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domingo, 29 de dezembro de 2013

Professor Dr. Moisés de Melo Neto comenta Mauro Mota

Mauro Mota

Nasceu em 1911, no Recife, com raízes em Nazaré da Mata (norte da região canavieira de PE). Mauro Mota, em 1970, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Seu último livro de poemas, O galo e o Cata-Vento, surgiu em 1962. Viveu muito tempo nas feiras, nas ruas com gente do povo, com os senhores de engenho da região. (a vida regulando-se pela safra da cana, festas, procissões e feriados cívicos).
 
Estudou no Recife (Colégio Salesiano). Formou-se em Direito (1937), mas dedicou-se ao jornalismo. Estreou em livro em 1952 com Elegias, temática do autor, com esse livro conquistou o “Prêmio Olavo Bilac” da Academia Brasileira de Letras.
Foi prestigiado pela crítica como grande poeta, principalmente como lírico de grande potencial verbal e extraordinária imagística. Mauro produziu também em prosa crônica, folclore, estudos de sociologia regional e geografia sempre usando um discurso claro, nítido e elegante apesar do apoio científico.
Mauro conseguiu misturar poesia e ciência sem comprometer a exposição objetiva.
Mauro foi professor, Diretor do Diário de Pernambuco, Diretor-Executivo do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (1956/1970). Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Pernambucana de Letras. Tem poemas traduzidos em inglês, francês, italiano e castelhano.
As Elegias de Mota denunciam o melhor do poeta. Ele se descobre pela dor e, através dela, revela sua riqueza melódica. Usou da forma clássica e do ritmo interior. O seu canto de desalento concentrou-se em imagens e ritmos de um grande poeta. Dor a sua que não roda como o moinho sentimental de Casimiro de Abreu mas que se expande em música de um Schumann, no mais fungente recordar do amor desfeito”. (José Lins do Rego in Diário de Pernambuco, Recife, 29 de janeiro de 1953).
As lembranças são muitas. Coisas e pessoas cercam o poeta e a relação dele com elas nunca é neutra. A poesia possibilitou ao poeta Mauro Mota o reviver em outra dimensão, um tempo e um espaço. O que aconteceu é chamado pelo poeta. Na prosa as coisas fluem de modo mais trivial, mas o senso poético o domina.
Mota é o poeta de cotidianos suburbanos, o tradicionalista que se soma ao regionalista. Cantou a mulher amada que, praticamente, viu morrer em seus braços, bela e jovem, em elegias clássicas. Cantou as tecelãs humildes, subúrbios humildes, cotidianos brasileiramente humildes. Identificou-se profundamente com as raízes mais raízes da vida de sua cidade, de sua província, de sua região, de seu país. Isto tudo em palavras poéticas distantes das convencionais ou poem´ticas. Os doces, pacatos, tranquilos subúrbios de cidades provincianas, mas especificamente do Recife: “Recife rica de subúrbios franciscanamente simples e naturais,” “brasileiras casas de porta-e-janela ou de pequenos chalés”. Os subúrbios revividos com melancolia:






Rua Real da Torre

Ó Rua Real da torre,
que mistérios ocultais
nos chalés mal-assombrados
que aos fantasmas alugais?

Nos cemitérios e sítios?
nas casas de telha vã?
nos crepúsculos pousados
nas copas dos flamboyants?

Um cheiro de moça noiva
chega dos velhos jardins.
ressurgem tranças com ramos
de resedás e jasmins.
Os vizinhos nas calçadas
logo depois do jantar.
Cadeiras de lona se abrem
para as almas conversar.
  


O passado é ativado, iluminado pelo sol da atenção e se faz presente na poesia.
A casa (espaço) para Mauro Mota é o núcleo central das recordações, ponto de partida para uma poética de adesão ao spaço e ao tempo. Pela recordação o eu-poético toda o que há de mais profundo na casa. Esta é o “abrigo”, “proteção”, “ninho de lembranças”, “integração dos pensamentos e sonhos”: continuação do colo materno, algo vivo no poeta:


Mudança

“Não ficaram na mudança nem o pé de sabugueiro
e o cheiro dos cajás, os passos da mãe no corredor,
a noite, o medo do papa-figo, as sombras na parede.

