Aos Profissionais
de Relações Públicas
&
outros textos de MOISÉS DE MELO NETO publicados e proferidos em
palestras
Moisés Monteiro
de Melo Neto
SUMÁRIO
PARTE I
Contos, crônicas e
ensaios publicados no Jornal do Commercio (Recife):
Abandonar a Literatura (Conto publicado em julho
de 1996)
O Exílio é um país sem
alma (publicado dia 01/09/96). (Ensaio)
Uma Fantasia Completa Cem Anos . Publicado em 04.08.96. (Ensaio)
Todos os Clássicos estão mortos (publicado em setembro de 96). Conto.
A morte e vida de Drummond. (publicada em 20.7.97). Crônica.
Abre alas, que o samba está na avenida. (Publicado em 9.2.97). Ensaio.
O Sobrenatural e o ameaçador (Artigo)
Chico Science: Um Fausto às avessas. (publicada em 08.02.97)
Crônica
Fernando Gabeira faz comédia da vida
Um legítimo cenário shakespeariano (artigo publicado em 28.05.97)
Variações sobre Narciso e Jesus (publicado em 22.12.96) Conto
O que aprendemos com Pedro (Publicado em 29.06.97) (Artigo)
Cristo de Saramago é chocante (ensaio)
Travestidos de vítimas. (10.03.96) (artigo)
Caetano Veloso titubeia entre a modéstia e a
empáfia. (publicado em 15.02.98). Ensaio.
Engenharia rima com poesia (publicado em 08.06.97). Artigo.
Conto de Natal
(Publicado no Jornal do Commercio de 25.12.97)
Joia do Rosário Hollywoodiano (10.07.93). Crítica.
PARTE II
Palestras & artigos de Moisés Neto em outros
veículos de comunicação:
- O poema
épico e as diferenças de gênero da poesia
- Literatura em diálogo com outros estudos
Aula
ministrada no dia 14 de julho de 2006 das 14 às 16 horas para professores de
todo o
Brasil
reunidos no XIV Congresso da ANEB em Recife-PE
- Infância e Adolescência, Um Espaço Chamado Adulto, Velhice ou
Idos-Idade. Palestra proferida por Moisés Neto no Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da UFPE em 17/07/2003
- Teatro
em dose dupla: O Portal do Escritor
vai a são Paulo para rever Lucélia Santos e volta ao Recife para checar os
bastidores da mais nova montagem teatral na terra dos altos coqueiros
- Um relações públicas afirma-se escrevendo e
atuando (palestra proferida na Escola
Superior de Relações Públicas – Esurp, em outubro de 2010)
- Depois do vestido de noiva: A Falecida no contexto da
obra de Nelson Rodrigues. (Resumo/ Roteiro da palestra conferida no
dia 22 de agosto de 2012 no auditório da Livraria Cultura –Recife- dentro do 10º Festival Recifense de Literatura
- A
representação do Brasil na escrita de Jomard Muniz de Britto
(Resumo da palestra proferida no Colóquio
Internacional Crimes, Delitos, Transgressões, na UFMG, outubro de 2012)
PARTE III
ENSAIO (13/09/2008)
- Chico Science encontra Josué de Castro (ensaio
publicado na Le Monde Diplomatique)
PARTE I
Contos, crônicas e ensaios de Moisés Neto
publicados no
Os Versos Satânicos de Salman Rushdie
"Satã sendo condenado a vagar , em sua
condição de anjo, tem um tipo de império de água e ar . Parte de sua punição:
não ter local fixo onde possa descansar os pés" , sentencia Daniel Dafoe na epígrafe de
"Os Versos Satânicos" do escritor indiano naturalizado inglês Salman
Rushdie , que voltou a ser notícia este ano (96) pelo lançamento do seu novo
romance "O Último Suspiro do Mouro".
Vida frenética por ter recebido um édito de
morte, a Fatwa, Rushdie também não tem lugar fixo para colocar
os pés pois o muçulmano que o matar ganhará uma fortuna de recompensa por
livrar o Islã de tal praga. Rushdie, numa longa narrativa onde explora o
fantástico, expôs o profeta Maomé ao ridículo, mostrando-o como um
bêbado e o anjo Gabriel como um trapaceiro. Vamos e venhamos: Devemos ou não
respeitar o altar dos outros? Até que ponto a não publicação de "Os
Versos Satânicos" no Brasil é censura? Publicidade gratuita o livro tem,
pois não é todo dia que surge uma obra de arte tão controversa.
Estes dois romances de Rushdie têm muito em comum:
bom humor, mistério, fábulas, alegorias, jogo de palavras, amor e... provocação.
"O Último Suspiro do Mouro" fala sobre a Índia e, sabendo que tipo
de voz Rushdie empresta aos seus narradores e personagens, não nos espantamos
que os ultranacionalistas tenham tentado proibir seu lançamento no
país de Krishna .
Em Rushdie, a unidade e continuidade da
cultura ocidental é condimentada com tempero do oriente. Em seus romances à
clef (Chave: histórias
codificadas onde personagens reais aparecem com nomes falsos e transfiguradas),
vemos que a religião nunca derrotou o paganismo, a cultura animalesca
que domina o planeta Terra. "Os Versos Satânicos" exibe
amoralidade, ironia, violência cômica , sadismo: Saladim Chamcha, um ator
especializado em comédias, uma espécie de anti- herói, passa a se
metamorfosear num demônio típico , de pêlos, chifres e rabo , depois de um
acidente de avião. No mesmo avião vinha uma ator dramático, Gibree (Gabriel),
que interpretava divindades no cinema e que depois do tal acidente, volta à
vida emanando luz. Logo que o avião cai, Saladim começa sua purgação: apanha
da polícia e é torturado, perde tudo que tem - mulher, dinheiro, emprego,
respeito, enfim. Vemos com frenesi o narrador estilhaçar a trama em várias
unidades e voyeuristicamente nos deparamos com uma sensualidade
lambuzada de malícia obsessiva. Rushdie cria também imagens
fantásticas: Uma tempestade de neve vista de um trem faz a Inglaterra parecer
"TV quando acaba a programação do dia" e o avião "não é
como um útero voador e sim como um falo metálico e os passageiros são como
espermatozóides prontos para ser ejaculados". É uma ansiedade
parecida com culpa sexual sublimada por sensacionalismo.
A conversa com o leitor dinamiza a narrativa, que
por si só já está cheia de tiradas cômicas, como na passagem do sequestro do
avião onde o bandido ironiza dizendo que todos morrerão (nossos heróis
vão morrer/ cair na terra) e, já que são 50, renascerão "Cinquêntuplos"
("fiftuplets"). Os dotes verborrágicos do autor assemelham- se aos
do colombiano García Marquez dos primeiros livros.
"O exílio é um país sem alma, é o sonho de
um retorno glorioso", choraminga numa
espécie de desabafo, para logo a seguir espinafrar: Amar o Islã é "amassar
os relógios" (romper com o ontem / hoje/ amanhã), para eles (os
muçulmanos) "o progresso é Satã". Aparecem personagens como
a mulher que come borboletas e uma árvore muçulmana que cresceu tanto que
ninguém mais distingue o que é árvore e o que é a cidade. E, para encerrar,
uma frase de um dos personagens: "Não ter piedade é a única coisa que
um cartunista precisa. Que artista teria sido Disney se não tivesse
coração . Esta foi sua falha trágica."
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"Teu cadáver será arrancado da tumba, (...),
vagarás e o sangue de todos os teus terás de chupar...", escreveu Lord Byron no poema
"Giaour" de 1813. O romance "Drácula" do inglês Bram
Stoker completa em 1997, cem anos de publicado. É um livro de códigos
ideológicos e temáticos bem definidos e deve ser colocado entre as obras mais
conhecidas de ficção em prosa. Seu caráter epistolar é costurado por uma sintaxe
narrativa que, se não foi inovadora, é pelo menos estonteante. Uma fantasia
de cem anos.
Sua capacidade evocativa e solidez icônica, seu
discurso figurado (ironia), sua base romântica garantem a constituição da
mensagem narrativa. A presença de diversos narrradores neste romance produz a
focalização onisciente (toda a ação se passa em um ano e tomamos conhecimento
de tudo através de cartas e documentos dos personagens (o que nos remete ao
"Werther" do escritor alemão Goethe, marco inicial do
Romantismo), num tom que às vezes tem algo de desconcertante, como num
estranho sonho embriagador. Nestes dias de AIDS a contaminação pelo
sangue redimensiona- se e ajuda a potencializar o poético horror inglês.
Embora a crença em vampiros tivesse se espalhado
pela Ásia e Europa , era inicialmente um lenda eslava e húngara sobre um
chupa- sangue . Tudo foi documentado pela igreja da época (1730-1735). Mas
podemos voltar ao século 15 e suas histórias sobre a Dinastia (uma ordem)
Dracul (dragão) que defendia a Igreja nas guerras "santas". Um
membro deste grupo teria iniciado o culto na Europa. Era conhecido como
"O Empalador", pelos seus métodos de executar seus inimigos (notem
desde já o jogo de imagens: a estaca terá de ser enfiada no coração de
Drácula). Mais longe, podemos buscar na Grécia antiga a Lâmia, que seduzia
jovens para devorar-lhes a carne. Goethe, em momentos de hematodpsia (sede de
sangue com raízes sensuais), escreveu " A Noiva de Corinto", uma
balada. O inglês Coleridge escreveu em 1797-1800 o poema
"Christabel", com o mesmo mote. No cinema e no teatro (sucesso na
Broadway em 1927), o húngaro Bela Lugosi e o ator Chistopher Lee fizeram
fortuna sugando esta veia (Drácula, o vampiro). Outro marco é o filme "Andy
Warhol apresenta Drácula" ,onde o diretor Paul Morrisey cultua a
androginia e o humor que cercam o personagem. Devemos destacar também a série
de romances da escritora americana Anne Rice sobre "O Vampiro
Lestat" (no cinema interpretado por Tom Cruise) .
Voltemos ao livro : o narrador- mor ( Jonathan
Harker, que é o namorado da mocinha, Mina ) vai passar um mês com Drácula
a negócios na Transilvânia, Romênia. O vampiro nos aparece como num vácuo
onde inexistem doença, pobreza, velhice e onde ele reina absoluto sobre a
natureza, os ventos, a realidade, enfim. Outra personagem feminina que mora
com Mina é Lucy, que, de certa forma, representa nossa derrota: a) diante do
capitalismo americano, um de seus pretendentea é um texano, Quincy, que
enfiará em Drácula a estaca fatal, b) à nobreza, a quem ela escolhe, e c) à
Ciência (outro pretendente seu é o Dr. Seward, médico de um hospício cujo
chefe, Van Helsing, será uma espécie de ícone da resistência humana, grande
articulador da queda de Drácula - que seria nosso lado selvagem/ eterno,
nossa natureza elementar). O prenome de Van Helsing é Abraão (que, na
Bíblia, estava disposto a assassinar o próprio filho para provar sua
fidelidade diante de deus). Lucy é como Vênus (deusa do amor) a servir de
contraponto a Abraão (pai espiritual dos cristãos), Lucy, então, exibe a
danação da carne, a vontade de se entregar em êxtase, tremendo em
insatisfação. Mina seria nosso lado mais família, momentaneamente tentada
pelo lado escuro que tenta destruir sua fé cristã instalando no seu coração a
eterna e insaciável sede.
Gravidezes paródicas permeiam o livro como num
retorno ao drama do Éden onde a perversidade da serpente envergonhou a nudez
dos homens e dificultou o acesso ao paraíso. Como Ulisses buscando
Penélope, desconfiado, Drácula busca Mina que o livraria do hermafroditismo
devolvendo- lhe a virilidade através de um amor único, eterno, vermelho ( a
cor do romance) . É o consanguíneo no lugar do etéreo, da amizade pura. O
patriarcado resiste à imposição de tal sexualidade e empurra Narciso para um
beco sem saída. Diante disso Drácula não tem a menor chance.
Drácula é um monstro porque nos fere com sua
androginia, atinge nossa ética judaico-cristã / científica/ capitalista. Ele
incita ao caos e faz- nos lembrar o pântano de onde todos viemos.
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Pompeia, Itália. 1996 DC
Sinto-me livre. Se eu fosse uma fazenda, hoje não
teria cercas. O beijo que me incendiava, hoje me congela. Bloquearam- me as
saídas, escapei por uma das entradas. Quebrei todos os meus ídolos
guerreiros. Bah! "Guerras não fazem grandes pessoas".
Preservando múmias sem plateias. Foi como eu me
senti ao deixar nossa cidade. Só o ódio me aquecia. Enchi os bolsos com um
punhado de dólares, um dólar é um dólar em qualquer língua.
O Oceano Atlântico e tanta terra me separa de
vocês. A isto, um brinde de Lachryma
Christi, o vinho mais pedido aqui em Pompeia, onde estou há mais
de uma semana. O sangue de Baco no meu coração pôs- me em estado de escrever,
um amigo meu dizia que as musas não se aproximam de um homem sóbrio. O sol
italiano mistura minha sombra às sombras destas belas ruínas milenares. Leio
grafites na cidade fantasma e olho o devastador Vesúvio adormecido, metáfora
da minha arte danada. Sou hóspede de um hotel próximo, estou abraçando uma mulher
com os cabelos cor de fogo, que eu trouxe do Brasil e do nosso quarto vemos a
silhueta do vulcão. Observamos os montes enluarados e esta cidade parece um
Lázaro redivivo. Fiz promessa de voltar a Itália assim que me apaixonasse
novamente e aqui estou. Os pores- do -sol do passado já não me conspurcam
mais. Chega de bugiganga.
Hoje bem cedo, fitando esta cidade, veio-me à
cabeça uma frase que se repetia sem sentido: "Todos os clássicos
estão mortos".
Olhei para o Mar Tirreno. Juntando as pontas do
tempo. Comparando Pompeia hoje com os desenhos que me mostram a cidade nos
seus áureos tempos, com seu comércio, seus lupanares, sua vida louca, sua tragédia
apocalíptica. Escuto ecos, sinto vibrações. Busco tornar minha vida mais
digna, melhorar meus costumes, juntar o útil ao doce, corrigir-me, atingir a
consciência do que realmente eu sou.
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Em agosto completam-se 10 anos da morte do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade . Drummond frio, distante, gauche que faz ver o mundo cotidiano melhor , mais humano em erros e acertos, sem entregar a responsabilidade de sua vida aos outros , suportando sonhos, entendendo o orgulho como fonte do medo, Cruel é a vida ou nosso olhar despreparado?
"O hábito de sofrer que tanto me
diverte", futuca a voz de
poeta que nunca morre e nos entretém: "Nisso vieram os pássaros,
rubros, sufocados sem canto, e pousaram a esmo. Todos se transformaram em
pedra. Já não sinto piedade". Aí está a sua desesperada tranquilidade:
longe da embalagem política que lhe cobraram. Se foi fraco, se foi tolo, ele
redimensionou o pó (de onde viemos e para onde vamos) das lembranças,
transformou- o em seu brinquedo dramático, sua pièce de resistance : o
poema.
Farmacêutico, professor, comunista, funcionário,
ele foi o "José" descrito num de seus poemas mais conhecidos. O
poeta que insistia na necessidade de seguirmos de mãos dadas, o poeta da
canção amiga que buscou extrair nas forças líricas do mundo a importância do
diálogo mesmo quando a solidão é um vício. Expressou o Boitempo em
forma fixa ou verso livre. Drummond é um fugitivo da caverna de Platão (que
criticou as limitações do homem).
A sensualidade nele é delírio: "Alma,
desejo, membro e vulva (...) úmido subterrâneo da vagina". "A
lavadeira me deu as maminhas", disse Carlos, eclipsando ânsias e
jogos mentais num inextrincável beijo que se mistura com baba. Escrevia para
si mesmo também: "meu verso me agrada, dá cambalhotas para mim
mesmo". É o solitário dominador na ilha da imaginação, voyeur
no jogo do choque social querendo a vida sem mistificações: "Sou de
ferro". Foi poeta do oprimido e pretendeu "Dinamitar a Ilha de
Manhattan" com sua injusta distribuição de renda e poder infernal.
Na velhice, vimos um Drummond careca e enrugado,
um Peter Pan taciturno: "Perdi o bonde e a esperança (...) a rua é
inútil", possuidor da chave que abre o reino das palavras. Foi
enredo de escolas de samba do Rio de Janeiro (Mangueira-87 e Vila Isabel-80).
Era o bom selvagem com suas delícias individuais, como Machado de Assis, num
truísmo (verdade evidente) de um claro enigma, palco de neuroses amassadas
fazendo reluzir o diamante do espírito, porém com a máscara social bem
afivelada e arrematando tudo isso uma comovente ironia: "E sempre no
passado aquele orgasmo". Morreu aos 85 anos, perdera a filha querida
pouco tempo antes. "A poesia é incomunicável. Fique no seu canto. Não
ame."
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O samba é uma das coisas mais divertidas
desde que os europeus chegaram aqui com seus escravos e coisas. Uma arma que
virou poema. Encontramos poemas no Maracatu, frevo e outras manifestações
folclóricas, mas no samba, os pretos e os brancos traçaram um perfil da vida
moderna de uma forma meio ingênua, como um sujeito embriagado no seu caminho
do berço ao túmulo. Nenhum outro ritmo exibe o pobre, o miserável, oprimido,
explorado de tal forma revertendo o quadro sombrio em sonho carregado de
alegorias. O samba brasileiro será o último a render-se: "Eu sou o
samba/ Sou eu quem levo a alegria para milhões e corações brasileiros".
O samba foi oficializado no Rio de Janeiro por Donga em 1917 que, com
"Pelo Telefone", inaugurou com um instrumento de modernidade este
novo caminho da música dos afro-brasileiros. Antes de chegar ao Rio, o samba
estava no Maranhão e na Bahia. No Recife, chegou um pouco mais tarde.
"Deixa a tristeza pra lá/ canta forte, canta
alto/ que a vida vai melhorar" e se vai! Surdos,
tambores, cuícas, abalam terreiros e apartamentos da estranha pirâmide social
brasileira. A Federação das Escolas de Samba de Pernambuco agiliza o desfile
das escolas. Luta e fantasia deslizam com o samba pelas avenidas do Recife
durante o carnaval uma glória efêmera, efervescente, ritualística.
