Cruz e Souza e o Simbolismo
"A música da morte, a nebulosa,
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
Letes sinistro e torvo de agonia,
Recresce e lancinante sinfonia,
Sobe, numa volúpia dolorosa
Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina
E alucinado e em trevas delirando,
Como um ópio letal, vertiginando,
Os meus nervos, letárgica, fascina..."
( Cruz e Souza in "Música da morte" )
Numa época em que os homens estavam confiando muito neles mesmos e na ciência , quando a literatura produziu obras de cunho realista, naturalista ou mesmo parnasianas que tentaram destruir o sonho Romântico de uma vez por todas , surge um grupo de poetas que apostaram todas as fichas num sonho de transcendência: foram os Simbolistas . Mais uma vez, a França servia de berço para uma vanguarda literária. É certo que o precursor era um poeta norte- americano : Edgar Alan Poe era o seu nome ( seu principal poema é "O Corvo" -1845- que expõe um viúvo a lamentar- se da morte da esposa, Lenora e é então visitado por um estranho corvo, símbolo do além , numa noite de mistérios). Poe escrevia histórias de terror (contos), ensaios e poemas. O pobre Edgar comeu o pão que o diabo amassou numa sociedade conservadora como era a americana. Do mesmo modo, os poetas franceses simbolistas também foram chamados de malditos (eram pessimistas às vezes) ou decadentistas ( "religião, costumes , justiça, tudo decai...") .
Em comum com o Parnasianismo: preocupação com a forma, culto à rima, preferência pelo soneto, distanciamento da vida "comum" - viviam numa espécie de torre- de- marfim, eram chamados também nefelibatas (viviam nas "nuvens" ).
Poetas franceses(Simbolistas): Baudelaire (buscou aproximar o físico do metafísico- a "a teoria das correspondências") . Verlaine ( experimentou a musicalidade), Mallarmé (hermetismo, rebeldia sintático- semântica). Rimbaud(alquimia vocabular, o poder encantatório do vocábulo) . É comum nestes poetas a ruptura com o descritivo e linear (eles preferiam sugerir) , o fluxo de consciência, a sondagem da memória.
No Brasil, dois poetas marcaram o Simbolismo: Alphonsus de Guimaraens(saudosismo e o culto a Maria) e Cruz e Souza (o corpo como o cárcere da alma). Foi com a publicação de "Missal"(poemas em prosa) e "Broquéis" (pequenos escudos), da autoria do último, que se instaurou este movimento por aqui. O "final "do Simbolismo brasileiro seria em 1922, mas outros preferem 1902, com a publicação de " Os Sertôes", de Euclides da Cunha.
Principais características: negação do Positivismo, do Cientificismo e do Materialismo( por tabela: Realismo e Naturalismo ). Podemos dizer que o Simbolismo intensificou a experiência Romântica , buscando uma poética do inconsciente, da intuição, da sugestão , do eu- profundo , da associação de idéia e imagens. Tudo isso permeado de espiritualidade, misticismo, subjetivismo, ocultismo, num tom vago, impreciso, usando por vezes a sinestesia (fusão dos sentidos. Ex.: "Nasce a manhã, a luz tem cheiro(...) Oh sonora audição colorida do aroma!" - A. Guimaraens) , musicalidade - aliteração e assonância - ( "E as cantilenas de serenos sons amenos,/ fogem fluidas fluindo à fina flor dos fenos" - Eugênio Castro). Usavam também letras maiúsculas alegorizantes ("Indefiníveis músicas supremas/ Harmonias da Cor e do Perfume.../ Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,/ Réquiem do sol que a Dor da luz resume"- Cruz e Souza), amplo uso das reticências, dando o tom vago, impreciso. Devemos lembrar do uso das cores e a fixação pela cor branca.
Neste contexto, surge no Brasil esta poesia de João da Cruz e Souza (Santa Catarina,1861- Minas Gerais ,1898). Seus pais foram ex- escravos . Apelidado de o "Dante Negro" (numa alusão ao poeta- maior da Itália ), herdou a preocupação formal parnasiana, porém sua temática era diferente: mistérios da vida e da morte, do enigma da existência de Deus e, utilizando uma linguagem rica e exuberante, falou também dos miseráveis e marginalizados.
O simbolista Cruz e Souza foi nosso grande triste monge, ermitão, anjo demônio, santo, cético, nababo ou miserável. Expôs sua escala de sensações, inventariando com rara meticulosidade e de forma inovadora, sua lírica insólita, sua singular "tortura " existencial.
A cor branca, a alma , a musicalidade , o transcendente, o infinito, a fuga do tédio absoluto , a tentativa de superar o que as conveniências sociais exigem, protegeram Cruz e Souza contra os assaltos da lucidez: "Apaguem o sol, apaguem o sol. Extingam a luz desta supérflua lamparina de ouro que nos ofusca e irrita. Inútil tudo , minha atroz fatalidade, nascido dotado com os peregrinos dons intelectuais , estas nobres mãos feitas para a colheita dos astros . Pesado cárcere da matéria, irei tragando todas as ofensas, as ironiazinhas e ainda curvar a fronte e mostrar - me oco, cair de joelhos, babando e beijando o chão , emudecer para que não sintam as ansiedades que trago, os idealismos que carrego através das avenidas sombrias da minha alma ".
Este poeta catarinense, que durante toda sua vida padeceu com o preconceito racial, morreu na miséria, porém sempre pairou acima do turbilhão humano do Brasil de sua época. Seu verbo era inflamado com vertigens e chamas. Evitou ao máximo a flor tóxica da perversidade. Falou baixo nos instantes vesgos e oblíquos em que sua dor o maltratava. Ele não era deste mundo, seu mundo era o dos sonhos. Sua arte elevava-o às esferas celestes ou afogava- o em infernos multidimensionais. Gigantescas escadas em confusas espirais babélicas, labirínticas . Ele bateu em portas que não se abriram , nem se abrirão.
As estrelas foram seu consolo quando seu espírito, perdido em errante sofrimento, era presa dolorosa dos ritmos sombrios do infinito, vagava tristemente. Aquele negro sem mistura, nascido escravo, sem família, alforriado por padrinhos brancos que lhe deram o sobrenome e o protegeram até onde se pode "proteger" alguém. Jornalista e secretário de uma companhia teatral, foi , com muito esforço, nomeado para promotor, porém impedido de assumir por causa da sua cor. Casou-se com uma afro-brasileira e teve quatro filhos, todos mortos prematuramente( o que mais viveu chegou aos dezessete). Sua esposa enlouquece e Cruz (já a carregava até no nome! ), tuberculoso, morre pobre. Seu corpo é carregado, sem caixão, num vagão de animais.
Sua obra completa foi publicada pela Editora Nova Aguilar (Prosa e Poesia) em 1961.
Sinestesia, léxico abstrato, uso de maiúsculas intermediárias (para apontar o absoluto) , rigor com a forma , depuração estética, tom elegíaco, pessimismo, materialismo, desespero existencial, misticismo , poesia como válvula de escape de tensões interiores e compensação das insatisfações (individualismo?), desajuste social. Assim escreveu Cruz e Souza, assim atravessou este silêncio escuro de trágicos deveres .
Nenhum comentário:
Postar um comentário