MARCUS ACCIOLY
E SEU ÉPICO “LATINOMÉRICA”
por Moisés
Neto
Poeta e
professor de literatura,o pernambucano Marcus Accioly (que no ano 2000 assumiu
a cadeira deixada por João Cabral de Melo Neto na Academia Pernambucana de Letras)
é autor do poema épico “Latinomérica” (Editora
Topbooks. 620 páginas).
Falar do
gênero épico não é tarefa fácil. Epopeia vem do grego “épos”(verso) + “poieô” (faço) e se refere à narrativa em
forma de versos,de um fato grandioso e maravilhoso que interessa a um povo.É
uma poesia objetiva,impessoal.Um narrador fala do passado(verbos no pretérito).
“A Ilíada” e a “Odisséia”(ambos de Homero) são nossos maiores referenciais no
gênero,e são seguidos de perto pela “Eneida (onde Virgílio narra os feitos
romanos).Há também “Os Lusíadas”(Camões), “O Paraíso Perdido” ((Milton),
“Orlando Furioso”(de Ludovico Ariosto,Itália) e ainda os árcades brasileiros
“Caramuru” e “O Uraguai”.
Uma coisa em
comum: a questão do herói coletivo, como
em “Os Lusíadas” (o povo português).
Geralmente um
épico divide-se em cinco partes:proposição(tema e herói são
apresentados),invocação(o poeta pede inspiração),dedicatória,narração e
epílogo.
Accioly, que
podemos rotular de poeta da geração 65, é autor de livros
como:”Cancioneiro”(68), “Nordestinados” (71), “Xilografia” (74), e “Sísifo”
(76),dentre outros, há muito vinha esboçando
uma epopeia nos moldes de um Homero nordestino do século XX.
São 34 anos de
profissionalismo literário:13 publicações e 10 prêmios nacionais.Já foi
comparado a Apollinaire e tido como poeta clássico por sua reinterpretação dos
mitos do passado,pela crítica italiana Luciana Stegagno Picchio. E agora este
lançamento:uma aventura problemática,se considerarmos que são rimas forçadas na
tentativa de glorificar uma terra
dominada por estrangeiros: a América Latina,que aparece no texto através de um
jogo de trocadilhos e numa
grandiloqüência ,digamos assim, tragicômica.
O que
percebemos através da leitura do longo poema, é
uma terra sonâmbula caminhando entre a infantilidade e a demência,guiada
por heróis derrotados como Zumbi,Guevara e Tiradentes.
Marcus cita
nomes como: Tatcher,Pinochet,Reagan que aparecem misturados com poetas e
políticos que vão dos latinos aos africanos através das 590 páginas do
texto(incluindo o apêndice) .O poema em si tem 535 páginas e termina com uma
página preta onde em letras brancas lemos: “Bilhete aos surdos-mudos do
poder/(a solidão do poder x o poder da solidão)/a serpente do
sistema/presa à presa a presa
extrema/abocanha pela cauda/a cabeça da palavra//a palavra mais
serpente/sente a goela no seu dente/que mortífero envenena/a cabeça/do sistema”
(!)
O apêndice (30
partes) procura explicar a feitura do
poema,sob ângulos pré e pós colombianos e cabralinos.
Protesto?Insatisfação?
O poema começa com uma carta”aos cegos do poder”(que anuncia o 3º milênio) e
segue tropeçando entre neologismos(Latino+ Homérica= Latinomérica) e citações.
Curiosidade:não
há nenhuma vírgula no poema,ao contrário dos parênteses que pululam.
Sim.Marcus
valoriza nossa cultura,mas,dizer que o colonizador “castrou de nossa boca o
sexo dos nossos idiomas primevos” ou que
“chupamos do sexo ou da boca do conquistador a nossa língua”,é uma
licença poética forte.Sem contar o tom emocional(deslumbrado?) que permeia a
narrativa com ares regionalistas.
Ao modo de
Borges,Accioly parece dizer que “A América Latina é uma ficção”(o que não
caberia numa epopéia) e a dele (Accioly)
só existe porque ele a escreveu deste modo.
II
“A América
precisa dos seus sons(...)perderam-se as vozes,quebraram-se os
instrumentos.Ficou uma espécie de marulho inquietante(...) esses fragmento de
voz”,sentencia o autor no apêndice do livro(“decifro-me ou devoro-me”) e cita
Maiakovski: “hoje executarei meus versos /nas flautas de minhas próprias
vértebras”.É o nordestino versejar universalizando-se,sentindo saudade de si
mesmo num reverso baudelairiano de amor à última vista,tentando fugir da futilidade.Mergulhando
numa saudade que retroage e expecta na esperança lírica que desloca o passado e
o presente para o futuro.
III
Para
justificar seu esforço épico, Accioly carrega nas frases feitas: "A memória é a
arma branca do poeta e sua arma de fogo é a imaginação.Lembrar é fácil,difícil
é esquecer, a ´deslembrança` que é a
América” (este navio-continente)
Motivos
recorrente sem “Latinomérica”,a infância (da América) e a busca da identidade:o
filho busca o pai,fracassando volta para a mãe (“à vagina por onde entrou seu
pai”) que é então, pela segunda vez, violentada(“cópula com a terra”).
“Quando um
mundo se vai e outro se esforça para nascer,é que surgem as epopeias”,disse o
escritor Nikos Kazantzakis. Tentando o antilirismo para cantar nossas glórias e
perdas coletivas neste lugar,onde “estar no presente é,de certa forma,continuar
no passado”, Accioly não transformou o neocolonialismo num pretexto para seu ato
poético, mas cita Ginsberg ao chamar os EUA de “trapaceiros mercadores” cujos
principais valores são a mentira e a
ambição por tecnologia,dinheiro e poder e que têm por princípio nunca
reconhecer a própria derrota,como no Vietnã,por exemplo. O cerne desta criação é a gigante América Latina atravancada entre
oceanos de metáforas.E o autor sugere ao leitor uma leitura não-linear do
seu poema,neste Brasil,onde boa parte da poesia virou prosa.Seria este canto
poético mais bonito que a luta que nos resta? Seria possível misturar poema e
luta de Box? O poeta tenta:Transforma os “cantos” da epopeia em “rounds” e
espalha por eles seus versos decassílabos,oitava rima clássica
camoniana(paradoxo para quem pede independência cultural?).
Marcus Accioly & Moisés Neto
“Que o
canto (em vez do belo) possa ser o feio/e o sujo(em vez do limpo) possa ser o
canto/(possa o ouro ser fezes no seu veio)/possa o mal do poeta e a dor do
santo/(possa ser o vazio em vez do cheio)/ remende o véu do ódio e rasgue o
manto/do amor(com as mesmas unhas) que ele possa/ ser o ouro amarelo que há na
fossa// (que o amor que tu sentes pelAmérica /seja o ódio voltado aos
seus tiranos)/ah se eu pudesse contra os reis da terra/a saliva de sal dos
oceanos”.
É história e
cultura (do Canadá até a Terra do Fogo)engajando-se,mostrando o colonizador
como “bárbaro e bruto”,como se os povos
americanos também não o fossem.Há idealização e dramaticidade excessiva em
Marcus como houve no romântico Castro
Alves ao falar dos escravos.Há também trocadilhos infames e todo o poema às
vezes titubeia entre a alta arte e a
apelação. Mas é uma voz poética que nos honra.Um grito,um clamor de
agonia e êxtase.Foram 20 anos compondo este poema, 11 dos quais sem nenhum
título lançado.
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