Gigante do Samba, Galeria do Ritmo, Escola do Zé, Acadêmicos do Cordeiro,
Rebeldes, Estudantes de São José, Samarina, e tantas outras de igual
importância nos trazem uma euforia única: "Oh, sereia fico a
imaginar/ em tempo de lua cheia/ como é belo o teu cantar". Há por
trás de tudo isso também certa guerra entre grupos e federações. Não é
fácil manter a coesão dos grupos em meio a tantas adversidades numa cidade
que não tem o samba como prioridade no carnaval. Uma escola de 2º grupo conta
em média com 400 componentes, fora os colaboradores: "Obrigado ao
Criador/ a terra quem clareia é o sol/ que eu faço parte dela (...) fogo e
magia (...) mistura de cores", sai cantando o puxador como uma
autêntica esfinge do século que está se acabando.
Em 95, a Galeria do Ritmo homenageou o comediante
Luís Lima, que entrou na avenida sob aplauso e gotículas de chuva que sob os
refletores mais pareciam confetes coloridos: "Na ribalta do riso(...)
personagens diferentes (...) o Rei das emoções/ Dramatizar/Satirizar/ Liberta
o peito/ Vamos gargalhar!" . São letras ingênuas, muitas vezes com
erros que fazem a língua culta arrepiar-se, porém trazem a marca do povo que
é sempre forte e representa o inconsciente coletivo de uma forma ou de outra.
Irmão do jazz, da bossa-nova, o samba é irônico,
cachaceiro, com seus atabaques e tambores das tribos indígenas do século 17 e
vem se arrastando em cordões, ranchos, que já se vestiam de seda chinesa e
tecidos europeus com os quais o povo recriava o grand monde. E vinha índio de cobra na mão, pandeiro, violão e o
futucado dos cavaquinhos apimentados. No início era só o refrão, o resto era
improviso. AMAMENTADO POR MULHERES, O SAMBA É MACHO-FÊMEA, é rebolado,
malícia, carinho. Traz no bojo a sua palavra mais forte: lenitivo ,
mestre-sala e porta-bandeira de uma vontade desenfreada de viver brilhando ou
expressando sua dor misturada com arte, ajeitando , arrumando, confeitando, enganador
e enganado. Surge o samba na Avenida Guararapes, a terceira menor do mundo,
saudando o povo e pedindo passagem, ou então na Dantas Barreto, ou na ponte
Maurício de Nassau, a ponte das estátuas, é o embriagante sonho do
esquecimento, o beijo do verbo com a natureza, alma e corpo numa dança
espetacular, imaginativa, movimentando-se com uniformidade, constância,
empolgação, singularidade, personagens de um enredo exibido em alegorias,
adereços, dança. Prisioneira do tempo, a poesia ali tem regras próprias, nada
de erudito em sua descrição ou no show de elementos dramáticos que anuncia
gestos em busca de tradução própria e dos outros como num tabuleiro de
camelô, vendendo verdades e mentiras, Orfeus fugindo do inferno sem poder
olhar para trás. Um bom samba é como uma oração, uma esperança de não ser
mais triste.
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Neste final de Outubro a lembrar de Finados,
Todos os Santos ou mesmo do antigo Halloween americano, deparei- me com os
versos do poeta e mestre da xilografia J. Borges, pernambucano dos
melhores: "Senhora, dancei com Corina/ Até alta madrugada/ deixei com
ela objetos e minha capa emprestada(...) disse- lhe a mulher chorando:/ A
minha filha Corina há muito tempo que é morta (...) isso só sendo um mistério
/ eu vou levar o senhor agora no cemitério (...) e saiu com o rapaz/ na
catacumba chegou/ o isqueiro o rádio e a capa/ ele logo avistou " .
Na aventura do homem, "a morte é o véu que aqueles que vivem chamam
vida", rebateria Shelley, poeta romântico inglês de marca maior.
É a literatura entregando- se ao sobrenatural, ao
fantástico, ao ameaçador monstro para que lhe abocanhe, feroz. Nos mares, nos
sertões ou em comunidades modernas. Nos mares, citamos o livro
"Tubarão" de Peter Benchley; nas comunidades, temos o texto
cinematográfico de Zé do Caixão e os livros de Stephen King. São
textos onde o Bem e o Mal não se acomodam e nos compraz vê-los assim,
diluindo- se entre o real e o fantástico como num conto de Murilo Rubião,
ou no romance de King "O Corredor da Morte", onde um inocente é
levado à cadeira elétrica. Como Dalilas, os leitores agarram- se às páginas
que os mergulham num mar de adversidades, aventuras e malícias onde ritmo, caracterização,
texto, ambiente, narrativa e trama atingem o exagero enchendo a máquina de
espíritos e "pervertendo" a realidade, tentando assim reverter a
síndrome de heróis de um épico patético que ameaça nossos dias. A solidão é
afastada quando, conceituando a ansiedade, manipulando- a, fazemos nosso
ensaio da morte num "teatro mental". É como se numa ensolarada
manhã a ameaça injetasse um pouco de caos necessário à ordem.
O Nordeste do Brasil é marcado pelo mistério,
pelo misterioso, influência que vem do árabe, dos ibéricos, dos africanos com
suas lendas e mitos. O maravilhoso aqui se espalhou, descarregando nossos
maus sentimentos e comendo nossos pecados em ardor que não há exegese
(explicação / análise) que englobe tudo.
No "Romance d' A Pedra do Reino",
mestre Ariano Suassuna mergulha seu herói Dinis Quaderna no sobrenatural,
no fantástico, no alucinatório, onde cavaleiros com dentes de cachorro, ou
ainda, seres com sete cobras corais" a modo de língua"
folhetinizam a morte, o desaparecimento por encanto, relativizando
assim o verossímil, embevecendo- nos com a surpresa grandiosa, num impacto
que lembra o estilo Barroco. É a ruptura entre perda e posse, realidade e
fantasia: Seremos sempre monstros da nossa própria criação? Heróis pícaros, heróis
trágicos , nesta Morte e Vida Severina
de aleluias e agonias.
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Se grudássemos nossa dor ao corpo morto de Chico
Science, poderíamos nos livrar do caos sem fim pernambucano? Mesmo com o
conhecimento da história do Recife e suas lutas, a revolução aqui está datada,
o que o malungo fez foi a desconstrução das nossas raízes
culturais de maneira catártica pré- freudiana. Encarnando o antimestre, ele celebrou um Pernambuco
crucificado e vítima de inanição que mesmo assim está sempre a brincar de ser
feliz e zombar da inútil erudição dos seus oprimidos.
Quando fecharam o túmulo do mangueboy,
restou-nos a pior lágrima possível, a da esperança sufocada, ali mesmo a
globalização riu feroz, resta- nos a perversão cultural que vigorava antes
dele e continuará nesta terra onde ignorantes e intelectuais compactuam num
massacre do amor próprio e da dignidade. Qual São Jorge ou um Fausto às
avessas, Chico sobrepôs- se aos medos e às doenças e nem a morte o vencerá,
ele não será diminuído pela morte, menores estamos nós. O miserável clichê
"arte longa, vida curta" não justifica o sacrifício a que são
submetidos os artistas da nossa terra. Enterramos este menino com uma fúria
impotente a nos arrepiar. Escrevo para não gritar. As frias estrelas
torturam- me lá do céu, depois que a noite caiu melancólica sobre este nosso
jardim selvagem. Venham, monstros! Venham sobre nossos corpos de artistas que
odeiam o destino que afasta o prazer e transforma simples lembranças em
pesadelos.
Maracatu, maracatu: bicho amestrado com
capacidade de ser feliz. A força da Nação ecoa e, com um esforço, um riso
triste se desenha nos meus lábios nessa espécie de solidão "pra ficar
pensando melhor".
|
Se, como um anjo de pedra movendo- se com suas
asas negras, a lei lhe perseguisse e você não pudesse se agarrar a nada que
não tivesse de largar em 30 segundos quando a polícia chegasse?
Assim aconteceu com Fernando Gabeira, intelectual
mineiro, que teve sua vida representada no filme "O Que É Isso
Companheiro?", baseado em seu livro homônimo que relata a sua
participação num grupo revolucionário brasileiro durante os famigerados anos
60 .
O sonho dos jovens dos anos 1960 e 1970, naufragou
na década de 1980. Como uma túnica frágil, rasgou- se o véu do templo de alto
até embaixo, num cenário tropical da mais completa futilidade e ziriguidum.
Gabeira, que fugira do Brasil para se exilar na
Europa, voltou com a "abertura" do final dos anos 70. Num cenário
de harmonia pré- Tancredo Neves, surge Gabeira quase do nada, da desinformação
militar: o cara que lutou por um Brasil menos ruim volta para narrar seu épico
pop, suas histórias, suas aventuras, no Brasil e no exílio. O antigo
guerrilheiro Diogo usou seus macetes de jornalista para compor sua odisseia.
Frases curtas, parágrafos de fácil leitura e temas empolgantes. Botou uma
tanga de crochê, foi se bronzear em Ipanema e reinou absoluto numa mídia
carente de heróis: "Mude você mesmo", "Seja natural",
"Nada de astral baixo", "A gente se encontra por aí...",
entrou no clima? Depois de sequestrar, roubar e agitar mil e uma, o
guerrilheiro chocava os mais conservadores confessando suas relações
bissexuais e transformando sua vida num piquenique. Era a "política do
corpo" da qual o filme, é claro, passa a milhas de distância. O filme é
tão ruim que deve ser esquecido (destaque para os comediantes). Os livros de
Gabeira ("O crepúsculo do Macho" e "Entradas e
Bandeiras", entre outros), estes sim, merecem ser revisitados apesar de
datados.
Outros exilados que voltaram com Gabeira, por
exemplo, Luís Carlos Prestes (cuja mulher, Olga Benário, foi
entregue aos nazistas pelo governo Vargas e morta num campo de
concentração nazista em 1942) e o grande Gregório Bezerra, além
de Miguel Arraes, é claro, insistiam na glorificação partidária de
esquerda, mas nosso bom mineiro preferia comentar a discriminação sofrida
pelas empregadas domésticas que eram obrigadas a usar o elevador de serviço.
O figurino usado por Gabeira era no mínimo surpreendente e as fotos que ele
despejou na mídia ganharam capas de revistas como Veja. O vazio do céu
esvaziava o sentido do mundo. Parecia que aquele homem que já tinha feito
seus deveres de casa queria tirar longas férias num planeta transformado em
país das maravilhas. As descrições de lugares exóticos como a Índia
fascinaram milhares de leitores. O Partido Verde, o chapéu verde, as
aulas de balé clássico e ter seus carrascos elogiando seus livros
pareceram a algumas pessoas artifícios de uma direita que queria ser perdoada
por jogar o país numa miséria que os políticos até o final dos anos 90 só
fariam piorar mais e mais. Intelectuais como Josué Montello
apoiaram-no, Gilberto Gil apoiou , abraçou e beijou em público. Eram
as cores de um futuro promissor anunciado nos comícios democráticos onde
todos clamavam "revolução" e os mais crédulos acreditaram que
"diretas já!" seriam a solução para um país que prefere sexo ,
samba ,futebol, novela e copiar o pior que os americanos oferecem, enquanto
educação , saúde e justiça são jogadas de lado na primeira oportunidade, um
país que não tem tempo para esperar, pensar, num futuro melhor.
Ah, Le Monde! Os livros de Gabeira eram como a
comédia da vida coletiva brasileira. Num dancing days repetitivo, ele
usou artifícios comuns na literatura: Ironia, ruptura com a linearidade do
tempo gerando expectativas no leitor, estranhamento (do comum, do banal
lapidando-o como pedra rara).
Como um bandeirante louco em busca de esmeraldas,
o escritor rastejou até Brasília, onde estabeleceu- se como político que
defendia ideais libertários de uma geração "cabeça". Sem ele nunca
poderíamos imaginar o "outro lado" do guerrilheiro, os seus
bastidores. Gabeira foi e é um referencial. Mas este mineiro que influenciou
tanta gente cairá na lata de lixo da história? Este jornalista que ficcionou
sua vida, servirá de exemplo?
The
answer, my friend, is blowing in the wind/ The answer is
blowing in the wind.
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Se você vai a Inglaterra, não deixe de
visitar o Castelo de Windsor, pequena cidade perto de Londres, às
margens do Rio Tâmisa.
Lá está o mais velho castelo ainda em uso pelos
monarcas britânicos. Sua arquitetura é um resumo de todos os estilos
arquitetônicos que deliciaram o mundo desde 1080 ( data da fundação do
castelo que sofreu várias reformas e ampliações). Suas torres cilíndricas são
um espetáculo à parte assim como a Capela de St. George, cujo telhado exibe
esculturas de animais (às vezes grotescos).
Além de alas imensas com pinturas no teto, o
castelo tem vários "museus", como o de porcelana. Você se depara
com curiosidades como a armadura de Henrique VIII, quadros, mobília,
esculturas e outras preciosidades que fazem pensar nos saques necessários
para suprir tudo isto (o Brasil foi explorado até a última gota). São Rembrants,
Van Dycks, Rubens e muito mais.
Foi neste castelo que a então princesa Elizabeth
II passou parte de sua adolescência durante a 2ª Guerra Mundial. Os
jardins são fantásticos e incluem regatos e mil recantos. A ostentação de uma
mesa de jantar posta para 60 pessoas pode chatear você, mas não se deixe
abater e saia para dar uma volta na cidade ao cair da tarde. Windsor é um
lugar simples, com bons restaurantes, indefectíveis lojinhas e o rio Tâmisa
dourado pelo sol é encantador.
Shakespeare
escreveu "As Alegres Comadres de Windsor" , uma comédia, onde
espinafra: "as pessoas ali sofrem a paixão exagerada das bestas, a
imaginação delirante dos incapazes, e expõem os vícios ingenuamente à luz do
dia" . Foi nesta peça que o bardo fez reaparecer um dos seus
personagens mais comentados: Falstaff. Mas isso faz muito tempo. Hoje
você deve recitar outra fala desta peça: "Vou revirar Windsor!"
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Foi no último natal com amigos em Paris.
Dezembro pegou- me de surpresa, mais uma vez.
O reencontro com velho amigo exilado no cinza:
Paolo, filósofo e dono de uma galeria de arte. As conversas que tivemos me
atingiram de tal forma, que as festas de fim de ano foram marcadas pela sua
presença na minha memória.
Paris havia atravessado uma
greve geral que durou semanas. A decoração de natal virou remendo, Tinha- se
que atravessar a cidade a pé (transportes em greve, é claro). Mas o ar de
Paolo, quase insociável, objetivo e seguro, o olhar oscilando entre o triste
e o irônico ao observar nosso imperfeito planeta (Deus, acelere este
milênio!) era o de quem havia conseguido dobrar seu desejo, sua vaidade e
personalidade.
O frio cortante. A lua pela metade. Meu amigo
prostrado num pequeno café bebia seu cálice de horror. "Se Deus me deu,
é porque sabia que eu beberia até a última gota".
Caprichos da incerteza, falência dos ideais, política
sem rumo e sem sentido, a bestialização humana que, bebendo o sangue
da mentira e da degeneração, busca enfraquecer a dor, sacrificando a
prostituição em estranhos altares.
Certo ou errado Paolo planejava uma reclusão
naquele natal. Os antigos dançavam por prazer, não para a exibição. Do mesmo
modo Paolo deixava a dor atravessar-lhe o corpo dignamente. Este seria o seu
último natal, eu bem sabia.
O cheiro inesquecível de Paris envolvia-nos como
num delírio, num sonho cheio de abismos. Em vão convidei-o para juntar-se a
mim, minha esposa, nossos amigos. Ele preferia estar só. Ele queria sair
limpo desta vida terrena, que ele chamava armadilha da carne. Cantou,
num momento poético, lembrando sua antiga companheira: "Tosca, você
me faz esquecer Deus" (trecho de uma ópera).
Sereníssima Paris. Meu amigo, cravado pela cruel
emoção, escutava os badalos dos sinos. O ódio não o excitava, em vez disso
estabelecia-se a calma. "Se Jesus morreu pelos pecados de alguém, não
foi pelos meus".
A razão da vida , mais do que o ritmo incessante
do tempo, é a luz da inteligência sobre o mar escuro da ignorância.
Em silenciosa compreensão, brincávamos com o
medo, naquele que seria nosso último encontro.
Uma lágrima dourada pela luz do ocaso, que rolou
furtiva do rosto do filósofo, parecia dizer- me, silenciosa: "Feliz
Natal". Aquele era o seu jeito de ser, eu sabia. Seja feliz, era o que
ele queria me dizer e não sabia como.
Despedimo-nos na Place de La Concorde (que foi
feita em parte com as pedras da Bastilha, antiga prisão). Eu fiz minhas as
palavras do poeta Coleridge: "Ó amigo! Meu conforto e meu guia! Forte
em ti mesmo e forte para me dar força!"
Feliz Natal.
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Dia 29 de junho. Dia de São Pedro.
"Pedro foi o primeiro a falar:
-`Mestre, os anjos descerão dos céus para nos
ajudar?´
- `Somos os anjos de Deus na terra, Pedro´
respondeu Jesus, `Não existem outros anjos´ ", escreveu o grego Nikos
Kazantzakis em "A Última Tentação de Cristo", romance de
1957, que obteve uma adaptação para o cinema com relativo sucesso, dirigida
por Martin Scorcese.
A primeira imagem que tenho de Pedro é a de um
filme mudo, em preto e branco, sobre a Paixão de Cristo. Lá está o homem-
chave do céu, o fundador da igreja católica, negando Cristo. Lá, o pescador
de Cafarnaum, galileu portanto.
No rio Jordão, Pedro encontrou João Batista e
Jesus e sua porta para o futuro, longe dos jargões pedantes e mal-humorados
que reprovavam e oprimiam os libertários.
Logo vieram Salomé, Roma e Companhia e a
ansiedade de Pedro levou- o ao medo diante da avalanche de poder. Negou a
causa cristã, mas não apagou totalmente a chama da revolução dentro do peito,
esta obstinada vontade que sufoca alguns seres humanos. Levantou-se numa
epifania paradisíaca, num sonho de harmonia que celebramos até hoje.
Seu corpo, dizem, está enterrado no Vaticano.
Impossível entrar no coliseu sem se lembrar dos mártires. Na Basílica de São
Pedro tem uma estátua sua em mármore, os pés gastos de tanto gesto de oração
que tocou aqueles dedos rasos. Ah, nossa culpa, nossos desejos.
Pedro foi a Roma alertar contra o poder
hipócrita. Oferecia uma divindade transcendental que eclipsava a lógica
greco-romana. O sagrado coração de Cristo que ilumina como fator de união em
plena cidade da loba. Nero, em sua fantasia, jamais iria supor que a igreja,
um milênio depois, seria responsável pela transmissão da cultura ocidental na
devastadora idade média.
A crucificação de Pedro de cabeça para baixo no
Coliseu pode não corresponder a um fato histórico, mas remete-nos ao poder
bruto desta terra que regamos com lágrimas quentes e com o suor do nosso
trabalho.
