Vale
ler Catálogo de Luzes, de José Eduardo Agualusa, da editora Gryphus; o
angolano tem 20 anos de publicação de crônicas, contos e romances. Atenção para
o conto O Inferno de Borges:
Jorge
Luis Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para
melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou
a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu
que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos,
inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava
estendido de costas numa plantação de bananeiras.
Aquilo
deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso
como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de corredores,
escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e
todos eles com livros empilhados até o tecto.
Levantou-se.
Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se desconfortável dentro
do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando morremos reencarnamos
jovens e Borges não se recordava de como isso era). Caminhou devagar entre
as bananeiras.
Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as coisas.
Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as coisas.
A
plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida começou a
atormentá-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no inferno.
Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes, os pesados
cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu imensamente azul.
Borges lamentava a ausência de livros. Se ali ao menos existissem tigres –
tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do
dorso –, se houvesse algures um labirinto, ou uma esquina
cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras,
bananeiras, ainda bananeiras.
Bananeiras
a perder de vista.
Percorreu
sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita plantação. Era como se
andasse em círculos. Era como se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo – além do mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre bananeiras?
andasse em círculos. Era como se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo – além do mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre bananeiras?
Borges
não gostava da América Latina. A Argentina, como se sabe, é um país
europeu (ou quase), que por desgraça faz fronteira com o Brasil, Chile,
Uruguai e Paraguai. Para Borges, aquele quase sempre foi um espinho
cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ele ainda
tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso
estavam mortos. O pior eram os negros e os mestiços, gente capaz de
transformar o grande drama da vida – da vida, meu Deus! – numa
festa ruidosa. Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos
gregos (gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso
das velhas catedrais.
Foi
então que a viu. À sua frente uma mulher flutuava, pálida e nua, sobre
as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado para o sol e as mãos
pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso para Borges não tinha
grande importância (a especialidade dele sempre foram os tigres).
Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o com outro escritor
latino-americano. Aquele paraíso fora construído, só podia ter sido
construído, a pensar em Gabriel García Marquez.
Jorge
Luis Borges sentou-se sobre a terra úmida. Levantou o braço, colheu uma
banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel García Marquez e voltou a
experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o escritor
colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor longínquo da
noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o lajedo frio de
uma biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará
outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos
eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto
infinito, forrado de estantes até o tecto, e nessas estantes todos os
livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de palavras
em todas as línguas dos homens.
Jorge
Luis Borges descascou outra banana e nesse momento um sorriso – ou algo
como um sorriso – iluminou-lhe o rosto. Começava a adivinhar naquele
equívoco cruel um inesperado sentido: sendo certo que o paraíso do outro
era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de ser, certamente,
o inferno do outro. Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa.
Era um bom inferno, aquele.
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