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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013










Aos Profissionais de Relações Públicas
&
 outros textos de MOISÉS DE MELO NETO publicados e proferidos em palestras





Moisés Monteiro de Melo Neto






SUMÁRIO

PARTE I

Contos, crônicas e ensaios publicados no Jornal do Commercio (Recife):
Abandonar a Literatura  (Conto publicado em julho de 1996)
O Exílio é um país sem alma  (publicado dia 01/09/96). (Ensaio)
Uma Fantasia Completa Cem Anos . Publicado em 04.08.96. (Ensaio)
Todos os Clássicos estão mortos (publicado em setembro de 96). Conto.
A morte e vida de Drummond. (publicada em 20.7.97). Crônica.
Abre alas, que o samba está na avenida. (Publicado em 9.2.97). Ensaio.
O Sobrenatural e o ameaçador (Artigo)
Chico Science: Um Fausto às avessas. (publicada em 08.02.97) Crônica
Fernando Gabeira faz comédia da vida
Um legítimo cenário shakespeariano (artigo publicado em 28.05.97)
Variações sobre Narciso e Jesus (publicado em 22.12.96) Conto
O que aprendemos com Pedro (Publicado em 29.06.97) (Artigo)
Cristo de Saramago é chocante (ensaio)
Travestidos de vítimas. (10.03.96) (artigo)
Caetano Veloso titubeia entre a modéstia e a empáfia. (publicado em 15.02.98). Ensaio.
Engenharia rima com poesia (publicado em 08.06.97). Artigo.
Conto de Natal (Publicado no Jornal do Commercio de 25.12.97)
Joia do Rosário Hollywoodiano (10.07.93). Crítica.

PARTE II
Palestras & artigos de Moisés Neto em outros veículos de comunicação:
- O poema épico e as diferenças de gênero da poesia
- Literatura em diálogo com outros estudos
Aula ministrada no dia 14 de julho de 2006 das 14 às 16 horas para professores de todo o
Brasil reunidos no XIV Congresso da ANEB em Recife-PE

- Infância e Adolescência, Um Espaço Chamado Adulto, Velhice ou Idos-Idade. Palestra proferida por Moisés Neto no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE em 17/07/2003

- Teatro em dose dupla: O Portal do Escritor vai a são Paulo para rever Lucélia Santos e volta ao Recife para checar os bastidores da mais nova montagem teatral na terra dos altos coqueiros

- Um relações públicas afirma-se escrevendo e atuando (palestra proferida na Escola Superior de Relações Públicas – Esurp, em outubro de 2010)
  - Depois do vestido de noiva: A Falecida no contexto da obra de Nelson Rodrigues. (Resumo/ Roteiro da palestra conferida no dia 22 de agosto de 2012 no auditório da Livraria Cultura –Recife- dentro do 10º Festival Recifense de Literatura
 - A representação do Brasil na escrita de Jomard Muniz de Britto
 (Resumo da palestra proferida no Colóquio Internacional Crimes, Delitos, Transgressões, na UFMG, outubro de 2012)

PARTE III
ENSAIO     (13/09/2008)
- Chico Science encontra Josué de Castro (ensaio publicado na Le Monde Diplomatique)
















PARTE I
Contos, crônicas e ensaios de Moisés Neto publicados no





O Exílio é um país sem alma (publicado dia 1/9/96). (Ensaio) .
Os Versos Satânicos de Salman Rushdie
"Satã sendo condenado a vagar , em sua condição de anjo, tem um tipo de império de água e ar . Parte de sua punição: não ter local fixo onde possa descansar os pés" , sentencia Daniel Dafoe na epígrafe de "Os Versos Satânicos" do escritor indiano naturalizado inglês Salman Rushdie , que voltou a ser notícia este ano (96) pelo lançamento do seu novo romance "O Último Suspiro do Mouro".
Vida frenética por ter recebido um édito de morte, a Fatwa, Rushdie também não tem lugar fixo para colocar os pés pois o muçulmano que o matar ganhará uma fortuna de recompensa por livrar o Islã de tal praga. Rushdie, numa longa narrativa onde explora o fantástico, expôs o profeta Maomé ao ridículo, mostrando-o como um bêbado e o anjo Gabriel como um trapaceiro. Vamos e venhamos: Devemos ou não respeitar o altar dos outros? Até que ponto a não publicação de "Os Versos Satânicos" no Brasil é censura? Publicidade gratuita o livro tem, pois não é todo dia que surge uma obra de arte tão controversa.
Estes dois romances de Rushdie têm muito em comum: bom humor, mistério, fábulas, alegorias, jogo de palavras, amor e... provocação. "O Último Suspiro do Mouro" fala sobre a Índia e, sabendo que tipo de voz Rushdie empresta aos seus narradores e personagens, não nos espantamos que os ultranacionalistas tenham tentado proibir seu lançamento no país de Krishna .
Em Rushdie, a unidade e continuidade da cultura ocidental é condimentada com tempero do oriente. Em seus romances à clef (Chave: histórias codificadas onde personagens reais aparecem com nomes falsos e transfiguradas), vemos que a religião nunca derrotou o paganismo, a cultura animalesca que domina o planeta Terra. "Os Versos Satânicos" exibe amoralidade, ironia, violência cômica , sadismo: Saladim Chamcha, um ator especializado em comédias, uma espécie de anti- herói, passa a se metamorfosear num demônio típico , de pêlos, chifres e rabo , depois de um acidente de avião. No mesmo avião vinha uma ator dramático, Gibree (Gabriel), que interpretava divindades no cinema e que depois do tal acidente, volta à vida emanando luz. Logo que o avião cai, Saladim começa sua purgação: apanha da polícia e é torturado, perde tudo que tem - mulher, dinheiro, emprego, respeito, enfim. Vemos com frenesi o narrador estilhaçar a trama em várias unidades e voyeuristicamente nos deparamos com uma sensualidade lambuzada de malícia obsessiva. Rushdie cria também imagens fantásticas: Uma tempestade de neve vista de um trem faz a Inglaterra parecer "TV quando acaba a programação do dia" e o avião "não é como um útero voador e sim como um falo metálico e os passageiros são como espermatozóides prontos para ser ejaculados". É uma ansiedade parecida com culpa sexual sublimada por sensacionalismo.
A conversa com o leitor dinamiza a narrativa, que por si só já está cheia de tiradas cômicas, como na passagem do sequestro do avião onde o bandido ironiza dizendo que todos morrerão (nossos heróis vão morrer/ cair na terra) e, já que são 50, renascerão "Cinquêntuplos" ("fiftuplets"). Os dotes verborrágicos do autor assemelham- se aos do colombiano García Marquez dos primeiros livros.
"O exílio é um país sem alma, é o sonho de um retorno glorioso", choraminga numa espécie de desabafo, para logo a seguir espinafrar: Amar o Islã é "amassar os relógios" (romper com o ontem / hoje/ amanhã), para eles (os muçulmanos) "o progresso é Satã". Aparecem personagens como a mulher que come borboletas e uma árvore muçulmana que cresceu tanto que ninguém mais distingue o que é árvore e o que é a cidade. E, para encerrar, uma frase de um dos personagens: "Não ter piedade é a única coisa que um cartunista precisa. Que artista teria sido Disney se não tivesse coração . Esta foi sua falha trágica."





Uma Fantasia Completa Cem Anos . Publicado em 4.8.96. (Ensaio)
"Teu cadáver será arrancado da tumba, (...), vagarás e o sangue de todos os teus terás de chupar...", escreveu Lord Byron no poema "Giaour" de 1813. O romance "Drácula" do inglês Bram Stoker completa em 1997, cem anos de publicado. É um livro de códigos ideológicos e temáticos bem definidos e deve ser colocado entre as obras mais conhecidas de ficção em prosa. Seu caráter epistolar é costurado por uma sintaxe narrativa que, se não foi inovadora, é pelo menos estonteante. Uma fantasia de cem anos.
Sua capacidade evocativa e solidez icônica, seu discurso figurado (ironia), sua base romântica garantem a constituição da mensagem narrativa. A presença de diversos narrradores neste romance produz a focalização onisciente (toda a ação se passa em um ano e tomamos conhecimento de tudo através de cartas e documentos dos personagens (o que nos remete ao "Werther" do escritor alemão Goethe, marco inicial do Romantismo), num tom que às vezes tem algo de desconcertante, como num estranho sonho embriagador. Nestes dias de AIDS a contaminação pelo sangue redimensiona- se e ajuda a potencializar o poético horror inglês.
Embora a crença em vampiros tivesse se espalhado pela Ásia e Europa , era inicialmente um lenda eslava e húngara sobre um chupa- sangue . Tudo foi documentado pela igreja da época (1730-1735). Mas podemos voltar ao século 15 e suas histórias sobre a Dinastia (uma ordem) Dracul (dragão) que defendia a Igreja nas guerras "santas". Um membro deste grupo teria iniciado o culto na Europa. Era conhecido como "O Empalador", pelos seus métodos de executar seus inimigos (notem desde já o jogo de imagens: a estaca terá de ser enfiada no coração de Drácula). Mais longe, podemos buscar na Grécia antiga a Lâmia, que seduzia jovens para devorar-lhes a carne. Goethe, em momentos de hematodpsia (sede de sangue com raízes sensuais), escreveu " A Noiva de Corinto", uma balada. O inglês Coleridge escreveu em 1797-1800 o poema "Christabel", com o mesmo mote. No cinema e no teatro (sucesso na Broadway em 1927), o húngaro Bela Lugosi e o ator Chistopher Lee fizeram fortuna sugando esta veia (Drácula, o vampiro). Outro marco é o filme "Andy Warhol apresenta Drácula" ,onde o diretor Paul Morrisey cultua a androginia e o humor que cercam o personagem. Devemos destacar também a série de romances da escritora americana Anne Rice sobre "O Vampiro Lestat" (no cinema interpretado por Tom Cruise) .
Voltemos ao livro : o narrador- mor ( Jonathan Harker, que é o namorado da mocinha, Mina ) vai passar um mês com Drácula a negócios na Transilvânia, Romênia. O vampiro nos aparece como num vácuo onde inexistem doença, pobreza, velhice e onde ele reina absoluto sobre a natureza, os ventos, a realidade, enfim. Outra personagem feminina que mora com Mina é Lucy, que, de certa forma, representa nossa derrota: a) diante do capitalismo americano, um de seus pretendentea é um texano, Quincy, que enfiará em Drácula a estaca fatal, b) à nobreza, a quem ela escolhe, e c) à Ciência (outro pretendente seu é o Dr. Seward, médico de um hospício cujo chefe, Van Helsing, será uma espécie de ícone da resistência humana, grande articulador da queda de Drácula - que seria nosso lado selvagem/ eterno, nossa natureza elementar). O prenome de Van Helsing é Abraão (que, na Bíblia, estava disposto a assassinar o próprio filho para provar sua fidelidade diante de deus). Lucy é como Vênus (deusa do amor) a servir de contraponto a Abraão (pai espiritual dos cristãos), Lucy, então, exibe a danação da carne, a vontade de se entregar em êxtase, tremendo em insatisfação. Mina seria nosso lado mais família, momentaneamente tentada pelo lado escuro que tenta destruir sua fé cristã instalando no seu coração a eterna e insaciável sede.
Gravidezes paródicas permeiam o livro como num retorno ao drama do Éden onde a perversidade da serpente envergonhou a nudez dos homens e dificultou o acesso ao paraíso. Como Ulisses buscando Penélope, desconfiado, Drácula busca Mina que o livraria do hermafroditismo devolvendo- lhe a virilidade através de um amor único, eterno, vermelho ( a cor do romance) . É o consanguíneo no lugar do etéreo, da amizade pura. O patriarcado resiste à imposição de tal sexualidade e empurra Narciso para um beco sem saída. Diante disso Drácula não tem a menor chance.
Drácula é um monstro porque nos fere com sua androginia, atinge nossa ética judaico-cristã / científica/ capitalista. Ele incita ao caos e faz- nos lembrar o pântano de onde todos viemos.





Todos os Clássicos estão mortos (publicado em setembro de 96). Conto.
Pompeia, Itália. 1996 DC
Sinto-me livre. Se eu fosse uma fazenda, hoje não teria cercas. O beijo que me incendiava, hoje me congela. Bloquearam- me as saídas, escapei por uma das entradas. Quebrei todos os meus ídolos guerreiros. Bah! "Guerras não fazem grandes pessoas".
Preservando múmias sem plateias. Foi como eu me senti ao deixar nossa cidade. Só o ódio me aquecia. Enchi os bolsos com um punhado de dólares, um dólar é um dólar em qualquer língua.
O Oceano Atlântico e tanta terra me separa de vocês. A isto, um brinde de Lachryma Christi, o vinho mais pedido aqui em Pompeia, onde estou há mais de uma semana. O sangue de Baco no meu coração pôs- me em estado de escrever, um amigo meu dizia que as musas não se aproximam de um homem sóbrio. O sol italiano mistura minha sombra às sombras destas belas ruínas milenares. Leio grafites na cidade fantasma e olho o devastador Vesúvio adormecido, metáfora da minha arte danada. Sou hóspede de um hotel próximo, estou abraçando uma mulher com os cabelos cor de fogo, que eu trouxe do Brasil e do nosso quarto vemos a silhueta do vulcão. Observamos os montes enluarados e esta cidade parece um Lázaro redivivo. Fiz promessa de voltar a Itália assim que me apaixonasse novamente e aqui estou. Os pores- do -sol do passado já não me conspurcam mais. Chega de bugiganga.
Hoje bem cedo, fitando esta cidade, veio-me à cabeça uma frase que se repetia sem sentido: "Todos os clássicos estão mortos".
Olhei para o Mar Tirreno. Juntando as pontas do tempo. Comparando Pompeia hoje com os desenhos que me mostram a cidade nos seus áureos tempos, com seu comércio, seus lupanares, sua vida louca, sua tragédia apocalíptica. Escuto ecos, sinto vibrações. Busco tornar minha vida mais digna, melhorar meus costumes, juntar o útil ao doce, corrigir-me, atingir a consciência do que realmente eu sou.




A morte e vida de Drummond. (publicada em 20.7.97). Crônica.

Em agosto completam-se 10 anos da morte do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade . Drummond frio, distante, gauche que faz ver o mundo cotidiano melhor , mais humano em erros e acertos, sem entregar a responsabilidade de sua vida aos outros , suportando sonhos, entendendo o orgulho como fonte do medo, Cruel é a vida ou nosso olhar despreparado?
"O hábito de sofrer que tanto me diverte", futuca a voz de poeta que nunca morre e nos entretém: "Nisso vieram os pássaros, rubros, sufocados sem canto, e pousaram a esmo. Todos se transformaram em pedra. Já não sinto piedade". Aí está a sua desesperada tranquilidade: longe da embalagem política que lhe cobraram. Se foi fraco, se foi tolo, ele redimensionou o pó (de onde viemos e para onde vamos) das lembranças, transformou- o em seu brinquedo dramático, sua pièce de resistance : o poema.
Farmacêutico, professor, comunista, funcionário, ele foi o "José" descrito num de seus poemas mais conhecidos. O poeta que insistia na necessidade de seguirmos de mãos dadas, o poeta da canção amiga que buscou extrair nas forças líricas do mundo a importância do diálogo mesmo quando a solidão é um vício. Expressou o Boitempo em forma fixa ou verso livre. Drummond é um fugitivo da caverna de Platão (que criticou as limitações do homem).
A sensualidade nele é delírio: "Alma, desejo, membro e vulva (...) úmido subterrâneo da vagina". "A lavadeira me deu as maminhas", disse Carlos, eclipsando ânsias e jogos mentais num inextrincável beijo que se mistura com baba. Escrevia para si mesmo também: "meu verso me agrada, dá cambalhotas para mim mesmo". É o solitário dominador na ilha da imaginação, voyeur no jogo do choque social querendo a vida sem mistificações: "Sou de ferro". Foi poeta do oprimido e pretendeu "Dinamitar a Ilha de Manhattan" com sua injusta distribuição de renda e poder infernal.
Na velhice, vimos um Drummond careca e enrugado, um Peter Pan taciturno: "Perdi o bonde e a esperança (...) a rua é inútil", possuidor da chave que abre o reino das palavras. Foi enredo de escolas de samba do Rio de Janeiro (Mangueira-87 e Vila Isabel-80). Era o bom selvagem com suas delícias individuais, como Machado de Assis, num truísmo (verdade evidente) de um claro enigma, palco de neuroses amassadas fazendo reluzir o diamante do espírito, porém com a máscara social bem afivelada e arrematando tudo isso uma comovente ironia: "E sempre no passado aquele orgasmo". Morreu aos 85 anos, perdera a filha querida pouco tempo antes. "A poesia é incomunicável. Fique no seu canto. Não ame."




Abre alas, que o samba está na avenida. (Publicado em 9.2.97). Ensaio.
O samba é uma das coisas mais divertidas desde que os europeus chegaram aqui com seus escravos e coisas. Uma arma que virou poema. Encontramos poemas no Maracatu, frevo e outras manifestações folclóricas, mas no samba, os pretos e os brancos traçaram um perfil da vida moderna de uma forma meio ingênua, como um sujeito embriagado no seu caminho do berço ao túmulo. Nenhum outro ritmo exibe o pobre, o miserável, oprimido, explorado de tal forma revertendo o quadro sombrio em sonho carregado de alegorias. O samba brasileiro será o último a render-se: "Eu sou o samba/ Sou eu quem levo a alegria para milhões e corações brasileiros". O samba foi oficializado no Rio de Janeiro por Donga em 1917 que, com "Pelo Telefone", inaugurou com um instrumento de modernidade este novo caminho da música dos afro-brasileiros. Antes de chegar ao Rio, o samba estava no Maranhão e na Bahia. No Recife, chegou um pouco mais tarde.
"Deixa a tristeza pra lá/ canta forte, canta alto/ que a vida vai melhorar" e se vai! Surdos, tambores, cuícas, abalam terreiros e apartamentos da estranha pirâmide social brasileira. A Federação das Escolas de Samba de Pernambuco agiliza o desfile das escolas. Luta e fantasia deslizam com o samba pelas avenidas do Recife durante o carnaval uma glória efêmera, efervescente, ritualística. Gigante do Samba, Galeria do Ritmo, Escola do Zé, Acadêmicos do Cordeiro, Rebeldes, Estudantes de São José, Samarina, e tantas outras de igual importância nos trazem uma euforia única: "Oh, sereia fico a imaginar/ em tempo de lua cheia/ como é belo o teu cantar". Há por trás de tudo isso também certa guerra entre grupos e federações. Não é fácil manter a coesão dos grupos em meio a tantas adversidades numa cidade que não tem o samba como prioridade no carnaval. Uma escola de 2º grupo conta em média com 400 componentes, fora os colaboradores: "Obrigado ao Criador/ a terra quem clareia é o sol/ que eu faço parte dela (...) fogo e magia (...) mistura de cores", sai cantando o puxador como uma autêntica esfinge do século que está se acabando.
Em 95, a Galeria do Ritmo homenageou o comediante Luís Lima, que entrou na avenida sob aplauso e gotículas de chuva que sob os refletores mais pareciam confetes coloridos: "Na ribalta do riso(...) personagens diferentes (...) o Rei das emoções/ Dramatizar/Satirizar/ Liberta o peito/ Vamos gargalhar!" . São letras ingênuas, muitas vezes com erros que fazem a língua culta arrepiar-se, porém trazem a marca do povo que é sempre forte e representa o inconsciente coletivo de uma forma ou de outra.
Irmão do jazz, da bossa-nova, o samba é irônico, cachaceiro, com seus atabaques e tambores das tribos indígenas do século 17 e vem se arrastando em cordões, ranchos, que já se vestiam de seda chinesa e tecidos europeus com os quais o povo recriava o grand monde. E vinha índio de cobra na mão, pandeiro, violão e o futucado dos cavaquinhos apimentados. No início era só o refrão, o resto era improviso. AMAMENTADO POR MULHERES, O SAMBA É MACHO-FÊMEA, é rebolado, malícia, carinho. Traz no bojo a sua palavra mais forte: lenitivo , mestre-sala e porta-bandeira de uma vontade desenfreada de viver brilhando ou expressando sua dor misturada com arte, ajeitando , arrumando, confeitando, enganador e enganado. Surge o samba na Avenida Guararapes, a terceira menor do mundo, saudando o povo e pedindo passagem, ou então na Dantas Barreto, ou na ponte Maurício de Nassau, a ponte das estátuas, é o embriagante sonho do esquecimento, o beijo do verbo com a natureza, alma e corpo numa dança espetacular, imaginativa, movimentando-se com uniformidade, constância, empolgação, singularidade, personagens de um enredo exibido em alegorias, adereços, dança. Prisioneira do tempo, a poesia ali tem regras próprias, nada de erudito em sua descrição ou no show de elementos dramáticos que anuncia gestos em busca de tradução própria e dos outros como num tabuleiro de camelô, vendendo verdades e mentiras, Orfeus fugindo do inferno sem poder olhar para trás. Um bom samba é como uma oração, uma esperança de não ser mais triste.