A crítica às ambições e conflitos na casa que
Pedro sonhou é a grande metáfora do homem idealista, transgredindo com
seu instinto, intelecto e espírito; nutrindo nossa história cultural.
Ao ensinar o que vivenciou, Pedro transmitiu- nos
que com perseverança podemos vencer estupidezes.
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Na semana em que celebramos mais um dia de Corpus
Christi (nesta Sexta-feira, dia 6), nada mais oportuno do que passar em
revista algumas das interpretações que se têm produzido sobre Jesus Cristo, o
principal mito da cultura ocidental e seu maravilhoso mistério de dois mil
anos.
"A substância dualista de Cristo- o desejo
ardente, tão humano, super- humano, do homem, de atingir Deus- tem sido
sempre um mistério profundo e indecifrável para mim . Minha principal aflição
e causa de todas as minhas alegrias e sofrimentos. Desde minha juventude, tem
sido uma batalha ímpia e impiedosa entre a carne e o espírito. E minha alma é
a arena onde estes dois exércitos se encontram e se digladiam ".
Esse texto do escritor Nikos Kazantzákis (1883-
1957) faz parte de uma série que tem como tema a filosofia cristã, tão
fundamental nos dias de hoje que quando , no Ocidente, encontramos uma
criança que não foi evangelizada, isto nos inquieta, porque a ideia de Jesus
deveria ser transmitida junto com os primeiros ensinamentos. Jesus - peça-
chave do Novo Testamento (parcialmente escrito em grego), sobre quem nos
falam os quatro evangelistas (propagadores da fé), que funcionam como
narradores-testemunhas do maravilhoso mistério - já foi analisado por
vários intelectuais como Pasolini, com o seu engajado filme
"O Evangelho segundo São Mateus" (1964) onde o diretor aplica o
método de crítica marxista inspirada em Gramsci. O escritor inglês Anthony
Burgess (autor do romance filmado por Stanley Kubrick "A
Laranja Mecânica", no qual descreveu cenas onde o herói da narrativa
via-se como centurião romano chicoteando Cristo durante a flagelação)
escreveu o roteiro para o "Jesus de Nazareth" de Franco Zeffirelli
. Este filme escandalizou alguns católicos nos anos 70, quando exibiu uma
Virgem Maria sofrendo na hora do parto (a propósito: A Maria de Zeffirelli
não envelhece do nascimento à crucificação do Messias), um Cristo misterioso
e uma encenação no estilo renascentista. Já o grupo de comédia inglês Monty
Python deitou e rolou, detonou tudo que podia e, com seu humor ferino,
lançou em celulóide uma paródia à Paixão, um pastelão chamado "A
Vida de Brian", onde um homem é confundido com o Messias desde o momento
em que nasce até sua crucificação, ao lado do Senhor. A mãe de Brian é
interpretada por um comediante e a crucificação é encenada como um musical da
Broadway, talvez numa alusão ao famoso "Jesus Cristo Superstar",
musical dos anos 1970 que optou pela estética hippie para falar de
outro tipo de excluídos.
Mas é na prosa impressa que os autores fazem o
maior estardalhaço, utilizando-se às vezes da polifonia (imaginem se
Shakespeare tivesse escrito a Paixão de Cristo), e dando asas à imaginação,
como o teólogo Kazantzákis que fez Jesus descer da cruz e, conduzido por um
arcanjo (meio mal intencionado...), levar uma vida "comum", casando
e tendo filhos, porém, arrependido, volta no tempo e no espaço para a
morte na cruz de onde não poderia fugir. Gore Vidal lançou o extravagante
"Ao Vivo do Calvário". Mas o ponto nevrálgico veio em 92 quando o
escritor português José Saramago (forte candidato ao Nobel de
Literatura) lançou, pela respeitada Companhia das Letras e em ortografia
vigente em Portugal, o seu "Evangelho Segundo Jesus Cristo".
Saramago nasceu em 1922, mas só começou a
escrever romances na década de 90. É autor da nova geração
portuguesa. A inspiração para escrever o seu "Evangelho..." veio
quando, passando por uma banca de revistas, leu meio apressado "O
Evangelho Segundo Jesus Cristo" numa manchete (ora, Cristo não escreveu
o Evangelho) Mais tarde, o escritor voltou à banca e não achou mais a
manchete. Impressionado, ficou martelando aquela ideia e resolveu escrever
sua versão da boa nova escrita num texto português. Uma visão ao mesmo
tempo comodista e chocante: José, pai de Cristo, é crucificado.
Os irmãos de Jesus (Tiago, Lísia, José, Judas, Lídia, Justo e Samuel) são
apresentados de maneira bem popular. Saramago é socialista convicto, dono de
um pensamento refinado. Move-se bem entre parágrafos extensos e sua
desenvoltura é exemplar diante de grandes períodos, coisa tão temida pela
mídia hoje. Há uma predominância da vírgula em relação ao ponto nos seus
textos, assunto já comentado pelo próprio autor, e que neste "Evangelho..."
marcará os "diálogos", que quase não conseguimos distinguir do
discurso do narrador. Ponto de interrogação neste texto? Nem pensar. O autor
realmente exibe um estilo, uma marca. Resta- nos a curiosidade de especular
suas fontes de pesquisa.
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Poderia ter morrido depois... Haveria tempo para
mais alguma coisa... Amanhã. Tão afetado e engraçadinho: Pobre artista. Mas
ele teve os seus minutos de fama. Será agora apenas história contada por
idiotas. Som e fúria voltam a significar nada.
Redimensionando os Mamonas Assassinas (o grupo
que acabara de alcançar o estrelato perdeu todos os seus membros num fatal
desastre aéreo), encontraremos razões universais para um acordo com a morte .
Tantos casos assim na música pop: Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix,
tão pouco tempo tiveram para desfrutar o sucesso. Vemos agora os Mamonas que inesperadamente
desaparecem e partem da mediocridade para o além . Eles, que a mídia
catapultou em velocidade pop, retornam travestidos de vítimas e sua poesia,
que muitos consideraram nociva, hoje pode ser vista por outra ótica devido ao
distanciamento. Haveria um novo Walt Whitman preso entre as ferragens? E nós,
estúpidos, nem percebíamos? E aquele visual tão colorido? Haveria ali uma
espécie vendável de Van Gogh? Ou um Eros exausto que encontrou Tanatos? Quem
sabe um novo Renato Aragão? Tudo ali: a vida parecia tão óbvia e desfrutável.
Que prazer!
Esta nossa época inconsequente que produz arte
descartável. Literatura de supermercado. Mídia pop. Videoclipe futurista. A
indústria da comunicação a produzir pessoas cada vez mais sintéticas. Sexo,
rapidez: one way. Piedade e amor ao
próximo vão perdendo cada vez mais o sentido para que se construa a grande
aldeia virtual. Morreu? É show. É notícia. O velório dos meninos é ao vivo e
cheio de detalhes melodramáticos. É sempre assim. A comoção alimenta a mídia.
Para que tanta notícia? As máscaras que representam este teatro poderiam ser
feitas de preservativos e as cortinas , quando se abrissem, exibiriam um
imenso vazio, o vazio que é a falência de uma era em que se lutou pela
dignidade humana, e agora o Brasil não tem mais direito a nada. Os poetas não
trazem esperanças. O funeral dos Mamonas
traz no bojo a estética do novo culto. São tragédias como as de Ayrton Sena e
a de Daniela Perez (que, como a dos Mamonas, aconteceram na mesma época que
havia uma sessão para que se aprovassem emendas constitucionais, por
coincidência) que nos mostram a total vulnerabilidade da glória. O assassinato
de John Lennon. Lembram? Chegaram a levantar a tese de que ele havia feito um
pacto com o demo. Pelo amor de Deus! Estamos vivendo a era da bobagem. Da
saudade da goma de mascar. Desculpem a falha técnica: o erro foi nosso.
Os Mamonas partem na sua já tão conhecida
Brasília amarela de portas abertas para sempre, numa utopia mal resolvida,
como num estapafúrdio filme tragicômico . Levam consigo o enigma da
ressurreição que faz parte de todo artista. Talvez um arqueólogo, um
escafandrista, alguém do futuro reavalie o trabalho dos rapazes e descubra
que eles tinham razão. Por enquanto lembremo-nos da cena de Hamlet com o
crânio de um bobo da corte na mão naquela peça de Shakespeare: Ri agora
Yorick! Todos nós temos um certo encontro marcado.
Não é mesmo?
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"Há uma diferença abissal entre alguém
sentir o que todos esperam que sinta e alguém não poder deixar de sentir o
que lhe é em princípio vedado", sentencia o cantor e compositor Caetano
Veloso na torre do tempo onde escreveu "Verdade Tropical", seu livro
de 524 páginas que atingiu, sem muito sucesso, as livrarias neste ano de 98.
O livro, dividido em 4 partes mais uma
"conclusão" intitulada "Vereda" (como a música
"Vereda Tropical" ou o romance de Guimarães Rosa "Grande
Sertão: Veredas"), traz o estigma barroco, dialético, exercita o
narcisismo cristão (não convicto) e se abre para uma nova visão da caretice
brasileira que rejeita o pluralismo de ideias cultuado por alguns
tropicalistas (integrantes do movimento criado pelo próprio Caetano, Gil e
outros nos anos 60). Caetano alinhava críticas à nossa cultura e tenta
açambarcar trinta anos da nossa história. Não fracassa nem triunfa no "élan"
de ajustar contas com o passado. A narrativa busca um estranhamento que
parece didático e feito para estrangeiros ou brasileiros que ignoram nossa
evolução cultural nos últimos 30 anos.
A capa do livro é verde, laranja, vermelha e
branca, sem muito contraste, parece uma coisa amassada. Na dedicatória,
encontramos o nome de David Byrne, líder do extinto grupo norte- americano Talking
Heads.
O índice onomástico reforça o que vemos em cada
página: o autor titubeia entre a modéstia e a empáfia quando o assunto é
"nossa nação falhada que devia se envergonhar de um dia ter sido chamada
país do futuro" (O país mais novo da América já que os outros foram
"descobertos" em 1492).
Existem, coisa tão comum, os erros que sabe Deus
de quem são, como "pela menos" (p-15). Mas duro mesmo de engolir é
quando Caetano aponta divisões entre "esquerda" (louva Arraes) e
"direita" (aceita o capitalismo) num jogo de digressões e elipses
estonteantes.
É um livro de anedotas também. De confidências e
análises onde se mesclam homossexualismo com inautenticidade
psicológica, ateísmo com misticismo, frieza com deslumbramento.
As louvações iniciam-se com o culto a Maria
Bethania (irmã dele), Orlando Silva (cantor que abusou da morfina
e do álcool, "mestre no mistério do som de nevoeiro da língua portuguesa
sobre a paisagem rítmica afro-ameríndia") Carmen Miranda (Ela era
"um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal"), João
Gilberto, Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e segue
encontrando até em Carlinhos Brown traços de "reafricanização
e neopopização"; João Cabral de Melo Neto ("diante
dele tudo parece derramado e desnecessário"), Jorge Luis Borges
(que Caetano segue no que se trata de "influenciar precursores" ou
"inventar uma tradição"), Clarice Lispector (com quem mantinha
comunicação e ficou surpreso quando a encontrou pessoalmente. "Rapaz, eu
sou Clarice Lispector"). Sobre outros, nosso escritor é mais reticente: Janis
Joplin era "fatalmente mestiça, fatalmente comprometida". Paulo
Freire, "católico de esquerda que fazia propaganda política
camuflada de educação" (página 304).
Ciúme, raiva, exigência de exclusividade,
capricho: tudo isso é Caetano, querendo estar à altura do seu mito, que se
torna mais real quando narrado, revivido, sugerindo assim que se extrai dali
uma lição diferente. Para ele, a Bahia não é Nordeste (repete isso várias
vezes) e a inveja é saudável ("de Gil, de Dedé, etc").
Caetano é aquele que quer ter "pessoas
admiradas e gratas" pelo saber que ele tem (página 92).
Sua análise do cinema brasileiro é familiar. São
amigos: Glauber, Sganzerla e Bressane, "Terra em
Transe" mudou sua vida (embora ele critique que lhe falte clareza).
Os tropicalistas eram tidos como alienados
pela esquerda. E pelo narcisismo de Caetano podemos perceber alguma causa.
"Ditadura eu rejeitava. O proletariado não me parecia propriamente
estimulante. Operários não podiam, ou não deviam decidir quanto ao futuro da
minha vida" (página 116)
O Tropicalismo (rótulo que Caetano encontrou para
sua entrada na História, este mondrongo que nos dá sentido) foi um
negócio. Mercado, marketing. E encontrou apoio literário, já citado, do concretismo
("uma panelinha"). Um individualismo feroz, rasteiro e agressivo em
busca de comunhão, parece guiar os artifícios de Veloso. Ele fala da sua
"vocação para o estrelato" e diz saber como aproveitar "a luz
intensa sobre nós". Sua linguagem é repetitiva e sua imaginação
acelerada. Sutilezas e variações de tom funcionam como epítetos (palavras que
identificam pessoas ou coisas) fugazes de sua "hipersensibilidade"
.
O leitor fica ao mesmo tempo perto e longe do
coração selvagem deste estranho narrador que evita as fendas das ironias
decalcadas do seu fantasioso mundo onde afirmação, justiça e modernização
assumem perspectivas próprias alternando dor, delícia e ridículo numa visão
algo cubista. Mesmo quando o assunto é fofoca: Chico Buarque
inventou que Caetano estava internado num hospício em São Paulo e que quando
Bethânia entrou no quarto dele, ele gritou: "Sai carcará, sai
carcará!". Elis Regina disse que Nara Leão só era cantora
porque desrespeitava as forças armadas e Nara recusava-se a se apresentar ao
lado de Elis. No dia da gravação da música "Baby" (co-autoria não
creditada de Bethânia), Caetano (o autor) e Gal Costa (intérprete)
encontraram-se com o compositor esquerdista Geraldo Vandré que, ao
ouvir a canção, disse :"isso é uma merda" . Virou escândalo.
Caetano deixou de falar com ele.
Nacionalóide? Afeminado? Inusitado? Doce?
"Homem- vinho"? (como sugeriu Rita Lee) Parcial? Antigo?
Caetano supera tudo isso: "A arte é terrível, é difícil, não se pode
passar incólume por Velásquez, Mozart ou por Dante."
Porém, artistas como Francis Hime e Edu Lobo engrossavam o coro dos
indiferentes ao tropicalismo (dos
baianos), calando o que não podia ser dito. Realismo desencantado: a
tropicália enfiou-se nos livros didáticos de literatura e associou-se ao
concretismo e às vanguardas em geral, numa espécie de continuação do trabalho
iniciado por Oswald de Andrade. No teatro, a peça "Roda
Viva", um texto ingênuo de Chico Buarque teve a direção de José
Celso Martinez, que também dirigiu um texto de Oswald, "O Rei da
Vela", que podemos incluir na abrangência tropicalista.
Filosófica ou antropofagicamente, nosso autor
devora sua comida e nos lança visões estrangeiras sobre o Brasil: nossa
"antropofagia cultural" seria um sintoma de nossa doença congênita
de não- filiação, de ausência do pai, de falta de um significante nacional
brasileiro. "Brazil is hopeless", disse a poeta americana Elizabeth
Bishop. "Um país incompetente". Aprendemos ainda com Caetano que "a
língua inglesa tem sonoridade antes canina que humana" (p-254). Há
uma espécie de masoquismo em Caetano.
"Até hoje ninguém se sente à vontade para
dizer que ele era veado", escreve referindo-se,
sem cerimônia ao escritor paulista Mário de Andrade. O tema do
homossexualismo é retomado várias vezes no livro, quer seja quando o autor
fala de sua relação com Chico Buarque ou com o compositor Toquinho, sem
contar as várias páginas no final do livro.
Caetano cria frases exuberantes: "Sempre
cri numa espécie de organicidade da assimilação da informação" (p-275)
ou "Deus está solto". Seu livro (escrito de 1995 a 1997) é
uma "labareda de significados cambiantes" e o que ele fala
sobre outros poderíamos falar igualmente sobre ele: "Uma mulher, um
macaco, um bailarino, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce
camarada". Um homem que sofreu humilhações e esnobismo cultural, foi
expulso do seu próprio país e exilou-se em Londres por dois anos. As análises
que ele faz neste "Verdade Tropical" têm um pouco da crítica
freudiana. Por exemplo, ao referir-se à composição "Coração
Materno" (aquela em que a amante pede ao namorado que arranque o coração
da mãe dele e lhe traga, o que o rapaz fez imediatamente, na volta caiu do
cavalo e o coração da mãe, à distância, disse: "Vem buscar- me, que
ainda sou teu"), Veloso diz que vê ali: "a revelação do impulso
matricida, a necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor
materno sufocante". Seria uma abordagem "típica das massas
brasileiras, da própria natureza de toda cultura popular". Sobre o
cristianismo, ele diz que "a Era do Filho dará lugar à Era do
Espírito Santo" e que " a inexistência de Deus é apenas um
dos aspectos de sua existência".
Nosso autor nunca daria a vida por um ideal político,
assim era o tropicalismo. A impressão que temos é de uma época de descobertas
e, paradoxalmente, reafirmações (dos ideais modernistas de liberdade). O
ventre do monstro ou o coração do mal seria a prisão e mesmo lá nosso herói
escreveu a famosa canção "Irene ri" (um palíndromo, experimente ler
de trás para frente). Ao sair da cadeia concluiu: "O sofrimento não
serve para absolutamente nada".
Caetano ficou feliz quando uma pessoa de Nova
York lhe pediu que escrevesse um livro "para valorizar e situar a
experiência da Música Popular Brasileira em termos mundiais".
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Engenharia rima com poesia (publicado em 8.6.97). Artigo.
Se estivesse vivo Joaquim Cardozo, o poeta, de
engenharia calculista, recifense, estaria completando 100 anos em agosto de
97. Mesmo tendo estreado na literatura aos 50 anos tem uma obra variada. Na
poesia, dominava o ritmo com rigor. Místico ou não , namorou com o Cosmo de
maneira admirável . É uma pena que os livros didáticos não dediquem algumas
páginas a um estudo da obra deste autor.
Joaquim era discreto. Sua poesia desnorteante
ambientava-se muitas vezes nas paisagens secas e agressivas. Um cantar
solidário. Transfigurando a amargura e a injustiça sofrida no Nordeste, nele
a estilização da cultura popular não soa como aqueles malditos sotaques das
novelas que abordam o Nordeste. Neste resgate da nossa riqueza cultural como
fonte de salvação ou danação, Joaquim é como uma lufada de esperança soprando
sobre a miséria e o esquecimento. Cada verso seu é como um bálsamo, ou reacender
a lâmpada que alivia esta escuridão que se abate sobre nós e se irmana com a
morte. Uma represa no decurso do tempo para mostrar que um povo não perde
suas raízes culturais numa queda.