A casa inverte a missão domiciliar, sai da rua.
A casa agora mora no antigo habitante.”



Ao falar da casa o poeta a reconstrói intelectualmente e emocionalmente. Ele a refaz. Não é a mesma em que viveu, mas a que sente. A casa, as vozes, os chalés...


A casa

“Debruço-me de fora
onde havia a janela.
Nuvem ou caixa extinta?
Lá estou como eu era.

Que pássaro imigrante
pousa na cumeeira?
Que neblina umedece
as paredes aéreas?

Quem me chama ou me leva
quando o espaço transponho?
só o verde das heras
sobre as vozes e o sonho.”



Os Inquilinos

“Nos quartos da casa
moram os fantasmas
dos avós
inquilinos, mais
que a gente, têm medo
de ficar sós.”



A gaveta

“Torço a chave.
Geme
a gaveta.

Remos na fotografia
o passeio de canoa
no domingo fluvial.

O soneto do estudante,
a certidão, a receita,
o anel sem dedo.

Luciana na caixa verde,
batem nos dentes de leite
os bombons pelo Natal.

O livro dos endereços
(Para onde, agora?)
O telegrama chama.

Torço a chave.
Geme a gaveta.
(O aperto de mão da luva sem mão)”




Lembrança

Tua lembrança chega esta noite
depois de percorrer longos caminhos do espaço
rompidos pelas músicas da distância.
Sinto a alma toda aberta, pura, branca, horizontal,
tua lembrança pousando
suave e leve
como o azul cai do céu na superfície estática das águas.
Como uma sombra de criança num jardim de organato.
Como uma réstia de luar desce da claraboia e pousa no rosto pálido de
[uma moça doente.




Ceia

“Revemos a família antiga em volta
desses cacos de louça do quintal.”




Cheiros

“O cheiro dos jasmins, do cajueiro, da alfazema,
da cozinha (café torrado, charque assada)
o cheiro da Lindalva,
(banho de chuveiro, sabonete)
do peixe frito na esquina do Colégio,
da loção do cabeleireiro José Mateus,
do extrato no lenço do almofadinha Jonas Garcia”.



A casa, os sobrados, os chalés, as ruas são relicários do passado que abrigam e conservam o que o tempo destruiu. Mesmo assim, esses espaços preservam sua fidelidade ao vivido, morada dos fantasmas, dos que se foram:
Os jardins e o cheiro de moça noiva de outrora...
Um transeunte noturno fechando a janela do oitão...


Rua morta

“Longa rua distante de subúrbio,
velha e comprida rua não violada pelos prefeitos,
passo sobre ti suavemente neste fim de tarde de domingo.

Sinto-te o coração pulando oculto sob as areias.
O sangue circula na copa imensa dos flamboyants.

Tropeço nos passos perdidos há muito nestas areais,
Onde as pedras não vieram ainda sepultá-los.
Passos de homens que jamais voltarão.

Ó velhos chalés de 1830,
eterniza-se entre as paredes o eco das vozes de invisíveis habitantes.
Mãos de sombras femininas abrem de leve janelas do oitão.

Há um cheiro de jasmins e resedás
que não vem dos jardins abandonados,
mas dos cabelos dos fantasmas das moças de outrora”.


É na casa extinta que o poeta encontra com ele mesmo. Neste espaço onde ela existiu, ele se coloca à janela não mais existente. Se tudo foi demolido, resta ao poeta olhar de fora para dentro. E o poeta se revê na casa:


“Debruço-me de fora
onde havia janela
nuvem ou casa extinta?
Lá estou como eu era.”


A casa destruída... O poeta e as lembranças, o receptáculo de imagens e de tempo. A casa muitas vezes “personificada” pelo poeta.
O poeta, pela poesia, refaz a casa dos avós num diálogo com ele mesmo. A voz da saudade. A voz que ativa um momento histórico e também social, voz cheia de emoção:


Doçura Nazarena

“Vinha dos banguês a doçura dos ares,
  pregões de cocada, alfenim, caramelo.
Doçura de mel de engenho com farinha,
  das aulas de catecismo, do canto das moças no coro
das novenas, da flauta de Targino.
Doçura do piano de Celina, tocando valsas vienenses e
valsas de Alfredo Gama,
das tardes de domingo.
Doçura do Xarope Peitoral Nazareno,
  “infalível na cura das tosses rebeldes
e da tuberculose pulmonar.”