O Sobrenatural e o ameaçador (Artigo)
Neste final de Outubro a lembrar de Finados, Todos os Santos ou mesmo do antigo Halloween americano, deparei- me com os versos do poeta e mestre da xilografia J. Borges, pernambucano dos melhores: "Senhora, dancei com Corina/ Até alta madrugada/ deixei com ela objetos e minha capa emprestada(...) disse- lhe a mulher chorando:/ A minha filha Corina há muito tempo que é morta (...) isso só sendo um mistério / eu vou levar o senhor agora no cemitério (...) e saiu com o rapaz/ na catacumba chegou/ o isqueiro o rádio e a capa/ ele logo avistou " . Na aventura do homem, "a morte é o véu que aqueles que vivem chamam vida", rebateria Shelley, poeta romântico inglês de marca maior.
É a literatura entregando- se ao sobrenatural, ao fantástico, ao ameaçador monstro para que lhe abocanhe, feroz. Nos mares, nos sertões ou em comunidades modernas. Nos mares, citamos o livro "Tubarão" de Peter Benchley; nas comunidades, temos o texto cinematográfico de Zé do Caixão e os livros de Stephen King. São textos onde o Bem e o Mal não se acomodam e nos compraz vê-los assim, diluindo- se entre o real e o fantástico como num conto de Murilo Rubião, ou no romance de King "O Corredor da Morte", onde um inocente é levado à cadeira elétrica. Como Dalilas, os leitores agarram- se às páginas que os mergulham num mar de adversidades, aventuras e malícias onde ritmo, caracterização, texto, ambiente, narrativa e trama atingem o exagero enchendo a máquina de espíritos e "pervertendo" a realidade, tentando assim reverter a síndrome de heróis de um épico patético que ameaça nossos dias. A solidão é afastada quando, conceituando a ansiedade, manipulando- a, fazemos nosso ensaio da morte num "teatro mental". É como se numa ensolarada manhã a ameaça injetasse um pouco de caos necessário à ordem.
O Nordeste do Brasil é marcado pelo mistério, pelo misterioso, influência que vem do árabe, dos ibéricos, dos africanos com suas lendas e mitos. O maravilhoso aqui se espalhou, descarregando nossos maus sentimentos e comendo nossos pecados em ardor que não há exegese (explicação / análise) que englobe tudo.
No "Romance d' A Pedra do Reino", mestre Ariano Suassuna mergulha seu herói Dinis Quaderna no sobrenatural, no fantástico, no alucinatório, onde cavaleiros com dentes de cachorro, ou ainda, seres com sete cobras corais" a modo de língua" folhetinizam a morte, o desaparecimento por encanto, relativizando assim o verossímil, embevecendo- nos com a surpresa grandiosa, num impacto que lembra o estilo Barroco. É a ruptura entre perda e posse, realidade e fantasia: Seremos sempre monstros da nossa própria criação? Heróis pícaros, heróis trágicos , nesta Morte e Vida Severina de aleluias e agonias.





Chico Science: Um Fausto às avessas. (publicada em 8.2.97) Crônica
Se grudássemos nossa dor ao corpo morto de Chico Science, poderíamos nos livrar do caos sem fim pernambucano? Mesmo com o conhecimento da história do Recife e suas lutas, a revolução aqui está datada, o que o malungo fez foi a desconstrução das nossas raízes culturais de maneira catártica pré- freudiana. Encarnando o antimestre, ele celebrou um Pernambuco crucificado e vítima de inanição que mesmo assim está sempre a brincar de ser feliz e zombar da inútil erudição dos seus oprimidos.
Quando fecharam o túmulo do mangueboy, restou-nos a pior lágrima possível, a da esperança sufocada, ali mesmo a globalização riu feroz, resta- nos a perversão cultural que vigorava antes dele e continuará nesta terra onde ignorantes e intelectuais compactuam num massacre do amor próprio e da dignidade. Qual São Jorge ou um Fausto às avessas, Chico sobrepôs- se aos medos e às doenças e nem a morte o vencerá, ele não será diminuído pela morte, menores estamos nós. O miserável clichê "arte longa, vida curta" não justifica o sacrifício a que são submetidos os artistas da nossa terra. Enterramos este menino com uma fúria impotente a nos arrepiar. Escrevo para não gritar. As frias estrelas torturam- me lá do céu, depois que a noite caiu melancólica sobre este nosso jardim selvagem. Venham, monstros! Venham sobre nossos corpos de artistas que odeiam o destino que afasta o prazer e transforma simples lembranças em pesadelos.
Maracatu, maracatu: bicho amestrado com capacidade de ser feliz. A força da Nação ecoa e, com um esforço, um riso triste se desenha nos meus lábios nessa espécie de solidão "pra ficar pensando melhor".




Fernando Gabeira faz comédia da vida
Se, como um anjo de pedra movendo- se com suas asas negras, a lei lhe perseguisse e você não pudesse se agarrar a nada que não tivesse de largar em 30 segundos quando a polícia chegasse?
Assim aconteceu com Fernando Gabeira, intelectual mineiro, que teve sua vida representada no filme "O Que É Isso Companheiro?", baseado em seu livro homônimo que relata a sua participação num grupo revolucionário brasileiro durante os famigerados anos 60 .
O sonho dos jovens dos anos 1960 e 1970, naufragou na década de 1980. Como uma túnica frágil, rasgou- se o véu do templo de alto até embaixo, num cenário tropical da mais completa futilidade e ziriguidum.
Gabeira, que fugira do Brasil para se exilar na Europa, voltou com a "abertura" do final dos anos 70. Num cenário de harmonia pré- Tancredo Neves, surge Gabeira quase do nada, da desinformação militar: o cara que lutou por um Brasil menos ruim volta para narrar seu épico pop, suas histórias, suas aventuras, no Brasil e no exílio. O antigo guerrilheiro Diogo usou seus macetes de jornalista para compor sua odisseia. Frases curtas, parágrafos de fácil leitura e temas empolgantes. Botou uma tanga de crochê, foi se bronzear em Ipanema e reinou absoluto numa mídia carente de heróis: "Mude você mesmo", "Seja natural", "Nada de astral baixo", "A gente se encontra por aí...", entrou no clima? Depois de sequestrar, roubar e agitar mil e uma, o guerrilheiro chocava os mais conservadores confessando suas relações bissexuais e transformando sua vida num piquenique. Era a "política do corpo" da qual o filme, é claro, passa a milhas de distância. O filme é tão ruim que deve ser esquecido (destaque para os comediantes). Os livros de Gabeira ("O crepúsculo do Macho" e "Entradas e Bandeiras", entre outros), estes sim, merecem ser revisitados apesar de datados.
Outros exilados que voltaram com Gabeira, por exemplo, Luís Carlos Prestes (cuja mulher, Olga Benário, foi entregue aos nazistas pelo governo Vargas e morta num campo de concentração nazista em 1942) e o grande Gregório Bezerra, além de Miguel Arraes, é claro, insistiam na glorificação partidária de esquerda, mas nosso bom mineiro preferia comentar a discriminação sofrida pelas empregadas domésticas que eram obrigadas a usar o elevador de serviço. O figurino usado por Gabeira era no mínimo surpreendente e as fotos que ele despejou na mídia ganharam capas de revistas como Veja. O vazio do céu esvaziava o sentido do mundo. Parecia que aquele homem que já tinha feito seus deveres de casa queria tirar longas férias num planeta transformado em país das maravilhas. As descrições de lugares exóticos como a Índia fascinaram milhares de leitores. O Partido Verde, o chapéu verde, as aulas de balé clássico e ter seus carrascos elogiando seus livros pareceram a algumas pessoas artifícios de uma direita que queria ser perdoada por jogar o país numa miséria que os políticos até o final dos anos 90 só fariam piorar mais e mais. Intelectuais como Josué Montello apoiaram-no, Gilberto Gil apoiou , abraçou e beijou em público. Eram as cores de um futuro promissor anunciado nos comícios democráticos onde todos clamavam "revolução" e os mais crédulos acreditaram que "diretas já!" seriam a solução para um país que prefere sexo , samba ,futebol, novela e copiar o pior que os americanos oferecem, enquanto educação , saúde e justiça são jogadas de lado na primeira oportunidade, um país que não tem tempo para esperar, pensar, num futuro melhor.
Ah, Le Monde! Os livros de Gabeira eram como a comédia da vida coletiva brasileira. Num dancing days repetitivo, ele usou artifícios comuns na literatura: Ironia, ruptura com a linearidade do tempo gerando expectativas no leitor, estranhamento (do comum, do banal lapidando-o como pedra rara).
Como um bandeirante louco em busca de esmeraldas, o escritor rastejou até Brasília, onde estabeleceu- se como político que defendia ideais libertários de uma geração "cabeça". Sem ele nunca poderíamos imaginar o "outro lado" do guerrilheiro, os seus bastidores. Gabeira foi e é um referencial. Mas este mineiro que influenciou tanta gente cairá na lata de lixo da história? Este jornalista que ficcionou sua vida, servirá de exemplo?
The answer, my friend, is blowing in the wind/ The answer is blowing in the wind.





Um legítimo cenário shakespeariano (artigo publicado em 28.5.97)
Se você vai a Inglaterra, não deixe de visitar o Castelo de Windsor, pequena cidade perto de Londres, às margens do Rio Tâmisa.
Lá está o mais velho castelo ainda em uso pelos monarcas britânicos. Sua arquitetura é um resumo de todos os estilos arquitetônicos que deliciaram o mundo desde 1080 ( data da fundação do castelo que sofreu várias reformas e ampliações). Suas torres cilíndricas são um espetáculo à parte assim como a Capela de St. George, cujo telhado exibe esculturas de animais (às vezes grotescos).
Além de alas imensas com pinturas no teto, o castelo tem vários "museus", como o de porcelana. Você se depara com curiosidades como a armadura de Henrique VIII, quadros, mobília, esculturas e outras preciosidades que fazem pensar nos saques necessários para suprir tudo isto (o Brasil foi explorado até a última gota). São Rembrants, Van Dycks, Rubens e muito mais.
Foi neste castelo que a então princesa Elizabeth II passou parte de sua adolescência durante a 2ª Guerra Mundial. Os jardins são fantásticos e incluem regatos e mil recantos. A ostentação de uma mesa de jantar posta para 60 pessoas pode chatear você, mas não se deixe abater e saia para dar uma volta na cidade ao cair da tarde. Windsor é um lugar simples, com bons restaurantes, indefectíveis lojinhas e o rio Tâmisa dourado pelo sol é encantador.
Shakespeare escreveu "As Alegres Comadres de Windsor" , uma comédia, onde espinafra: "as pessoas ali sofrem a paixão exagerada das bestas, a imaginação delirante dos incapazes, e expõem os vícios ingenuamente à luz do dia" . Foi nesta peça que o bardo fez reaparecer um dos seus personagens mais comentados: Falstaff. Mas isso faz muito tempo. Hoje você deve recitar outra fala desta peça: "Vou revirar Windsor!"





Variações sobre Narciso e Jesus (publicado em 22.12.96) Conto

Foi no último natal com amigos em Paris.
Dezembro pegou- me de surpresa, mais uma vez.
O reencontro com velho amigo exilado no cinza: Paolo, filósofo e dono de uma galeria de arte. As conversas que tivemos me atingiram de tal forma, que as festas de fim de ano foram marcadas pela sua presença na minha memória.
Paris havia atravessado uma greve geral que durou semanas. A decoração de natal virou remendo, Tinha- se que atravessar a cidade a pé (transportes em greve, é claro). Mas o ar de Paolo, quase insociável, objetivo e seguro, o olhar oscilando entre o triste e o irônico ao observar nosso imperfeito planeta (Deus, acelere este milênio!) era o de quem havia conseguido dobrar seu desejo, sua vaidade e personalidade.
O frio cortante. A lua pela metade. Meu amigo prostrado num pequeno café bebia seu cálice de horror. "Se Deus me deu, é porque sabia que eu beberia até a última gota".
Caprichos da incerteza, falência dos ideais, política sem rumo e sem sentido, a bestialização humana que, bebendo o sangue da mentira e da degeneração, busca enfraquecer a dor, sacrificando a prostituição em estranhos altares.
Certo ou errado Paolo planejava uma reclusão naquele natal. Os antigos dançavam por prazer, não para a exibição. Do mesmo modo Paolo deixava a dor atravessar-lhe o corpo dignamente. Este seria o seu último natal, eu bem sabia.
O cheiro inesquecível de Paris envolvia-nos como num delírio, num sonho cheio de abismos. Em vão convidei-o para juntar-se a mim, minha esposa, nossos amigos. Ele preferia estar só. Ele queria sair limpo desta vida terrena, que ele chamava armadilha da carne. Cantou, num momento poético, lembrando sua antiga companheira: "Tosca, você me faz esquecer Deus" (trecho de uma ópera).
Sereníssima Paris. Meu amigo, cravado pela cruel emoção, escutava os badalos dos sinos. O ódio não o excitava, em vez disso estabelecia-se a calma. "Se Jesus morreu pelos pecados de alguém, não foi pelos meus".
A razão da vida , mais do que o ritmo incessante do tempo, é a luz da inteligência sobre o mar escuro da ignorância.
Em silenciosa compreensão, brincávamos com o medo, naquele que seria nosso último encontro.
Uma lágrima dourada pela luz do ocaso, que rolou furtiva do rosto do filósofo, parecia dizer- me, silenciosa: "Feliz Natal". Aquele era o seu jeito de ser, eu sabia. Seja feliz, era o que ele queria me dizer e não sabia como.
Despedimo-nos na Place de La Concorde (que foi feita em parte com as pedras da Bastilha, antiga prisão). Eu fiz minhas as palavras do poeta Coleridge: "Ó amigo! Meu conforto e meu guia! Forte em ti mesmo e forte para me dar força!"
Feliz Natal.





O que aprendemos com Pedro (Publicado em 29.6 .97) (Artigo)
Dia 29 de junho. Dia de São Pedro.
"Pedro foi o primeiro a falar:
-`Mestre, os anjos descerão dos céus para nos ajudar?´
- `Somos os anjos de Deus na terra, Pedro´ respondeu Jesus, `Não existem outros anjos´ ", escreveu o grego Nikos Kazantzakis em "A Última Tentação de Cristo", romance de 1957, que obteve uma adaptação para o cinema com relativo sucesso, dirigida por Martin Scorcese.
A primeira imagem que tenho de Pedro é a de um filme mudo, em preto e branco, sobre a Paixão de Cristo. Lá está o homem- chave do céu, o fundador da igreja católica, negando Cristo. Lá, o pescador de Cafarnaum, galileu portanto.
No rio Jordão, Pedro encontrou João Batista e Jesus e sua porta para o futuro, longe dos jargões pedantes e mal-humorados que reprovavam e oprimiam os libertários.
Logo vieram Salomé, Roma e Companhia e a ansiedade de Pedro levou- o ao medo diante da avalanche de poder. Negou a causa cristã, mas não apagou totalmente a chama da revolução dentro do peito, esta obstinada vontade que sufoca alguns seres humanos. Levantou-se numa epifania paradisíaca, num sonho de harmonia que celebramos até hoje.
Seu corpo, dizem, está enterrado no Vaticano. Impossível entrar no coliseu sem se lembrar dos mártires. Na Basílica de São Pedro tem uma estátua sua em mármore, os pés gastos de tanto gesto de oração que tocou aqueles dedos rasos. Ah, nossa culpa, nossos desejos.
Pedro foi a Roma alertar contra o poder hipócrita. Oferecia uma divindade transcendental que eclipsava a lógica greco-romana. O sagrado coração de Cristo que ilumina como fator de união em plena cidade da loba. Nero, em sua fantasia, jamais iria supor que a igreja, um milênio depois, seria responsável pela transmissão da cultura ocidental na devastadora idade média.
A crucificação de Pedro de cabeça para baixo no Coliseu pode não corresponder a um fato histórico, mas remete-nos ao poder bruto desta terra que regamos com lágrimas quentes e com o suor do nosso trabalho.
A crítica às ambições e conflitos na casa que Pedro sonhou é a grande metáfora do homem idealista, transgredindo com seu instinto, intelecto e espírito; nutrindo nossa história cultural.
Ao ensinar o que vivenciou, Pedro transmitiu- nos que com perseverança podemos vencer estupidezes.





Cristo de Saramago é chocante (ensaio)
Na semana em que celebramos mais um dia de Corpus Christi (nesta Sexta-feira, dia 6), nada mais oportuno do que passar em revista algumas das interpretações que se têm produzido sobre Jesus Cristo, o principal mito da cultura ocidental e seu maravilhoso mistério de dois mil anos.
"A substância dualista de Cristo- o desejo ardente, tão humano, super- humano, do homem, de atingir Deus- tem sido sempre um mistério profundo e indecifrável para mim . Minha principal aflição e causa de todas as minhas alegrias e sofrimentos. Desde minha juventude, tem sido uma batalha ímpia e impiedosa entre a carne e o espírito. E minha alma é a arena onde estes dois exércitos se encontram e se digladiam ".
Esse texto do escritor Nikos Kazantzákis (1883- 1957) faz parte de uma série que tem como tema a filosofia cristã, tão fundamental nos dias de hoje que quando , no Ocidente, encontramos uma criança que não foi evangelizada, isto nos inquieta, porque a ideia de Jesus deveria ser transmitida junto com os primeiros ensinamentos. Jesus - peça- chave do Novo Testamento (parcialmente escrito em grego), sobre quem nos falam os quatro evangelistas (propagadores da fé), que funcionam como narradores-testemunhas do maravilhoso mistério - já foi analisado por vários intelectuais como Pasolini, com o seu engajado filme "O Evangelho segundo São Mateus" (1964) onde o diretor aplica o método de crítica marxista inspirada em Gramsci. O escritor inglês Anthony Burgess (autor do romance filmado por Stanley Kubrick "A Laranja Mecânica", no qual descreveu cenas onde o herói da narrativa via-se como centurião romano chicoteando Cristo durante a flagelação) escreveu o roteiro para o "Jesus de Nazareth" de Franco Zeffirelli . Este filme escandalizou alguns católicos nos anos 70, quando exibiu uma Virgem Maria sofrendo na hora do parto (a propósito: A Maria de Zeffirelli não envelhece do nascimento à crucificação do Messias), um Cristo misterioso e uma encenação no estilo renascentista. Já o grupo de comédia inglês Monty Python deitou e rolou, detonou tudo que podia e, com seu humor ferino, lançou em celulóide uma paródia à Paixão, um pastelão chamado "A Vida de Brian", onde um homem é confundido com o Messias desde o momento em que nasce até sua crucificação, ao lado do Senhor. A mãe de Brian é interpretada por um comediante e a crucificação é encenada como um musical da Broadway, talvez numa alusão ao famoso "Jesus Cristo Superstar", musical dos anos 1970 que optou pela estética hippie para falar de outro tipo de excluídos.
Mas é na prosa impressa que os autores fazem o maior estardalhaço, utilizando-se às vezes da polifonia (imaginem se Shakespeare tivesse escrito a Paixão de Cristo), e dando asas à imaginação, como o teólogo Kazantzákis que fez Jesus descer da cruz e, conduzido por um arcanjo (meio mal intencionado...), levar uma vida "comum", casando e tendo filhos, porém, arrependido, volta no tempo e no espaço para a morte na cruz de onde não poderia fugir. Gore Vidal lançou o extravagante "Ao Vivo do Calvário". Mas o ponto nevrálgico veio em 92 quando o escritor português José Saramago (forte candidato ao Nobel de Literatura) lançou, pela respeitada Companhia das Letras e em ortografia vigente em Portugal, o seu "Evangelho Segundo Jesus Cristo".
Saramago nasceu em 1922, mas só começou a escrever romances na década de 90. É autor da nova geração portuguesa. A inspiração para escrever o seu "Evangelho..." veio quando, passando por uma banca de revistas, leu meio apressado "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" numa manchete (ora, Cristo não escreveu o Evangelho) Mais tarde, o escritor voltou à banca e não achou mais a manchete. Impressionado, ficou martelando aquela ideia e resolveu escrever sua versão da boa nova escrita num texto português. Uma visão ao mesmo tempo comodista e chocante: José, pai de Cristo, é crucificado. Os irmãos de Jesus (Tiago, Lísia, José, Judas, Lídia, Justo e Samuel) são apresentados de maneira bem popular. Saramago é socialista convicto, dono de um pensamento refinado. Move-se bem entre parágrafos extensos e sua desenvoltura é exemplar diante de grandes períodos, coisa tão temida pela mídia hoje. Há uma predominância da vírgula em relação ao ponto nos seus textos, assunto já comentado pelo próprio autor, e que neste "Evangelho..." marcará os "diálogos", que quase não conseguimos distinguir do discurso do narrador. Ponto de interrogação neste texto? Nem pensar. O autor realmente exibe um estilo, uma marca. Resta- nos a curiosidade de especular suas fontes de pesquisa.