Faz- se necessário o melhor uso dos nossos
valores literários. Jogados num canto nossos autores apenas sobrevivem.
Através da nossa literatura poderemos resgatar nossa auto- estima livrando-a
do caos e do ridículo estereótipo que nos impuseram.
Joaquim exibe a valentia, não de cangaceiro, que
só era forte em bando, mas de um profeta cercado de ironias. Sua poesia e seu
teatro são o espelho, não pelo apelo ao folclore, mas pelo quilate de suas
alegorias "como variação do cenário vivo", algo que nos liberta da
hesitação e passividade imposta pela fantasia burguesa, este maldito prego do
destino que nos crucifica.
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Conto de Natal (Publicado
no Jornal do Commercio de 25.12.97)
Dezembro sempre foi um mês estranho para mim.
Acabam as aulas e o professor de literatura vai embora. Chega o viajante.
Decidi aceitar um convite de amigos que moram em
Fernando de Noronha para visitar a Ilha.
O barco deles atracado no Recife partiria pouco
antes do natal de 96. Eu estava cansado da falta de confiança imposta pelo
meu amor e vivia minha temporada no Inferno.
A travessia num barco pequeno não foi uma boa
opção e o álcool mostrou- se um terrível companheiro. Na Ilha andei muito com
meus amigos. Noites e dias. Tédio e êxtase.
Sozinho, lia Fernando Pessoa e Rimbaud.
Lembrava de Clarice Lispector e encarava friamente a divindade.
Foi na Vila dos Remédios que encontrei meu novo
amor.
Não. Não é tão simples assim aos trinta e cinco
anos, sentir novamente a sensação de estar perdidamente apaixonado por outra
pessoa em tão pouco tempo e, em menos de uma semana, ter de desistir desta
paixão desesperada.
Dançamos agarrados. Amor em cima dos barcos,
pedras, areia, camas, no mar, ao amanhecer. Beijos tantos de os lábios
adormecerem felizes de loucura.
À noite, pisávamos nas luzes das estrelas
refletidas na areia molhada da praia.
Um delírio de cheiro de corpo e alma que grudaram
no meu corpo. Há algo estranho nos professores de Literatura em começo de
férias: Gregórios sussurram Bandeiras e Andrades.
Na memória tonitruante latejam- me ainda aqueles
dias de paixão tão intensa que me eclipsou e espantou antigos fantasmas.
Terminou de maneira violenta: Ela tinha se
tratado de um câncer. Isso fazia-a humilhar os outros mais facilmente.
O abismo delicioso que a nossa relação nos
proporcionou foi fecundo e nossa despedida cheia de reticências.
Agora que nos aproximamos novamente do Natal e do
Fim do Ano, reacendem- se antigos beijos, realçam- se novos ideais. Aqui
estamos com as passagens nas mãos e bagagem (lançamentos e roupas inéditas)
pronta. Neva mais nos meus cabelos do que sobre a árvore de natal.
Estou sorrindo ao me despedir de 1997. Nem
intelectual, nem sentimental: O professor abraça o seu amor e vive os
temas essenciais da vida com o corpo todo. Sai no seu delírio
construído de matéria crua. Há nele algo de selvagem: É o que o salva.
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(Spielberg e o Parque dos Dinossauros)
Mais uma vez o homem do "Tubarão" e dos
"Contatos Imediatos do Terceiro Grau", o americano Steven
Spielberg, oferece-nos uma joia do rosário hollywoodiano: "O Parque
dos Dinossauros" (Jurassic Park,
Estados Unidos, 1993) em cartaz no Recife desde Junho. Um thriller onde não
faltam trocadilhos daquele tipo que às vezes vêm acompanhados de um
"desculpe, não pude evitar".
O que você pensaria se visse um dinossauro (ou
seja lá que "sauro" for...) abrindo a porta de uma cozinha ( usando
o trinco , lógico) e perseguindo duas criancinhas americanas ? Você acha que
isso dá samba? Pode ser o samba do crioulo doido ou então virar tese da
famosa crítica norte- americana Camille Paglia (com suas análises do American
way of life).
Spielberg remexe o inconsciente
coletivo, levando emoção às "múmias" do mundo moderno: Um
apimentado recheio que agrada do primeiro ao último mundo, usando para isso
uma história meio sem pé nem cabeça, onde cientistas geram dinossauros a
partir de uma informação genética contida no fóssil de um mosquito (que teria
sugado um big dinossauro). Se faltam informações adequadas? Não é problema. O
autor do livro que inspirou o filme, Michael Crichton, dá a dica:
Misture tudo com algo do DNA das rãs. Mas, para tornar as coisas mais
convincentes (não que isso seja necessário), acrescente histórias sobre
animais africanos que se transexualizam, sendo capaz até de auto-
reprodução e a raça dos nossos ancestrais (quer dizer, contraparentes) já
pode se reproduzir e infernizar as telas do planeta com seus gritos e sua
falta de modos.
Os atores parecem realmente títeres nas mãos de
Spielberg, que tem o dom de transformá-los em coisas tão insípidas quanto
seus bichinhos, em sua maioria frutos do computador (efeitos gráficos
barateiam a milionária produção). Destaque especial para a antipatia natural
de Laura Dern e Sam Neill- o casal de retardados arqueólogos
que, fazendo as vezes de heróis , num roteiro que desperdiça talentos
como o de Jeff " a mosca" Goldblum (participação
mínima no filme) e transforma tudo num Big-Mac requentado
ao modo spielberguiano.
As auto-citações, cada dia mais comuns no fazer
cinematográfico americano , remetem- nos a: "Gremlins" -
"bichinhos" que perseguem um dos vilões do filme , o gordinho que
rouba os frascos do laboratório, abrindo as cercas para os dinos baterem
pernas ; "Tubarão" - a dupla de monstros na cozinha com as
crianças, as cenas na floresta e mais uma dezena de sustos e violência
estilizada/ pasteurizada; "Contatos Imediatos do Terceiro Grau"
- as luzes do Parque, alguns ângulos e tomadas inteiras , que nos fazem
pensar que o diretor sem Ter como renovar seus truques, resolveu fazer
sucesso a qualquer custo compilando antigos êxitos, como por exemplo o bucolismo
fantástico de "ET"- no Vale dos Dinossauros "
bonzinhos", herbívoros, que pegam gripe (!) de tão "humanos"
que são.
O humor negro também se apresenta de maneira
óbvia: Um garotinho conta "Um, dois..." e leva um choque elétrico
mortal (suspense), entra em coma e morre. Ressuscita, olha para a turma e
diz: "Três!". É mole? Então engula mais um clichê: Imagine o
personagem interpretado por Sam Neil depois de ser quase trucidado com
todo o seu grupo e passar por diversas torturas sob a fúria do s monstros e
outros nonsenses do filme, vira- se par o chefe do Parque e diz:
"Acho que não vamos endossar seu parque".
Até que ponto uma plateia aguenta o absurdo de um
texto? Autores como Pirandello, Antonin Artaud, Ionesco e tantos
outros já levaram à cena dramas cruciais, onde tramas absurdas eram
alinhavadas pela lógica da volúpia dos sentidos e encenadas com imagens
convincentes. Mas o que Spielberg propõe mais parece um daqueles comerciais
sórdidos que tentam salvar sua vida ou fazer você "matar o tempo",
oferecendo um tipo mágico de papel higiênico. Mas é arte e homens ocos,
mulheres gordas e as crianças que empipocadas, refrigeram-se adocicadas,
estão ávidos de coisas assim para fazer sua catarse.
Os críticos tupiniquins não ousaram levantar uma
nota dissonante que fosse contra a parafernália promocional que envolve
"Jurassic Park" ou sobre o verdadeiro conteúdo dessa geringonça sensacionalista que eu
chamo carinhosamente de "o efeito dinossauro", onde a manipulação
através da mídia atinge um grau periclitante, quando pensamos que qualquer
coisa pode ser empurrada goela abaixo da população do planeta como se fosse
um suco de fruta.
PARTE II
O poema
épico e as diferenças de gênero da poesia
"Os homens modernos, ao contrário dos homens
do mundo antigo, separam-se com suas finalidades e relações 'pessoais', das
finalidades da totalidade: aquilo que o indivíduo faz com suas próprias
forças o faz só para si e é por isso que ele responde apenas pelo seu próprio
agir e não pelos atos da totalidade substancial à qual pertence"
(Lukács).
Posicionar-se criticamente diante de
certas obras é desafio constante dos professores, críticos e também do leitor
comum. Épica, dramática ou lírica a fantasia criativa é enigma de quase
impossível compreensão absoluta. O espírito do autor divide-se entre as
regras e ruptura, estando a liberdade criativa quase sempre sendo colocada em
cotejo com a arquitextualidade e sob a observação de severas (e às vezes
superáveis) teorias de cunho imobilista ou talvez discricionário. A obra
epopeica dos antigos, por exemplo, tem sido alvo de inúmeros estudos, assim
como a poesia sentimental dos românticos em seus variados vieses. Mas teriam
a estrutura e a forma do poema épico sido vasculhadas à exaustão? Nunca um
tópico assim poderia se esgotar em suas possibilidades de interpretação e
representatividade. Hegel, no início do século XIX, analisou ações e
circunstâncias que envolvem uma nação e uma época ali retratadas
artisticamente: o espírito nacional, a organização das instituições, do mesmo
modo que Schiller tratou de comentar a poesia ingênua e sentimental. Não é só
o conteúdo, mas também a visão de mundo
ali inscrita (que estampa a esfera
na qual tais obras se movimentam)
que merecem especial atenção destes autores (que se debruçam no estudo de
vários poemas).
Alguns críticos apontam diferenças quanto aos
termos: a palavra épica seria
utilizada enquanto gênero narrativo, já epopeia seria o poema
heróico, pertencente ao gênero
épico (aqui seriam incluídos também o romance, o conto e a novela que mesmo
não sendo epopeias tiveram ali sua origem).
Ao tratar da filosofia em relação à
épica, Hegel nota que o poema épico transcende a simples glorificação de um
povo no seu apogeu. É mais o contato
do homem com o universo (circunscrito) o que parece ser ressaltado. Uma
compreensão do Cosmos.
A poesia, presente em todas as
civilizações, tem conteúdo espiritual e trata de acontecimentos, sentimentos,
ações e paixões. Sua matéria é a linguagem. Para Hegel o que importa, além da
estrutura da poética, é a análise dialética (tanto na épica quanto na lírica)
no que trata da relação entre vida social e poesia. Observando a arte enquanto fenômeno histórico, surgem as figuras
(espiritualidade e idealidade) e o pathos (no destino). Entendendo
arte enquanto: clássica, simbólica e romântica, e tratando-a como a exterioridade sensível captada pela
intuição, como interioridade, Hegel analisa através da filosofia (na medida
em que esta intersecciona a objetividade da arte e a subjetividade da
religião, agenciadas pela intuição e aponta a matéria espiritual como
necessária para o filosofar, numa
superioridade do espírito em relação à natureza) e coloca da liberdade do espírito
(ligada ao conceito de belo, de
ideal) em cotejo com a harmonia do belo
(ideal) e a tensão (do destino). Surge a contradição: a beleza artística,
feita para e pelo homem é contraposta à natural. Hegel aponta alguma
superioridade do belo artístico, na medida em que no natural, a natureza está
em nível de não-liberdade. Nas
contradições próprias da vida (entre liberdade e necessidade) gerar-se-ia
o belo na arte (resultado do
trabalho espiritual). A obra de arte se mostrando livre, superaria assim a natureza
(inclusive a morte) podendo conservar (ou não) o sensível ou o natural, em
evolução para o espiritual (não sensível). Nesta idealização (não-perfeita)
do sensível através da arte simbólica (ainda pré-arte, por sua aproximação com o natural), haveria também a tentativa de representar a totalidade
da vida, do mundo (e o anseio por símbolos da totalidade, haveria também o
excesso da matéria e escassez de elemento espiritual). A passagem para uma
forma clássica implicaria na harmonia (entre forma e conteúdo), aí a epopeia
seria a manifestação estética de individualidade (ética).
II
Mantendo-se
no centro do pensamento a poesia capta a universalidade espiritual quando
busca a unidade interior de tudo, mas deve fazê-lo com soltura e uma aparente
autonomia (diante do pensamento do outro, da aparição, da existência
natural), na medida em que no seu fluxo o conteúdo espiritual conquista uma
existência exterior. E qual seria a subsistência material deste “modo de
exteriorização”? Tem-se, por exemplo, o conceito de sonoridade nela (na
poesia) exercitado, (as letras impressas estando como signos).
Buscaremos agora traçar um paralelo
entre o épico / a poesia sentimental e ingênua. Usando, como base a estética
de Hegel (no que trata do épico) e as observações de Schiller (no seu ensaio Poesia Ingênua e Sentimental).
Nos textos dos rapsodos (que às vezes
cantavam de cor, mecanicamente, em
única medida de verso um acontecimento “acabado em si mesmo”) controlava-se a
autoexpressão do sujeito e instalava-se para o leitor a ação em sua luta e
desenlace. O homem vivo era, ali, ele mesmo o material desta
exteriorização nesta música plástica (da posição corporal e do movimento), o Epos, (a
palavra, o discurso) transformava até mesmo a lenda em palavra (exibindo seu
conteúdo substancial em direção à
consciência, de quem o lê) e a extraía do acontecimento o caráter
universal, apontando pontos particulares. A epopeia mais simples
ressaltava o mundo concreto e a riqueza dos fenômenos mutáveis, como nos
antigos epigramas, inscrições em objetos e monumentos.
A epopeia foi se aprimorando e
eliminando a duplicidade dos objetos, incluindo enunciados éticos, apontando
deveres na existência humana, a sabedoria, intuição do vínculo sustentado.
Mas isso tudo, mesmo se dando sem a finalidade da comoção, ainda não é o
épico no sentido mais clássico, como abordado por Hegel, um todo maior, a
espécie épica que queremos discutir, contrapondo-a ao lirismo sentimental. Um
estreito entrelaçamento de poesia e efetividade foi conseguido nos poemas
didático-filosóficos (em Parmênides, por exemplo), ao tratar do transitório e
do eterno, com certa grandiosidade e potência.
Já a poesia indiana, no que trata da
cosmogonia perder-se-ia em divagações, que deveriam ser evitadas na poesia
épica. O luxo, a glória, a inverdade fantástica, a confusão que permeiam as
epopeias indianas, mitologia exposta epicamente em grande parte, faz do
registro uma ponte entre o religioso e o poético, mas mesmo na sua graça
impressionante este oscilar entre o humano e o divino, os episódios que
parecem acrescentados posteriormente, tudo isto parece mais querer ensinar
a moral e a prudência que exibir o caráter nacional de um povo.
Também nos judeus (o Antigo Testamento) predomina algo que difere do caráter
épico: o interesse em si religioso.
Entre os persas e os árabes, mesmo antes do período maometano, as obras não
apresentam o tom épico que Hegel consideraria adequado, falta-lhes a firmeza
da configuração individual, o sopro da vitalidade imediata, necessários à grande epopeia nacional, a articulação e a unidade estão soltas, não tratam da seriedade do
destino de modo contundente como Homero o fez.
No que vimos até agora, o tom épico não
implica na epopeia em toda a sua amplitude, na sua conexão como o mundo. Na objetividade
em relação ao espírito de um povo em sua totalidade (religião, existência,
política, lar, carências e satisfação), na presença viva do seu espírito. O
que é exposto na epopeia, em objetividade real, é a sequência exterior. Surge
ali, acabado poeticamente, um todo em si mesmo orgânico, em calma objetiva, a
consciência de um povo, e não um livro religioso, que falta aos gregos, por
exemplo. Um povo que já construiu sua
própria cultura seria representado (na épica) através da literatura que não
se deteria na ocupação com o interior do indivíduo e sim desvendaria circunstâncias exteriores, extrapolando a simples
nacionalidade poética e atingindo a consciência representadora cheia de
vitalidade própria, fruto de grandes revoluções.
Os gregos superaram influências, como
as egípcias e da Ásia Menor, os romanos tiveram que lidar com a herança
grega, mas a poesia épica só se realizou em plenitude na consciência da força
de um povo e através de um só indivíduo: o poeta (que produz o texto
“coletivo”) que expressou sua necessidade mais elevada, a honra, os feitos, o
modo de ser da sua gente, desaparecendo dentro do seu “objeto”, e isso não
significa dispensar seu estilo pessoal. Não é o mundo interior do sujeito que
é poetizado e sim as questões fundamentais que envolvem sua produção
espiritual, consciência e autoconsciência efetivas e singulares, dentro do
estado nacional.
O mundo universal apresenta-se, na
epopeia, através de um acontecimento, em determinada época (mesmo que se
invoquem outros períodos e outros planos). Através do épico surge assim uma
nação inteira, sem a subjetividade excessiva dos indivíduos nem tão pouco ir
de encontro à paixão e ao modo de pensar individuais. Afastando-se do
idílico, ainda sustenta uma conexão viva com a natureza, mas não se detém
muito nestas cenas e até em coisas mais simples, por exemplo: em tais poemas
os heróis não se esquivam de tarefas como preparar comida, servir vinho, e as
executam com prazer. São apresentadas também as vidas dos subordinados e
representações de outros povos.
Quanto a outros autores, Hegel aponta
os anjos e demônios em a Divina Comédia
como fora da objetividade alcançada por Homero. Neste, o lado natural se
funde ao espiritual para executar fins práticos, faltaria também no texto de
Dante a fundamental guerra entre nações estrangeiras, como há em Camões.
Hegel faz o elogio a Tasso em seu Jerusalém
libertada: a unidade, o desdobramento, o acabamento, mas ressalta que lhe
falta a “originalidade” que o colocaria como livro fundamental de toda uma
nação. Quanta a Os Lusíadas, apesar
do patriotismo, da unidade epicamente acabada, vitalidade das descrições,
faz-se sentir uma cisão entre o objeto nacional e a uma formação artística
emprestada dos antigos. Já no Cid
(1140), o amor o casamento, o orgulho familiar, o domínio dos reis, o
conteúdo elevado, as cenas humanas em desdobramentos de dias gloriosos, fazem
de poema um exemplo do que há de mais belo, num único todo, em relação à
poesia épica.