Soneto muito Passadista
  Na Ponte da Madalena

Que lembrança ficou para mim do sobrado
da madalena? (vai passando o rio atrás)
Na frente, o jasmineiro e, no oitão, carregado,
o pé de fruta-pão e de sombras cordiais.

Na cumeeira Luís de Camões instalado.
O avô de fraque, a avó entre os jacarandás
da sala, na varanda, ou querendo, ao seu lado o neto,
de qualquer peraltice capaz.

Desta inclusive de mexer nas coisas mortas
as valsas de subúrbio, o oratório, a novena.
Que lembrança ficou do sobrado onde havia
Teresa? Neco, prenda o cachorro e abre as portas,
porque me chamam, nesta noite, à Madalena,
o jasmineiro em flor e o piano da tia.



Os sobrados recifenses, - paisagem que encontrou os viajantes e artistas – o cais, o banho no Capibaribe (naquele tempo, o rio não era depósito de detritos!), a água transparente do Capibaribe. O poeta funde o momento atual com o distante. Relembra as pessoas e os objetos (móveis) familiares que por sua vez parecem ter alma, vida:



Penteado

Vertical a asa ereta aberta em leque,
era uma grande borboleta preta
presa, a marrafa no cocó da avó.


O poeta olha as coisas com olhar desinteressado e as coisas respondem preenchendo a imaginação do poeta. O mundo dele parece começar junto das coisas. O mais simples objeto pode abrir para o poeta um mundo: a escova, a parta, o vidro de dentifrício, o espelho (“Quem bate do outro lado / dessa porta? Quem chama? / Que substância mora / no cristal e no estanho?”), os sapatos (“Pendentes os dois cordéis / como dois nervos expostos / que se enxertam nos meus pés, / não os levo, eles me levam (...) são barcos nas poças d’água, / esquifes dos pés defuntos...”, o guarda-chuva, a cesta, os balões, enfim as palavras-dispostas num microcosmo – sugerem.

“Cadeiras e sofás, consolo e jarra:
camas e bules, redes e bacias,
a caixa de charão, o guarda-louça,
teteias, mesa, aparador, fruteira,
a cesta de costura, o papagaio,
a cafeteira, o cromo da parede,
o jogo de gamão, as urupemas,
o álbum, o espelho, o candeeiro belga.”


Enumeração, palavras seqüenciadas que ganham sentido unidas à intenção do poeta. São um convite à imaginação, ao sonho, à viagem a um passado que poderia também ser o passado do leitor. O poeta coloca “cadeiras” e quanta coisa esse objeto evoca “sinhazinhas conversando, senhores gordos discutindo a safra da cana-de-açúcar e a política do presidente da província...” Restos de corpos (que ali sentaram) desaparecidos. Lembranças de escravas a limparem essas cadeiras, ou outros móveis. A cadeira da avó, a cadeira das visitas... (e quantas associações podemos fazer!) A vida provinciana, uma história, uma época, o dia-a-dia que o mundo da cana-de-açúcar pôde proporcionar.
Os objetos do passado não estão mortos, são fontes de evocações, apoderam-se do espírito do poeta.
A memória, a saudade também aparece num jogo contrastante entre a voz fria do leiloeiro e a voz do poeta entre parênteses no poema LEILÃO.

“– Quanto dão? Quando dão?
– Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro.
– Esta bengala de castão de ouro!
(Onde anda sem levá-la o dono antigo?)

– Esta arca colonial!
(Falam dedicatórias de retratos,
falam cartas de amor, a voz trancada).

– Esta mobília de jacarandá!
(As visitas na sala, o pai, a mãe,
a irmã, a avó cochila no sofá.)

– Este faqueiro de prata!
(Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)

– Esta cômoda do século XIX!
(Soluçam as gavetas; dentro delas,
cheiro de roupa branca e de alecrim).

– Esta louça azul de Macau!
(A fumaça (da sopa?) na terrina.
Na borda (asa quebrada) desta xícara
os vestígios dos lábios da menina).

Quem tira as rosas que a moça bota
nos jarros de opaline do consolo?
E a moça fresca dentro deste espelho
do toucador do quarto de dormir?