Travestidos de vítimas. (10.93.96) (artigo)
Poderia ter morrido depois... Haveria tempo para mais alguma coisa... Amanhã. Tão afetado e engraçadinho: Pobre artista. Mas ele teve os seus minutos de fama. Será agora apenas história contada por idiotas. Som e fúria voltam a significar nada.
Redimensionando os Mamonas Assassinas (o grupo que acabara de alcançar o estrelato perdeu todos os seus membros num fatal desastre aéreo), encontraremos razões universais para um acordo com a morte . Tantos casos assim na música pop: Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, tão pouco tempo tiveram para desfrutar o sucesso. Vemos agora os Mamonas que inesperadamente desaparecem e partem da mediocridade para o além . Eles, que a mídia catapultou em velocidade pop, retornam travestidos de vítimas e sua poesia, que muitos consideraram nociva, hoje pode ser vista por outra ótica devido ao distanciamento. Haveria um novo Walt Whitman preso entre as ferragens? E nós, estúpidos, nem percebíamos? E aquele visual tão colorido? Haveria ali uma espécie vendável de Van Gogh? Ou um Eros exausto que encontrou Tanatos? Quem sabe um novo Renato Aragão? Tudo ali: a vida parecia tão óbvia e desfrutável. Que prazer!
Esta nossa época inconsequente que produz arte descartável. Literatura de supermercado. Mídia pop. Videoclipe futurista. A indústria da comunicação a produzir pessoas cada vez mais sintéticas. Sexo, rapidez: one way. Piedade e amor ao próximo vão perdendo cada vez mais o sentido para que se construa a grande aldeia virtual. Morreu? É show. É notícia. O velório dos meninos é ao vivo e cheio de detalhes melodramáticos. É sempre assim. A comoção alimenta a mídia. Para que tanta notícia? As máscaras que representam este teatro poderiam ser feitas de preservativos e as cortinas , quando se abrissem, exibiriam um imenso vazio, o vazio que é a falência de uma era em que se lutou pela dignidade humana, e agora o Brasil não tem mais direito a nada. Os poetas não trazem esperanças. O funeral dos Mamonas traz no bojo a estética do novo culto. São tragédias como as de Ayrton Sena e a de Daniela Perez (que, como a dos Mamonas, aconteceram na mesma época que havia uma sessão para que se aprovassem emendas constitucionais, por coincidência) que nos mostram a total vulnerabilidade da glória. O assassinato de John Lennon. Lembram? Chegaram a levantar a tese de que ele havia feito um pacto com o demo. Pelo amor de Deus! Estamos vivendo a era da bobagem. Da saudade da goma de mascar. Desculpem a falha técnica: o erro foi nosso.
Os Mamonas partem na sua já tão conhecida Brasília amarela de portas abertas para sempre, numa utopia mal resolvida, como num estapafúrdio filme tragicômico . Levam consigo o enigma da ressurreição que faz parte de todo artista. Talvez um arqueólogo, um escafandrista, alguém do futuro reavalie o trabalho dos rapazes e descubra que eles tinham razão. Por enquanto lembremo-nos da cena de Hamlet com o crânio de um bobo da corte na mão naquela peça de Shakespeare: Ri agora Yorick! Todos nós temos um certo encontro marcado.
Não é mesmo?




Caetano Veloso titubeia entre a modéstia e a empáfia. (publicado em 15.02.98). Ensaio.
"Há uma diferença abissal entre alguém sentir o que todos esperam que sinta e alguém não poder deixar de sentir o que lhe é em princípio vedado", sentencia o cantor e compositor Caetano Veloso na torre do tempo onde escreveu "Verdade Tropical", seu livro de 524 páginas que atingiu, sem muito sucesso, as livrarias neste ano de 98.
O livro, dividido em 4 partes mais uma "conclusão" intitulada "Vereda" (como a música "Vereda Tropical" ou o romance de Guimarães Rosa "Grande Sertão: Veredas"), traz o estigma barroco, dialético, exercita o narcisismo cristão (não convicto) e se abre para uma nova visão da caretice brasileira que rejeita o pluralismo de ideias cultuado por alguns tropicalistas (integrantes do movimento criado pelo próprio Caetano, Gil e outros nos anos 60). Caetano alinhava críticas à nossa cultura e tenta açambarcar trinta anos da nossa história. Não fracassa nem triunfa no "élan" de ajustar contas com o passado. A narrativa busca um estranhamento que parece didático e feito para estrangeiros ou brasileiros que ignoram nossa evolução cultural nos últimos 30 anos.
A capa do livro é verde, laranja, vermelha e branca, sem muito contraste, parece uma coisa amassada. Na dedicatória, encontramos o nome de David Byrne, líder do extinto grupo norte- americano Talking Heads.
O índice onomástico reforça o que vemos em cada página: o autor titubeia entre a modéstia e a empáfia quando o assunto é "nossa nação falhada que devia se envergonhar de um dia ter sido chamada país do futuro" (O país mais novo da América já que os outros foram "descobertos" em 1492).
Existem, coisa tão comum, os erros que sabe Deus de quem são, como "pela menos" (p-15). Mas duro mesmo de engolir é quando Caetano aponta divisões entre "esquerda" (louva Arraes) e "direita" (aceita o capitalismo) num jogo de digressões e elipses estonteantes.
É um livro de anedotas também. De confidências e análises onde se mesclam homossexualismo com inautenticidade psicológica, ateísmo com misticismo, frieza com deslumbramento.
As louvações iniciam-se com o culto a Maria Bethania (irmã dele), Orlando Silva (cantor que abusou da morfina e do álcool, "mestre no mistério do som de nevoeiro da língua portuguesa sobre a paisagem rítmica afro-ameríndia") Carmen Miranda (Ela era "um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal"), João Gilberto, Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e segue encontrando até em Carlinhos Brown traços de "reafricanização e neopopização"; João Cabral de Melo Neto ("diante dele tudo parece derramado e desnecessário"), Jorge Luis Borges (que Caetano segue no que se trata de "influenciar precursores" ou "inventar uma tradição"), Clarice Lispector (com quem mantinha comunicação e ficou surpreso quando a encontrou pessoalmente. "Rapaz, eu sou Clarice Lispector"). Sobre outros, nosso escritor é mais reticente: Janis Joplin era "fatalmente mestiça, fatalmente comprometida". Paulo Freire, "católico de esquerda que fazia propaganda política camuflada de educação" (página 304).
Ciúme, raiva, exigência de exclusividade, capricho: tudo isso é Caetano, querendo estar à altura do seu mito, que se torna mais real quando narrado, revivido, sugerindo assim que se extrai dali uma lição diferente. Para ele, a Bahia não é Nordeste (repete isso várias vezes) e a inveja é saudável ("de Gil, de Dedé, etc").
Caetano é aquele que quer ter "pessoas admiradas e gratas" pelo saber que ele tem (página 92).
Sua análise do cinema brasileiro é familiar. São amigos: Glauber, Sganzerla e Bressane, "Terra em Transe" mudou sua vida (embora ele critique que lhe falte clareza).
Os tropicalistas eram tidos como alienados pela esquerda. E pelo narcisismo de Caetano podemos perceber alguma causa. "Ditadura eu rejeitava. O proletariado não me parecia propriamente estimulante. Operários não podiam, ou não deviam decidir quanto ao futuro da minha vida" (página 116)
O Tropicalismo (rótulo que Caetano encontrou para sua entrada na História, este mondrongo que nos dá sentido) foi um negócio. Mercado, marketing. E encontrou apoio literário, já citado, do concretismo ("uma panelinha"). Um individualismo feroz, rasteiro e agressivo em busca de comunhão, parece guiar os artifícios de Veloso. Ele fala da sua "vocação para o estrelato" e diz saber como aproveitar "a luz intensa sobre nós". Sua linguagem é repetitiva e sua imaginação acelerada. Sutilezas e variações de tom funcionam como epítetos (palavras que identificam pessoas ou coisas) fugazes de sua "hipersensibilidade" .
O leitor fica ao mesmo tempo perto e longe do coração selvagem deste estranho narrador que evita as fendas das ironias decalcadas do seu fantasioso mundo onde afirmação, justiça e modernização assumem perspectivas próprias alternando dor, delícia e ridículo numa visão algo cubista. Mesmo quando o assunto é fofoca: Chico Buarque inventou que Caetano estava internado num hospício em São Paulo e que quando Bethânia entrou no quarto dele, ele gritou: "Sai carcará, sai carcará!". Elis Regina disse que Nara Leão só era cantora porque desrespeitava as forças armadas e Nara recusava-se a se apresentar ao lado de Elis. No dia da gravação da música "Baby" (co-autoria não creditada de Bethânia), Caetano (o autor) e Gal Costa (intérprete) encontraram-se com o compositor esquerdista Geraldo Vandré que, ao ouvir a canção, disse :"isso é uma merda" . Virou escândalo. Caetano deixou de falar com ele.
Nacionalóide? Afeminado? Inusitado? Doce? "Homem- vinho"? (como sugeriu Rita Lee) Parcial? Antigo? Caetano supera tudo isso: "A arte é terrível, é difícil, não se pode passar incólume por Velásquez, Mozart ou por Dante." Porém, artistas como Francis Hime e Edu Lobo engrossavam o coro dos indiferentes ao tropicalismo (dos baianos), calando o que não podia ser dito. Realismo desencantado: a tropicália enfiou-se nos livros didáticos de literatura e associou-se ao concretismo e às vanguardas em geral, numa espécie de continuação do trabalho iniciado por Oswald de Andrade. No teatro, a peça "Roda Viva", um texto ingênuo de Chico Buarque teve a direção de José Celso Martinez, que também dirigiu um texto de Oswald, "O Rei da Vela", que podemos incluir na abrangência tropicalista.
Filosófica ou antropofagicamente, nosso autor devora sua comida e nos lança visões estrangeiras sobre o Brasil: nossa "antropofagia cultural" seria um sintoma de nossa doença congênita de não- filiação, de ausência do pai, de falta de um significante nacional brasileiro. "Brazil is hopeless", disse a poeta americana Elizabeth Bishop. "Um país incompetente". Aprendemos ainda com Caetano que "a língua inglesa tem sonoridade antes canina que humana" (p-254). Há uma espécie de masoquismo em Caetano.
"Até hoje ninguém se sente à vontade para dizer que ele era veado", escreve referindo-se, sem cerimônia ao escritor paulista Mário de Andrade. O tema do homossexualismo é retomado várias vezes no livro, quer seja quando o autor fala de sua relação com Chico Buarque ou com o compositor Toquinho, sem contar as várias páginas no final do livro.
Caetano cria frases exuberantes: "Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação da informação" (p-275) ou "Deus está solto". Seu livro (escrito de 1995 a 1997) é uma "labareda de significados cambiantes" e o que ele fala sobre outros poderíamos falar igualmente sobre ele: "Uma mulher, um macaco, um bailarino, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada". Um homem que sofreu humilhações e esnobismo cultural, foi expulso do seu próprio país e exilou-se em Londres por dois anos. As análises que ele faz neste "Verdade Tropical" têm um pouco da crítica freudiana. Por exemplo, ao referir-se à composição "Coração Materno" (aquela em que a amante pede ao namorado que arranque o coração da mãe dele e lhe traga, o que o rapaz fez imediatamente, na volta caiu do cavalo e o coração da mãe, à distância, disse: "Vem buscar- me, que ainda sou teu"), Veloso diz que vê ali: "a revelação do impulso matricida, a necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor materno sufocante". Seria uma abordagem "típica das massas brasileiras, da própria natureza de toda cultura popular". Sobre o cristianismo, ele diz que "a Era do Filho dará lugar à Era do Espírito Santo" e que " a inexistência de Deus é apenas um dos aspectos de sua existência".
Nosso autor nunca daria a vida por um ideal político, assim era o tropicalismo. A impressão que temos é de uma época de descobertas e, paradoxalmente, reafirmações (dos ideais modernistas de liberdade). O ventre do monstro ou o coração do mal seria a prisão e mesmo lá nosso herói escreveu a famosa canção "Irene ri" (um palíndromo, experimente ler de trás para frente). Ao sair da cadeia concluiu: "O sofrimento não serve para absolutamente nada".
Caetano ficou feliz quando uma pessoa de Nova York lhe pediu que escrevesse um livro "para valorizar e situar a experiência da Música Popular Brasileira em termos mundiais".





Engenharia rima com poesia (publicado em 8.6.97). Artigo.
Se estivesse vivo Joaquim Cardozo, o poeta, de engenharia calculista, recifense, estaria completando 100 anos em agosto de 97. Mesmo tendo estreado na literatura aos 50 anos tem uma obra variada. Na poesia, dominava o ritmo com rigor. Místico ou não , namorou com o Cosmo de maneira admirável . É uma pena que os livros didáticos não dediquem algumas páginas a um estudo da obra deste autor.
Joaquim era discreto. Sua poesia desnorteante ambientava-se muitas vezes nas paisagens secas e agressivas. Um cantar solidário. Transfigurando a amargura e a injustiça sofrida no Nordeste, nele a estilização da cultura popular não soa como aqueles malditos sotaques das novelas que abordam o Nordeste. Neste resgate da nossa riqueza cultural como fonte de salvação ou danação, Joaquim é como uma lufada de esperança soprando sobre a miséria e o esquecimento. Cada verso seu é como um bálsamo, ou reacender a lâmpada que alivia esta escuridão que se abate sobre nós e se irmana com a morte. Uma represa no decurso do tempo para mostrar que um povo não perde suas raízes culturais numa queda.
Faz- se necessário o melhor uso dos nossos valores literários. Jogados num canto nossos autores apenas sobrevivem. Através da nossa literatura poderemos resgatar nossa auto- estima livrando-a do caos e do ridículo estereótipo que nos impuseram.
Joaquim exibe a valentia, não de cangaceiro, que só era forte em bando, mas de um profeta cercado de ironias. Sua poesia e seu teatro são o espelho, não pelo apelo ao folclore, mas pelo quilate de suas alegorias "como variação do cenário vivo", algo que nos liberta da hesitação e passividade imposta pela fantasia burguesa, este maldito prego do destino que nos crucifica.





Conto de Natal (Publicado no Jornal do Commercio de 25.12.97)

Dezembro sempre foi um mês estranho para mim. Acabam as aulas e o professor de literatura vai embora. Chega o viajante.
Decidi aceitar um convite de amigos que moram em Fernando de Noronha para visitar a Ilha.
O barco deles atracado no Recife partiria pouco antes do natal de 96. Eu estava cansado da falta de confiança imposta pelo meu amor e vivia minha temporada no Inferno.
A travessia num barco pequeno não foi uma boa opção e o álcool mostrou- se um terrível companheiro. Na Ilha andei muito com meus amigos. Noites e dias. Tédio e êxtase.
Sozinho, lia Fernando Pessoa e Rimbaud. Lembrava de Clarice Lispector e encarava friamente a divindade.
Foi na Vila dos Remédios que encontrei meu novo amor.
Não. Não é tão simples assim aos trinta e cinco anos, sentir novamente a sensação de estar perdidamente apaixonado por outra pessoa em tão pouco tempo e, em menos de uma semana, ter de desistir desta paixão desesperada.
Dançamos agarrados. Amor em cima dos barcos, pedras, areia, camas, no mar, ao amanhecer. Beijos tantos de os lábios adormecerem felizes de loucura.
À noite, pisávamos nas luzes das estrelas refletidas na areia molhada da praia.
Um delírio de cheiro de corpo e alma que grudaram no meu corpo. Há algo estranho nos professores de Literatura em começo de férias: Gregórios sussurram Bandeiras e Andrades.
Na memória tonitruante latejam- me ainda aqueles dias de paixão tão intensa que me eclipsou e espantou antigos fantasmas.
Terminou de maneira violenta: Ela tinha se tratado de um câncer. Isso fazia-a humilhar os outros mais facilmente.
O abismo delicioso que a nossa relação nos proporcionou foi fecundo e nossa despedida cheia de reticências.
Agora que nos aproximamos novamente do Natal e do Fim do Ano, reacendem- se antigos beijos, realçam- se novos ideais. Aqui estamos com as passagens nas mãos e bagagem (lançamentos e roupas inéditas) pronta. Neva mais nos meus cabelos do que sobre a árvore de natal.
Estou sorrindo ao me despedir de 1997. Nem intelectual, nem sentimental: O professor abraça o seu amor e vive os temas essenciais da vida com o corpo todo. Sai no seu delírio construído de matéria crua. Há nele algo de selvagem: É o que o salva.




Joia do Rosário Hollywoodiano (10.07.93). Crítica.
(Spielberg e o Parque dos Dinossauros)
Mais uma vez o homem do "Tubarão" e dos "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", o americano Steven Spielberg, oferece-nos uma joia do rosário hollywoodiano: "O Parque dos Dinossauros" (Jurassic Park, Estados Unidos, 1993) em cartaz no Recife desde Junho. Um thriller onde não faltam trocadilhos daquele tipo que às vezes vêm acompanhados de um "desculpe, não pude evitar".
O que você pensaria se visse um dinossauro (ou seja lá que "sauro" for...) abrindo a porta de uma cozinha ( usando o trinco , lógico) e perseguindo duas criancinhas americanas ? Você acha que isso dá samba? Pode ser o samba do crioulo doido ou então virar tese da famosa crítica norte- americana Camille Paglia (com suas análises do American way of life).
Spielberg remexe o inconsciente coletivo, levando emoção às "múmias" do mundo moderno: Um apimentado recheio que agrada do primeiro ao último mundo, usando para isso uma história meio sem pé nem cabeça, onde cientistas geram dinossauros a partir de uma informação genética contida no fóssil de um mosquito (que teria sugado um big dinossauro). Se faltam informações adequadas? Não é problema. O autor do livro que inspirou o filme, Michael Crichton, dá a dica: Misture tudo com algo do DNA das rãs. Mas, para tornar as coisas mais convincentes (não que isso seja necessário), acrescente histórias sobre animais africanos que se transexualizam, sendo capaz até de auto- reprodução e a raça dos nossos ancestrais (quer dizer, contraparentes) já pode se reproduzir e infernizar as telas do planeta com seus gritos e sua falta de modos.
Os atores parecem realmente títeres nas mãos de Spielberg, que tem o dom de transformá-los em coisas tão insípidas quanto seus bichinhos, em sua maioria frutos do computador (efeitos gráficos barateiam a milionária produção). Destaque especial para a antipatia natural de Laura Dern e Sam Neill- o casal de retardados arqueólogos que, fazendo as vezes de heróis , num roteiro que desperdiça talentos como o de Jeff " a mosca" Goldblum (participação mínima no filme) e transforma tudo num Big-Mac requentado ao modo spielberguiano.
As auto-citações, cada dia mais comuns no fazer cinematográfico americano , remetem- nos a: "Gremlins" - "bichinhos" que perseguem um dos vilões do filme , o gordinho que rouba os frascos do laboratório, abrindo as cercas para os dinos baterem pernas ; "Tubarão" - a dupla de monstros na cozinha com as crianças, as cenas na floresta e mais uma dezena de sustos e violência estilizada/ pasteurizada; "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" - as luzes do Parque, alguns ângulos e tomadas inteiras , que nos fazem pensar que o diretor sem Ter como renovar seus truques, resolveu fazer sucesso a qualquer custo compilando antigos êxitos, como por exemplo o bucolismo fantástico de "ET"- no Vale dos Dinossauros " bonzinhos", herbívoros, que pegam gripe (!) de tão "humanos" que são.
O humor negro também se apresenta de maneira óbvia: Um garotinho conta "Um, dois..." e leva um choque elétrico mortal (suspense), entra em coma e morre. Ressuscita, olha para a turma e diz: "Três!". É mole? Então engula mais um clichê: Imagine o personagem interpretado por Sam Neil depois de ser quase trucidado com todo o seu grupo e passar por diversas torturas sob a fúria do s monstros e outros nonsenses do filme, vira- se par o chefe do Parque e diz: "Acho que não vamos endossar seu parque".
Até que ponto uma plateia aguenta o absurdo de um texto? Autores como Pirandello, Antonin Artaud, Ionesco e tantos outros já levaram à cena dramas cruciais, onde tramas absurdas eram alinhavadas pela lógica da volúpia dos sentidos e encenadas com imagens convincentes. Mas o que Spielberg propõe mais parece um daqueles comerciais sórdidos que tentam salvar sua vida ou fazer você "matar o tempo", oferecendo um tipo mágico de papel higiênico. Mas é arte e homens ocos, mulheres gordas e as crianças que empipocadas, refrigeram-se adocicadas, estão ávidos de coisas assim para fazer sua catarse.
Os críticos tupiniquins não ousaram levantar uma nota dissonante que fosse contra a parafernália promocional que envolve "Jurassic Park" ou sobre o verdadeiro conteúdo dessa geringonça sensacionalista que eu chamo carinhosamente de "o efeito dinossauro", onde a manipulação através da mídia atinge um grau periclitante, quando pensamos que qualquer coisa pode ser empurrada goela abaixo da população do planeta como se fosse um suco de fruta.
































PARTE II





























O poema épico e as diferenças de gênero da poesia

"Os homens modernos, ao contrário dos homens do mundo antigo, separam-se com suas finalidades e relações 'pessoais', das finalidades da totalidade: aquilo que o indivíduo faz com suas próprias forças o faz só para si e é por isso que ele responde apenas pelo seu próprio agir e não pelos atos da totalidade substancial à qual pertence" (Lukács).