A objetividade épica não significa
mero descritivismo. O acontecimento se dá no entrecruzamento do lado interior
com a realidade exterior, do mundo natural e espiritual, é aí que o mundo da
vontade é apreendido. A ação, mesmo
reconduzida ao caráter interior, não impede o lado exterior de adquirir o seu
direito indiviso. O acontecer da ação na natureza concreta chegaria assim à
vitalidade poética expressa pelo autor épico que também de forma única, elege
o seu herói. O próprio acontecimento também exige unidade e não o
despedaçamento em situações isoladas ou exibição de fantasia como vivência
(introduzindo na obra objetiva mais do que é permitido).
Seria interessante
lembrar que no Brasil houve algumas produções de épicos ainda no período
colonial, esvaziadas no que se trata das noções básicas que sustentam o nacionalismo
exposto nas propostas de uma epopeia tradicional. O Uraguai (1769), de Basílio da Gama usa o Tratado de
Madri como leitmotiv e critica os jesuítas, na sua resistência aos
portugueses. Exalta o General Gomes Freire de Andrade (líder das tropas de
Portugal) e Catâneo (chefe das
tropas da Espanha). Há as personagens brasileiras como Cacambo (chefe indígena) e Cepé (guerreiro índio), mas nada que
justifique a glória do povo brasileiro, representada por seus heróis. Além do
mais o feito era muito recente para que sobre ele fosse traçado uma
perspectiva épica. A pobreza
temática é gritante e o modelo camoniano (dez cantos) é substituído por
cinco, em versos brancos. Já o poema épico Caramuru (1781), do Frei José de Santa
Rita Durão, que segue o modelo camoniano, também não seria exemplo das
glórias (dignas de uma epopeia) brasileiras, narra as façanhas do português
Diogo Álvares Correia, que naufragou na costa da Bahia, no século XVI e teria
vivido entre os índios. Seu interesse por Paraguaçu, filha de um dos caciques
locais, o leva ao matrimônio. Eles embarcam num navio francês, rumo à Europa.
Em Homero a recordação e a fala
traduziriam também verdade e realidade
poética interiores. O sofrimento dos indivíduos, o acontecer da ação, tudo se move diante do leitor. A epopeia
apresenta “homens totais” em suas qualidades humanas e nacionais. Indivíduos que reúnem o que poderia ficar
disperso em relação ao caráter da nação.
A beleza, a grandiosidade, a liberdade que estes indivíduos
apresentam, unem-se à sua coragem diante do destino dos acontecimentos. “A
epopeia não tem de descrever uma ação como ação, e sim como um
acontecimento”, ensina Hegel (2004, p. 115) e o destino é feito no agir conjunto de potências,
nos eventos. Deuses e homens em Homero, por exemplo, têm, na relação poética,
uma autonomia recíproca (nem os deuses são rebaixados à abstração nem os
mortais a meros servos obedientes. Sobre os primeiros paira, no dizer de
Hegel (p. 119), uma “luz mágica entre a poesia e a efetividade”.
Ainda segundo Hegel (p. 123) na
poesia lírica a forma do interior “exclui de si a ampla intuitibilidade da realidade exterior”, já na poesia épica a
“efetividade nacional abrangente, sobre a qual a nação se baseia, igualmente
conquistam um lugar o interior bem como o exterior” (p. 123). Em amplitude de
conteúdo e forma, diferente da poesia sentimental que concentra tudo o que
“apreende na intimidade de sentimento ou dilui na universalidade concentrada
da reflexão (p. 121), no épico a existência independe dos lados particulares e volta-se para o exterior
(lado a lado: o caráter e a necessidade exterior, com a mesma força). Hegel cita como exemplo de sobriedade épica os discursos de Aquiles (por Patroclo) e o de Hécuba (por Heitor) dentro da Ilíada, comoventes não só pelo
lírico embutido mas principalmente
pelo seu modo épico.
A
épica estaria ligada a épocas originárias de uma nação enquanto a lírica pode
ser produzida em todos os períodos do desenvolvimento. Um mero acontecimento,
uma ação, quando narrada epicamente assume a forma de um evento, diferente do
idílio onde o homem é exposto em sua inocência, ou ainda no romance burguês
do início do século XIX no seu conflito entre a poesia do coração, a “prosa
oposta das relações” e a contingência de circunstâncias externas.
III
Na subjetividade do criar e do
configurar espirituais, a exteriorização de si da poesia lírica, nota-se um
afastamento da coisalidade da arte
épica. “O domínio cego da paixão reside na sua unidade turva destituída de
consciência com o ânimo inteiro”, sugere Hegel (p. 156). Este objetivar-se
primeiro do coração se abre para a expressão de si mesmo, é a tarefa da
poesia lírica e sua diferença em relação à épica, que tem a necessidade de
ouvir a coisa (sache): destacar o
objeto. Na lírica o conteúdo não é o
desenvolvimento de uma ação objetiva em sua conexão com o reino mundano. O
sujeito singular singulariza a situação, em seu juízo subjetivo e mesmo no
que tange à expressão da vida nacional, o poema lírico se limita a uma certa
visão particular. A essencialidade
nesta poesia lírica se faz mais profunda e o sujeito que se expressa torna-se
ele mesmo, também, conteúdo e o todo começa pelo coração do poeta. Deve-se
destacar aqui que se a epopeia se utiliza de passagens líricas, o contrário
também não é improvável. O que não
significa que na lírica o foco seja a descrição e a ilustração do
acontecimento real. O poeta lírico ao expressar sua melancolia, serenidade ou
até o fervor patriótico, não faz do evento o ponto central, e sim como isto
se reflete no seu ser (conteúdo
épico, tratamento lírico). Ele
utiliza-se da situação para expressar a si mesmo, seu interior (subjetivo).
Não é a coletividade e sim o sujeito que se mostra em sua paixão particular,
em pleno arbítrio do desejo e do prazer, originalidade, o conteúdo do seu
peito humano onde lateja a arte em busca de expressão plena, peculiar. A
lírica autêntica não se obriga a ter os acontecimentos exteriores como ponto
de partida, ao contrário: busca em si o estímulo e o conteúdo, ao passo que ao
poeta épico serve de conteúdo o herói estranho, seus feitos e acontecimentos.
No que trata da poesia popular, Hegel ressalta que aí “não é um indivíduo
singular que se torna conhecível (...) e sim um sentimento popular” (p. 169)
que ele traz em si. Tal “frescor destituído de reflexão” pode até apresentar
a “selvageria” das “nações semi-rudes”, o trivial, o horrível. Daí a
expressão total do espírito não poder ficar preso ao conteúdo, ou modo de
expressão das canções populares. Deve
ao contrário expressar o máximo que o feito humano é capaz de abordar em
si enquanto expressão do seu espírito
(numa posição mais elevada) e ser capaz de levar à autoconsciência
livre, ao pensamento filosófico, à
abstração, com clareza, sistematicamente, como às vezes o faz
Schiller, ocultando explicações
didáticas também.
O poeta lírico empresta palavras ao
seu interior e pode até se colocar no lugar do seu herói, mas o que vai se
destacar, ainda aí, é a representação de si mesmo, enquanto na poesia épica o
sujeito se introduz no objetivo (e não no sentimento) por meio do
detalhamento de descrição, da situação exterior, utilizando-se de episódios
(que se encaixam no conceito de totalidade) que não surgem em
transições repentinas, representações particulares, singularização livre, e o poeta deixa o objeto apoderar-se da
alma.
Em relação à lírica, Schiller aponta
a poesia ingênua (como a grega antiga), e a do poeta moderno (sentimental)
que Schiller representava. Tal integração
com a natureza representaria o que havia de mais caro, a perfeição,
enquanto o sentimental (Schiller) procuraria
essa natureza. Mas há de se levar em conta que os gregos estavam cercados de
um ambiente privilegiado, uma arte idealizadora, uma “idealidade perfeita”
(que vigorava nesta poesia). Diante do peso desta antiguidade clássica da
Grécia, Schiller, em parte, elaborou o seu ideal, não como cópia, mas
traçando uma peculiar analogia. Demarcando espaço para o que chamou de
modernidade literária (um cotejo com o ideal grego, onde latejava a unicidade
com a natureza). Em Schiller, havendo
a reflexão, o sentimento da natureza, há também o espelho revitalizado do
homem uno consigo mesmo almejando a felicidade no sentimento de ser humano: Sentir naturalmente (os
gregos), sentir o natural (Schiller). O desaparecimento de tal natureza como
experiência é recompensada pelo seu ressurgimento no mundo poético (como
objeto e como ideal) e os poetas seriam
seus guardiões, vingadores, testemunhas. Os sentimentais voltam assim à natureza pelo caminho
da liberdade e da razão. Schiller, em relação à poesia grega antiga, salienta
as condições do período e tenta produzir no seu próprio tempo a harmonia em
si mesmo (enquanto poeta). Numa Alemanha, ainda não unificada, ele lê os gregos e reflete. No seu íntimo
o poeta traça, enquanto sentimental, um panorama distanciado daquele das
conquistas pela guerra ultramarina, como na Ilíada. O mundo universaliza-se no ser diante da própria
felicidade de uma alma livre que se integra à natureza para fortalecer-se na
dignidade, no princípio ético e moral.
Diante do homem, para Schiller,
estariam as opções: enfurecer-se contra a malícia ou rir dos acasos e confusões mundanas. À inocência
perdida na infância, ele não propõe um retorno ao que é infantil e sim uma
sobriedade adulta de retomada da integração (com a natureza) cheia de força e
vigor (como se dá com as belezas naturais) como os gregos fizeram.
A poesia schilleriana propõe-se como
sentimental, mas não como uma degeneração do classicismo. Registra a perda da
harmonia com a natureza, que o homem (moral) ainda teria (ou deveria ter)
como modelo de felicidade diante de alguns males da cultura (que traz no bojo
o afastamento do que seria “natural”). Propõe
que o poeta encontre, ao
contrário do épico, dentro de si a
saída.
A remissão ao modelo de representação
dos artigos gregos se dá na ânsia por felicidade e liberdade (perdida).
Schiller apresenta nostalgia da antiga perfeição (natureza como superior à
arte, à mímesis) e propõe uma poesia que parecesse brotar da própria natureza.
O autor, cheio deste ideal sublime (de unidade perdida) se reencontraria na
poesia sem artifícios e proporia à cultura uma retomada da integração com as
forças naturais. O poeta moderno, então, se recuperaria do doentio
afastamento, e, tentaria “ser” (plenamente), guiando os outros,
proporcionando, de certo modo, o ambiente idílico (diferente do épico),
através da expressão do que há de mais sublime e atemporal.
No poema épico grego os homens são
representados como rígidos (diante até das divindades tornadas conhecidas).
Aparam-se as arestas entre o espírito e o corpo (físico), e a ação é sugerida
enquanto traje bem talhado da alma.
Coagula-se em “aço purpúreo o sangue que lhes brota”, forja-se em
“couraça, para que suas feridas permaneçam eternamente ocultas e seus gestos
de heroísmo tornem-se o paradigma do verdadeiro e futuro heroísmo”, como
sugere LUKÁCS (2000, p. 27).
Este fantasma da cultura grega vem atravessando milênios e superando
em intensidade tantas outras obras de vários povos (sugere Hegel), em
inversão de topografia transcendental, a tratar do amor, família, Estado. E
dentro desta poesia épica bem elaborada está também o afastamento dos
abismos, um mundo acabado e perfeito. Enquanto outros autores, através do
tempo, segundo o mesmo Lukács, tiveram de “cavar abismos intransponíveis
entre o conhecer e o fazer, entre a alma e a estrutura, entre o eu e o mundo,
e permitir que na outra margem do abismo, toda a substancialidade se
dissipasse em reflexão” (p. 30-31). No mundo de hoje, “infinitamente” grande
e metafisicamente maior (do que o dos gregos antigos), que suprime o sentido
de totalidade, fragmenta-se cada vez mais o elo com a natureza, enquanto
modelo (ansiado por Schiller). Platão
desmascarou o herói épico (em sua imanência à vida) e iluminou o perigo sombrio por ele vencido.
A poesia sentimental estaria enquanto
deve-ser, sob um “céu imaginário”,
teve, como sua essência, aquilo que
se elevava desse “fundo mais profundo” que ninguém pisa ou vê a base.
Buscou-se depois, através de várias épocas, um mundo “abarcável” com a vista,
onde o abismo perderia (aparentemente) o perigo das profundezas, o
incompreensível é trazido à visão (como em São Tomás). Mas a desilusão
romântica do século XVIII, seguida pelo apelo à vitalidade encontrada na
natureza, fez o poeta perceber o fim da epopeia. Surgiu em seu lugar o romance. “O romance é a epopeia de uma
era para a qual a totalidade (...) é dada de modo evidente (...) a imanência
do sentido à vida tornou-se problemática” (LUKÁCS, p. 55). A totalidade
extensiva da vida, sugerida pelos gregos (que tinha o empirismo em seu
fundamento), vai dar lugar, na poesia, à transcendência lírica, margeando o
utópico. Em Homero o transcendente
mesclava-se à existência terrena,
era imanente, o herói
estava ligado à realidade histórica e
não ao seu arquétipo, sujeito e objeto
não coincidiam. O sujeito, em contemplação muda, era o homem
comum da existência cotidiana. Já no idílio o que se vê são os
contornos de brandura, isolamento diante de tempestade.
Já a poesia dramática reuniu em si a
objetividade (da epopeia) e o princípio subjetivo (da lírica) e expôs em
presença imediata a ação em si mesma acabada, decisiva, efetiva, e expondo
colisões entre o interior dos indivíduos e o exterior, em exposição cênica.
Em cena estariam a intuição imediata, as paixões e personagens colidentes
(ações e reações) em apreensão poética enquanto expressão mediadora (dos princípios épicos e líricos)
onde o acontecimento, o atuar, o agir não se desfazem em puro lirismo (em oposição ao exterior),
mas em realização (exterior) diante de
determinadas circunstâncias cênicas (enredamento, colisões) até um desenlace (que não pode ser
meramente lírico), onde é gerada uma proposta de reflexão sobre caráter, fins particulares. O si-mesmo volitivo dos personagens torna-se (nesta poesia
dramática) exterior (“aparição exterior”) e é mostrada a ação como ação, o
caráter enquanto (o seu) agir. Deixa-se fluir o “pathos impulsionador” em
cada um dos que agem (surgindo de modo oposto, fins distintos), entrando em
conflito (existência oferecida à ação e posta em movimento), exibindo lutas e
destinos humanos, suas intrigas, oposições. E, no reconhecimento das
potências imperantes, o poeta dramático não deveria ficar simplesmente preso
à tecitura lírica, na medida em que há que se exercitar a dissolução da
unilateralidade das potências (que se autonomizam nos indivíduos). Parece
óbvio que tal autor deve ter conhecimento das técnicas e necessidades do
teatro (unidade da ação, por exemplo). “A ação dramática reside
essencialmente num agir colidente”, enfatiza Hegel, “os indivíduos
introduziram todo o seu querer e ser em seu empreendimento” (p. 208).
Ao buscar auxílio, complemento, em
várias outras artes, a representação
teatral é a execução de uma partitura e tudo deve ser bem orquestrado. A voz, o
atuar e a encenação exigem cálculo
e preparação, não é o leitor solitário (da lírica e da épica) o que o autor
teatral aguarda (simplesmente, textos
são para encenação): é um espectador. Tal autor precisa de “mãos
e gargantas estranhas” (Hegel, p. 229) dos atores, eles são como instrumentos
(utilizados pelo escritor). Às vezes estarão nos gestos o que poderia, noutro
contexto, ser descrito por palavras (em outros gêneros), o exterior sensível,
e agora são efeitos teatrais.
O modo de desdobramento da poesia
dramática se distingue da lírica e da épica.
Sua progressão, abrangência, divisão em cenas (e atos, às vezes), a
pouca utilização da descrição (fundamental na épica), a busca da naturalidade,
a dicção, enfrentam o juízo imediato do público, a presença viva deste (que
deve ser pensada na elaboração do texto). O modo de pensar é levado diante
dos olhos do consumidor (em
público). Não é a exposição dos personagens e sim a ação, que advém a partir
daí, que interessa mais. Na épica o poeta é narrador, mas no teatro, o
público exige a consumação, as atitudes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- HEGEL, G. W. F. 2004. Cursos de Estética. trad. Marco
Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, v. IV.
- SCHILLER, Friedrich. 1991. Poesia ingênua e sentimental. Trad.
Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras.
- LUKÁCS, Georg. 2000. A teoria do romance. Rio de
Janeiro: Editora 34.
Literatura em diálogo com outros estudos. Aula
ministrada no dia 14 de julho de 2006 das 14 às 16 horas para professores de
todo o Brasil reunidos no XIV Congresso da ANEB em Recife-PE.
Nossa aula /
oficina terá como finalidade comparar a literatura brasileira com outras
expressões artísticas. Daremos ênfase à literatura pernambucana ou produzida
em Pernambuco, uma poética diluída em livros, letras de música, shows,
filmes, manifestos, entrevistas e outros meios. Observaremos como foram
tratadas as problemáticas de identidade e diferença. Buscando promover um
diálogo entre estas expressões em busca de divergências e convergências.
Concluiremos
com os nossos posicionamentos sobre o Ensino da Literatura no
Ensino
Médio. Buscaremos elementos que possam ser trabalhados como formadores de
identidade e motivadores da expressão cultural. Exibiremos através de
recursos de multimídia um estudo crítico sobre o modo como a Escola vem
trabalhando a literatura e outros fenômenos culturais. Motivar os professores
e amantes da literatura a conhecê-la através de alguns exercícios dinâmicos.
Buscaremos na literatura comparada com outras mídias o eixo para discutir
como vem sendo trabalhada a questão das mudanças de padrões culturais fixos e
analisar o contexto sóciopolítico onde se encaixam as obras dos nossos
autores. Compararemos opiniões, atitudes e hábitos que cercaram o ensino da
Literatura, contextualizando tudo isto no panorama transcultural (no sentido
que é dado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz, ou seja, como processo de
hibridização cultural que implica em aculturação, desculturação e
neoculturação) e observando como foram comentadas as circunstâncias a partir
das quais surgiram as obras em questão e sob que perspectivas elas foram
transformadas em objetos de estudos. Traçaremos perspectivas para os estudos
da cultura local através da análise do imaginário / poética da abordagem dos
seus textos literários (Bandeira, João Cabral, Luzilá Gonçalves Ferreira,
Raimundo Carrero, o paraibano / pernambucano Ariano Suassuna, Osman Lins,
Gilberto Freyre, Gilvan Lemos, Josué de Castro e a questão da “invenção do
Nordeste”). Investigar esta literariedade como fruto da comunhão universal
e como reserva das mais ricas de afeto, humor e sabedoria e exercitá-la
através de exercícios práticos que os participantes da oficina poderão
reproduzir em suas salas de aula. Destacaremos a questão de certos pontos de
convergência entre a poética nordestina, a cultura e os acontecimentos
históricos. Como se dá a aceitação do Outro e a busca da
cor local. Mostrar
como a cidade do Recife foi recriada na poesia (inclusive a do Movimento Mangue, com
Chico Science nos anos 1990 do século passado).