– Quem dá mais? Grita mais o leiloeiro.
Bate o martelo, bate aqui, dói longe.


O leiloeiro faz parte do mundo concreto, grita, é vendido. O poeta fala baixo, evoca um espaço que existiu... O leiloeiro está preocupado só com o valor material; o poeta com o valor simbólico dos objetos e com as pessoas, antigos donos. A indiferença do leiloeiro contrasta com a dor do poeta e esse passado só é vencedor porque o poeta o eternizou em poema. Para Mota as coisas sentem (tristeza, solidão, alegria, compaixão, raiva, inquietude): “A fonte canta”, “o vento grita”, “O cacto chora”, “o candelabro faz acrobacias”, “a trepadeira vem à janela, pensa.”

O poeta questiona ainda o fim do homem, seu futuro caminho, o para onde do ser e das coisas:


O galo e o Catavento

“(...) O cata-vento gira, e o galo mudo, esculpido em folha, só no aéreo
poleiro, também gira, gira, gira.
Ventos catados pelo cata-vento
tentam levá-lo. O galo, todavia,
não vai.  (Come as rações da ventania).
Estica, às vezes, o pescoço de aço
– para onde? Cego e preso, pelo espaço
O que procura?”

“O livro dos endereços
Para onde agora?” (A gaveta)

“Afinal, para onde fui
o dia nos levaria?” (Litania do Amanhecer)

“Adeus, meus amigos, parto
sem saber para que porto.” (A partida)

O poeta em “Diálogo com Carlos Pena Filho” conversa com o morto num tom quase prosaico. A morte é vista por Mauro Mota sempre de forma diferente:

“– Carlos, foste há um ano?
  – Nem me lembre!

Nesse julho de chuva não me fui.
Estou. Meu calendário, é de setembro
da mesa do “Savoy”: Caio, Zé, Rui.
  (...)
  – Carlos, de que mais?
– Da lagoa do carro
  – E o sangue e a tua
ida (para onde?) que hoje um ano faz?
– O remo é azul, azul é o passaporte
Vejo-me. Hoje me vi. Navego. Pára
a canoa no Cais de Santa - Rita.
– Quem morre no Recife engana a morte.
Se criei, no azul, os meus azuis, foi para
esta cidade que me ressuscita.”



O poeta conversa com o morto, rejeita a ideia de obedecer a convenções ante a morte: (choro, rezas, velas...)

Das coisas simples o poeta traz um passado feliz:


Doce, Doçura

Cana cana canavial engenho
Cabaço de caldo, cabaço de mulata.
A aula de Dona Alice,
– Mel, plural meles
– Eu melo, tu melas, ela mela.
A coleguinha Marta Melo,
melado de tinta, melado de giz,
cavalo melado, mel com farinha,
melífluo, melifluidade.


Diálogo das Grandezas do Brasil: A galinha precursora da química industrial na colônica: “A qual acaso voando com os pés cheios de barro úmido se pôs sobre uma forma cheia de açúcar, e naquela parte onde ficou estampada a pegada se fez todo o círculo branco donde se veio a entardecer o segredo e virtude que tinha o barro para embranquecer, e se pôs em uso.”
  (...)
A avó, de noite, Salve Rainha:
Bendito o fruto do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce”...
Doce docíssima dulcíssima Dulce.

Rolete de cana caiana na festa da igreja e na estação do trem tabuleiro de alfenim (...) castanha de caju confeitada (...) pão doce da padaria de Seu Odilon, o bombons da venda de Toinho Vieira.
Doce doçura, longe doce.
Toda chave da poética de Mauro Mota parece ser o TEMPO: A água, a chuva, o rio, o tempo na farmácia. Tempo passagem que ele aceita naturalmente, raros são os momentos de desespero.



Calendário


Hoje será ontem
amanhã e amanhã
menos seremos.



Tempo da Farmácia

As cores nos boiões, calomelanos,
o jacaré das rolhas, elixiris,
os chás, o peixe da “Emulsão de Scott”,
dietas, língua de fora, Chernoviz,

o xarope da tosse, a queda, o galo,
o braço na tipoia, a camomila,
a letra do Doutor, frascos e rótulos,
o medo de injeções e bisturis.