Posicionar-se criticamente diante de certas obras é desafio constante dos professores, críticos e também do leitor comum. Épica, dramática ou lírica a fantasia criativa é enigma de quase impossível compreensão absoluta. O espírito do autor divide-se entre as regras e ruptura, estando a liberdade criativa quase sempre sendo colocada em cotejo com a arquitextualidade e sob a observação de severas (e às vezes superáveis) teorias de cunho imobilista ou talvez discricionário. A obra epopeica dos antigos, por exemplo, tem sido alvo de inúmeros estudos, assim como a poesia sentimental dos românticos em seus variados vieses. Mas teriam a estrutura e a forma do poema épico sido vasculhadas à exaustão? Nunca um tópico assim poderia se esgotar em suas possibilidades de interpretação e representatividade. Hegel, no início do século XIX, analisou ações e circunstâncias que envolvem uma nação e uma época ali retratadas artisticamente: o espírito nacional, a organização das instituições, do mesmo modo que Schiller tratou de comentar a poesia ingênua e sentimental. Não é só o conteúdo, mas também a visão de mundo ali inscrita (que estampa a esfera na qual tais obras se movimentam) que merecem especial atenção destes autores (que se debruçam no estudo de vários poemas).
Alguns críticos apontam diferenças quanto aos termos: a palavra épica seria utilizada enquanto gênero narrativo, já epopeia seria o poema heróico, pertencente ao gênero épico (aqui seriam incluídos também o romance, o conto e a novela que mesmo não sendo epopeias tiveram ali sua origem).
Ao tratar da filosofia em relação à épica, Hegel nota que o poema épico transcende a simples glorificação de um povo no seu apogeu.  É mais o contato do homem com o universo (circunscrito) o que parece ser ressaltado. Uma compreensão do Cosmos.
A poesia, presente em todas as civilizações, tem conteúdo espiritual e trata de acontecimentos, sentimentos, ações e paixões. Sua matéria é a linguagem. Para Hegel o que importa, além da estrutura da poética, é a análise dialética (tanto na épica quanto na lírica) no que trata da relação entre vida social e poesia. Observando a arte enquanto fenômeno histórico, surgem as figuras (espiritualidade e idealidade) e o pathos (no destino). Entendendo arte enquanto: clássica, simbólica e romântica, e tratando-a como a exterioridade sensível captada pela intuição, como interioridade, Hegel analisa através da filosofia (na medida em que esta intersecciona a objetividade da arte e a subjetividade da religião, agenciadas pela intuição e aponta a matéria espiritual como necessária para o filosofar, numa superioridade do espírito em relação à natureza) e coloca da liberdade do espírito (ligada ao conceito de belo, de ideal) em cotejo com a harmonia do belo (ideal) e a tensão (do destino). Surge a contradição: a beleza artística, feita para e pelo homem é contraposta à natural. Hegel aponta alguma superioridade do belo artístico, na medida em que no natural, a natureza está em nível de não-liberdade. Nas contradições próprias da vida (entre liberdade e necessidade) gerar-se-ia o belo na arte (resultado do trabalho espiritual). A obra de arte se mostrando livre, superaria assim a natureza (inclusive a morte) podendo conservar (ou não) o sensível ou o natural, em evolução para o espiritual (não sensível). Nesta idealização (não-perfeita) do sensível através da arte simbólica (ainda pré-arte, por sua aproximação com o natural), haveria também a tentativa de representar a totalidade da vida, do mundo (e o anseio por símbolos da totalidade, haveria também o excesso da matéria e escassez de elemento espiritual). A passagem para uma forma clássica implicaria na harmonia (entre forma e conteúdo), aí a epopeia seria a manifestação estética de individualidade (ética).

II

            Mantendo-se no centro do pensamento a poesia capta a universalidade espiritual quando busca a unidade interior de tudo, mas deve fazê-lo com soltura e uma aparente autonomia (diante do pensamento do outro, da aparição, da existência natural), na medida em que no seu fluxo o conteúdo espiritual conquista uma existência exterior. E qual seria a subsistência material deste “modo de exteriorização”? Tem-se, por exemplo, o conceito de sonoridade nela (na poesia) exercitado, (as letras impressas estando como signos).
Buscaremos agora traçar um paralelo entre o épico / a poesia sentimental e ingênua. Usando, como base a estética de Hegel (no que trata do épico) e as observações de Schiller (no seu ensaio Poesia Ingênua e Sentimental).
Nos textos dos rapsodos (que às vezes cantavam de cor, mecanicamente, em única medida de verso um acontecimento “acabado em si mesmo”) controlava-se a autoexpressão do sujeito e instalava-se para o leitor a ação em sua luta e desenlace. O homem vivo era, ali, ele mesmo o material desta exteriorização  nesta  música plástica (da posição  corporal e do movimento), o Epos, (a palavra, o discurso) transformava até mesmo a lenda em palavra (exibindo seu conteúdo substancial em  direção à consciência,  de quem  o lê) e a extraía do acontecimento  o caráter  universal, apontando pontos particulares. A epopeia mais simples ressaltava o mundo concreto e a riqueza dos fenômenos mutáveis, como nos antigos epigramas, inscrições em objetos e monumentos. 
A epopeia foi se aprimorando e eliminando a duplicidade dos objetos, incluindo enunciados éticos, apontando deveres na existência humana, a sabedoria, intuição do vínculo sustentado. Mas isso tudo, mesmo se dando sem a finalidade da comoção, ainda não é o épico no sentido mais clássico, como abordado por Hegel, um todo maior, a espécie épica que queremos discutir, contrapondo-a ao lirismo sentimental. Um estreito entrelaçamento de poesia e efetividade foi conseguido nos poemas didático-filosóficos (em Parmênides, por exemplo), ao tratar do transitório e do eterno, com certa grandiosidade e potência.
Já a poesia indiana, no que trata da cosmogonia perder-se-ia em divagações, que deveriam ser evitadas na poesia épica. O luxo, a glória, a inverdade fantástica, a confusão que permeiam as epopeias indianas, mitologia exposta epicamente em grande parte, faz do registro uma ponte entre o religioso e o poético, mas mesmo na sua graça impressionante este oscilar entre o humano e o divino, os episódios que parecem acrescentados posteriormente, tudo isto parece mais querer ensinar a  moral e a prudência que  exibir o caráter nacional de um povo. Também nos judeus (o Antigo Testamento) predomina algo que difere do caráter épico: o interesse em si religioso. Entre os persas e os árabes, mesmo antes do período maometano, as obras não apresentam o tom épico que Hegel consideraria adequado, falta-lhes a firmeza da configuração individual, o sopro da vitalidade imediata, necessários à grande epopeia nacional, a articulação e a unidade estão soltas, não tratam da seriedade do destino de modo contundente como Homero o fez.
 No que vimos até agora, o tom épico não implica na epopeia em toda a sua amplitude, na sua conexão como o mundo. Na objetividade em relação ao espírito de um povo em sua totalidade (religião, existência, política, lar, carências e satisfação), na presença viva do seu espírito. O que é exposto na epopeia, em objetividade real, é a sequência exterior. Surge ali, acabado poeticamente, um todo em si mesmo orgânico, em calma objetiva, a consciência de um povo, e não um livro religioso, que falta aos gregos, por exemplo.  Um povo que já construiu sua própria cultura seria representado (na épica) através da literatura que não se deteria na ocupação com o interior do indivíduo e sim desvendaria circunstâncias exteriores, extrapolando a simples nacionalidade poética e atingindo a consciência representadora cheia de vitalidade própria, fruto de grandes revoluções.
Os gregos superaram influências, como as egípcias e da Ásia Menor, os romanos tiveram que lidar com a herança grega, mas a poesia épica só se realizou em plenitude na consciência da força de um povo e através de um só indivíduo: o poeta (que produz o texto “coletivo”) que expressou sua necessidade mais elevada, a honra, os feitos, o modo de ser da sua gente, desaparecendo dentro do seu “objeto”, e isso não significa dispensar seu estilo pessoal. Não é o mundo interior do sujeito que é poetizado e sim as questões fundamentais que envolvem sua produção espiritual, consciência e autoconsciência efetivas e singulares, dentro do estado nacional.
O mundo universal apresenta-se, na epopeia, através de um acontecimento, em determinada época (mesmo que se invoquem outros períodos e outros planos). Através do épico surge assim uma nação inteira, sem a subjetividade excessiva dos indivíduos nem tão pouco ir de encontro à paixão e ao modo de pensar individuais. Afastando-se do idílico, ainda sustenta uma conexão viva com a natureza, mas não se detém muito nestas cenas e até em coisas mais simples, por exemplo: em tais poemas os heróis não se esquivam de tarefas como preparar comida, servir vinho, e as executam com prazer. São apresentadas também as vidas dos subordinados e representações de outros povos.
Quanto a outros autores, Hegel aponta os anjos e demônios em a Divina Comédia como fora da objetividade alcançada por Homero. Neste, o lado natural se funde ao espiritual para executar fins práticos, faltaria também no texto de Dante a fundamental guerra entre nações estrangeiras, como há em Camões. Hegel faz o elogio a Tasso em seu Jerusalém libertada: a unidade, o desdobramento, o acabamento, mas ressalta que lhe falta a “originalidade” que o colocaria como livro fundamental de toda uma nação. Quanta a Os Lusíadas, apesar do patriotismo, da unidade epicamente acabada, vitalidade das descrições, faz-se sentir uma cisão entre o objeto nacional e a uma formação artística emprestada dos antigos. Já no Cid (1140), o amor o casamento, o orgulho familiar, o domínio dos reis, o conteúdo elevado, as cenas humanas em desdobramentos de dias gloriosos, fazem de poema um exemplo do que há de mais belo, num único todo, em relação à poesia épica.
A objetividade épica não significa mero descritivismo. O acontecimento se dá no entrecruzamento do lado interior com a realidade exterior, do mundo natural e espiritual, é aí que o mundo da vontade é apreendido.  A ação, mesmo reconduzida ao caráter interior, não impede o lado exterior de adquirir o seu direito indiviso. O acontecer da ação na natureza concreta chegaria assim à vitalidade poética expressa pelo autor épico que também de forma única, elege o seu herói. O próprio acontecimento também exige unidade e não o despedaçamento em situações isoladas ou exibição de fantasia como vivência (introduzindo na obra objetiva mais do que é permitido).
Seria interessante lembrar que no Brasil houve algumas produções de épicos ainda no período colonial, esvaziadas no que se trata das noções básicas que sustentam o nacionalismo exposto nas propostas de uma epopeia tradicional. O Uraguai (1769), de Basílio da Gama usa o Tratado de Madri como leitmotiv e critica os jesuítas, na sua resistência aos portugueses. Exalta o General Gomes Freire de Andrade (líder das tropas de Portugal) e Catâneo (chefe das tropas da Espanha). Há as personagens brasileiras como Cacambo (chefe indígena) e Cepé (guerreiro índio), mas nada que justifique a glória do povo brasileiro, representada por seus heróis. Além do mais o feito era muito recente para que sobre ele fosse traçado uma perspectiva épica. A pobreza temática é gritante e o modelo camoniano (dez cantos) é substituído por cinco, em versos brancos. Já o poema épico Caramuru (1781), do Frei José de Santa Rita Durão, que segue o modelo camoniano, também não seria exemplo das glórias (dignas de uma epopeia) brasileiras, narra as façanhas do português Diogo Álvares Correia, que naufragou na costa da Bahia, no século XVI e teria vivido entre os índios. Seu interesse por Paraguaçu, filha de um dos caciques locais, o leva ao matrimônio. Eles embarcam num navio francês, rumo à Europa.
Em Homero a recordação e a fala traduziriam também verdade  e realidade poética interiores. O sofrimento dos indivíduos, o acontecer da ação, tudo se move diante do leitor. A epopeia apresenta “homens totais” em suas qualidades humanas e nacionais.  Indivíduos que reúnem o que poderia ficar disperso em relação ao caráter da nação.  A beleza, a grandiosidade, a liberdade que estes indivíduos apresentam, unem-se à sua coragem diante do destino dos acontecimentos. “A epopeia não tem de descrever uma ação como ação, e sim como um acontecimento”, ensina Hegel (2004, p. 115) e o destino é feito no agir conjunto de potências, nos eventos. Deuses e homens em Homero, por exemplo, têm, na relação poética, uma autonomia recíproca (nem os deuses são rebaixados à abstração nem os mortais a meros servos obedientes. Sobre os primeiros paira, no dizer de Hegel (p. 119), uma “luz mágica entre a poesia e a efetividade”.
Ainda segundo Hegel (p. 123) na poesia lírica a forma do interior “exclui de si a ampla intuitibilidade da realidade exterior”, já na poesia épica a “efetividade nacional abrangente, sobre a qual a nação se baseia, igualmente conquistam um lugar o interior bem como o exterior” (p. 123). Em amplitude de conteúdo e forma, diferente da poesia sentimental que concentra tudo o que “apreende na intimidade de sentimento ou dilui na universalidade concentrada da reflexão (p. 121), no épico a existência independe dos lados  particulares e volta-se para  o exterior  (lado a lado: o caráter e a necessidade exterior,  com a mesma força). Hegel  cita como exemplo de sobriedade épica  os discursos de Aquiles (por Patroclo)  e o de Hécuba (por Heitor) dentro da Ilíada, comoventes não só pelo lírico  embutido mas principalmente pelo seu  modo épico.
            A épica estaria ligada a épocas originárias de uma nação enquanto a lírica pode ser produzida em todos os períodos do desenvolvimento. Um mero acontecimento, uma ação, quando narrada epicamente assume a forma de um evento, diferente do idílio onde o homem é exposto em sua inocência, ou ainda no romance burguês do início do século XIX no seu conflito entre a poesia do coração, a “prosa oposta das relações” e a contingência de circunstâncias externas.

III
Na subjetividade do criar e do configurar espirituais, a exteriorização de si da poesia lírica, nota-se um afastamento da coisalidade da arte épica. “O domínio cego da paixão reside na sua unidade turva destituída de consciência com o ânimo inteiro”, sugere Hegel (p. 156). Este objetivar-se primeiro do coração se abre para a expressão de si mesmo, é a tarefa da poesia lírica e sua diferença em relação à épica, que tem a necessidade de ouvir a coisa (sache): destacar o objeto.  Na lírica o conteúdo não é o desenvolvimento de uma ação objetiva em sua conexão com o reino mundano. O sujeito singular singulariza a situação, em seu juízo subjetivo e mesmo no que tange à expressão da vida nacional, o poema lírico se limita a uma certa visão particular. A essencialidade nesta poesia lírica se faz mais profunda e o sujeito que se expressa torna-se ele mesmo, também, conteúdo e o todo começa pelo coração do poeta. Deve-se destacar aqui que se a epopeia se utiliza de passagens líricas, o contrário também não é improvável. O que não significa que na lírica o foco seja a descrição e a ilustração do acontecimento real. O poeta lírico ao expressar sua melancolia, serenidade ou até o fervor patriótico, não faz do evento o ponto central, e sim como isto se reflete no seu ser (conteúdo épico, tratamento lírico).  Ele utiliza-se da situação para expressar a si mesmo, seu interior (subjetivo). Não é a coletividade e sim o sujeito que se mostra em sua paixão particular, em pleno arbítrio do desejo e do prazer, originalidade, o conteúdo do seu peito humano onde lateja a arte em busca de expressão plena, peculiar. A lírica autêntica não se obriga a ter os acontecimentos exteriores como ponto de partida, ao contrário: busca em si o estímulo e o conteúdo, ao passo que ao poeta épico serve de conteúdo o herói estranho, seus feitos e acontecimentos.
No que trata da poesia popular, Hegel ressalta que aí “não é um indivíduo singular que se torna conhecível (...) e sim um sentimento popular” (p. 169) que ele traz em si. Tal “frescor destituído de reflexão” pode até apresentar a “selvageria” das “nações semi-rudes”, o trivial, o horrível. Daí a expressão total do espírito não poder ficar preso ao conteúdo, ou modo de expressão das canções populares.  Deve ao contrário expressar o máximo que o feito humano é capaz de abordar  em  si enquanto expressão do seu espírito   (numa posição mais elevada) e ser capaz de levar à autoconsciência livre, ao pensamento filosófico,  à abstração,  com clareza,  sistematicamente, como às vezes o faz Schiller, ocultando explicações  didáticas também.
O poeta lírico empresta palavras ao seu interior e pode até se colocar no lugar do seu herói, mas o que vai se destacar, ainda aí, é a representação de si mesmo, enquanto na poesia épica o sujeito se introduz no objetivo (e não no sentimento) por meio do detalhamento de descrição, da situação exterior, utilizando-se de episódios (que se encaixam  no  conceito de totalidade) que não surgem em transições repentinas, representações particulares, singularização livre, e o poeta deixa o objeto apoderar-se da alma.
Em relação à lírica, Schiller aponta a poesia ingênua (como a grega antiga), e a do poeta moderno (sentimental) que Schiller representava. Tal integração com a natureza representaria o que havia de mais caro, a perfeição, enquanto o sentimental (Schiller) procuraria essa natureza. Mas há de se levar em conta que os gregos estavam cercados de um ambiente privilegiado, uma arte idealizadora, uma “idealidade perfeita” (que vigorava nesta poesia). Diante do peso desta antiguidade clássica da Grécia, Schiller, em parte, elaborou o seu ideal, não como cópia, mas traçando uma peculiar analogia. Demarcando espaço para o que chamou de modernidade literária (um cotejo com o ideal grego, onde latejava a unicidade com a natureza).  Em Schiller, havendo a reflexão, o sentimento da natureza, há também o espelho revitalizado do homem uno  consigo  mesmo almejando  a felicidade  no sentimento  de ser humano: Sentir naturalmente (os gregos), sentir o natural (Schiller). O desaparecimento de tal natureza como experiência é recompensada pelo seu ressurgimento no mundo poético (como objeto e como ideal) e os poetas seriam  seus guardiões, vingadores, testemunhas. Os sentimentais voltam assim à natureza pelo caminho da liberdade e da razão. Schiller, em relação à poesia grega antiga, salienta as condições do período e tenta produzir no seu próprio tempo a harmonia em si mesmo (enquanto poeta). Numa Alemanha, ainda não unificada, ele os gregos e reflete. No seu íntimo o poeta traça, enquanto sentimental, um panorama distanciado daquele das conquistas pela guerra ultramarina, como na Ilíada. O mundo universaliza-se no ser diante da própria felicidade de uma alma livre que se integra à natureza para fortalecer-se na dignidade, no princípio ético e moral.
Diante do homem, para Schiller, estariam as opções: enfurecer-se contra a malícia ou rir dos acasos e confusões mundanas. À inocência perdida na infância, ele não propõe um retorno ao que é infantil e sim uma sobriedade adulta de retomada da integração (com a natureza) cheia de força e vigor (como se dá com as belezas naturais) como os gregos fizeram.
A poesia schilleriana propõe-se como sentimental, mas não como uma degeneração do classicismo. Registra a perda da harmonia com a natureza, que o homem (moral) ainda teria (ou deveria ter) como modelo de felicidade diante de alguns males da cultura (que traz no bojo o afastamento do que seria “natural”). Propõe  que o poeta encontre,  ao contrário do épico, dentro de si a saída.
A remissão ao modelo de representação dos artigos gregos se dá na ânsia por felicidade e liberdade (perdida). Schiller apresenta nostalgia da antiga perfeição (natureza como superior à arte, à mímesis) e propõe uma poesia que parecesse brotar da própria natureza. O autor, cheio deste ideal sublime (de unidade perdida) se reencontraria na poesia sem artifícios e proporia à cultura uma retomada da integração com as forças naturais. O poeta moderno, então, se recuperaria do doentio afastamento, e, tentaria “ser” (plenamente), guiando os outros, proporcionando, de certo modo, o ambiente idílico (diferente do épico), através da expressão do que há de mais sublime e atemporal.
No poema épico grego os homens são representados como rígidos (diante até das divindades tornadas conhecidas). Aparam-se as arestas entre o espírito e o corpo (físico), e a ação é sugerida enquanto traje bem talhado da alma.  Coagula-se em “aço purpúreo o sangue que lhes brota”, forja-se em “couraça, para que suas feridas permaneçam eternamente ocultas e seus gestos de heroísmo tornem-se o paradigma do verdadeiro e futuro heroísmo”, como sugere LUKÁCS (2000, p. 27).
Este fantasma da cultura grega vem atravessando milênios e superando em intensidade tantas outras obras de vários povos (sugere Hegel), em inversão de topografia transcendental, a tratar do amor, família, Estado. E dentro desta poesia épica bem elaborada está também o afastamento dos abismos, um mundo acabado e perfeito. Enquanto outros autores, através do tempo, segundo o mesmo Lukács, tiveram de “cavar abismos intransponíveis entre o conhecer e o fazer, entre a alma e a estrutura, entre o eu e o mundo, e permitir que na outra margem do abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexão” (p. 30-31). No mundo de hoje, “infinitamente” grande e metafisicamente maior (do que o dos gregos antigos), que suprime o sentido de totalidade, fragmenta-se cada vez mais o elo com a natureza, enquanto modelo (ansiado por Schiller).  Platão desmascarou o herói épico (em sua imanência à vida) e iluminou o perigo sombrio por ele vencido.
A poesia sentimental estaria enquanto deve-ser, sob um “céu imaginário”, teve, como sua essência, aquilo que se elevava desse “fundo mais profundo” que ninguém pisa ou vê a base. Buscou-se depois, através de várias épocas, um mundo “abarcável” com a vista, onde o abismo perderia (aparentemente) o perigo das profundezas, o incompreensível é trazido à visão (como em São Tomás). Mas a desilusão romântica do século XVIII, seguida pelo apelo à vitalidade encontrada na natureza, fez o poeta perceber o fim da epopeia. Surgiu em seu lugar o romance. “O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade (...) é dada de modo evidente (...) a imanência do sentido à vida tornou-se problemática” (LUKÁCS, p. 55). A totalidade extensiva da vida, sugerida pelos gregos (que tinha o empirismo em seu fundamento), vai dar lugar, na poesia, à transcendência lírica, margeando o utópico. Em Homero o transcendente  mesclava-se à existência terrena,  era imanente,  o herói estava  ligado à realidade histórica e não ao seu arquétipo,  sujeito e objeto não coincidiam. O sujeito, em contemplação muda, era o  homem  comum da existência cotidiana. Já no idílio o que se vê são os contornos de brandura, isolamento diante de tempestade.
Já a poesia dramática reuniu em si a objetividade (da epopeia) e o princípio subjetivo (da lírica) e expôs em presença imediata a ação em si mesma acabada, decisiva, efetiva, e expondo colisões entre o interior dos indivíduos e o exterior, em exposição cênica. Em cena estariam a intuição imediata, as paixões e personagens colidentes (ações e reações) em apreensão poética enquanto expressão  mediadora (dos princípios épicos e líricos) onde o acontecimento, o atuar, o agir não se desfazem  em puro lirismo (em oposição ao exterior), mas em realização  (exterior) diante de determinadas circunstâncias cênicas (enredamento, colisões)  até um desenlace (que não pode ser meramente lírico), onde é gerada uma proposta de reflexão sobre caráter,  fins particulares. O si-mesmo volitivo dos personagens torna-se (nesta poesia dramática) exterior (“aparição exterior”) e é mostrada a ação como ação, o caráter enquanto (o seu) agir. Deixa-se fluir o “pathos impulsionador” em cada um dos que agem (surgindo de modo oposto, fins distintos), entrando em conflito (existência oferecida à ação e posta em movimento), exibindo lutas e destinos humanos, suas intrigas, oposições. E, no reconhecimento das potências imperantes, o poeta dramático não deveria ficar simplesmente preso à tecitura lírica, na medida em que há que se exercitar a dissolução da unilateralidade das potências (que se autonomizam nos indivíduos). Parece óbvio que tal autor deve ter conhecimento das técnicas e necessidades do teatro (unidade da ação, por exemplo). “A ação dramática reside essencialmente num agir colidente”, enfatiza Hegel, “os indivíduos introduziram todo o seu querer e ser em seu empreendimento” (p. 208).
Ao buscar auxílio, complemento, em várias outras artes, a representação  teatral é a execução de uma partitura e tudo  deve ser bem orquestrado.  A voz, o atuar e a encenação exigem cálculo e preparação, não é o leitor solitário (da lírica e da épica) o que o autor teatral aguarda (simplesmente,  textos são para encenação):  é um espectador. Tal autor precisa de “mãos e gargantas estranhas” (Hegel, p. 229) dos atores, eles são como instrumentos (utilizados pelo escritor). Às vezes estarão nos gestos o que poderia, noutro contexto, ser descrito por palavras (em outros gêneros), o exterior sensível, e agora são efeitos teatrais.
O modo de desdobramento da poesia dramática se distingue da lírica e da épica.  Sua progressão, abrangência, divisão em cenas (e atos, às vezes), a pouca utilização da descrição (fundamental na épica), a busca da naturalidade, a dicção, enfrentam o juízo imediato do público, a presença viva deste (que deve ser pensada na elaboração do texto). O modo de pensar é levado diante dos olhos do consumidor (em público). Não é a exposição dos personagens e sim a ação, que advém a partir daí, que interessa mais. Na épica o poeta é narrador, mas no teatro, o público exige a consumação, as atitudes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- HEGEL, G. W. F. 2004. Cursos de Estética. trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, v. IV.
- SCHILLER, Friedrich. 1991. Poesia ingênua e sentimental. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras.
- LUKÁCS, Georg. 2000. A teoria do romance. Rio de Janeiro: Editora 34.