Demonstrar
como os lugares-comuns foram reescritos, distorcidos e ressemantizados
e de que
modo(s) a reiteração dos estereótipos da linguagem ordinária pode-se integrar
no universo literário. Tentaremos redimensionar dentro do ensino da
literatura a construção de uma identidade cultural, destacando o ponto de
atrito entre a auto-atribuição de identidade, em uma perspectiva que inclui
auto-reconhecimento e alter-atribuição posterior (fornecida pelos estudos
acadêmicos) e de como podemos observar os atores sociais em questão como
resultado deste confronto entre as duas. No caso a representação dos
nordestinos nas obras de arte, especificamente a literatura e como isto é
ensinado em sala de aula.
Nossa tese é
de que há um novo modo de se trabalhar a literatura através da utilização
estratégica dos recursos que dispomos visando uma renovação ou problematização
construtiva, uma reconfiguração do próprio lugar-comum, para isso
contamos com a influência das representações simbólicas, tais como revistas,
cinema e TV. Quanto ao uso deste material procuraremos desenvolver, como já
ressaltamos, um interessante diálogo, em estratégia para construção de um
estudo que seja a tentativa, nós professores não operamos milagres
mas podemos
tentar sonhar com um movimento dinâmico.
Uso de
computador, transparências, letras de música, vídeos, trechos de adaptações
do gênero narrativo para o gênero dramático
Procedimentos:
Investigando a abordagem realizada por pesquisadores ao estudar, nestes
estudos vários aspectos dos estudos das artes o diálogo entre eles.
Nosso estudo
vai buscar respaldo na ideias de Edouard Glisant, poeta, ensaísta e
romancista que apresenta uma visão de identidade no que ele chamou de
“poética da relação”.
O respeito
pelo Diverso nos povos da América, cuja cultura é feita de vestígios,
fragmentos de outras culturas e também comparando sua insistência em afirmar
que o passado seria um dos referentes essenciais na produção cultural do
presente, seu debate com o que chamou
“tempo
esgarçado”, uma história rasurada marcada pela diversidade. Retomaremos as ideias
sobre a libertação da imagem negativa que é imposta a certas pessoas em
relação a si próprias. Também utilizaremos algumas teorias sobre Literatura
Comparada, como os que vêm sendo desenvolvidos por Sandra Nitrini, Zilah
Bernd e pelo professor Roland Walter na UFPE. Observaremos as questões de
enraizamento e não-enraizamento, do entrelugar,
do terceiro espaço e construção da identidade nas sociedades pós-coloniais,
debatidas pelo crítico Homi K. Bhabha e as usaremos especificamente para
justificar algumas de nossos estudos sobre a representação
do Recife na
obra de Chico Science e de outros poetas da Cena. Assim como
as ideias do professor Stuart Hall sobre “identificação” como articulação, um
processo onde nunca o ajuste é completo, pois, como toda prática de
significação, está sujeito ao jogo da différance na produção
de efeitos de fronteiras.
Otávio Paz
nos ensina que toda criação poética é histórica e que as transgressões e descomedimentos
da poesia pode levar a pensar em uma sociedade que reconcilie o poema e o
ato. Usaremos este e outros teóricos buscando neles respaldo para nosso
estudo da poética da Cena a partir dos Estudos Culturais e a problematização
da
identidade e da diferença. A
professora
Kathrin Woodward aborda em seu estudo “Identidade e Diferença” as questões
das fronteiras entre o coletivo e o individual numa cidade partilhada onde as
identidades foram formadas, reformadas e confirmadas de forma cambiante.
Enfim, trabalharemos com a questão da identidade enquanto construção
simbólica; auto-atribuição e alter-atribuição e o ator
social/poeta como resultado das duas.
APÊNDICE
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem respeito às diversidades,
diferenças regionais, por exemplo, ao organizar conteúdos na reforma do
ensino médio, também, incentiva-se investigação, comparação, análise,
síntese, o pensamento divergente para que o sujeito exercite para sempre a
capacidade de aprender. O texto básico é hipertexto e deve partir daquilo que
interessa ao aluno que é o seu presente, cotidiano, e, daí, introduzir o
conhecimento sistematizado. Instrumentalizar e tentar aplicar na vida prática
o que aprender.
A Lei de
Diretrizes e Bases 9.394/96 estabelece as diretrizes curriculares nacionais
para o ensino médio. Queremos:
A)
Desenvolver o educando (para que possa refletir e
ser protagonista no mundo social).
B) Exercitar
a cidadania (discutir contextos, confrontar pontos de vista; construir identidade).
C) Preparar
para progredir no trabalho (incluir conhecimentos/ habilidades que propiciem
realização/participação consciente não apenas numa profissão específica).
Estimular o prosseguimento dos estudos: pesquisar, formular opiniões, ler,
interpretar, aprender a aprender.
A língua
portuguesa, assim como a matemática, segue como linguagem instrumental para
aprendizagem de diferentes conceitos, para entender o mundo físico e natural,
a realidade social e política, especialmente do Brasil, o que exige uma
reflexão global sobre interrelação do tempo e do espaço dos contextos
sociais, culturais e históricos. Para isso é importante a questão dos
contextos (contemporaneidade). No Brasil, diferentes culturas e etnias, não
podemos nos afastar das línguas estrangeiras. Apontamos a língua inglesa como
apoio.
Quanto ao
nosso material didático, ele deve ser usado de modo flexível, nunca como camisa-de-força.
Queremos estimular a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade, a afetividade.
Aprendizagem como mobilizadora de competências, habilidades e atitudes no plano
cognitivo e afetivo, para que o aluno reconheça os problemas que afetam a
sociedade e supere dicotomias entre o público e o privado no respeito à identidade
do outro, por isso as atividades em grupo devem ser estimuladas como
avaliação dos diferentes contextos que caracterizam o mundo contemporâneo.
É óbvia a
necessidade da busca interdisciplinar (e contextualização): é o debate sobre
a sociedade em que se está inserido (economia, política, comunicação, disputa
pelo espaço, lutas étnicas, etc.). Linguagem, ciências da natureza,
matemática e ciências humanas, devem refletir o contexto social e romper
distanciamento entre o sujeito e o objeto de conhecimento.
Devemos
considerar as relações de complementaridade e convergência no sentido de
permitir compreensão integrada do conhecimento: aprender, fazer, conviver,
ser. Não se aprende sem conteúdo, no “vazio”, mas é necessário rever o
processo de aprendizagem, a participação dos alunos, interação com colegas e
professores não apenas na sala de aula mas em outros espaços que a sociedade
dispõe. O cognitivo e o emocional exigem respostas que vêm na vivência em
comunidade. Competência é a capacidade de agir eficazmente em um determinado
tipo de situação, apoiado em conhecimentos, mas sem se limitar a eles:
utilizar, integrar e mobilizá-los, eis a questão.
Quanto aos
conhecimentos específicos: a multidisciplinaridade requer temas do interesse do
aluno. A desertificação do planeta, por exemplo. Literatura e outras
disciplinas poderiam discuti-la. A questão da água, etc.
A
transdisciplinaridade, que busca desenvolver a personalidade do aluno,
aproximar o seu projeto com o projeto da sociedade, contextualizando vida
pessoal com a coletividade, visando fins sociais e o desenvolvimento humano,
flexibilizando, no que for possível, a organização curricular.
Interdisciplinaridade
integra disciplinas e gera novo produto, espécie de síntese de conhecimentos, e este,
como mediação entre professor e aluno através de projetos que
estimulem conhecimento cognitivo, socioafetivo e psicomotor dos jovens considerando a realidade em
que vivem, uma alternativa para desenvolver personalidade. Quais são as
expectativas dos nossos alunos? Que características tem a nossa comunidade?
O que sabem
e o que precisam saber para viver melhor? A literatura busca o desenvolvimento
intelectual e afetivo do aluno, gerar, pelo estudo de textos, novas formas
comunicativas, adequadas às necessidades do ato interlocutivo. Deve ser,
nesse caso, usada como conhecimento da língua e da cultura de um povo. É
instrumento de posse, enquanto linguagem, um poder simbólico com o qual
podemos argumentar, confrontar opiniões, expressar o pensamento, dentro das
expectativas de diferentes usos sociais. É a revisão de um legado recebido. O
estudante não deve ser passivo, deve contextualizar sua herança literária.
Como usar isso a seu favor? Devemos buscar situações que motivem os alunos
para sua realização individual ou em grupo, na sala de aula ou fora dela,
aceitando a inter-relação dos conhecimentos, professores e alunos em um
projeto coletivo. Competências: organizar e informar/ confrontar opiniões e
pontos de vista; interpretar e aplicar recursos expressivos, relacionando
texto e contexto; compreender e usar a linguagem como geradora de
significação e organizadora do mundo. Buscar mudança cognitiva e
comportamental.
Levar o
jovem para o melhor desempenho em uma sociedade contraditória e desigual,
para modificá-la, construindo um mundo melhor.
|
Identidade e Alteridade Nas Fases Da Vida: Infância e Adolescência, Um
Espaço Chamado Adulto, Velhice ou Idos-Idade.
Palestra proferida por Moisés Neto no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE em 17/07/2003 (“Heróis sem adolescência nem infância ou as mangas colhidas antes do amadurecimento”).
O abismo bate palmas, / a noite
aponta o revólver. / ouço a multidão, o coro do universo, / o trote das
estrelas / já nos subúrbios da caneta: / as rosas perderam a fala. / entrega-se
a morte a domicílio. / dos braços... / pende a ópera do mundo (Murilo Mendes).
Sim, viver é difícil. O fluir da vida é um curso dadivoso cuja
perenidade, mesmo dentre obras de arte é estranho e periclitante.
Quem gostaria de viver para sempre? Quem como a personagem Norma Desmond
do filme Sunset Boulevard, poderá dizer, enlouquecida, na última cena
“agora estou pronta para o meu close up”?
Quando uma vida se completa? Quando nos livramos dos exageros e das
indecisões? Há um momento exato em que se atinge a maturidade?
Nossas estantes estão cheias de livros como “Capitães da Areia” de Jorge
Amado ou “Oliver Twist” de Charles Dickens, onde crianças de rua são utilizadas
por pessoas mais velhas e forma pequenas gangues. Crianças com pais ausentes,
destinos entrelaçados formando um espaço alheio ao entendimento das metrópoles,
Londres / Salvador.
O Recife acostumou-se a olhar as centenas de cheira-colas. 5, 10 anos de
idade quantos anos? As drogas fortalecem cartéis e exigem reis, dirigentes
fortes.
Entre a maconha e a melancolia de entender-se humano, adulto, maduro,
velho ou verde, interpõe-se o conceito de 3º espaço, de entrelugar,
proporcionado também pelo álcool, pela migração, pela sexualidade proibida.
Manga verde dá cólica. Mas as crianças, os miseráveis, os menos
favorecidos, as colhem na forme, na pressa para não cair.
“Serei o herói da minha existência?”, perguntava-se o David Coperfield
de Dickens. Serei um anti-herói? A tragicidade que envolve certas
adolescências sufocadas nos faz pensar numa plateia de clowns a assistir
o desespero de uma juventude sufocada, não por vivermos num sistema capitalista
que devora os mais fracos sem remorsos, mas por não haver muitas saídas para o
ser humano a não ser procriar, ou aceitar calmamente a cria dos outros,
ocupando assim este espaço chamado adulto.
Talvez, num admirável mundo novo, possamos, todos nós, conviver, aí sim,
como produtos de uma mesma máquina. Talvez, como no romance de Huxley,
reste-nos a soma, poderosa panaceia para tantos males que insistimos em rotular
de angústia, culpa, insatisfação etc.
“Como está cheio/ de folhas secas o horto/ e de palavras santas / meu
coração! / tempo é que não sobrou / que fossem ditas / nem variadas...”, diz
João Jandelino Câmara. Sim, o não-dito está condenado a transformar-se em
esquecimento, arrependimento. O não-amor torna-se objeto de consumo. Os pais
envelhecidos vão olhar antigas fotos e achar ali, estranhas meninas do ano
2003, pintadas e erotizadas, afetadas pela média. Garotas que se educaram em X-Men
e Matrix, Digimons e tantos outros produtos que impuseram um
peculiar acento a uma juventude imediatista e não adepta da meditação/reflexão.
A McDonald’s, a MTV, os Shopping Centers, as ruas imundas como
leitos, o leite dos peitos sujos e sem perspectivas, a ruína das escolas
públicas e o jogo imperfeito das instituições pagas de ensinos médio e
fundamental. Tudo caleidoscópio neste mundo pós-moderno onde o preservativo é
aconselhável antes até da primeira explosão de hormônios.
Bagdá, Afeganistão, Nova York, Bush de canhão apontado para
“infratores”, heróis de um sistema tristonho, composto por fraudes na eleição,
na religião, no preconceito. Encruzilhadas sustentam placas que indicam os entrelugares,
mas nestes, como no caos, sempre vão instalar-se novos ranços, como num jogo
sem perspectivas para detectarmos quem vence, quem perde. Como na máxima
alquímica. O que está embaixo é igual ao que está em cima.
Sequestros, tiros, facadas, câncer. Roubos, prêmios inesperados. Nasce o
cidadão do ano novo.
E os artistas? Como representam tudo isso?
Freud diz o artista é, basicamente, um introvertido, em virtude da dificuldade que sente de adaptar-se à realidade em decorrência dos seus fortes impulsos: não podendo satisfazer diretamente as suas exigências, se realiza no mundo da fantasia, o que o aproxima dos que têm perturbações mentais. Sua salvação é tornar suas fantasias agradáveis.
Freud diz o artista é, basicamente, um introvertido, em virtude da dificuldade que sente de adaptar-se à realidade em decorrência dos seus fortes impulsos: não podendo satisfazer diretamente as suas exigências, se realiza no mundo da fantasia, o que o aproxima dos que têm perturbações mentais. Sua salvação é tornar suas fantasias agradáveis.
Como estão se posicionando nossos artistas autores diante do caos
recifense? Como se reflete aqui tamanha desordem? De crianças e gente de toda
idade comendo lixo? De salários pequenos e impostos enormes? De que é que temos
fome zero? Será que temos mesmo algo a ver com o que aconteceu com Adão e Eva
no paraíso? Será que somos nós que martelamos os novos crucificados no Oriente
Médio? Somos escravos do feijão e do sonho. Da velhice e da infância.
“Música... que sei eu de mim? / Que sei eu de ser ou estar? / Música...
sei só que sem ficar / Quero saber só de sonhar...” (Fernando Pessoa).
“ Não há muitos jantares no mundo, já sabias, / E os mais belos frangos
/ são protegidos em pratos chineses, por vidros espessos / Há sempre o vidro e
não se quebra, / Há o aço, o amianto, a lei, / há milícias inteiras protegendo
o frango, / e há uma fome que vem do Canadá, um vento, / uma voz glacial, um
sopro de inverno, uma folha baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem
pálida / que mal decifras. Entre o frango e a fome, / o cristal infrangível.
Entre a mão e a fome, / os valos da lei, as léguas” (Drummond).
Há o véu do esquecimento sobre os olhos no Recife, como buscar. O
apedrejamento, a fúria incendiária, os cadáveres insepultos, as colunas
sociais, a mídia que precisa de novas sensações e as prateleiras das lojas que
precisam ser renovadas, consumidas. Há crianças colhendo frutos não maduros,
imperfeitos.
Há tantos livros que a academia e os autodidatas se impõe. Há Paulo
Coelho, Harry Potter da novata Rowling, ou os velhos anéis de Tolkien. Há
enchentes que derrubam casebres nos morros, que poderiam servir de metáforas
para identidades, alteridades nas fases da vida, para infância e adolescência,
para um espaço chamado adulto, ou este caminho chamado velhice ou Idos-idade.
Perde-se sempre a adolescência, a infância. Restam-nos fotos, saudades
das primeiras impressões, de algum sexo, ou mágoa por tê-los inadequadamente.
Sobrevive em todos nós apenas a constatação de que precisamos mortalmente da
próxima refeição e de cumprir as tarefas que nos aguardam com primor, com
resignação.
Hamlets que somos com indeciso punhal na mão diante do ser
ou não ser, estar ou não estar. Catedráticos do entrelugar: o novo mal-do-século
se anuncia! Requer uma nova retórica.
“São ventos feridos,/ são ventos antigos,/ saudades de amigos,/
lembranças, rumores;/ são ventos irados/ batendo em meu rosto,/ marchando em
rajada / rufando tambores” (Joaquim Cardozo in
“Figuras do Vento”).
Nossos espíritos precisam de novas metáforas, de mais liberdade,
justiça. Algo que nos faça estar mais com os jovens, pobres, médios, ricos.
Fazer com que se unam.
Nós escritores, professores. Nós que lidamos com teorias, nós que devemos ter a nova escrita e transformar estas mangas colhidas, antes do amadurecimento, em ícones de salvação, de respeito às diferenças que nos cercam.
Nós escritores, professores. Nós que lidamos com teorias, nós que devemos ter a nova escrita e transformar estas mangas colhidas, antes do amadurecimento, em ícones de salvação, de respeito às diferenças que nos cercam.
A condição humana nos impõe estarmos sempre atentos e fortes,
principalmente quando as coisas não saem como planejamos.
Somos nós mesmos os piores miseráveis das ruas do Recife. É por nossas
narinas que a cola penetra no corpo da cidade. As mãos enrugadas e famintas dos
velhos nas calçadas, desgraça nos barracos e prédios luxuosos, no esconde e
mostra dos homossexuais amantes. A prostituição em todas as idades e escolas.
Políticos incompetentes diante do tão conhecido desafio.
Resta-nos, amantes dos livros, ler algo que nos acalma e nos dê um sono
revigorante para tamanho cansaço. Cubramo-nos com esta colcha pós-moderna
retrô, e rezemos assim, como Bandeira ensinou: “Quando a Indesejada das gentes
chegar / (não sei se dura ou coroável), / Talvez eu tenha medo. / Talvez sairia
ou diga: / - alô, iniludível! / o meu dia foi bem, pode a noite descer. / (A
noite com seus sortilégios). / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / a
mesa posta, / com cada coisa em seu lugar”.
Que venham os frutos!
Que venham os frutos!