O banco das conversas, as pastilhas
de malva e de hortelã, o mel de abelha,
a cobra na garrafa, o almofariz.

O termômetro, a febre dos meninos,
o tempo sem remédio na farmácia
as doenças da infância, a cicatriz.


O tempo foge e o poeta gostaria de vê-lo eternizado. Nele estão os amigos, a amada morta, a família:

“O piano do sobrado de azulejo
e a moça tocando a valsa do mês de maio,
a mãe, a esposa, as rosas
na jarra azul abrindo
os ponteiros
como uma pinça
extraindo
as horas felizes do relógio da sala,
não se foram sós, foram levando a tua vida fugitiva”.


A chuva, a água, o rio sugerem a passagem do tempo. A visão do rio nas cheias carregando baronesas e bichos mortos. Como ser poeta no Recife sem falar no rio? (Bandeira, Joaquim Cardozo, João Cabral).



Chuva de Vento

“(...)

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal).

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?
Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?
Estendo-lhe a mão: a chuva fria.”


Os elementos da natureza são simbólicos, testemunham o passado. O homem é um eterno viajante, viajante até de si próprio (Itinerário).



O Companheiro

Quero deixar-me longe. Separar-me
de mim. Abandonar-me. Ser-me estranho.
Parto, mas, onde chego, me reencontro.
Despeço-me de novo e me acompanho.



A Viagem

Esse vaivém, essa
viagem, sem pousada,
que, apenas começa,
tem de ser terminada;

que, apenas termina,
continua por onde
o menino transita
do menino para o homem,

por onde o homem póstumo
em sua casa entra
cinzento. (Chega e volta
quando a Amada o afugenta.)


Itinerante

Vou em busca do ter-ido
Desapareço no espaço
Fico de novo perdido.
Procuro-me, e não me acho.


O Poeta do Social

Mauro Mota, ao falar das pessoas, mostrou simpatia por personagens à margem da vida, os humildes:


A Construção

“(...)
Vem vindo José Maria,
o amarelinho de São Bento
do Uma, sem genealogia.
Vem montado no jumento
saiu da escola (não tinha livros nem fardamento.
Aprendeu a ler sozinho.)
Oh, que infância sem infância,
essa de José Maria!

(...)

Vem vindo José Maria
vem de São Bento do Uma,
vestido de roupa cáqui
e de botinas reiúnas.

Puxa ainda o seu jumento,
Remexe nos caçuás.
Carrega barro e madeira
para a construção que faz
com alicerces na poesia
dos desesperos rurais.”
Em louvor

De uma estenodatilógrafa

No papel-lâmina, deslizam
estenógrafos sinais,
os semoventes bacilos
das doenças oficiais.

Corre o carro, gira o rolo,
as teclas batem, baquetas
de marimbas sobre a escala
das folhas tamanho ofício,
voz do Estado nas primeiras,
eco nas segundas vias,
da máquina saindo cheias
de cicatrizes e veias

Sangue no papel carbono
coagula-se nas cópias
das palavras esmagadas,
migrantes da fita nova.
Nos dedos, há a nostalgia
do piano e a contradição
ver, no teclado, a oficina
de frases frias e pão.


O protesto social vem carregado de emoção em A tecelã. É uma adolescente que partindo para o trabalho deixa.

“Chorando na esteira”
seu “filho de mãe solteira”,
levando consigo a marmita,
  “contendo a mesma ração
  do meio de todo dia
              a carne-seca e o feijão.”


E ao descrever o trabalho da operária, assemelha-o ao próprio trabalho:

“os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios
e outros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa
(...)
A multidão dos tecidos
Exige-te esse tributo.
Para te nem sobra ao menos
Um pano preto de luto.”


Os animais nos poemas de Mauro Mota não aparecem por acaso. Eles refletem o universo infantil do poeta: (O pássaro por exemplo é visto como o animal que elabora seu próprio caminho, rompe as distâncias infinitas.


Elegia nº 6

Irrevelada angústia da última hora:
tantas frases de amor não foram ditas,
e silenciosamente foste embora
para as grandes distâncias infinitas.

Pássaro ou anjo que distante mora,
inquietas asas pelo céu agitas.
Voltas e pousas suavemente agora
dentro das minhas solidões aflitas.