Literatura em diálogo com outros estudos. Aula ministrada no dia 14 de julho de 2006 das 14 às 16 horas para professores de todo o Brasil reunidos no XIV Congresso da ANEB em Recife-PE.

Nossa aula / oficina terá como finalidade comparar a literatura brasileira com outras expressões artísticas. Daremos ênfase à literatura pernambucana ou produzida em Pernambuco, uma poética diluída em livros, letras de música, shows, filmes, manifestos, entrevistas e outros meios. Observaremos como foram tratadas as problemáticas de identidade e diferença. Buscando promover um diálogo entre estas expressões em busca de divergências e convergências.
Concluiremos com os nossos posicionamentos sobre o Ensino da Literatura no
Ensino Médio. Buscaremos elementos que possam ser trabalhados como formadores de identidade e motivadores da expressão cultural. Exibiremos através de recursos de multimídia um estudo crítico sobre o modo como a Escola vem trabalhando a literatura e outros fenômenos culturais. Motivar os professores e amantes da literatura a conhecê-la através de alguns exercícios dinâmicos. Buscaremos na literatura comparada com outras mídias o eixo para discutir como vem sendo trabalhada a questão das mudanças de padrões culturais fixos e analisar o contexto sóciopolítico onde se encaixam as obras dos nossos autores. Compararemos opiniões, atitudes e hábitos que cercaram o ensino da Literatura, contextualizando tudo isto no panorama transcultural (no sentido que é dado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, ou seja, como processo de hibridização cultural que implica em aculturação, desculturação e neoculturação) e observando como foram comentadas as circunstâncias a partir das quais surgiram as obras em questão e sob que perspectivas elas foram transformadas em objetos de estudos. Traçaremos perspectivas para os estudos da cultura local através da análise do imaginário / poética da abordagem dos seus textos literários (Bandeira, João Cabral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Raimundo Carrero, o paraibano / pernambucano Ariano Suassuna, Osman Lins, Gilberto Freyre, Gilvan Lemos, Josué de Castro e a questão da “invenção do Nordeste”). Investigar esta literariedade como fruto da comunhão universal e como reserva das mais ricas de afeto, humor e sabedoria e exercitá-la através de exercícios práticos que os participantes da oficina poderão reproduzir em suas salas de aula. Destacaremos a questão de certos pontos de convergência entre a poética nordestina, a cultura e os acontecimentos históricos. Como se dá a aceitação do Outro e a busca da cor local. Mostrar como a cidade do Recife foi recriada na poesia (inclusive a do Movimento Mangue, com Chico Science nos anos 1990 do século passado).
Demonstrar como os lugares-comuns foram reescritos, distorcidos e ressemantizados e de que modo(s) a reiteração dos estereótipos da linguagem ordinária pode-se integrar no universo literário. Tentaremos redimensionar dentro do ensino da literatura a construção de uma identidade cultural, destacando o ponto de atrito entre a auto-atribuição de identidade, em uma perspectiva que inclui auto-reconhecimento e alter-atribuição posterior (fornecida pelos estudos acadêmicos) e de como podemos observar os atores sociais em questão como resultado deste confronto entre as duas. No caso a representação dos nordestinos nas obras de arte, especificamente a literatura e como isto é ensinado em sala de aula.
Nossa tese é de que há um novo modo de se trabalhar a literatura através da utilização estratégica dos recursos que dispomos visando uma renovação ou problematização construtiva, uma reconfiguração do próprio lugar-comum, para isso contamos com a influência das representações simbólicas, tais como revistas, cinema e TV. Quanto ao uso deste material procuraremos desenvolver, como já ressaltamos, um interessante diálogo, em estratégia para construção de um estudo que seja a tentativa, nós professores não operamos milagres
mas podemos tentar sonhar com um movimento dinâmico.
Uso de computador, transparências, letras de música, vídeos, trechos de adaptações do gênero narrativo para o gênero dramático
Procedimentos: Investigando a abordagem realizada por pesquisadores ao estudar, nestes estudos vários aspectos dos estudos das artes o diálogo entre eles.
Nosso estudo vai buscar respaldo na ideias de Edouard Glisant, poeta, ensaísta e romancista que apresenta uma visão de identidade no que ele chamou de “poética da relação”.
O respeito pelo Diverso nos povos da América, cuja cultura é feita de vestígios, fragmentos de outras culturas e também comparando sua insistência em afirmar que o passado seria um dos referentes essenciais na produção cultural do presente, seu debate com o que chamou
“tempo esgarçado”, uma história rasurada marcada pela diversidade. Retomaremos as ideias sobre a libertação da imagem negativa que é imposta a certas pessoas em relação a si próprias. Também utilizaremos algumas teorias sobre Literatura Comparada, como os que vêm sendo desenvolvidos por Sandra Nitrini, Zilah Bernd e pelo professor Roland Walter na UFPE. Observaremos as questões de enraizamento e não-enraizamento, do entrelugar, do terceiro espaço e construção da identidade nas sociedades pós-coloniais, debatidas pelo crítico Homi K. Bhabha e as usaremos especificamente para justificar algumas de nossos estudos sobre a representação
do Recife na obra de Chico Science e de outros poetas da Cena. Assim como as ideias do professor Stuart Hall sobre “identificação” como articulação, um processo onde nunca o ajuste é completo, pois, como toda prática de significação, está sujeito ao jogo da différance na produção de efeitos de fronteiras.
Otávio Paz nos ensina que toda criação poética é histórica e que as transgressões e descomedimentos da poesia pode levar a pensar em uma sociedade que reconcilie o poema e o ato. Usaremos este e outros teóricos buscando neles respaldo para nosso estudo da poética da Cena a partir dos Estudos Culturais e a problematização da identidade e da diferença. A
professora Kathrin Woodward aborda em seu estudo “Identidade e Diferença” as questões das fronteiras entre o coletivo e o individual numa cidade partilhada onde as identidades foram formadas, reformadas e confirmadas de forma cambiante. Enfim, trabalharemos com a questão da identidade enquanto construção simbólica; auto-atribuição e alter-atribuição e o ator social/poeta como resultado das duas.


APÊNDICE

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem respeito às diversidades, diferenças regionais, por exemplo, ao organizar conteúdos na reforma do ensino médio, também, incentiva-se investigação, comparação, análise, síntese, o pensamento divergente para que o sujeito exercite para sempre a capacidade de aprender. O texto básico é hipertexto e deve partir daquilo que interessa ao aluno que é o seu presente, cotidiano, e, daí, introduzir o conhecimento sistematizado. Instrumentalizar e tentar aplicar na vida prática o que aprender.
A Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 estabelece as diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio. Queremos:
A)                Desenvolver o educando (para que possa refletir e ser protagonista no mundo social).
B) Exercitar a cidadania (discutir contextos, confrontar pontos de vista; construir identidade).
C) Preparar para progredir no trabalho (incluir conhecimentos/ habilidades que propiciem realização/participação consciente não apenas numa profissão específica). Estimular o prosseguimento dos estudos: pesquisar, formular opiniões, ler, interpretar, aprender a aprender.
A língua portuguesa, assim como a matemática, segue como linguagem instrumental para aprendizagem de diferentes conceitos, para entender o mundo físico e natural, a realidade social e política, especialmente do Brasil, o que exige uma reflexão global sobre interrelação do tempo e do espaço dos contextos sociais, culturais e históricos. Para isso é importante a questão dos contextos (contemporaneidade). No Brasil, diferentes culturas e etnias, não podemos nos afastar das línguas estrangeiras. Apontamos a língua inglesa como apoio.
Quanto ao nosso material didático, ele deve ser usado de modo flexível, nunca como camisa-de-força. Queremos estimular a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade, a afetividade. Aprendizagem como mobilizadora de competências, habilidades e atitudes no plano cognitivo e afetivo, para que o aluno reconheça os problemas que afetam a sociedade e supere dicotomias entre o público e o privado no respeito à identidade do outro, por isso as atividades em grupo devem ser estimuladas como avaliação dos diferentes contextos que caracterizam o mundo contemporâneo.
É óbvia a necessidade da busca interdisciplinar (e contextualização): é o debate sobre a sociedade em que se está inserido (economia, política, comunicação, disputa pelo espaço, lutas étnicas, etc.). Linguagem, ciências da natureza, matemática e ciências humanas, devem refletir o contexto social e romper distanciamento entre o sujeito e o objeto de conhecimento.
Devemos considerar as relações de complementaridade e convergência no sentido de permitir compreensão integrada do conhecimento: aprender, fazer, conviver, ser. Não se aprende sem conteúdo, no “vazio”, mas é necessário rever o processo de aprendizagem, a participação dos alunos, interação com colegas e professores não apenas na sala de aula mas em outros espaços que a sociedade dispõe. O cognitivo e o emocional exigem respostas que vêm na vivência em comunidade. Competência é a capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiado em conhecimentos, mas sem se limitar a eles: utilizar, integrar e mobilizá-los, eis a questão.
Quanto aos conhecimentos específicos: a multidisciplinaridade requer temas do interesse do aluno. A desertificação do planeta, por exemplo. Literatura e outras disciplinas poderiam discuti-la. A questão da água, etc.
A transdisciplinaridade, que busca desenvolver a personalidade do aluno, aproximar o seu projeto com o projeto da sociedade, contextualizando vida pessoal com a coletividade, visando fins sociais e o desenvolvimento humano, flexibilizando, no que for possível, a organização curricular.
Interdisciplinaridade integra disciplinas e gera novo produto, espécie de síntese de conhecimentos, e este, como mediação entre professor e aluno através de projetos que estimulem conhecimento cognitivo, socioafetivo e psicomotor dos jovens considerando a realidade em que vivem, uma alternativa para desenvolver personalidade. Quais são as expectativas dos nossos alunos? Que características tem a nossa comunidade?
O que sabem e o que precisam saber para viver melhor? A literatura busca o desenvolvimento intelectual e afetivo do aluno, gerar, pelo estudo de textos, novas formas comunicativas, adequadas às necessidades do ato interlocutivo. Deve ser, nesse caso, usada como conhecimento da língua e da cultura de um povo. É instrumento de posse, enquanto linguagem, um poder simbólico com o qual podemos argumentar, confrontar opiniões, expressar o pensamento, dentro das expectativas de diferentes usos sociais. É a revisão de um legado recebido. O estudante não deve ser passivo, deve contextualizar sua herança literária. Como usar isso a seu favor? Devemos buscar situações que motivem os alunos para sua realização individual ou em grupo, na sala de aula ou fora dela, aceitando a inter-relação dos conhecimentos, professores e alunos em um projeto coletivo. Competências: organizar e informar/ confrontar opiniões e pontos de vista; interpretar e aplicar recursos expressivos, relacionando texto e contexto; compreender e usar a linguagem como geradora de significação e organizadora do mundo. Buscar mudança cognitiva e comportamental.
Levar o jovem para o melhor desempenho em uma sociedade contraditória e desigual, para modificá-la, construindo um mundo melhor.

Identidade e Alteridade Nas Fases Da Vida: Infância e Adolescência, Um Espaço Chamado Adulto, Velhice ou Idos-Idade.

Palestra proferida por Moisés Neto no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE em 17/07/2003 (“Heróis sem adolescência nem infância ou as mangas colhidas antes do amadurecimento”).

O abismo bate palmas, / a noite aponta o revólver. / ouço a multidão, o coro do universo, / o trote das estrelas / já nos subúrbios da caneta: / as rosas perderam a fala. / entrega-se a morte a domicílio. / dos braços... / pende a ópera do mundo         (Murilo Mendes).


Sim, viver é difícil. O fluir da vida é um curso dadivoso cuja perenidade, mesmo dentre obras de arte é estranho e periclitante.
Quem gostaria de viver para sempre? Quem como a personagem Norma Desmond do filme Sunset Boulevard, poderá dizer, enlouquecida, na última cena “agora estou pronta para o meu close up”?
Quando uma vida se completa? Quando nos livramos dos exageros e das indecisões? Há um momento exato em que se atinge a maturidade?
Nossas estantes estão cheias de livros como “Capitães da Areia” de Jorge Amado ou “Oliver Twist” de Charles Dickens, onde crianças de rua são utilizadas por pessoas mais velhas e forma pequenas gangues. Crianças com pais ausentes, destinos entrelaçados formando um espaço alheio ao entendimento das metrópoles, Londres / Salvador.
O Recife acostumou-se a olhar as centenas de cheira-colas. 5, 10 anos de idade quantos anos? As drogas fortalecem cartéis e exigem reis, dirigentes fortes.
Entre a maconha e a melancolia de entender-se humano, adulto, maduro, velho ou verde, interpõe-se o conceito de 3º espaço, de entrelugar, proporcionado também pelo álcool, pela migração, pela sexualidade proibida.
Manga verde dá cólica. Mas as crianças, os miseráveis, os menos favorecidos, as colhem na forme, na pressa para não cair.
“Serei o herói da minha existência?”, perguntava-se o David Coperfield de Dickens. Serei um anti-herói? A tragicidade que envolve certas adolescências sufocadas nos faz pensar numa plateia de clowns a assistir o desespero de uma juventude sufocada, não por vivermos num sistema capitalista que devora os mais fracos sem remorsos, mas por não haver muitas saídas para o ser humano a não ser procriar, ou aceitar calmamente a cria dos outros, ocupando assim este espaço chamado adulto.
Talvez, num admirável mundo novo, possamos, todos nós, conviver, aí sim, como produtos de uma mesma máquina. Talvez, como no romance de Huxley, reste-nos a soma, poderosa panaceia para tantos males que insistimos em rotular de angústia, culpa, insatisfação etc.
“Como está cheio/ de folhas secas o horto/ e de palavras santas / meu coração! / tempo é que não sobrou / que fossem ditas / nem variadas...”, diz João Jandelino Câmara. Sim, o não-dito está condenado a transformar-se em esquecimento, arrependimento. O não-amor torna-se objeto de consumo. Os pais envelhecidos vão olhar antigas fotos e achar ali, estranhas meninas do ano 2003, pintadas e erotizadas, afetadas pela média. Garotas que se educaram em X-Men e Matrix, Digimons e tantos outros produtos que impuseram um peculiar acento a uma juventude imediatista e não adepta da meditação/reflexão.
A McDonald’s, a MTV, os Shopping Centers, as ruas imundas como leitos, o leite dos peitos sujos e sem perspectivas, a ruína das escolas públicas e o jogo imperfeito das instituições pagas de ensinos médio e fundamental. Tudo caleidoscópio neste mundo pós-moderno onde o preservativo é aconselhável antes até da primeira explosão de hormônios.
Bagdá, Afeganistão, Nova York, Bush de canhão apontado para “infratores”, heróis de um sistema tristonho, composto por fraudes na eleição, na religião, no preconceito. Encruzilhadas sustentam placas que indicam os entrelugares, mas nestes, como no caos, sempre vão instalar-se novos ranços, como num jogo sem perspectivas para detectarmos quem vence, quem perde. Como na máxima alquímica. O que está embaixo é igual ao que está em cima.
Sequestros, tiros, facadas, câncer. Roubos, prêmios inesperados. Nasce o cidadão do ano novo.
E os artistas? Como representam tudo isso?
Freud diz o artista é, basicamente, um introvertido, em virtude da dificuldade que sente de adaptar-se à realidade em decorrência dos seus fortes impulsos: não podendo satisfazer diretamente as suas exigências, se realiza no mundo da fantasia, o que o aproxima dos que têm perturbações mentais. Sua salvação é tornar suas fantasias agradáveis.
Como estão se posicionando nossos artistas autores diante do caos recifense? Como se reflete aqui tamanha desordem? De crianças e gente de toda idade comendo lixo? De salários pequenos e impostos enormes? De que é que temos fome zero? Será que temos mesmo algo a ver com o que aconteceu com Adão e Eva no paraíso? Será que somos nós que martelamos os novos crucificados no Oriente Médio? Somos escravos do feijão e do sonho. Da velhice e da infância.
“Música... que sei eu de mim? / Que sei eu de ser ou estar? / Música... sei só que sem ficar / Quero saber só de sonhar...” (Fernando Pessoa).
“ Não há muitos jantares no mundo, já sabias, / E os mais belos frangos / são protegidos em pratos chineses, por vidros espessos / Há sempre o vidro e não se quebra, / Há o aço, o amianto, a lei, / há milícias inteiras protegendo o frango, / e há uma fome que vem do Canadá, um vento, / uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida / que mal decifras. Entre o frango e a fome, / o cristal infrangível. Entre a mão e a fome, / os valos da lei, as léguas” (Drummond).
Há o véu do esquecimento sobre os olhos no Recife, como buscar. O apedrejamento, a fúria incendiária, os cadáveres insepultos, as colunas sociais, a mídia que precisa de novas sensações e as prateleiras das lojas que precisam ser renovadas, consumidas. Há crianças colhendo frutos não maduros, imperfeitos.
Há tantos livros que a academia e os autodidatas se impõe. Há Paulo Coelho, Harry Potter da novata Rowling, ou os velhos anéis de Tolkien. Há enchentes que derrubam casebres nos morros, que poderiam servir de metáforas para identidades, alteridades nas fases da vida, para infância e adolescência, para um espaço chamado adulto, ou este caminho chamado velhice ou Idos-idade.
Perde-se sempre a adolescência, a infância. Restam-nos fotos, saudades das primeiras impressões, de algum sexo, ou mágoa por tê-los inadequadamente. Sobrevive em todos nós apenas a constatação de que precisamos mortalmente da próxima refeição e de cumprir as tarefas que nos aguardam com primor, com resignação.
Hamlets que somos com indeciso punhal na mão diante do ser ou não ser, estar ou não estar. Catedráticos do entrelugar: o novo mal-do-século se anuncia! Requer uma nova retórica.
“São ventos feridos,/ são ventos antigos,/ saudades de amigos,/ lembranças, rumores;/ são ventos irados/ batendo em meu rosto,/ marchando em rajada / rufando tambores” (Joaquim Cardozo in “Figuras do Vento”).
Nossos espíritos precisam de novas metáforas, de mais liberdade, justiça. Algo que nos faça estar mais com os jovens, pobres, médios, ricos. Fazer com que se unam.
Nós escritores, professores. Nós que lidamos com teorias, nós que devemos ter a nova escrita e transformar estas mangas colhidas, antes do amadurecimento, em ícones de salvação, de respeito às diferenças que nos cercam.
A condição humana nos impõe estarmos sempre atentos e fortes, principalmente quando as coisas não saem como planejamos.
Somos nós mesmos os piores miseráveis das ruas do Recife. É por nossas narinas que a cola penetra no corpo da cidade. As mãos enrugadas e famintas dos velhos nas calçadas, desgraça nos barracos e prédios luxuosos, no esconde e mostra dos homossexuais amantes. A prostituição em todas as idades e escolas. Políticos incompetentes diante do tão conhecido desafio.
Resta-nos, amantes dos livros, ler algo que nos acalma e nos dê um sono revigorante para tamanho cansaço. Cubramo-nos com esta colcha pós-moderna retrô, e rezemos assim, como Bandeira ensinou: “Quando a Indesejada das gentes chegar / (não sei se dura ou coroável), / Talvez eu tenha medo. / Talvez sairia ou diga: / - alô, iniludível! / o meu dia foi bem, pode a noite descer. / (A noite com seus sortilégios). / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / a mesa posta, / com cada coisa em seu lugar”.
Que venham os frutos!




