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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Moisés Neto relê livro de Caetano Veloso...


Caetano Veloso titubeia entre a modéstia e a empáfia
                  (publicado anteriormente no Caderno C do Jornal do Commercio, Recife) 

"Há uma diferença abissal entre alguém sentir o que todos esperam que sinta e alguém não poder deixar de sentir o que lhe é em princípio vedado", sentencia o cantor e compositor Caetano Veloso na torre do tempo onde escreveu "Verdade Tropical", seu livro de 524 páginas que atingiu, sem muito sucesso, as livrarias no final do ano de 98.
O livro, dividido em 4 partes mais uma "conclusão" intitulada "Vereda" (como a música "Vereda Tropical" ou o romance de Guimarães Rosa "Grande Sertão: Veredas"), traz o estigma barroco, dialético, exercita o narcisismo cristão (não convicto) e se abre para uma nova visão da caretice brasileira que rejeita o pluralismo de ideias cultuado por alguns tropicalistas (integrantes do movimento criado pelo próprio Caetano, Gil e outros nos anos 60). Caetano alinhava críticas à nossa cultura e tenta açambarcar trinta anos da nossa história. Não fracassa nem triunfa no "élan" de ajustar contas com o passado. A narrativa busca um estranhamento que parece didático e feito para estrangeiros ou brasileiros que ignoram nossa evolução cultural nos últimos 30 anos.
A capa do livro é verde, laranja, vermelha e branca, sem muito contraste, parece uma coisa amassada. Na dedicatória, encontramos o nome de David Byrne, líder do extinto grupo norte- americano Talking Heads.
Caetano: vamos comê-lo cru

