo

é o jeito de caminhar.

Aprendi

(o caminho me ensinou)

a caminhar cantando

como convém

a mim

e aos que vão comigo.

Pois já não vou mais sozinho.

 

Aqui tenho a minha vida:

feita à imagem do menino

que continua varando

os campos gerais

e que reparte o seu canto

como o seu avô

repartia o cacau

e fazia da colheita

uma ilha de bom socorro.

 

Feita à imagem do menino

mas à semelhança do homem:

com tudo que ele tem de primavera

de valente esperança e rebeldia.

 

Vida, casa encantada,

onde eu moro e mora em mim,

te quero assim verdadeira

cheirando a manga e jasmim.

Que me sejas deslumbrada

como ternura de moça

rolando sobre o capim.

 

Vida, toalha limpa,

vida posta na mesa,

vida brasa vigilante,

vida pedra e espuma,

alçapão de amapolas,

o sol dentro do mar,

estrume e rosa do amor:

a vida.

 

Há que merecê-la.

 

 

 

A aprendizagem amarga

  

Chega um dia em que o dia se termina

antes que a noite caia inteiramente.

Chega um dia em que a mão, já no caminho,

de repente se esquece do seu gesto.

Chega um dia em que a lenha já não chega

para acender o fogo da lareira.

Chega um dia em que o amor, que era infinito,

de repente se acaba, de repente.

 

Força é saber amar, perto e distante,

com o encanto de rosa livre na haste,

para que o amor ferido não se acabe

na eternidade amarga de um instante.

 

Botão de rosa

 

Nos recôncavos da vida

jaz a morte.

                Germinando

no silêncio.

                Floresce

como um girassol no escuro.

De repente vai se abrir.

No meio da vida, a morte

jaz profundamente viva.

 

EPITÁFIO

 

O canto desse menino

talvez tenha sido em vão.

Mas ele fez o que pôde.

Fez sobretudo o que sempre

lhe mandava o coração.

 


Algumas obras do autor:

Poemas:

Silêncio e Palavra, 1951

Narciso Cego, 1952

A Lenda da Rosa, 1956

Vento Geral, 1960 (reunião dos livros anteriores e mais dois inéditos: Tenebrosa Acqua e Ponderações que faz o defunto aos que lhe fazem o velório)

Faz Escuro, mas eu Canto, 1965

A Canção do Amor Armado, 1966

Poesia comprometida com a minha e a tua vida, 1975

Os Estatutos do Homem, 1977 (com desenhos de Aldemir Martins)

Horóscopo para os que estão Vivos, 1984

Mormaço na Floresta, 1984

Vento Geral – Poesia 1951-1981, 1981

Num Campo de Margaridas, 1986

De uma Vez por Todas, 1996

Prosa:

Notícia da Visitação que fiz no Verão de 1953 ao rio Amazonas e seus Barrancos, 1957

A Estrela da Manhã, 1968;

Arte e Ciência de Empinar Papagaio, 1983

Manaus, Amor e Memória, 1984

Amazonas, Pátria da Água, 1991 (edição de luxo, bilíngüe (português e inglês), com fotografias de Luiz Cláudio Marigo).

Amazônia — A Menina dos Olhos do Mundo, 1992

O Povo sabe o que Diz, 1993

Borges na Luz de Borges, 1993.

 

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