Teatro em dose dupla: O Portal do Escritor vai a são Paulo para rever Lucélia Santos e volta ao Recife para checar os bastidores da mais nova montagem teatral na terra dos altos coqueiros.


Carlos Bartolomeu estreia nova peça em novembro: MAD LEIA

Texto & entrevista: Moisés Neto


Dia 21 de novembro no Teatro Joaquim Cardozo o Recife assistirá a mais uma peça com carpintaria local. É o espetáculo MADLEIA dirigido pelo encenador Carlos Bartolomeu, que também é professor do Dept° de Teoria da Arte da UFPE. Sobre sua profissão ele nos declara:  “Ser um encenador se dá em amplo leque de liberdades criativas, técnicas exercitadas, investimento de tempo, recursos etc. ... Todavia, tais circunstâncias podem elas mesmas implodir um projeto criativo. Um diretor autor deve ter em mente a realidade que o cerca e o posicionamento firme de que ele é o contador de histórias, árbitro em um perímetro que convoca seu espírito e o tempo, mais aqueles, e tudo o mais que ele reúne e conduz à reinvenção. Essa arquitetura pede cumplicidade do público; reconhecimento, compassividade, entusiasmo, prazer ou surpresa, até mesmo a silenciosa. A história já provou que tanto um quanto outro podem criar valores ou desconhecê-los. Cabe ao encenador ser fiel ao seu jeito especial de revelar ou encobrir. O encenador-professor diferencia-se na medida em que não pode excluir do seu diálogo com os alunos a exposição permanente e transparência. Todos seus atos devem estar ao alcance da crítica, mesmo da crítica fácil, impertinente. Não pode impor seu ponto de vista, mas defender a variedade de pontos de vista. Mesmo sua ironia e tons depreciativos devem estar ao alcance dos discípulos e revelar para eles a humanidade e os sombrios desvãos do conhecimento. O encenador se mascara; o encenador-professor se confessa.”.
Bartô, como é chamado pelos amigos, também é dramaturgo e nesta área destaca-se o seu TEATRO SUSPEITO. Dirigiu peças  premiadas como PARA UM AMOR NO RECIFE ("A ação se passa na noite de Natal, no calçadão da Praia do Pina. O foco é a cidade do Recife, os personagens são daqui... Acho que isso é uma das coisas mais importantes para o teatro atualmente, tratar da realidade, de coisas próximas ao público", destaca o diretor), e musicais como A ILHA DO TESOURO, que também recebeu vários prêmios da Associação de produtores teatrais. Em setembro de 2009 lançou o livro sobre documentaçã de programas de peças - CARTAS DE PREGO. 
Em 1980, o grupo de Teatro Vivencial   levou ao palco do Teatro de Santa Isabel (Recife)  All Star Tapuias, colagem de textos escritos por ele, Antonio Cadengue, e Guilherme Coelho, que também assinam a direção do espetáculo. Mutilada pelos cortes da Censura Federal, a montagem encerrou suas apresentações no Teatro de Santa Isabel e faz temporada no Vivencial Diversiones. E sobre isso Bartô ainda esclarece:All star tapuias, foi debate e síntese da visão da escola, o circo e o cabaré (...) apresentávamos os principais manifestos ligados à Semana de 22, como também um manifesto que eu escrevera: o Manifesto quá quá, mixando comicidade e crítica com a política e o sentido dramático do período”.
Para Bartolomeu o Recife que já teve o tempo necessário, para se desvincular do ordenamento, da imposição cultural, externa e não deve ficar comprometido com a repetição dos achados teóricos e práticos de outros centros urbanos (ou não!):  “Não creio que procurássemos dar força maior aos estrangeiros; havia teatro local cunhado a partir dos ecos sertanejos e posturas agrestes, uma galeria interessante de tipos e vozes deslocadas das zonas interioranas. Era como não houvesse uma voz teatral das grandes cidades nordestinas. Entre o medievo e a desolação tropical filtrava-se a veia dramatúrgica. Necessitávamos de uma dramaturgia que espelhasse nossa visão, nosso entrelaçamento com o mundo que buscávamos criar, como também o estranhamento que o mundo já erguido por outros, antes de nós, assinalava.”
Bartolomeu também assinou a montagem da peça ATORES DO ÓRGÃO IRRESPONSÁVEL, uma produção da COMPANHIA DO CHISTE, apresentando três grandes atores: Paschoal Felizola, Rodrigo Cunha e Rogério Bravo. A peça tem dois atos: ATORES DA NOITE (texto de Carlos Bartolomeu) e O CORAÇÃO É UM ÓRGÃO IRRESPONSÁVEL (texto de Walther Moreira Santos). O pequeno teatro Joaquim Cardoso lotou durante várias sessões e o que se ouvia era o riso solto, descontraído e debochado (deboches escrachados da representação). O  cronista Dom Antônio dá o seu depoimento: “O teatro dirigido por Carlos Bartolomeu prova que pode ser feito um teatro alegre, humorador, engraçado, de massa, sem cair na pornografia gratuita. Diverte com escracho e alegria. Debocha com muito humor.”
Carlos afirma: “Uma atitude conscientemente pirata é a origem de nossa canibalizada modernidade. Somos nossa matriz. O teatro feito por nós precisa menos dessa muleta cultural para se resolver enquanto arte. Precisamos sim, revelarmos a nós mesmos, o quanto de subserviente e colonizado existe em nossa artisticidade, quando aquiescemos em reverenciar a continuidade desse modelo. É sempre no outro, no ser ausente, de língua estranha, de costas voltadas pra nós que apontamos nossa busca, imaginamos nosso acerto. Recriamos sempre a ilusão, que tudo é mais próximo quando instalado na casa vizinha, na sala do adversário, no quarto das babás importadas. Estripemos as babás e envenenemos os seus chás. Dificilmente a realidade artística é tomada sob nossa responsabilidade e assumida como nossa cria. Abrimos mão de sermos fabricantes de nossa receita.”
Essa atitude diante do que  nossa própria identidade criativa, mesmo aquela que é pirateada ou híbrida. Faz do teatro de Bartolomeu algo que nos traz de volta o jogo, o lúdico, a busca da identidade m como construção individual que se projeta no coletivo enquanto discussão, evolução. O teatro com sua responsabilidade social, mas também como uma brincadeira (“está bem, me proponham a adjetivação: séria!”, desafia-nos o mestre), onde se faz necessário apenas, parceiros, espaço e... toda uma vida! “O dolo é fingirmos acreditar que isso, só é possível no quintal do vizinho.”. Assim Carlos nos coloca em xeque dramático.
Agora vamos a uma entrevista exclusiva de Carlos Bartolomeu para o PORTAL DO ESCRITOR PE:
1) Como você se sente em estreia mais uma vez?
Sinto-me confortavelmente tranquilo. Não tendo mais ilusões sobre minha importância no seio teatral da cidade, conto com meu espírito, e amigos em passagem pra realizar minha dramaturgia. Quero com isso dizer que me sinto livre, desapegado da necessidade que se conjugam a vida de um artista. O fazer artístico para mim, torna-se a cada movimento criativo um caminho de aprendizagem sobre minhas verdades mais interiores. Apesar de minha aplicação à forma, essa deve ser compreendida como a expressão de uma conversação íntima, onde os gestos, palavras e desenhos de movimentos seriam a sugestão possível de algo que em sendo muito próximo, me reenvia  para lá de mim.

2) Medeia é uma peça machista?
Medeia de Eurípedes para mim seria uma declaração afirmativa, embora dolorosa sobre o diferente, o estranho, o obscuro. Uma ritualística acusação sobre a impossibilidade ocidental de reverencia tais máscaras; a cruel negativa de introduzir o diálogo com o  a passividade agressiva experimentada pelos muitos ângulos do gênero. A Medeia de Henrique Celibi é  a exposição dessa agressividade voltada contra a mente da personagem, a inconsciência de que tal condição é cultural e passível de mudança. Acrescente-se a isso,  firulas paródicas, deboche e o aclamar da insanidade que minha encenação instigou.

3) O que você arrancou de Eurípedes e de outros que tornaram Medeia o mito que ela continua ainda hoje?
Eurípedes é moderno para mim em um aspecto que defino como inaugural, para ele importa o fator  teatralidade, módulo central do espetacular.
Seu teatro ao contrário de um Ésquilo, por exemplo, não toma por por esteio, meramente o textual. Visivelmente, este trágico toma partido de imagens, personas e desenlaces aparentemente arbitrários que destoam das convenções de seu tempo, lançando mão do efeito, do golpe teatral.

O mito de Medeia, hoje, esperneia por obra e graça de sua carga infanticida, ao meu ver de menor aporte que o fato dela ter investido contra o poder estabelecido, o masculino, o dogmático, quando apeada de sua associação com o mesmo. 

Emociona-me pensar que sua destruição foi ditada por sua ignorância sobre o desejo de poder, e a ação física do próprio tempo. O mito arrancada a máscara do feminino oportunista, só  deixa para ele, vingança e fuga. Especulo ser esta a razão de tal personalidade ter amparado  carreiras em seus momentos duvidosos. Deixo escapar tal "impropriedade" ao lembrar da interpretação de Callas para o Medeia de Pasolini. A ausente presença de Onassis como fermento de sua interpretação pulsa naquela ardente criação.

4) Quem é Carlos Bartolomeu?
Penso que sou um homem que compreendeu seus limites, que fez de suas repetidas invenções, a sua medida. Honro meu gosto, desgosto e mau gosto, e minha indestrutível capacidade de amor pela poesia das coisas menores, por vezes chatas e sem graça. Revertendo em todos os casos, a falta de ternura pelo simplesmente tolo e humano.

5) Qual a importância do Vivencial Diversiones (de onde surgiu o ator de MADLEIA (Henrique Celibi) nos dias de hoje ?
Qual seria? Pergunto também eu? Penso que apesar da tentativa de sacralizar o grupo, a coisa que ele deixou pelo menos em mim, foi a  alegria da sacanagem, fazer teatro sem compromissos com os enfadonhos do momento político, ou teatral. Amavam o espetáculo, xerocando dramaturgias, permitiram-se reinventar liberdades teatrais e morais.

6) Apresente Celibi aos neófitos. Quem é esse artista para você?
Celibi é um vivente, não é um sobrevivente. Artista maior entre tantos menores, escritor de textos pra cena teatral, criador visual, báquico intérprete de si mesmo e de outras máscaras imprescindíveis. Foi viveca e não foi. Aprendeu com Beto Dinis a arquitetura de palco. Coreografou vestimentas para corpos do samba em evolução do carnaval carioca e deu  luz ao maior sucesso de público de todos os tempos da cena pernambucana: Cinderela a estória que sua mãe não contou. Enfim, um/a MAD LEIA. Ou seria bad?

7) Você acredita em vanguarda permanente? O teatro do mundo está evoluindo ou só o Recife evolui assim?
Se não for permanente flex não é vanguarda, é retaguarda. Todavia, o fato de pipocar pela manhã não nos permite contabilizar sua realidade como potencia. De fato, temos que esperar o entardecer para conferir  sua legitimidade. Ou quem sabe, não seria a simples realidade de nascimento, a sua essência? Por pura sorte, ou proteção dos fados literários, ganha classificação de clássico... Acho que o teatro do mundo acompanha a realidade de seu tempo... O que isso queira considerar, dando muito assunto, mas, é tarde  tenho sono e ainda tem três perguntas pra responder.

8) Sobre o Bartolomeu escritor: o que você está dizendo?
Sou um preguiçoso... Preciso sempre de tempestade e ímpeto. Mas, venho me esforçando pra terminar um certo texto que denominei de TEATRO PRETENSIOSO. Nos Aprendizes em Cena do Centro Apolo-Hermilo, agora em novembro, vocês verão uma amostra, um dos quadros da peça denominado O JOGO DA AMARELINHA.

9) O que acha da política (Recife/ Pernambuco/ Brasil/ Outros países)? Em crise de valores, acometida ainda de velhos fantasmas em novas fantasias. No caso brasileiro especificamente, visita-se mais uma vez a infeliz necessidade do pai protetor, do herói maluquinho e da incapacidade crônica de se ler o passado. Salvo melhor juízo, é dando que se recebe é lema, lei e recurso.


***



Lucélia Santos interpreta As Traças da Paixão

A peça As traças da Paixão (Com direção de Marco Antônio Braz, Prêmio Shell, por A alma boa de Setsuan, de Brecht, que esteve no Recife este ano com Denise Fraga) tem estréia marcada para breve no Rio de Janeiro e pretende se apresentar em Recife em 2010. A coluna assistiu à última apresentação dia 21 de outubro da temporada em são Paulo. Lucélia nos recebeu de braços abertos e se mostrou de uma gentileza e amabilidade que nos comoveu, tratando-se de uma estrela do seu porte.
Apesar de ter feito muitos papéis na televisão (impossível dissociá-la da Escrava Isaura!) e no cinema (Luz del Fuego, Engraçadinha, Bonitinha mas ordinária, só para citar alguns) é no teatro que Lucélia tem sua raiz mais antiga. Sobre o passado ela declara: “Eu sou a Lucélia Santos de hoje, podem aproveitar antes que acabe. Eu não tenho saudade de nada, sou budista  e mantenho minha vida e minha mente no presente. Entende?”.
A primeira vez que a vi ela estava representando a peça Brecht segundo Brecht, aqui mesmo no Recife, no Teatro Valdemar de Oliveira. Eu era adolescente e estava começando a estudar teatro. Fiquei extremamente impressionado com o talento daquela menina-mulher que na ocasião dividia o palco com Walmor Chagas e Aracy Balabanian. Saí do teatro fascinado e disposto a estudar mais e mais esta arte tão antiga, a arte dramática.
Reencontrei Lucélia outras vezes: quando assisti à peça Pluft, o fantasminha (com ela no papel-título) e quando vi também A vingança de Tupã.
Fui a São Paulo especialmente para revê-la e ela me recebeu com um abraço carinhoso, como faz com muitos que a procuram.
No Teatro Augusta conheci também o ator que divide a cena com ela, Maurício Machado, com quem mantive um diálogo esclarecedor sobre a peça e o que significa dividir o palco com um mito da cena nacional. Sobre a peça ele declara:
“Desde que Alcides Nogueira me apresentou este texto, montar esta peça tornou-se um desejo sem volta, uma obstinação, um incrível convite ao jogo cênico. Paco e a personagem que Lucélia interpreta, Marivalda Revólver, fazem parte de uma obra que traz em si todas as possibilidades: o popular e o erudito, o sagrado e o profano. Tenho profunda admiração pelo universo destes dois personagens e estou muito feliz pois estamos conseguindo pauta no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro. Espero também estar me apresentando dentre em breve no Recife. Muitos amigos me falam sobre o teatro de Santa Isabel, gostaria muito de ir lá.”
Lucélia dá-nos sua opinião sobre o que é o teatro: “Teatro é uma equação. Teatro é impermanência. É construção mais dissolução. Sabe? É como todos os fenômenos compostos, como nós. É como nosso diretor disse, é mais ou menos como aquela história do Livro dos Sonhos do Borges: Fulano ao acordar não sabia se era um homem que sonhou ser uma borboleta ou se era uma borboleta que agora sonhava ser homem.” Daí o jogo Anastácia Romanov versus Marivalda Revólver, jogo de espelhos.
O autor da peça, Alcides Nogueira questiona: “O que distingue a loucura da sanidade? O amor da morte? O Eu do Outro? Sempre tenho a impressão de que o fio divisório é tão fino, já quase esgarçado, que pode se romper a qualquer momento. Talvez o teatro seja o único casulo a abrigar e proteger esse jogo sagrado, sem cobrar e sem punir. Marivalda e Paco nasceram do baú onde guardo memórias, referências, sonhos e sonos. São espelhos mútuos, que irão se refletir até que as imagens se desrevelem numa tragicomédia de erros.”
Um dia ele leu uma nota no jornal sobre uma mulher que, em Goiás dizia ser a princesa Anastácia Romanov. Ela tinha cara de índia e jeito de indie. Contava os detalhes do fuzilamento da família imperial russa, sua fuga para o Brasil. Atrás dela, sem disfarçar a malandragem estava um homem chamado Paco. Aquilo fascinou Alcides e o levou a escrever esta pérola da nova dramaturgia nacional. Fica no ar a questão do complexo de Édipo. E no coração a vontade de rever Lucélia aqui no Recife.




Um relações públicas afirma-se escrevendo e atuando
(palestra proferida na Escola Superior de Relações Públicas – Esurp, em outubro de 2010)

            O RP ao administrar o relacionamento e a comunicação do cliente, trabalha com a opinião pública, daí a necessidade de um bom texto e de estar atualizado com várias informações em muitas áreas. Uma das suas tarefas é humanizar a imagem dos seus clientes. Tem sido assim desde 1914, quando Ivy Lee cunhou este termo (Relações Públicas) nos EUA.  No Brasil, o primeiro Curso foi em 1953, na Fundação Getúlio Vargas e já apontava para o fato de que caberia ao RP harmonizar expectativas entre o seu cliente e os diversos públicos: conciliar, afinar, ajustar, sintonizar, através de uma gestão estratégica  de relacionamentos.  E como se dá isso?  Através da comunicação de textos.  Elaboração de slogans, etc. É importante também a atitude performer da oratória nestes casos. A desenvoltura.  Para isso o RP tem que tirar partido de vários recursos (dicção, postura, comando...)
Trata-se de um trabalho em conjunto: uma boa ideia e como apresentá-la. Então a busca pela cultura geral, o lançamento de propostas, o bom-senso, o controle emocional, a criatividade ao elaborar estratégias, tudo isso se mistura à imagem do RP com suas técnicas de comunicação verbal e não-verbal. Faz-se necessário trabalhar suas dificuldades no que diz respeito ao seu perfil intercomunicativo (barreiras a transpor).
Para se manter bem informado é preciso ler: jornais, livros, revistas e estar sempre conectado a sites, blogs (a blogosfera é uma aliada fundamental do RP), enfim: fazer parte de uma grande rede. Da sua capacidade de criação e interpretação (nos mais diversos gêneros textuais, literários), vem o seu sucesso, cabendo ao RP solucionar e não ser problemático: “Usar” o produto do cliente, conhecê-lo, para poder ter base sólida em sua estratégia de ação. Ser cúmplice, promover o bom relacionamento entre as interfaces. Organizar bem uma equipe, saber que o cliente tem sempre razão, mas isso nem sempre acontece.
Procuramos em nossas aulas observar regras de produção de textos, dicção, postura, como se comunicar em público, utilizando, para isto, vários gêneros e modalidades de escritura, reconhecimento de um público-alvo (de acordo com a ocasião).
Levamos em consideração a qualidade de reputation manager (gerente de reputação) do RP (num mundo onde a cada dia estes profissionais se tornam tão fundamentais). A ESURP assume noções de responsabilidade social, sustentabilidade, gestão qualificada, comprometimento, inovação, transparência, formação de opinião. Sabendo que cabe ao RP lidar com funcionários, fornecedores, poder governamental e público em geral, tratamos de estabelecer pontos de apoio que facilitem a carreira deste profissional que tem a árdua missão de manter  boas relações entre as pessoas.
Produtos, parceiros, tudo trabalhado em conjunto numa época em que os meios de comunicação estão em constante mudança: o que cabe ao RP?  Articular, através de um texto e visualização eficientes, informações, e, ter sempre uma carta  na  manga para  lidar com o mercado, que exige respostas rápidas e eficientes  diante dos problemas em diversos setores. No mundo do vale-tudo dos adversários, cabe ao RP buscar o que há de comum entre as partes, zelando pela reputação e imagem do seu cliente, às vezes até como coordenador de uma equipe (que inclui o jurídico, o pessoal da tecnologia, etc.): e como?  Evitando meias-verdades, não tomando nada como “pessoal”, fazendo a si mesmo todas as perguntas, antes que elas surjam (vindas dos outros) e ciente de que: se, não quiser que ninguém “saiba” de algo, é melhor não fazê-lo.
A comunicação do RP deve mostrar segurança e leveza, ao mesmo tempo deve estar permeada de determinação, lembrando que toda crise é também oportunidade para crescimento. Deve ser texto de quem luta para divulgar “boas ideias”, de quem faz as coisas “acontecerem”, de quem pesquisa e se aprimora para escrever bem e atuar no mercado  de modo convincente e  eficaz  diante de obstáculos e desafios, driblando aspectos negativos, assumindo  posicionamentos, utilizando bem suas ferramentas,  instrumentos, executando  estratégias, blindando, dando apoio, auxílio técnico e profissional ao cliente e até neutralizando (com o poder da imagem e do discurso) as opiniões contrárias,  tudo dentro da mais discreta confidencialidade.
Ativo e participativo: é como nós, que formamos a ESURP, queremos você, caro RP, ou secretário, dono de um estilo próprio. Pronto para uma troca comunitária e recíproca no mundo de hoje, onde a mídia é tão fundamental.
Twitter, Orkut, Facebook e o que mais vier. De posse ou não do melhor blackberrie, ou com o mais atual modelo de Iphone, o que vai importar mais é o seu raciocínio (ao navegar nessas e em outras possíveis novidades) e a consciência para saber lidar com novas e antigas “regras” das Relações Públicas diante da Responsabilidade Social Corporativa (educação, meio ambiente, compromissos com a sociedade).
Ajudar você a aprimorar sua comunicação diante do público, eis a nossa meta. Por uma vida social saudável, consciente, bem escrita e bem transmitida nesta nova década que se inicia (os anos 10) com as marcas da sustentabilidade social, econômica, cultural e ambiental. Que seja você um bom profissional com projetos para toda a vida, com a ousadia de quem se apoia no passado e ousa o futuro, sempre.
Depois do vestido de noiva
A Falecida no contexto da obra de Nelson Rodrigues:

                                                                         

(Resumo/ Roteiro da palestra conferida no dia 22 de agosto de 2012 no auditório da Livraria Cultura –Recife- dentro do 10º Festival Recifense de Literatura


O sujeito que escreve deixa de ser ele mesmo. Uma simples frase nos falsifica ao infinito (Nelson Rodrigues)
                                                                                                                


Discutiremos hoje, principalmente, duas peças de Nelson: A Falecida e Vestido de Noiva. Inicialmente temos que compreender que essas peças traduzem o anseio de discutir o desejo, a pulsão numa escrita sensacionalista em tom grandiloquente. 