O índice onomástico reforça o que vemos em cada página: o autor titubeia entre a modéstia e a empáfia quando o assunto é "nossa nação falhada que devia se envergonhar de um dia ter sido chamada país do futuro" (O país mais novo da América já que os outros foram "descobertos" em 1492).
Existem, coisa tão comum, os erros que sabe Deus de quem são, como "pela menos" (p-15). Mas duro mesmo de engolir é quando Caetano aponta divisões entre "esquerda" (louva Arraes) e "direita" (aceita o capitalismo) num jogo de digressões e elipses estonteantes.
É um livro de anedotas também. De confidências e análises onde se mesclam homossexualismo com inautenticidade psicológica, ateísmo com misticismo, frieza com deslumbramento.
As louvações iniciam-se com o culto a Maria Bethania (irmã dele), Orlando Silva (cantor que abusou da morfina e do álcool, "mestre no mistério do som de nevoeiro da língua portuguesa sobre a paisagem rítmica afro-ameríndia") Carmen Miranda (Ela era "um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal"), João GilbertoHaroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e segue encontrando até em Carlinhos Brown traços de "reafricanização e neopopização"; João Cabral de Melo Neto ("diante dele tudo parece derramado e desnecessário"), Jorge Luis Borges(que Caetano segue no que se trata de "influenciar precursores" ou "inventar uma tradição"), Clarice Lispector (com quem mantinha comunicação e ficou surpreso quando a encontrou pessoalmente. "Rapaz, eu sou Clarice Lispector"). Sobre outros, nosso escritor é mais reticente: Janis Joplin era "fatalmente mestiça, fatalmente comprometida". Paulo Freire, "católico de esquerda que fazia propaganda política camuflada de educação" (página 304).
Ciúme, raiva, exigência de exclusividade, capricho: tudo isso é Caetano, querendo estar à altura do seu mito, que se torna mais real quando narrado, revivido, sugerindo assim que se extrai dali uma lição diferente. Para ele, a Bahia não é Nordeste (repete isso várias vezes) e a inveja é saudável ("de Gil, de Dedé, etc").
Caetano é aquele que quer ter "pessoas admiradas e gratas" pelo saber que ele tem (página 92).
Sua análise do cinema brasileiro é familiar. São amigos: GlauberSganzerla e Bressane, "Terra em Transe" mudou sua vida (embora ele critique que lhe falte clareza).
Os tropicalistas eram tidos como alienados pela esquerda. E pelo narcisismo de Caetano podemos perceber alguma causa. "Ditadura eu rejeitava. O proletariado não me parecia propriamente estimulante. Operários não podiam, ou não deviam decidir quanto ao futuro da minha vida" (página 116)
O Tropicalismo (rótulo que Caetano encontrou para sua entrada na História, este mondrongo que nos dá sentido) foi um negócio. Mercado, marketing. E encontrou apoio literário, já citado, do concretismo ("uma panelinha"). Um individualismo feroz, rasteiro e agressivo em busca de comunhão, parece guiar os artifícios de Veloso. Ele fala da sua "vocação para o estrelato" e diz saber como aproveitar "a luz   intensa sobre nós". Sua linguagem é repetitiva e sua imaginação acelerada. Sutilezas e variações de tom funcionam como epítetos (palavras que identificam pessoas ou coisas) fugazes de sua "hipersensibilidade" .
O leitor fica ao mesmo tempo perto e longe do coração selvagem deste estranho narrador que evita as fendas das ironias decalcadas do seu fantasioso mundo onde afirmação, justiça e modernização assumem perspectivas próprias alternando dor, delícia e ridículo numa visão algo cubista. Mesmo quando o assunto é fofoca: Chico Buarque inventou que Caetano estava internado num hospício em São Paulo e que quando Bethânia entrou no quarto dele, ele gritou: "Sai carcará, sai carcará!". Elis Regina disse que Nara Leão só era cantora porque desrespeitava as forças armadas e Nara recusava-se a se apresentar ao lado de Elis. No dia da gravação da música "Baby" (co-autoria não creditada de Bethânia), Caetano (o autor) e Gal Costa (intérprete) encontraram-se com o compositor esquerdista Geraldo Vandré que, ao ouvir a canção, disse :"isso é uma merda" . Virou escândalo. Caetano deixou de falar com ele.
Nacionalóide? Afeminado? Inusitado? Doce? "Homem- vinho"? (como sugeriu Rita Lee) Parcial? Antigo? Caetano supera tudo isso: "A arte é terrível, é difícil, não se pode passar incólume por VelásquezMozart ou por Dante." Porém, artistas como Francis Hime e Edu Lobo engrossavam o coro dos indiferentes ao tropicalismo (dos baianos), calando o que não podia ser dito. Realismo desencantado: a tropicália enfiou-se nos livros didáticos de literatura e associou-se ao concretismo e às vanguardas em geral, numa espécie de continuação do trabalho iniciado por Oswald de Andrade. No teatro, a peça "Roda Viva", um texto ingênuo de Chico Buarque teve a direção de José Celso Martinez, que também dirigiu um texto de Oswald, "O Rei da Vela", que podemos incluir na abrangência tropicalista.
Filosófica ou antropofagicamente, nosso autor devora sua comida e nos lança visões estrangeiras sobre o Brasil: nossa "antropofagia cultural" seria um sintoma de nossa doença congênita de não- filiação, de ausência do pai, de falta de um significante nacional brasileiro. "Brazil is hopeless", disse a poeta americana Elizabeth Bishop. "Um país incompetente". Aprendemos ainda com Caetano que "a língua inglesa tem sonoridade antes canina que humana" (p-254). Há uma espécie de masoquismo em Caetano.
"Até hoje ninguém se sente à vontade para dizer que ele era veado", escreve referindo-se, sem cerimônia ao escritor paulista Mário de Andrade. O tema do homossexualismo é retomado várias vezes no livro, quer seja quando o autor fala de sua relação com Chico Buarque ou com o compositor Toquinho, sem contar as várias páginas no final do livro.
Caetano cria frases exuberantes: "Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação da informação" (p-275) ou "Deus está solto". Seu livro (escrito de 1995 a 1997) é uma "labareda de significados cambiantes" e o que ele fala sobre outros poderíamos falar igualmente sobre ele: "Uma mulher, um macaco, um bailarino, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada". Um homem que sofreu humilhações e esnobismo cultural, foi expulso do seu próprio país e exilou-se em Londres por dois anos. As análises que ele faz neste "Verdade Tropical" têm um pouco da crítica freudiana. Por exemplo, ao referir-se à composição "Coração Materno" (aquela em que a amante pede ao namorado que arranque o coração da mãe dele e lhe traga, o que o rapaz fez imediatamente, na volta caiu do cavalo e o coração da mãe, à distância, disse: "Vem buscar- me, que ainda sou teu"), Veloso diz que vê ali: "a revelação do impulso matricida, a necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor materno sufocante". Seria uma abordagem "típica das massas brasileiras, da própria natureza de toda cultura popular". Sobre o cristianismo, ele diz que "a Era do Filho dará lugar à Era do Espírito Santo" e que " a inexistência de Deus é apenas um dos aspectos de sua existência".
Nosso autor nunca daria a vida por um ideal político, assim era o tropicalismo. A impressão que temos é de uma época de descobertas e, paradoxalmente, reafirmações (dos ideais modernistas de liberdade). O ventre do monstro ou o coração do mal seria a prisão e mesmo lá nosso herói escreveu a famosa canção "Irene ri" (um palíndromo, experimente ler de trás para frente). Ao sair da cadeia concluiu: "O sofrimento não serve para absolutamente nada".
Caetano ficou feliz quando uma pessoa de Nova York lhe pediu que escrevesse um livro "para valorizar e situar a experiência da Música Popular Brasileira em termos mundiais".

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