Teatro em dose dupla: O Portal
do Escritor vai a são Paulo para rever Lucélia Santos e volta ao Recife
para checar os bastidores da mais nova montagem teatral na terra dos altos
coqueiros.
Carlos Bartolomeu estreia nova peça em novembro: MAD LEIA
Texto & entrevista:
Moisés Neto
Dia 21 de novembro no
Teatro Joaquim Cardozo o Recife assistirá a mais uma peça com carpintaria local.
É o espetáculo MADLEIA dirigido pelo
encenador Carlos Bartolomeu, que também é professor do Dept° de Teoria da Arte
da UFPE. Sobre sua profissão ele nos declara:
“Ser um encenador se dá em amplo leque de liberdades criativas, técnicas
exercitadas, investimento de tempo, recursos etc. ... Todavia, tais
circunstâncias podem elas mesmas implodir um projeto criativo. Um diretor autor
deve ter em mente a realidade que o cerca e o posicionamento firme de que ele é
o contador de histórias, árbitro em um perímetro que convoca seu espírito e o
tempo, mais aqueles, e tudo o mais que ele reúne e conduz à reinvenção. Essa
arquitetura pede cumplicidade do público; reconhecimento, compassividade, entusiasmo, prazer ou surpresa, até mesmo a
silenciosa. A história já provou que tanto um quanto outro podem criar valores
ou desconhecê-los. Cabe ao encenador ser fiel ao seu jeito especial de revelar
ou encobrir. O encenador-professor diferencia-se na medida em que não pode
excluir do seu diálogo com os alunos a exposição permanente e transparência.
Todos seus atos devem estar ao alcance da crítica, mesmo da crítica fácil,
impertinente. Não pode impor seu ponto de vista, mas defender a variedade de
pontos de vista. Mesmo sua ironia e tons depreciativos devem estar ao alcance
dos discípulos e revelar para eles a humanidade e os sombrios desvãos do
conhecimento. O encenador se mascara; o encenador-professor se confessa.”.
Bartô, como é chamado
pelos amigos, também é dramaturgo e nesta área destaca-se o seu TEATRO SUSPEITO. Dirigiu peças premiadas como PARA UM AMOR NO RECIFE ("A ação se passa na noite de Natal, no
calçadão da Praia do Pina. O foco é a cidade do Recife, os personagens são
daqui... Acho que isso é uma das coisas mais importantes para o teatro
atualmente, tratar da realidade, de coisas próximas ao público", destaca o
diretor), e musicais como A ILHA DO
TESOURO, que também recebeu vários prêmios da Associação de produtores
teatrais. Em setembro de 2009 lançou o livro sobre documentaçã de programas de
peças - CARTAS DE PREGO.
Em 1980, o grupo de
Teatro Vivencial levou ao palco do
Teatro de Santa Isabel (Recife) All Star Tapuias, colagem de
textos escritos por ele, Antonio Cadengue, e Guilherme Coelho, que também
assinam a direção do espetáculo. Mutilada pelos cortes da Censura Federal, a
montagem encerrou suas apresentações no Teatro de Santa Isabel e faz temporada
no Vivencial Diversiones. E sobre
isso Bartô ainda esclarece:
“All star
tapuias, foi debate e síntese da visão da escola, o circo e o
cabaré (...) apresentávamos os principais manifestos ligados à Semana de 22,
como também um manifesto que eu escrevera: o Manifesto quá quá, mixando comicidade e crítica com a política e o
sentido dramático do período”.
Para Bartolomeu o
Recife que já teve o tempo necessário, para se desvincular do ordenamento, da
imposição cultural, externa e não deve ficar comprometido com a repetição dos
achados teóricos e práticos de outros centros urbanos (ou não!): “Não
creio que procurássemos dar força maior aos estrangeiros; havia teatro local
cunhado a partir dos ecos sertanejos e posturas agrestes, uma galeria
interessante de tipos e vozes deslocadas das zonas interioranas. Era como não
houvesse uma voz teatral das grandes cidades nordestinas. Entre o medievo e a
desolação tropical filtrava-se a veia dramatúrgica. Necessitávamos de uma
dramaturgia que espelhasse nossa visão, nosso entrelaçamento com o mundo que
buscávamos criar, como também o estranhamento que o mundo já erguido por
outros, antes de nós, assinalava.”
Bartolomeu também assinou a montagem da peça ATORES DO ÓRGÃO IRRESPONSÁVEL,
uma produção da COMPANHIA DO CHISTE,
apresentando três grandes atores: Paschoal Felizola, Rodrigo Cunha e Rogério
Bravo. A peça tem dois atos: ATORES DA
NOITE (texto de Carlos Bartolomeu) e O
CORAÇÃO É UM ÓRGÃO IRRESPONSÁVEL (texto de Walther Moreira Santos). O
pequeno teatro Joaquim Cardoso lotou durante várias sessões e o que se ouvia
era o riso solto, descontraído e debochado (deboches escrachados da
representação). O cronista Dom Antônio dá
o seu depoimento: “O teatro dirigido por Carlos Bartolomeu prova que pode ser
feito um teatro alegre, humorador, engraçado, de massa, sem cair na pornografia
gratuita. Diverte com escracho e alegria. Debocha com muito humor.”
Carlos afirma: “Uma
atitude conscientemente pirata é a origem de nossa canibalizada modernidade.
Somos nossa matriz. O teatro feito por nós precisa menos dessa muleta cultural
para se resolver enquanto arte. Precisamos sim, revelarmos a nós mesmos, o
quanto de subserviente e colonizado existe em nossa artisticidade, quando aquiescemos em reverenciar a continuidade
desse modelo. É sempre no outro, no ser ausente, de língua estranha, de costas
voltadas pra nós que apontamos nossa busca, imaginamos nosso acerto. Recriamos
sempre a ilusão, que tudo é mais próximo quando instalado na casa vizinha, na
sala do adversário, no quarto das babás importadas. Estripemos as babás e
envenenemos os seus chás. Dificilmente a realidade artística é tomada sob nossa
responsabilidade e assumida como nossa cria. Abrimos mão de sermos fabricantes
de nossa receita.”
Essa atitude diante do
que nossa própria identidade criativa,
mesmo aquela que é pirateada ou híbrida. Faz do teatro de Bartolomeu algo que
nos traz de volta o jogo, o lúdico, a busca da identidade m como construção
individual que se projeta no coletivo enquanto discussão, evolução. O teatro
com sua responsabilidade social, mas também como uma brincadeira (“está bem, me
proponham a adjetivação: séria!”, desafia-nos o mestre), onde se faz necessário
apenas, parceiros, espaço e... toda uma vida! “O dolo é fingirmos acreditar que
isso, só é possível no quintal do vizinho.”. Assim Carlos nos coloca em xeque
dramático.
Agora vamos a uma
entrevista exclusiva de Carlos Bartolomeu para o PORTAL DO ESCRITOR PE:
1) Como
você se sente em estreia mais uma vez?
|
Sinto-me
confortavelmente tranquilo. Não tendo mais ilusões sobre minha importância no
seio teatral da cidade, conto com meu espírito, e amigos em passagem pra
realizar minha dramaturgia. Quero com isso dizer que me sinto livre, desapegado
da necessidade que se conjugam a vida de um artista. O fazer artístico para
mim, torna-se a cada movimento criativo um caminho de aprendizagem sobre minhas
verdades mais interiores. Apesar de minha aplicação à forma, essa
deve ser compreendida como a expressão de uma conversação íntima, onde os
gestos, palavras e desenhos de movimentos seriam a sugestão possível de algo
que em sendo muito próximo, me reenvia para lá de mim.
2) Medeia é uma peça machista? |
Medeia de
Eurípedes para mim seria uma declaração afirmativa, embora dolorosa sobre o
diferente, o estranho, o obscuro. Uma ritualística acusação sobre a
impossibilidade ocidental de reverencia tais máscaras; a
cruel negativa de introduzir o diálogo com o a passividade
agressiva experimentada pelos muitos ângulos do gênero. A Medeia de
Henrique Celibi é a exposição dessa agressividade voltada contra a mente
da personagem, a inconsciência de que tal condição é cultural e passível de
mudança. Acrescente-se a isso, firulas paródicas, deboche e o aclamar da
insanidade que minha encenação instigou.
3) O que você arrancou de Eurípedes e de outros que tornaram Medeia o mito que ela continua ainda hoje? Eurípedes é moderno para mim em um aspecto que defino como inaugural, para ele importa o fator teatralidade, módulo central do espetacular. |
Seu
teatro ao contrário de um Ésquilo, por exemplo, não toma por por esteio,
meramente o textual. Visivelmente, este trágico toma partido de
imagens, personas e desenlaces aparentemente arbitrários que destoam das
convenções de seu tempo, lançando mão do efeito, do golpe teatral.
|
O
mito de Medeia, hoje, esperneia por obra e graça de sua carga
infanticida, ao meu ver de menor aporte que o fato dela ter investido contra
o poder estabelecido, o masculino, o dogmático, quando apeada de sua
associação com o mesmo.
|
Emociona-me
pensar que sua destruição foi ditada por sua ignorância sobre o desejo de
poder, e a ação física do próprio tempo. O mito arrancada a máscara do
feminino oportunista, só deixa para ele, vingança e fuga. Especulo ser
esta a razão de tal personalidade ter amparado carreiras
em seus momentos duvidosos. Deixo escapar tal
"impropriedade" ao lembrar da interpretação de Callas
para o Medeia de Pasolini.
A ausente presença de Onassis como fermento de sua interpretação pulsa
naquela ardente criação.
|
4) Quem
é Carlos Bartolomeu?
|
Penso que
sou um homem que compreendeu seus limites, que fez de suas repetidas
invenções, a sua medida. Honro meu gosto, desgosto e mau gosto, e minha
indestrutível capacidade de amor pela poesia das coisas menores, por vezes
chatas e sem graça. Revertendo em todos os casos, a falta de ternura pelo
simplesmente tolo e humano.
5) Qual a importância do Vivencial Diversiones (de onde surgiu o ator de MADLEIA (Henrique Celibi) nos dias de hoje ? |
Qual
seria? Pergunto também eu? Penso que apesar da tentativa de sacralizar o grupo,
a coisa que ele deixou pelo menos em mim, foi a
alegria da sacanagem, fazer teatro sem compromissos com os enfadonhos do
momento político, ou teatral. Amavam o espetáculo, xerocando dramaturgias,
permitiram-se reinventar liberdades teatrais e morais.
6) Apresente Celibi aos neófitos. Quem é esse artista para você? |
Celibi é
um vivente, não é um sobrevivente. Artista maior entre tantos menores, escritor
de textos pra cena teatral, criador visual, báquico
intérprete de si mesmo e de outras máscaras imprescindíveis. Foi viveca e não foi. Aprendeu com Beto
Dinis a arquitetura de palco. Coreografou vestimentas para corpos do samba em
evolução do carnaval carioca e deu luz ao maior sucesso de público de
todos os tempos da cena pernambucana: Cinderela
a estória que sua mãe não contou. Enfim, um/a MAD LEIA. Ou seria bad?
7) Você
acredita em vanguarda permanente? O teatro do mundo está evoluindo ou só o
Recife evolui assim?
Se não for permanente flex não é vanguarda, é retaguarda. Todavia, o fato de pipocar pela manhã não nos permite contabilizar sua realidade como potencia. De fato, temos que esperar o entardecer para conferir sua legitimidade. Ou quem sabe, não seria a simples realidade de nascimento, a sua essência? Por pura sorte, ou proteção dos fados literários, ganha classificação de clássico... Acho que o teatro do mundo acompanha a realidade de seu tempo... O que isso queira considerar, dando muito assunto, mas, é tarde tenho sono e ainda tem três perguntas pra responder. |
8)
Sobre o Bartolomeu escritor: o que você está dizendo?
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Sou um
preguiçoso... Preciso sempre de tempestade e ímpeto. Mas, venho me
esforçando pra terminar um certo texto que denominei de TEATRO PRETENSIOSO. Nos
Aprendizes em Cena do Centro Apolo-Hermilo, agora em novembro, vocês
verão uma amostra, um dos quadros da peça denominado O JOGO DA AMARELINHA.
9) O que acha da política (Recife/ Pernambuco/ Brasil/ Outros países)? Em crise de valores, acometida ainda de velhos fantasmas em novas fantasias. No caso brasileiro especificamente, visita-se mais uma vez a infeliz necessidade do pai protetor, do herói maluquinho e da incapacidade crônica de se ler o passado. Salvo melhor juízo, é dando que se recebe é lema, lei e recurso. |
***
Lucélia Santos interpreta As Traças da Paixão
A
peça As traças da Paixão (Com direção de Marco Antônio Braz, Prêmio Shell, por A alma boa de Setsuan, de Brecht, que
esteve no Recife este ano com Denise Fraga) tem estréia marcada para
breve no Rio de Janeiro e pretende se apresentar em Recife em 2010. A coluna
assistiu à última apresentação dia 21 de outubro da temporada em são Paulo.
Lucélia nos recebeu de braços abertos e se mostrou de uma gentileza e
amabilidade que nos comoveu, tratando-se de uma estrela do seu porte.
Apesar
de ter feito muitos papéis na televisão (impossível dissociá-la da Escrava
Isaura!) e no cinema (Luz del Fuego,
Engraçadinha, Bonitinha mas ordinária, só para citar alguns) é no teatro
que Lucélia tem sua raiz mais antiga. Sobre o passado ela declara: “Eu sou a Lucélia Santos de hoje, podem aproveitar antes
que acabe. Eu não tenho saudade de nada, sou budista e mantenho minha vida e minha mente no presente.
Entende?”.
A
primeira vez que a vi ela estava representando a peça Brecht segundo Brecht, aqui mesmo no Recife, no Teatro Valdemar de
Oliveira. Eu era adolescente e estava começando a estudar teatro. Fiquei
extremamente impressionado com o talento daquela menina-mulher que na ocasião
dividia o palco com Walmor Chagas e Aracy Balabanian. Saí do teatro fascinado e
disposto a estudar mais e mais esta arte tão antiga, a arte dramática.
Reencontrei
Lucélia outras vezes: quando assisti à peça Pluft,
o fantasminha (com ela no papel-título) e quando vi também A vingança de Tupã.
Fui
a São Paulo especialmente para revê-la e ela me recebeu com um abraço
carinhoso, como faz com muitos que a procuram.
No
Teatro Augusta conheci também o ator
que divide a cena com ela, Maurício Machado, com quem mantive um diálogo
esclarecedor sobre a peça e o que significa dividir o palco com um mito da cena
nacional. Sobre a peça ele declara:
“Desde
que Alcides Nogueira me apresentou este texto, montar esta peça tornou-se um
desejo sem volta, uma obstinação, um incrível convite ao jogo cênico. Paco e a
personagem que Lucélia interpreta, Marivalda Revólver, fazem parte de uma obra
que traz em si todas as possibilidades: o popular e o erudito, o sagrado e o
profano. Tenho profunda admiração pelo universo destes dois personagens e estou
muito feliz pois estamos conseguindo pauta no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro.
Espero também estar me apresentando dentre em breve no Recife. Muitos amigos me
falam sobre o teatro de Santa Isabel, gostaria muito de ir lá.”
Lucélia
dá-nos sua opinião sobre o que é o teatro: “Teatro é uma equação. Teatro é
impermanência. É construção mais dissolução. Sabe? É como todos os fenômenos
compostos, como nós. É como nosso diretor disse, é mais ou menos como aquela
história do Livro dos Sonhos do
Borges: Fulano ao acordar não sabia se era um homem que sonhou ser uma
borboleta ou se era uma borboleta que agora sonhava ser homem.” Daí o jogo
Anastácia Romanov versus Marivalda Revólver, jogo de espelhos.
O
autor da peça, Alcides Nogueira questiona: “O que distingue a loucura da
sanidade? O amor da morte? O Eu do Outro? Sempre tenho a impressão de que o fio
divisório é tão fino, já quase esgarçado, que pode se romper a qualquer
momento. Talvez o teatro seja o único casulo a abrigar e proteger esse jogo
sagrado, sem cobrar e sem punir. Marivalda e Paco nasceram do baú onde guardo
memórias, referências, sonhos e sonos. São espelhos mútuos, que irão se
refletir até que as imagens se desrevelem numa tragicomédia de erros.”
Um
dia ele leu uma nota no jornal sobre uma mulher que, em Goiás dizia ser a
princesa Anastácia Romanov. Ela tinha cara de índia e jeito de indie. Contava
os detalhes do fuzilamento da família imperial russa, sua fuga para o Brasil.
Atrás dela, sem disfarçar a malandragem estava um homem chamado Paco. Aquilo
fascinou Alcides e o levou a escrever esta pérola da nova dramaturgia nacional. Fica no ar a questão do complexo de Édipo. E no coração a
vontade de rever Lucélia aqui no Recife.
Um relações públicas afirma-se escrevendo e atuando
(palestra
proferida na Escola Superior de
Relações Públicas – Esurp, em outubro de 2010)
O RP ao administrar o relacionamento
e a comunicação do cliente, trabalha com a opinião pública, daí a necessidade
de um bom texto e de estar atualizado com várias informações em muitas áreas.
Uma das suas tarefas é humanizar a imagem dos seus clientes. Tem sido assim
desde 1914, quando Ivy Lee cunhou este termo (Relações Públicas) nos EUA. No Brasil, o primeiro Curso foi em 1953, na
Fundação Getúlio Vargas e já apontava para o fato de que caberia ao RP
harmonizar expectativas entre o seu cliente e os diversos públicos: conciliar,
afinar, ajustar, sintonizar, através de uma gestão estratégica de relacionamentos. E como se dá isso? Através da comunicação de textos.
Elaboração de slogans, etc. É importante também a atitude performer da oratória nestes
casos. A desenvoltura. Para isso o RP
tem que tirar partido de vários recursos (dicção, postura, comando...)
Trata-se
de um trabalho em conjunto: uma boa ideia e como apresentá-la. Então a busca
pela cultura geral, o lançamento de propostas, o bom-senso, o controle
emocional, a criatividade ao elaborar estratégias, tudo isso se mistura à
imagem do RP com suas técnicas de comunicação
verbal e não-verbal. Faz-se necessário trabalhar suas dificuldades no que
diz respeito ao seu perfil intercomunicativo (barreiras a transpor).
Para se
manter bem informado é preciso ler: jornais, livros, revistas e estar sempre
conectado a sites, blogs (a blogosfera é uma aliada fundamental do RP),
enfim: fazer parte de uma grande rede. Da sua capacidade de criação e
interpretação (nos mais diversos gêneros textuais, literários), vem o seu
sucesso, cabendo ao RP solucionar e não ser problemático: “Usar” o produto do
cliente, conhecê-lo, para poder ter base sólida em sua estratégia de ação. Ser cúmplice, promover o bom
relacionamento entre as interfaces. Organizar bem uma equipe, saber que
o cliente tem sempre razão, mas isso nem sempre acontece.