Voltas, e eu fico em dúvida se pousas,
tal a ternura com que vens e a calma,
tão leve como o espírito das coisas.

Chegas, após vencer longos caminhos,
com a pureza que vive só na alma
das rosas virgens e dos passarinhos.

O boi de barro é também o boi real e “outro boi”, não apenas o que fica na estante. Ele é também um boi telúrico. Ele é também coisa e “as coisas só existem em função do olhar do homem exercido sobre elas”. O boi na simbologia medieval significa paciência, resignação, espírito de sacrifício.

É um boi verde vidrado
acuado em cima da estante.
É um boi desenterrado
telúrico e ruminante.

Quem o desenterrou foi
Abelardo em Tracunhaém
No barro da beira-rio
estava escondido o boi

desgarrado do rebanho.
Feito do gado anterior,
de estrume e de capim seco,
é este boi ruminador.

(...)

comeu do pasto e foi pasto,
misturou-se com o chão
para nascer no roçado,
oculto na plantação,

dando marradas no vento
da várzea pernambucana,
esse boi de chifres doces,
chifres de cana-caiana.

Toca o chocalho. O mugido
do boi de barro enche a sala
(Cresce a grama no tapete).
Pego no boi ele racha.


O poeta falou ainda do galo (O Galo e o Catavento), do touro (Slide Chileno), da potranca (A Potranca), da ovelha (Pastoral), das andorinhas (As Andorinhas), do cão (O cão); falou das frutas: jaca (Jaquira), dos cajus (Natureza viva e morta de cajus).

A poética de Mauro Mota é de adesão a um tempo e a um espaço, canto de amor às suas raízes, sua primitivdade que ele eterniza no poema. “O cotidiano, o flagrante do dia-a-dia, o fragmento emotivo, colhidos pó Mauro ganham força poética sem perda daquela simplicidade chão. O poeta desrealiza o trivial (aparente) para fazê-lo poesia”. Conforme Ivan Cavalcanti Proença.

O lápis sobre a mesa
estático.
O sono mineral de plumbagina,
o sonho oblongo.
O lápis sobre a mesa,
o olho no bico.
O papel branco,
a solidão.
O lápis sobre a mesa
estático,
o sonho oblongo
da mão.
(O Lápis)


Mauro Mota é um jeito de sentir “coisas, gente, bichos, paisagem, tempo”, enfim as lembranças de toda uma vida, conseqüência do mexer nas coisas mortas (os sobrados, as mobílias, os acontecimentos religiosos) como também fez Carlos Drummond de Andrade.
Mota pertenceu à juventude vanguardista. Em seus primeiros poemas observam-se versos livres, linguagem coloquial, linguajar e informação regionalistas e o poema piada. Prosaicos, refletem a cor local.
Publica suas Elegias em 1952. Talvez a morte da esposa tenha ativado sua veia lírica. Mesmo aqui continua a empregar o verso livre regionalista do modernismo de 22. dos 36 poemas que compõem as Elegias 16 são sonetos (influencia da geração de 45). O tema das Elegias é a morte e o passado.


Elegia nº 8

As mãos leves que amei. As mãos, beijei-as
nas alvas conchas e nos dedos finos,
nas unhas e nas transparentes veias.
Mãos, pássaros voando nos violinos.

Abertas sempre sobre os pequeninos,
mãos de gestos de amor e perdão cheias.
Mãos feitas para construir destinos
no céu, no mar, nas tépidas areias.

As mãos que amei em todos os instantes.
A carícia das mãos que iam colhê-las
eram as rosas que colhiam antes.

Se parecem dormir não as despertes.
As mãos que amei, que desespero vê-las
Cruzadas, frias, lânguidas, inertes!



Mauro Ramos Mota e Albuquerque e em poesia além das “Elegias” (1952), publicou “Epitáfios” (59), “O galo e o catavento (62), canto ao meio (64). Em crônica: “Capitão de fandango (59). Estudos/ensaios: “Roteiro do Cariri” (52, “São José do Nordeste” (52), “Paisagem das secas” (58), “Geografia Literária” (61), “Imagem do Nordeste” (61) e “Estrela de Pedra: Delmiro Gouveia, Civilizador de terras, águas e gentes” (61).














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