Em Nelson, é a partir da tragicidade e do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa.
O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o registro rodriguiano vai além dos clichês freudo-marxistas e os põe em xeque.

II

Na peça A Falecida  assombração da tuberculose e a pobreza da personagem principal lembram um pouco a vida do próprio Nelson: uma amiga do Recife ao visitar a família dele no Rio ficou chocada ao vê-los no almoço comendo somente café sem leite e macaxeira; a pobreza  o impediu inicialmente de um tratamento mais adequado à tuberculose, as humilhações de ter pouquíssimo dinheiro e andar maltrapilho, em transportes coletivos, frequentar prostíbulos na adolescência, conviver com tuberculosos pobres (o horripilante pneumotórax). O próprio subúrbio Aldeia Campista, onde mora Zulmira, de A Falecida (1953) tudo isso é marcante, é o mesmo onde morou Nelson, cheio de vizinhos que se imiscuíam na vida alheia, cheios da marca do baixo nível de vida, doenças, distorções da fé, adultérios etc.

O Rio que Nelson conheceu era uma metrópole reurbanizada, mas o choque de ricos / granfinos com pobres era gritante e ganha expressão dramática em sua obra, lembremo-nos de que a fantasia de Zulmira gira em torno de um enterro de milionária.

 “Caso de psicanálise” ou “Freud era um vigarista”, discute-se na própria peça o tema. Os rejeitos do consciente que se localizam no inconsciente, segundo Freud, voltam e assumem contornos agressivos delineando um sexo perverso, mas que não se quer doentio. As palavras haveriam de sublimá-lo, como numa terapia.

Em A Falecida, a voz do pai é silenciada, a adúltera não está arrependida, trata-se de um estranho sonho de suburbana: enterro de rico. Crucifixo de cristal, cortinas para cinco portas, cavalos com penachos, caixão com alças de bronze.

Zulmira, como tantos outros personagens rodrigueanos, é vítima do logro que parece ser a maldição, ou o estigma fundamental do homem.

III

Há que se estilhaçar esse painel rodriguiano e o reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de cômico, em Nelson. Afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista.
Montar Nelson Rodrigues é um desafio cósmico: desdobrar a totalidade da existência, observar o todo desdobrado em si e sua relação com a “realidade”.

Acompanhei há dois anos a montagem que o diretor paulista Antunes Filho fez de A Falecida. Havia assistido a outra adaptação dele para o mesmo texto, em Paraíso Zona Norte.  O que presenciei foi a catalisação de um espetáculo onde cada parte, no contexto do todo, se colocava em superposição. Isto é, cada acontecimento cruzava o outro, nessa simultaneidade tão presente na vida, em ritmo frenético. Os sentidos ligados em várias coisas ao mesmo tempo.

 O cenário era um bar (onde não para de tocar samba em BG). O tinir de copos e garrafas, o burburinho, o vaivém dos que ali estão, transformavam o diálogo dos personagens em estranha mistura onde o tempo parecia estar sendo comprimido ao ponto de explodir na multidão anônima onde o homem mergulha solitário nas metrópoles, onde a fuga parece impossível, e o tempo como uma bomba prestes a explodir.

Uma imagem caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla percepção e estabelecendo insólitas relações, onde  o fundamental e o secundário apareciam na cena como vêm à memória, ao sonho.

Cenas articuladas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, calcados no sugestivo texto de Rodrigues, incitavam a percepção aguda, que não queria se alienar e que se mantinha longe do convencional, em linguagem própria e dinâmica.

O “golpe de teatro”, no caso a cena em que Tuninho fica sabendo que a esposa lhe era infiel. Ele e a plateia descobrem ao mesmo tempo. Antunes trabalha esta cena, que é calcada no abandono, a violência e o ódio, de modo que o riso e o choro se empalideçam. Tuninho é enfocado no seu esvaziamento, simplesmente. Ele bancou o bobo, não só por causa da esposa, mas pela sua própria constituição de idiota que tem a personalidade calcada em estereótipos oferecidos por uma sociedade manipulada. O torcedor de futebol (Vasco). Sua preocupação com o time se mescla à humilhação imposta pela miséria física e intelectual. Seu desamparo dentro do mal-estar da civilização.

O que vemos, não só em Tuninho, mas também em Pimentel (“amante” de Zulmira) e Timbira (agente funerário, quer sexo com ela) é a representação do homem brasileiro, em expressão universalista.

O ator é um servidor do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. O que vemos em Nelson de A Falecida é também essa expressão brasileira, não através de filtros intelectuais ou conceitos generalizantes, mas de um farto material humano que é oferecido à criação do ator.

Em A Falecida temos exposto o nervo principal da poética rodrigueana: a família. A máscara parece o verdadeiro rosto. Pululam o prosaico, o risível, as gírias, a ironia, o frenesi, a paródia da paródia e até as marcas do inconsciente recifense, herança familiar de Nelson.

Em Nelson, o sentido dialético é levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobram à disposição de análises sociológicas ou psicológicas, simplesmente. O futebol, a bebida, o machismo, a fé, o jornalismo, o desequilíbrio social, as contradições do homem brasileiro  surgem no espaço cênico como ruptura, transbordamento, justaposição, no entrelaçamento de cenas, no trabalho com o contratempo das falas, na gravidade poética do texto A Falecida: os personagens não interagem de forma direta com os outros, parecem não enxergar os outros, mergulham em si mesmos.

Doce e misteriosa Zulmira, adúltera e santa, fugitiva de sinistro folhetim. Entre faunos (tarados urbanos?), como o agente funerário Timbira, o milionário Pimentel, ou mesmo do seu fiel marido, que no fim também vai lhe trair, em nome de uma vingança póstuma.

A moreninha de olhos claros, Zulmira, Bovary dos pobres. Em cinco minutos (!) traiu o marido (pela primeira vez?) traiu o marido com um desconhecido no banheiro feminino de uma sorveteria. Sobrou-lhe um enterro de cachorro em meio ao viveiro de ódios e êxtases rodriguianos. Ela morre no final do 2º ato, mas volta em flashback. A esposa cadáver, infiel depois de morta. Flor do subúrbio, flor tardia, rosa do povo.

Da cornucópia verbal do autor estão intactos o sarcasmo e o humor, na montagem de Antunes. Uma poesia sufocada, como a personagem principal. Zulmira e sua catarse maldita. Tanatos e Eros em simbiose. “Que fazemos nós desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro?”, pergunta o recifense Nelson Rodrigues.  “A ficção para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos”.

Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral (“o bom teatro é o que sacode o público”, disse Bandeira) não teme o grotesco e questiona conceitos.

Já Antunes faz da farsa trágica de Nelson um exercício de vida, num espetáculo seminal que mais do que uma encenação é uma atitude. Os ambientes da peça são demarcados pelas ações dos personagens entre mesas, cadeiras num ritmo frenético, uma totalidade ininterrupta, movimento fluente, onde a existência é desdobrada de dentro de cada região do espaço e  tempo. No original de Nelson não há naturalismo. Lembrando que qualquer parte envolve o todo (dobrado) e nenhuma parte existe independente nem pode deixar de ser afetada em tal relação. São imagens paralelas e o espectador não consegue ter uma imagem isolada, sem interferências, nessa montagem de A Falecida, por Antunes, com estreia no Recife, em 2009.

“Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios”, sentencia Antunes Filho.
O homem só se salva se reconhecer a própria hediondez. A tragédia surge como uma espécie de expurgo, acerto de contas de Nelson com sua história, com todos os homens, com a vida, de modo cético, sombrio e até... romântico. Temos , na obra de Nelson Rodrigues a letra e a  voz de todos os homens, de todos os tempos.






A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL NA ESCRITA DE JOMARD MUNIZ DE BRITTO


                                                 Moisés Monteiro de Melo Neto [1]

RESUMO

Propomos fazer um recorte na obra de Jomard Muniz de Britto (recifense, ensaísta, pensador da cultura, autor de textos poéticos, professor universitário, pesquisador, filósofo) abordando, principalmente, a elaboração dos escritos poéticos contidos nos seus livros: “Escrevivendo”, “Inventário de um Feudalismo Cultural”, “Terceira Aquarela do Brasil” e “Bordel Brasilírico Bordel”. Discutimos neste texto as relações entre a literatura e a formação social. Como esta poeticidade agencia as diferenciações da cultura nacional e seus vieses em intensa conversação – em espelhos e perspectivas- entre múltiplas crenças, interesses ideológicos, políticos, sociais, sexuais, estéticos. Ele trabalhou com o mestre Paulo Freire no seu projeto de educação.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero, Tropicália, identidade, alteridade, ideologia.


ABSTRACT

We propose to make a cutout in Jomard Muniz de Britto (Brazilian essayist, thinker of culture, author of poetic texts, University Professor, researcher, philosopher) addressing, in particular, the preparation of written poetic contained in their books: Escrevivendo, Inventory of a Cultural feudalism, The third watercolor of Brazil and Brothel Brasilírico brothel. We discuss in this text the relationship between literature and social training. As this poetry puts together differentiations between national culture and its views in intense conversation – mirrors and perspectives-between multiple ideological beliefs, interests, political, social, sexual, aesthetic. He worked with Professor Paulo Freire in a very interesting project of Education.

KEYWORDS: Gender, Tropicália, identity, otherness, ideology.


Jomard Muniz de Britto: pernambucano, ensaísta, pensador da cultura, autor de textos poéticos, professor, pesquisador, filósofo, cineasta assinou com Caetano e Gil, manifestos tropicalistas nos anos 1960. Publicou artigos na Revista Mapa, a partir de 1959, tornando-se correspondente e amigo de Glauber Rocha e de outros componentes do grupo baiano. Trata-se de um intelectual que vem traduzindo suas intervenções por meio do objeto estético, da construção simbólica: reflexão poética e sociocultural. Os textos contidos nos seus livros: Escrevivendo (1973), Inventário de um feudalismo cultural, (1979), terceira aquarela do brasil (1982), Bordel BRASILírico Bordel (1992),  Arrecife de Desejo (1994), Outros Orf´eus (1995) (estes dois últimos com ilustrações de João Denys Araújo Leite) e Atentados poéticos (2002) tratam com particular poeticidade as relações entre  as etnias. Os processos de produção desta obra literária agenciam diferenciações da cultura nacional e seus vieses em intensa conversação. Por não admitir a hegemonia do cadinho ideológico de Gilberto Freyre, Jomard, ou JMB, como também é conhecido, trata as relações interétnicas através de uma linguagem espelhos e perspectivas onde vão se reconstruindo/ desconstruindo interesses ideológicos, “culturais”, políticos, sociais, sexuais, estéticos.  Ele traz, na sua antilira, para usar um termo no sentido que Luiz Costa Lima lhe atribui, reflexões estético-políticas em forma de síntese, registradas entre o som e o sentido, a lutar, festejar, com a palavra (indomável?), num poliédrico fruir poético-existencial. Rompe com o esquema do poema fechado em nome do processo questionador, instala, dentre outras coisas, a suspeita da linguagem. 
Colocando em interface o ser e sua existência histórico-social essa poeticidade leva a questão da etnia até o abissal reflexo de outros discursos, lugares, personagens, desejos, mistérios, em polifonia. As reflexões sobre os processos de produção cultural, sobre o ensino-aprendizagem, ou ainda a problematização dos gêneros, poder, sexualidade, entrelaçam-se ao tema-problema “etnicidade”  num trabalho de expansão da significação da palavra (às vezes até a opacidade), utilizando-se de intertextualidade, neologismos, trocadilhos, inexatidão, imprecisão, chiste na busca de uma consciência possível. É poética como política de reflexão, a dialogar com fatores culturais e políticos de forma lúdica. JMB calca seu discurso no estranhamento, transforma signo em denúncia e teatralidade. Estabelece um jogo dialético onde a memória da formação social se compondo, decompondo, recompondo, atualiza-se através da linguagem artística, evitando o esquematismo e a redundância. São versos permeados de um inacabamento perdurante, marcados por uma atitude de vanguarda permanente, contra definições programáticas, que sugerem um fazer coletivo, antidiscurso e criatividade compartilhada com o leitor, rompendo as fronteiras entre o poético e a crítica da cultura. Afasta-se da história oficial para criar algo novo, intempestivo. Entre paradoxos e identidades faz surgir uma produção de sentidos menos opressora, voz poética em um terreno mais amplo que o convencional. A obra de JMB atinge um nível de intelecção e de conceituação bastante problemáticos. Entre o sensível e o inteligível, desconstrução e reconstrução de lugares comuns e em exercício de fruição e gozo, ele escrevive a crítica cultural através de uma poiesis cheia de contradi(C)ções.
Como compreendê-lo? Talvez indicando coincidências, divergências, discrepâncias. Portanto a discussão acerca da obra de Jomard parece-nos essencial quando se pensa em estabelecer relações entre literatura, memória e sociedade no Brasil. O seu tom épico-satírico tem uma sonoridade contemporânea e seu poema-hipertexto é também resposta a certa crise finissecular/ milenar, revelando também a articulação das palavras nas variantes e interpenetrações do poder ao saber no início de século XXI.
Vemos nesta poética a idéia de experiência afetiva dos sujeitos concretos em sua inserção no mundo (dimensão existencial), transcodificação de uma experiência vivida. No interior desses textos, encontramos suas tensões, fios discursivos, desenhos, jogo complexo e instável, mutação de sentidos, jogos pedagógico-filosóficos, metáforas e questionamentos. Uma rede que se estende entre este sujeito que projeta a enunciação (o dito, que prenuncia o não-dito, e o interditado) e os que a recebem, abrangendo presente, passado e expectativa de futuro. JMB flagra situações-limite cheias de ambigüidades. Seu texto dialoga com essas tensões. Ele usa a bricolagem na sua crítica cultural (a crítica da cultura) e esmiúça as mensagens político-ideológicas através de um peculiar jogo de interpenetrações, fricção por detrás das palavras/ construções sintáticas, estendendo o abismo entre sentidos denotativo e conotativo. Poiesis democrática e dialética: poesia moderna? Satírica? Filosófica? Claro enigma? Pouca gente se arrisca a classificar JMB. O Real, o Imaginário e o Simbólico em sua obra são particularíssima experiência na difusão de formas poéticas em todos os níveis: do grande épico-satírico à busca de uma sonoridade, ao citado poema hipertexto cheio de links parodístico-histórico-filosóficos. Há uma preocupação que atravessa toda a sua escrita, um viés: a língua dos três pppês: Política, Pedagogia e Poesia. Fundi-los à crítica cultural é o cerne desta escrita jomardiana e processo alquímico que merece observação mais apurada.
JMB representa em poeticidade a relação dos homens com o seu destino, com a vida, discute temas/ problemas fundamentais da sociedade. Propõe a religação entre o homem e o seu universo, entre os homens e o local da cultura (perdido), entre os homens e sua comunidade. Expõe o desamparo dos sujeitos modernos.
O corpo desta poesia surge na esteira de transformações sociais e subjetivas, como expressão, no campo da arte, da reflexão como meio de acesso à verdade. Suas relações solitárias de sujeito com a verdade tentam responder através da dúvida sistemática, como os filósofos empiristas.
Mapear a obra poética jomardiana é enlaçar-se com as contradições e coincidências entre a história literária oficialesca e a construção simbólica de indivíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares. É querer decifrar/ compreender a falta de certezas universais e/ ou transcendentais numa poética que coloca o indivíduo como centro de suas próprias referências. Uma poeticidade impregnada de revoluções em enigmas contundentes.
Nos seus textos os marginalizados aparecem em linguagem sincopada como reis, santos ou heróis, e além de pessoas comuns, se destacam da massa ganhando uma história de vida digna de ser relatada - a identificação do leitor funciona para simultaneamente: 1) legitimar a experiência e 2) autorizar a diferença, legitimando a experiência. Ele autoriza a diferença: busca a adesão dos seus leitores/ouvintes que por um motivo ou por outro não se ajustam perfeitamente nem à velha ordem decadente nem à nova política.
Jogando entre os pólos, em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo social, unindo detalhes (sabendo que os detalhes da vida só adquirem existência quando encontram palavras que expressem em determinação literária: anseios, desejos, sofrimentos e gozos), sua literatura é campo de referências que se dirige ao sujeito/leitor. Evitando o lugar-comum dos discursos de autoridade, essa literatura faz-se campo de experiência compartilhada de forte interpenetração imaginária, ao mesmo tempo em que interpela diretamente o indivíduo em seu isolamento. É ruptura, apóstrofe, apelo aos sujeitos mergulhados no vazio, na ausência de sentido, na ameaça de aniquilamento e de diluição das identidades. Escridura que está atenta ao seu próprio destino e escolhas morais. Simultaneamente mais emancipada, encontra-se relativamente mais livre para o escreviver.
Convocado a dar conta de sua própria experiência subjetiva, produzida no encontro tenso entre "vivências de diversidade e de ruptura" e outras tendências, Jomard articula o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de informações que lhe chegam através de outros textos (atentados poéticos!). Se não há nesta lira uma garantia de verdade, há pelo menos a busca de interlocutores no meio da incerteza.
Desta rede de interlocuções vêm as vozes de Jomard: da relação com o semelhante, com o pequeno outro na sua condição de desamparo e de dúvida. Ele também escreve para interrogar a falência dos enunciados de verdade. São textos em que a dispersão e a fragmentação do eu encontram alguma unidade. Questionam a dificuldade de se estabelecer qualquer certeza sobre o sentido da vida e do mundo.
Cabe a esta poética nomear nosso precário saber, afinal o que podemos saber sobre as coisas é apenas aquilo que propomos a respeito delas sabendo que a significação de uma palavra é seu uso na linguagem contra a tirania do Um.
Eis o texto jomardiano: sem ocupar um lugar de autoridade e buscando a interlocução; poesia lúdica buscando a legitimação simbólica sem a pretensão a fundar uma exceção perversa.
Alguns nomes são recorrentes na obra de Jomard: os irmãos Campos e Pignatari, por exemplo, admiradores de Caetano e incentivadores da Tropicália, que retomaram a linha evolutiva do baiano e deram organicidade e fortaleceram seus julgamentos de criação, nisso está uma intersecção com Jomard que, dentre vários vieses ataca nacionalismos passadistas, nacionaloides do tipo macumba para turistas citada por Oswald de Andrade. Quanto ao mencionado movimento liderado por Caetano e Gil, Luís Carlos Barreto deu nome à canção Tropicália, por causa de uma instalação do carioca Hélio Oiticica. Logo a seguir Nelson Motta escreveu um texto no qual batizou o movimento que surgia, foi aí que Caetano resignou-se ao nome Tropicália, por falta de opções, Tropicalismo lhe soava gasto por causa de Gilberto Freyre. A Tropicália enquanto miscelânia de informações que vão de Louis Malle, pelo filme Maria, com Brigitte Bardot, passando por Garota de Ipanema (em tupi: água ruim), identificações com Terra em Transe, com toda a esperteza e fúria da estética de Glauber; Jomard une-se ao grupo em 1968 e instala-se nos limites do Tropicalismo (diferir da tropicologia freyriana). Longe da esquerda festiva, tal vanguarda livra-se de possíveis angústias da influência em intensa radicalidade, como no espírito tropicalista. A poesia de Jomarde é de cunho jamesjoyciano, fundo verbivocovisual com versos em palavras-montagens, em translíngua. De João Cabral, outra das referências na poética de Jomard, vem o olhar lúcido, o nível de argumentação, defesa crítica, determinação inabalável. Do noigandres do Concretismo às perguntas sobre a significação (em louca tenacidade) nos poemas-manifestos jomardianos contra os mantenedores do subdesenvolvimento na geleia geral (como na letra de Torquato Neto) brasileira que a mídia anuncia.
Surge o texto como a quebra dos resguardos, como reflexo de ruidosas performances, numa escrita paródico-carnavalesca de aspecto inventivo-construtivista (de combatividade) buscando a imparcialidade, a expor as entranhas do Brasil em radicalidade antilírica, como num filme de Godard, ver a abertura de Pierrot  le fou, numa poética cheia de lugares incomuns, poesia enquanto palavra-impacto, composição (des)construtora de efeitos, linguagem organizada de maneira meticulosa em meio ao caos criativo vertiginoso numa época em que os ouvidos têm paredes, num mundo que se mostra mais intolerante do que nos libertários anos nos quais JMB iniciou sua produção poética. Augusto de Campos já disse que a poesia é uma família de náufragos nadando no espaço e no tempo. Busco nesta minha explanação a trans-historicidade contra a banalização do passado no texto de Jomard, onde diluição e invenção, qualidade de percepção do mundo buscam, talvez, expressar o indizível, apontar que a captação do fenômeno qualitativo e sensível, longe do sentimentalismo, em protesto contra a vulgarização da vida na era da disparada da tecnologia e mudança rápida de valores morais. Seu texto tem cunho antropológico e expressividade não linear. Trata-se de algo próximo ao construtivismo indigesto e antropófago. Seus textos parecem fora de controle numa escrita mais intuitiva do que coerente, incitavam à demolição, contra o acanhamento e incluem os erros como contribuições. Há nos textos jomardianos um tom de  clandestinidade, androginia, pluralidade de estilos, desmantelamento de cercas entre as classes sociais e gêneros; mas Jomard Muniz de Britto não é um piadista nem um vanguardista datado. É poeta que usa o tratamento de choque em ritual canibalista na movência do Brasil, numa selvagem psicanálise a riscar o nome do Pai, em audacioso gesto literário. Não em poesia límpida, mas em mistura de referências, estilo novo, inaugural, a rir das desesperanças, dos comandantes e dos alienados. Poesia que tenta desalienar corações e mentes em meio às tentativas vãs de unicidade e cinismo. Suas discussões sobre o gozo imediato, sua recusa às migalhas lançadas pelo poder, sua atração pelos marginalizados, tudo isto, como uma performance exerceu sobre mim simultaneamente atração e repulsa. Venceu a primeira.



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ENSAIO     (13/09/2008)
Chico Science encontra Josué de Castro
No mês de centenário do pensador pernambucano, uma análise instigante identifica laços entre sua obra e a do criador do manguebeat. É como se os "homens-caranguejos" de Josué ressurgissem na obra de Chico — não mais como heróis frustrados, mas celebrando a vitória que realmente importa
 Por  Moisés Neto
Citado nas letras de Chico Science e em depoimentos que o poeta registrou na mídia, o cientista e professor Josué de Castro, recifense morto em 1973, é o autor do romance Homens e Caranguejos (1966), o qual foi lido por Chico com avidez enquanto formulava o conceito mangue. Este romance descreve o cotidiano de uma comunidade erguida num manguezal do bairro de Afogados, Recife na primeira metade do século 20. São pescadores de caranguejos, pessoas que tiram do mangue seu sustento. Suas casas, construídas com o massapé, madeira e palha do local; sua principal alimentação, os caranguejos: até as crianças eram criadas tomando mingau feito com o caldo (o “leite da lama”) destes bichos que “fervilhavam” nas margens do Capibaribe.
Seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homem e meio bichos [...] parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos [...] habitantes dos mangues [...] dificilmente conseguiriam sair do ciclo do caranguejo, a não ser soltando para a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama [...] essa fossa pantanosa onde aguarda o Recife (CASTRO: 2001, p. 10-11).
A visão de Josué é ao mesmo tempo perturbadora e dinâmica. Expõe a fome de um povo que ao mesmo tempo brinca com o bumba-meu-boi, o pastoril, o maracatu e outros folguedos (p. 113), planeja uma revolução que tome a cidade das mãos dos ricos poderosos e dos políticos, mostrados como hipócritas e ladrões. O mangue aparece antropomorfizado:
agarrando-se com unhas e dentes (...) gamas fincadas profundamente no lado [...] cabeleira verde [...] braços numa amorosa promiscuidade [...] luta constante com o mar como se fossem trapos de ocupação” (ibid. p. 12).
Este clima de mangue vivo, onde o vegetal, mineral e animal se confundem influenciou profundamente as concepções de Chico e Fred 04. O próprio manifesto “Caranguejos com cérebro” é calcado neste tema, este ninho de lama que Josué comenta: “onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo” e onde
O bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto sonhando com boi-fantasma, que cresce diante dos seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem de baixo das apalpeladas das suas mãos... (ibid. p. 21).
O romance de Josué traz balaieiros carregando frutas e verduras, vivendo entre mosquitos e urubus; rostos magros, morenos, olhos negros e profundos. Alguns sonham com a revolução do proletariado
A representação do Recife nesta obra é influência de João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo e Ascenso Ferreira. Ele descreve o cotidiano daqueles que migraram de sertão e da zona da mata para o Recife e aqui se misturaram aos miseráveis da metrópole.
São balaieiros carregando frutas e verduras, vivendo entre mosquitos e urubus; rostos magros, morenos, olhos negros e profundos, na Comunidade de Aldeia Teimosa, onde alguns sonham com a revolução do proletariado. Lembremo-nos que quase quarenta anos depois, em 2003, 54,9% da população do Recife ainda morava em favelas segundo o Jornal do Commercio [1], segundo pesquisa do Ibam / Banco Mundial.
Corrosiva e às vezes sarcástica, a ironia do autor mistura-se ao lirismo de um final onde o menino João Paulo integra-se repentinamente à luta armada e desaparece no meio do combate à beira do mangue, às margens do Capibaribe, em seu desejo de libertação no meio daquele cheiro frio de lama podre, de terra morta em decomposição. E o narrador conclui:
São heróis de um mundo à parte. São membros de uma mesma família, de uma mesma nação, de uma mesma classe: a dos heróis do mangue (ibid. p. 43).
A palavra “nação” e este senso de comunidade com espírito revolucionário devem ter incendiado as idéias de Chico e seu ideal de representação do Recife. No romance, muitos pescadores de caranguejos cobriam-se de lama com a finalidade de fugir dos mosquitos. No clipe da música Maracatu atômico Chico e a Nação Zumbi aparecem cobertos de lama, como numa alusão aos pescadores do mangue. O uso de neologismos também serviria de inspiração a Science, por exemplo: verbo “jiboiar”, ao se referir a capacidade da jibóia de engolir “um homem inteiro” e passar um mês digerindo-o (p. 61). Chico cria o verbo (neologismo) “urubuservar” na introdução de “Maracatu de tiro certeiro”, na parceria com Jorge du Peixe (CSNZ, 1994). Outro ponto em comum seria a zoomorfização: homens e bichos se confundem na narrativa de forma implacável. Science vai resgatar isto também em sua obra, só que forma menor naturalista e mais caricata. Os mocambos, descritos por Josué, aparecem também na lira scienciana como símbolo da moradia, do pobre no Recife.
O mangueboy Chico e as personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se articular num mesmo contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em busca de saída e de fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade opressora
Enquanto Josué opta por uma visão pessimista, o trabalho de Science, é, de certa forma, quixotesco. Os monstros contra os quais investe suas armas são produtos tanto da realidade quanto da sua mente e na sua obra encontramos o ser metamorfoseado. Se os heróis de Josué são frustrados, os de Science celebram a vitória sígnica:
A façanha de ser prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a vitória não importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signos. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conforme às próprias coisas [...] o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentes subterrâneos das coisas” (FOUCAULT: 2002, p. 64-67).
O mangueboy Chico e as personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se articular num mesmo contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em busca de saída e de fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade opressora e terminam criando uma alegoria, instaurando um pensamento novo. E assim surge uma reviravolta cultural na cidade do Recife, marca-se um estilo, uma época, um período, uma ruptura, uma descentralização, um deslocamento. Algo que rompesse estruturas arcaicas. Hoje analisamos o Mangue já com um certo distanciamento daquele período, mas é possível detectar onde se deu a ruptura e quais as suas possibilidades. Vejamos o que Foucault argumentou sobre esta questão da divisão da cultura em períodos:
Pretende-se demarcar um período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo rupturas simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário? A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em seguida, se desvaneceria e se deslocaria? [...] que quer dizer inaugurar um pensamento novo? [...] uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo [...] o problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura. (ibid., p. 69).
A ruptura que podemos observar nos estudos de Josué aponta para a desigualdade econômica como responsável pelo fenômeno social da fome, numa época em que se acreditava que ela resultava do acelerado crescimento populacional, desproporcional ao aumento dos recursos naturais. Já Science e outros poetas do Manguebeat lutavam por romper com os feudos culturais que estagnavam Recife com seus discursos reacionários. Josué foi deportado pela ditadura nos anos 60, mas seu legado serviu de base para os mangueboys que sedimentaram sua luta unindo estas idéias à música e à poesia, no início dos anos 90. Letras como “Rios, pontes e overdrives”, “Antene-se”, “Da lama ao caos”, “Risoflora”, “Manguetown”, “Corpo de lama” e outras são exemplos do que estamos afirmando. Elas se aproximariam o que Foucault questionou como sendo “ruptura”. Inauguraram o “pensamento novo” e buscaram novas relações entre o pensamento e a cultura.
O Mangue carrega consigo a idéia de libertação que não se vincula a uma classe específica — embora o universo poético centre-se nos pobres — mas na mente de todos. Propõe a transformação da própria concepção do que é cultura
A cultura popular foi sacudida pela nova cena. O governo logo percebeu que seria conveniente apoiar os mangueboys. Inicia-se a fase das negociações. O antigo regime parece querer cooptar a nova revolução, mesmo olhando-a meio de banda. E Science inicia negociações com Ariano Suassuna, dialoga com Alceu Valença. Nos moldes do antropólogo Renato Ortiz, a tradição e modernidade mesclam-se no Brasil, país onde a ruptura nunca se realiza plenamente nem deixa de ser tentada, como aconteceu nos anos 60 com a Tropicália e o Cinema Novo.
A movimentação política, mesmo quando identificada como populista, impregnava o ar, impedindo que os atores sociais percebessem que sob os seus pés se construía uma tradição moderna (ORTIZ: 2001, P. 110).
Como ressaltamos antes, o Mangue, em plenos anos 90, ainda ressaltava ícones como cangaceiros e reforçava mitos como o do nordestino ser um tipo desengonçado, mas não é uma poesia, nem uma música, que expresse conformismo, ou que demonstre uma unidimensionalidade das consciências. É uma postura construtiva que surge no auge do poder da indústria cultural sobre as massas, o final do século 20. Fala de conflitos e exige a luta dos desfavorecidos, numa sociedade que pode ser vista sob diversos ângulos. A ação é considerada na poesia do mangue como foco central na orientação dos comportamentos. Estimula-se a realização das vontades e a retomada do espaço público.
Uma posição mais extremada é certamente a de Adorno, quando descreve a sociedade de massa como um espaço onde praticamente não existem mais conflitos, uma vez, que a luta de classes deixa de existir e a própria possibilidade de alienação se torna impossível. Sociedade marcada pela unidimensionalidade das consciências, o que reforça a integração da ordem social e elimina a expressão dos antagonismos (ibid. p. 150).
O Mangue carrega consigo a idéia de libertação que não se vincula a uma classe específica — embora o universo poético centre-se nos pobres — mas na mente de todos. Propõe a transformação da própria concepção do que é cultura, justamente numa época de mudança de parâmetros na economia global com o fim da Guerra Fria.
Marcada pelos estigmas da contracultura, a poesia de Science exibe o ridículo e o êxtase do ser e anda na corda bamba entre o racional e o irracional. Como entender essa discrepância? Minha tese é de que Science propôs a redefinição desses e outros conceitos. Sua arma – que Barthes tanto sugeriu ser a melhor para se revolucionar — foi a linguagem. E Chico usou a língua do povo do Recife. Como Josué foi buscar nas camadas de baixa renda da população da cidade o motivo da estagnação dessa metrópole-lama.

II
De algum modo, a representação do Recife uma obra de Science comprovou o primado do significante sobre o significado, da significação sobre a representação, da semiose sobre a mimese. Não se buscava a realidade e sim autonomia da língua em relação à realidade, o signo em fragmentada relação com o seu objeto, como se o referente não existisse fora da linguagem e dependesse da interpretação. Detectamos função poética colocando em evidência o lado palpável dos signos e tornando evidente que o poeta selecionou e combinou de modo particular e especial as palavras para daí obter um ritmo, que lhe era intuitivo. Chico escutou muitos tipos de música e tinha aptidão nata para trabalhar a linguagem de forma musical. Por ter tido contato com comunidades de baixa renda como as de Peixinhos, Rio Doce, Ilha do Maruim e outras do Grande Recife, ele absorveu o linguajar, a sonoridade e aproveitou-se da psicodelia para ressaltar o inusitado das imagens. Recife perdia o peso do ser, se esvaziava e se enchia tornando-se diferente a cada verso, como se existisse no mundo numa hora estranha onde ontem, hoje e amanhã se confundiam.
No trabalho poético com o signo lingüístico, o significante Recife é substituído às vezes por “Manguetown” como num rompimento de um contrato e a celebração do novo signo como meio de superar ou resolver uma dificuldade. A esperança é camuflada pelo gozo de ser expresso na exploração máxima da sonoridade das vogais, alongando-as e interpretando as palavras como se houvesse uma exclamação após cada uma delas. O senso de espetáculo e/ou festa parecem impregnar cada uma das composições. Um atrevido arrebatamento é posto em ação. O “real” da vida ou o que seria o “referencial” transformado em linguagem torna-se aventura festejada.
Ao comentar os textos de Barthes e Mallarmé, o professor Antoine Compagnon comenta algo que em muito se assemelha com o nosso estudo sobre Science:
Barthes cita, em nota, Mallarmé para justificar essa exclusão da referência e esse primado da linguagem, porque é exatamente a linguagem, tornado-se, por sua vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como se fosse necessário, ainda assim, um real. E na verdade, salvo se conduzirmos toda a linguagem a onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo que a linguagem pode imitar é a linguagem: isso parece evidente (COMPAGNON: 2001, p. 101).
Poesia e realidade transformadas em produtos comerciais onde o que parecia imitado não eram os habitantes do Recife, mas a ação deles, o modo como eles se expressam. Muito mais o artefato sonoro-poético produzido pelo “imitador” (Chico) do que o objeto imitado, o homem pobre e a cidade estigmatizada. No arranjo que o poeta faz não importava mais se sua interpretação era fruto do engajamento ou da alienação. A natureza, o lugar, a poesia, a cultura e a ideologia parecem de tal forma estar amalgamados, que olhar o que aconteceu no Recife de Chico Science faz-nos muito mais pensar no que poderia ter acontecido. O absurdo poeta-caranguejo era persuasivo ao desconstruir antigos conceitos de representação da cidade ou da “terra dos altos coqueiros / de beleza soberba estendal”, da “nova Roma, de bravos guerreiros / Pernambuco / imortal, imortal” como está na letra do livro de Pernambuco, cujo autor é Oscar Brandão da Rocha.
A representação scienciana surge como ápice de um século que em Recife foi marcado pela procura da própria identidade, um projeto controverso e cheio de perspectivas numa era onde a cibernética popularizou-se
Por isso não abordamos Science com uma aparelhagem estruturalista: optamos pelos estudos culturais, por analisar a postura do poeta diante de um contexto que lhe era adverso e como ele reverteu esta situação através da blague, do humor afrociberdélico, numa particular interpretação daquele momento, o final do segundo milênio, os anos 90 na Manguetown, provocando nova ilusão ao substituir a realidade pela sua representação.
São paradoxais as relações da poesia de Chico com o Recife: não podem ser definidas nem como miméticas nem como antimiméticas. A cidade recriada parecia com a anterior depois de teatral metamorfose. Seria impossível, neste caso, eliminar totalmente a referência, mas a urbe aparece como alucinação, ficção, ilusão poética como num show de mágica: “sumiu”, “voltou”, mas não é a mesma: é um truque. Havia relações, agenciamentos, mas era o Recife como se fosse outra cidade e o habitante transforma-se em turista acidental ou espectador de si mesmo, ouvinte da própria história que parecia só existir por estar sendo recontada daquele modo. Eis o valor heurístico, o valor da arte de inventar: a representação scienciana surge como ápice de um século que em Recife foi marcado pela procura da própria identidade (Regionalismo e o Movimento Armorial do paraibano Suassuna que se desenvolveu nesta metrópole), um projeto controverso e cheio de perspectivas numa era onde a cibernética popularizou-se.
Com a digitalização e seus efeitos de onipresença e onividência (graças à ubiqüidade do sujeito nas redes telemáticas), ser e estar não são verbos que possam mais se colar semanticamente, (como na língua inglesa). A identidade desenraiza-se, libera-se de suas contenções físicas localizáveis num espaço determinado e aceita possibilidades inéditas de heterogeneização ou mesmo de fragmentação [...] a consciência do sujeito assim como as relações intersubjetivas não podem deixar de ser afetadas [...]Os corpos tornam-se vulneráveis à irradiação viral dos signos, e as identidades podem ser produzidas como um bem de mercado, ou então como qualquer figuração delirante na realidade sintética do ciberespaço (SODRÉ, 1996. p. 178-179).
E a “figuração delirante” na obra de Chico envolve as tradições e a literatura locais misturando-as, como viemos afirmando, com a tecnologia nos anos 90, que atingira as massas de forma avassaladora e a internet, que ajudou a estabelecer novos parâmetros na mídia. Os mangueboys puderam contar já com estes recursos que se encaixavam com a proposta da cidade reinventada, agora virtual e pronta para ser despachada para qualquer lugar do mundo onde houvesse acesso à rede. Colaram o que viam com o que ouviram dizer:
Este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que soul
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu
[...] eu caminho como aquele grupo de caranguejos
ouvindo, a música dos trovões
[...] há muitos meninos correndo em mangues distantes
[...] essa rua de longe que tu vê
esse mangue de longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
(CSNZ, 1996)
Nesta letra de Science, chamada “Corpo de lama”, além da liberdade gramatical a liberdade de interpretar os signos como se fossem almas ou até ritmos musicais (a imagem que “soul” – “alma” em inglês e um “ritmo” de música). A “música dos trovões”, que os caranguejos escutam é uma referência ao romance de Josué de Castro Homens e Caranguejos, no qual, aproveitando-se que os caranguejos ficavam desnorteados em dia de tempestade com trovões, os homens forjavam barulhos para simular esta situação e capturá-los assim. O “Corpo de lama” também é referência aos pescadores do mangue, metonímia de determinada população miserável da Manguetown que agora parece sem o cheiro na mídia. Com o mangue e seu aparato tecnológico, a cibernética se instala na cultura recifense definitivamente: Recife caiu na rede, comunhão entre homem e máquina. A transmissão de um indivíduo de um lugar para o outro deixa de ser uma hipótese.
Tanto a proteína (humana) como o metal (máquina) seriam transcendidos pela realidade de informação, suscetível de transmissão eletrônica [...] a mutação se daria pelo acoplamento do corpo humano a dispositivos maquinais [...] montagem de personalidades combináveis [...] ritmo [...] a identidade viabiliza-se como um jogo de signos realizados por imagens, que circulam aceleradamente, de forma contagiante, à maneira de um processo viral [...] simulacros que se incorporam aos sujeitos, criando outro tipo de relação com o mundo físico. (SODRÉ, 1996, p. 173-174).
O “contágio”, ao qual se refere Sodré, era justamente a proposta do mangue. Do mesmo modo que os habitantes/consumidores da Manguetown se transformaram em caranguejos ao beber cerveja feita com água do mangue, com baba de caranguejo, transformando-se em seres mutantes. A contaminação sígnica:
O indivíduo atribui-se o nome que deseja e pode neste mesmo ato inventar e viver uma identidade alternativa [...] superação da realidade corporal primitiva [...] que no fundo seria pura desordem e falta de razão [...] multifacetado, o sujeito, que se define como suporte permanente de traços acidentais, depara com a sedução imagística e assiste à relativização da permanência pela mobilidade veloz das máscaras, das variadas posições de indivíduos-atos, inerentes à pessoa [...] é tentador buscar na ficção científica inspirações utópicas [...] de mutações psíquicas e corporais” (SODRÉ, 1996. P. 175-177).
MAIS
> 2008 marca o centenário do nascimento de Josué de Castro (5/9/1908), que morreu no exílio, em Paris, há 35 anos (24/9/2003). Para maiores informações sobre sua vida e obra, pesquisar em www.josuedecastro.com.br. Há também um verbete na Wikipedia
> Ler também, em Le Monde Diplomatique-Brasil:
Josué de Castro, pensador indispensável
No momento em que a humanidade se depara com crises simultâneas de mudança climática e escassez de alimentos, vale a pena revisitar um pernambucano que dirigiu a FAO. Há meio século, ele já sugeria que só se pode combater a fome distribuindo renda e respeitando os limites da natureza (Por Marilza de Melo Foucher).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. Rio de Janeiro: Gryphos, 1992.
CASTRO, Josué de. Homens e caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001
COMPAGNON, Antoine. O demônio da crítica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GILROY, Paul; GROSSBERG, Lawrence; McROBBIE, Angela (org.). Without Guarantees: In Honor of Stuart Hall. London: Verso, 2000.
GLISSANT. Édouard. Caribbean Discourse. Charlottesville: University of Virginia Press, 1992.
GREINER, Christine; BIÃO, Armindo. Etnocenologia. São Paulo: Annablume Editora, 1998.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Editore, 2001.
HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
ORTIZ, Renato. Notas históricas sobre o conceito de cultura popular. São Paulo: Kellog Institute, 1986.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.
SODRÉ, Muniz. Reinventando @ cultura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1996.
JORNAIS
GÓIS, Ancelmo. Recife-Favela. Jornal do Commercio, 29 set. 2003. Caderno 1, p. 2.
GRAVAÇÕES EM COMPACT DISC
CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da Lama ao Caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994. 1 disco laser. Gravação de som. CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996. 1 disco laser. Gravação de som.

[1] GÓIS, Ancelmo.“Recife-Favela”, Jornal do Commercio.Cad. 1, pág. 2, 29.09.03





[1] Moisés Monteiro de Melo Neto é Mestre e Doutor em Letras pela UFPE, professor da Escola Superior de Relações Públicas (Esurp). É autor de peças teatrais como Anjos de Fogo e Gelo (sobre a vida de Arthur Rimbaud), encenadas com sucesso e livros como Chico Science: A Rapsódia Afrociberdélica, sobre o Movimento Mangue, além de artigos publicados em jornais e revistas como a Le Monde Diplomatique.

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