Procuramos
em nossas aulas observar regras de produção de textos, dicção, postura, como se
comunicar em público, utilizando, para isto, vários gêneros e modalidades de
escritura, reconhecimento de um público-alvo (de acordo com a ocasião).
Levamos
em consideração a qualidade de reputation
manager (gerente de reputação) do RP (num mundo onde a cada dia estes
profissionais se tornam tão fundamentais). A ESURP assume noções de
responsabilidade social, sustentabilidade, gestão qualificada, comprometimento,
inovação, transparência, formação de opinião. Sabendo que cabe ao RP lidar
com funcionários, fornecedores, poder governamental e público em geral,
tratamos de estabelecer pontos de apoio que facilitem a carreira deste
profissional que tem a árdua missão de manter boas relações entre as pessoas.
Produtos,
parceiros, tudo trabalhado em conjunto numa época em que os meios de
comunicação estão em constante mudança: o que cabe ao RP? Articular, através de um texto e
visualização eficientes, informações, e, ter sempre uma carta na
manga para lidar com o
mercado, que exige respostas rápidas e eficientes diante dos problemas em diversos setores.
No mundo do vale-tudo dos adversários, cabe ao RP buscar o que há de comum
entre as partes, zelando pela reputação e imagem do seu cliente, às vezes até
como coordenador de uma equipe (que inclui o jurídico, o pessoal da tecnologia,
etc.): e como? Evitando meias-verdades,
não tomando nada como “pessoal”, fazendo a si mesmo todas as perguntas,
antes que elas surjam (vindas dos outros) e ciente de que: se, não quiser que
ninguém “saiba” de algo, é melhor não fazê-lo.
A
comunicação do RP deve mostrar segurança e leveza, ao mesmo tempo deve
estar permeada de determinação, lembrando que toda crise é também oportunidade
para crescimento. Deve ser texto de
quem luta para divulgar “boas ideias”, de quem faz as coisas “acontecerem”, de
quem pesquisa e se aprimora para escrever bem e atuar no mercado de modo convincente e eficaz
diante de obstáculos e desafios, driblando aspectos negativos, assumindo posicionamentos, utilizando bem suas
ferramentas, instrumentos,
executando estratégias, blindando, dando apoio, auxílio técnico
e profissional ao cliente e até neutralizando
(com o poder da imagem e do discurso) as opiniões contrárias, tudo dentro da mais discreta
confidencialidade.
Ativo e
participativo: é como nós, que formamos a ESURP, queremos você, caro RP, ou
secretário, dono de um estilo próprio. Pronto para uma troca comunitária e
recíproca no mundo de hoje, onde a mídia é tão fundamental.
Twitter,
Orkut, Facebook e o que mais vier. De posse ou não do melhor blackberrie, ou
com o mais atual modelo de Iphone, o que vai importar mais é o seu raciocínio
(ao navegar nessas e em outras possíveis novidades)
e a consciência para saber lidar com novas e antigas “regras” das Relações
Públicas diante da Responsabilidade Social Corporativa (educação, meio
ambiente, compromissos com a sociedade).
Ajudar
você a aprimorar sua comunicação diante do público, eis a nossa meta. Por uma
vida social saudável, consciente, bem escrita e bem transmitida nesta nova
década que se inicia (os anos 10) com as marcas da sustentabilidade social,
econômica, cultural e ambiental. Que seja você um bom profissional com projetos
para toda a vida, com a ousadia de quem se apoia no passado e ousa o futuro,
sempre.
Depois do
vestido de noiva
A Falecida no contexto da
obra de Nelson Rodrigues:
(Resumo/ Roteiro da palestra conferida no
dia 22 de agosto de 2012 no auditório da Livraria Cultura –Recife- dentro do 10º Festival Recifense de Literatura
O sujeito que escreve deixa de ser ele mesmo. Uma
simples frase nos falsifica ao infinito (Nelson Rodrigues)
Discutiremos hoje,
principalmente, duas peças de Nelson: A Falecida e Vestido de Noiva.
Inicialmente temos que compreender que essas peças traduzem o anseio de
discutir o desejo, a pulsão numa escrita sensacionalista em tom
grandiloquente.
Em Nelson, é a
partir da tragicidade e do mergulho
no inconsciente (onde estariam os rejeitos
do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real,
simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada para livrar os
personagens do sentimento de culpa.
O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um
material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson
busca essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto
quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar
ao papel (persona) e se esquecer de
si. Mas o registro rodriguiano vai além dos clichês freudo-marxistas e os põe
em xeque.
II
Na peça A Falecida assombração da tuberculose e a pobreza da
personagem principal lembram um pouco a vida do próprio Nelson: uma amiga do
Recife ao visitar a família dele no Rio ficou chocada ao vê-los no almoço
comendo somente café sem leite e macaxeira; a pobreza o impediu inicialmente de um tratamento mais
adequado à tuberculose, as humilhações de ter pouquíssimo dinheiro e andar
maltrapilho, em transportes coletivos, frequentar prostíbulos na adolescência,
conviver com tuberculosos pobres (o horripilante pneumotórax). O próprio
subúrbio Aldeia Campista, onde mora Zulmira, de A Falecida (1953) tudo isso é marcante, é o mesmo onde morou
Nelson, cheio de vizinhos que se imiscuíam na vida alheia, cheios da marca do
baixo nível de vida, doenças, distorções da fé, adultérios etc.
O Rio que Nelson
conheceu era uma metrópole reurbanizada, mas o choque de ricos / granfinos com
pobres era gritante e ganha expressão dramática em sua obra, lembremo-nos de
que a fantasia de Zulmira gira em torno de um enterro de milionária.
“Caso de psicanálise” ou “Freud era um
vigarista”, discute-se na própria peça o tema. Os rejeitos do consciente que se
localizam no inconsciente, segundo Freud, voltam e assumem contornos agressivos
delineando um sexo perverso, mas que não se quer doentio. As palavras haveriam
de sublimá-lo, como numa terapia.
Em A Falecida, a voz do pai é silenciada, a
adúltera não está arrependida, trata-se de um estranho sonho de suburbana:
enterro de rico. Crucifixo de cristal, cortinas para cinco portas, cavalos com
penachos, caixão com alças de bronze.
Zulmira, como tantos
outros personagens rodrigueanos, é vítima do logro que parece ser a maldição,
ou o estigma fundamental do homem.
III
Há que se estilhaçar
esse painel rodriguiano e o reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não
de cômico, em Nelson. Afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição
realista.
Montar Nelson
Rodrigues é um desafio cósmico:
desdobrar a totalidade da existência, observar o todo desdobrado em si e sua
relação com a “realidade”.
Acompanhei há dois
anos a montagem que o diretor paulista Antunes Filho fez de A Falecida. Havia assistido a outra
adaptação dele para o mesmo texto, em Paraíso Zona Norte. O que presenciei foi a catalisação de um
espetáculo onde cada parte, no contexto do todo, se colocava em superposição. Isto é, cada acontecimento
cruzava o outro, nessa simultaneidade tão presente na vida, em ritmo frenético.
Os sentidos ligados em várias coisas ao mesmo tempo.
O cenário era um bar (onde não para de tocar
samba em BG). O tinir de copos e garrafas, o burburinho, o vaivém dos que ali
estão, transformavam o diálogo dos personagens em estranha mistura onde o tempo parecia estar sendo comprimido ao ponto de
explodir na multidão anônima onde o homem mergulha solitário nas metrópoles,
onde a fuga parece impossível, e o tempo como uma bomba prestes a explodir.
Uma imagem
caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla
percepção e estabelecendo insólitas relações, onde o fundamental e o secundário apareciam na
cena como vêm à memória, ao sonho.
Cenas articuladas de
tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, calcados no
sugestivo texto de Rodrigues, incitavam a percepção aguda, que não queria se
alienar e que se mantinha longe do convencional, em linguagem própria e
dinâmica.
O “golpe de teatro”,
no caso a cena em que Tuninho fica sabendo que a esposa lhe era infiel. Ele e a
plateia descobrem ao mesmo tempo. Antunes trabalha esta cena, que é calcada no
abandono, a violência e o ódio, de modo que o riso e o choro se empalideçam.
Tuninho é enfocado no seu esvaziamento, simplesmente. Ele bancou o bobo, não só
por causa da esposa, mas pela sua própria constituição de idiota que tem a
personalidade calcada em estereótipos oferecidos por uma sociedade manipulada.
O torcedor de futebol (Vasco). Sua preocupação com o time se mescla à
humilhação imposta pela miséria física e intelectual. Seu desamparo dentro do
mal-estar da civilização.
O que vemos, não só
em Tuninho, mas também em Pimentel (“amante” de Zulmira) e Timbira (agente
funerário, quer sexo com ela) é a representação do homem brasileiro, em
expressão universalista.
O ator é um servidor
do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. O que vemos em Nelson de A Falecida é também essa expressão
brasileira, não através de filtros intelectuais ou conceitos generalizantes,
mas de um farto material humano que é oferecido à criação do ator.
Em A Falecida temos
exposto o nervo principal da poética rodrigueana: a família. A máscara parece o
verdadeiro rosto. Pululam o prosaico, o risível, as gírias, a ironia, o
frenesi, a paródia da paródia e até as marcas do inconsciente recifense,
herança familiar de Nelson.
Em Nelson, o sentido
dialético é levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas,
tempo, espaço e ação não se dobram à disposição de análises sociológicas ou
psicológicas, simplesmente. O futebol, a bebida, o machismo, a fé, o
jornalismo, o desequilíbrio social, as contradições do homem brasileiro surgem no espaço cênico como ruptura,
transbordamento, justaposição, no entrelaçamento
de cenas, no trabalho com o contratempo das falas, na gravidade poética do texto A
Falecida: os personagens não interagem de forma direta com os outros,
parecem não enxergar os outros, mergulham em si mesmos.
Doce e misteriosa
Zulmira, adúltera e santa, fugitiva de sinistro folhetim. Entre faunos (tarados
urbanos?), como o agente funerário Timbira, o milionário Pimentel, ou mesmo do
seu fiel marido, que no fim também
vai lhe trair, em nome de uma vingança póstuma.
A moreninha de olhos
claros, Zulmira, Bovary dos pobres. Em cinco minutos (!) traiu o marido (pela
primeira vez?) traiu o marido com um desconhecido no banheiro feminino de uma
sorveteria. Sobrou-lhe um enterro de cachorro em meio ao viveiro de ódios e
êxtases rodriguianos. Ela morre no final do 2º ato, mas volta em flashback. A esposa cadáver, infiel depois de morta.
Flor do subúrbio, flor tardia, rosa do povo.
Da cornucópia verbal
do autor estão intactos o sarcasmo e o humor, na montagem de Antunes. Uma
poesia sufocada, como a personagem principal. Zulmira e sua catarse maldita.
Tanatos e Eros em simbiose. “Que fazemos nós desde que nascemos, senão teatro,
autêntico, válido, incoercível teatro?”, pergunta o recifense Nelson
Rodrigues. “A ficção para ser purificadora
tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos”.
Para
salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao
seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito
malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral (“o bom
teatro é o que sacode o público”, disse Bandeira) não teme o grotesco e
questiona conceitos.
Já
Antunes faz da farsa trágica de
Nelson um exercício de vida, num espetáculo seminal que mais do que uma
encenação é uma atitude. Os ambientes da peça são demarcados pelas ações dos
personagens entre mesas, cadeiras num ritmo frenético, uma totalidade
ininterrupta, movimento fluente, onde a existência é desdobrada de dentro de
cada região do espaço e tempo. No
original de Nelson não há naturalismo. Lembrando que qualquer parte envolve o
todo (dobrado) e nenhuma parte existe independente nem pode deixar de ser
afetada em tal relação. São imagens paralelas e o espectador não consegue ter
uma imagem isolada, sem interferências, nessa montagem de A Falecida, por
Antunes, com estreia no Recife, em 2009.
“Quando
com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento,
seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre
nos socorrer preenchendo os vazios”, sentencia Antunes Filho.
O homem só se salva se reconhecer a
própria hediondez. A tragédia surge como uma espécie
de expurgo, acerto de contas de Nelson com sua história, com todos os homens,
com a vida, de modo cético, sombrio e até... romântico. Temos , na obra
de Nelson Rodrigues a letra e a voz de todos os homens, de todos os
tempos.
A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL NA ESCRITA DE JOMARD MUNIZ DE
BRITTO
Moisés Monteiro de Melo Neto [1]
RESUMO
Propomos fazer um
recorte na obra de Jomard Muniz de Britto (recifense, ensaísta, pensador da
cultura, autor de textos poéticos, professor universitário, pesquisador,
filósofo) abordando, principalmente, a elaboração dos escritos poéticos
contidos nos seus livros: “Escrevivendo”, “Inventário de um Feudalismo
Cultural”, “Terceira Aquarela do Brasil” e “Bordel Brasilírico Bordel”.
Discutimos neste texto as relações entre a literatura e a formação social. Como
esta poeticidade agencia as diferenciações da cultura nacional e seus vieses em
intensa conversação – em espelhos e perspectivas- entre múltiplas crenças,
interesses ideológicos, políticos, sociais, sexuais, estéticos. Ele trabalhou
com o mestre Paulo Freire no seu projeto de educação.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero,
Tropicália, identidade, alteridade, ideologia.
ABSTRACT
We propose to make a cutout in Jomard Muniz de Britto (Brazilian
essayist, thinker of culture, author of poetic texts, University Professor,
researcher, philosopher) addressing, in particular, the preparation of written
poetic contained in their books: Escrevivendo,
Inventory of a Cultural feudalism, The third watercolor of Brazil and Brothel Brasilírico brothel. We discuss
in this text the relationship between literature and social training. As this
poetry puts together differentiations between national culture and its views in
intense conversation – mirrors and perspectives-between multiple ideological
beliefs, interests, political, social, sexual, aesthetic. He worked with
Professor Paulo Freire in a very interesting project of Education.
KEYWORDS: Gender, Tropicália, identity, otherness, ideology.
Jomard Muniz de Britto: pernambucano, ensaísta,
pensador da cultura, autor de textos poéticos, professor, pesquisador,
filósofo, cineasta assinou com Caetano e Gil, manifestos tropicalistas nos anos
1960. Publicou artigos na Revista Mapa, a partir de 1959, tornando-se
correspondente e amigo de Glauber Rocha e de outros componentes do grupo
baiano. Trata-se de um intelectual que vem traduzindo suas intervenções por
meio do objeto estético, da construção simbólica: reflexão poética e
sociocultural. Os textos contidos nos seus livros: Escrevivendo (1973), Inventário
de um feudalismo cultural, (1979), terceira
aquarela do brasil (1982), Bordel
BRASILírico Bordel (1992), Arrecife de Desejo (1994), Outros Orf´eus (1995) (estes dois
últimos com ilustrações de João Denys Araújo Leite) e Atentados poéticos (2002) tratam com particular poeticidade as
relações entre as etnias. Os processos
de produção desta obra literária agenciam diferenciações
da cultura nacional e seus vieses em intensa conversação. Por não admitir a
hegemonia do cadinho ideológico de Gilberto Freyre, Jomard, ou JMB, como também
é conhecido, trata as relações interétnicas através de uma linguagem espelhos e
perspectivas onde vão se reconstruindo/ desconstruindo interesses ideológicos,
“culturais”, políticos, sociais, sexuais, estéticos. Ele traz, na sua antilira, para usar um termo no sentido que Luiz Costa Lima lhe
atribui, reflexões estético-políticas
em forma de síntese, registradas entre o som e o sentido, a lutar, festejar,
com a palavra (indomável?), num poliédrico fruir
poético-existencial. Rompe com o esquema do poema fechado em nome do processo questionador, instala, dentre outras
coisas, a suspeita da linguagem.
Colocando em interface
o ser e sua existência histórico-social essa poeticidade leva a questão da
etnia até o abissal reflexo de outros discursos, lugares, personagens, desejos,
mistérios, em polifonia. As reflexões sobre os processos de produção cultural,
sobre o ensino-aprendizagem, ou ainda a problematização
dos gêneros, poder, sexualidade, entrelaçam-se ao tema-problema
“etnicidade” num trabalho de expansão da
significação da palavra (às vezes até a opacidade), utilizando-se de intertextualidade,
neologismos, trocadilhos, inexatidão, imprecisão, chiste na busca de uma
consciência possível. É poética como política de reflexão, a dialogar com
fatores culturais e políticos de forma lúdica. JMB calca seu discurso no
estranhamento, transforma signo em denúncia e teatralidade. Estabelece um jogo
dialético onde a memória da formação social se compondo, decompondo,
recompondo, atualiza-se através da linguagem artística, evitando o esquematismo e a redundância. São versos
permeados de um inacabamento perdurante,
marcados por uma atitude de vanguarda permanente, contra definições
programáticas, que sugerem um fazer
coletivo, antidiscurso e
criatividade compartilhada com o leitor, rompendo as fronteiras entre o poético
e a crítica da cultura. Afasta-se da história oficial para criar algo novo, intempestivo. Entre paradoxos e
identidades faz surgir uma produção de sentidos menos opressora, voz poética em
um terreno mais amplo que o convencional. A obra de JMB atinge um nível de
intelecção e de conceituação bastante problemáticos. Entre o sensível e o
inteligível, desconstrução e reconstrução de lugares comuns e em exercício de
fruição e gozo, ele escrevive a
crítica cultural através de uma poiesis
cheia de contradi(C)ções.
Como compreendê-lo?
Talvez indicando
coincidências, divergências, discrepâncias. Portanto a discussão acerca da obra
de Jomard parece-nos essencial quando se pensa em estabelecer relações entre
literatura, memória e sociedade no Brasil. O seu tom épico-satírico tem uma
sonoridade contemporânea e seu poema-hipertexto é também resposta a certa crise finissecular/ milenar, revelando
também a articulação das palavras nas variantes e interpenetrações do poder ao
saber no início de século XXI.
Vemos nesta poética a idéia de experiência afetiva dos sujeitos concretos
em sua inserção no mundo (dimensão
existencial), transcodificação de uma
experiência vivida. No interior
desses textos, encontramos suas tensões, fios discursivos, desenhos, jogo
complexo e instável, mutação de
sentidos, jogos pedagógico-filosóficos, metáforas e questionamentos. Uma rede
que se estende entre este sujeito que
projeta a enunciação (o dito, que prenuncia o não-dito, e o interditado) e os
que a recebem, abrangendo presente, passado e expectativa de futuro. JMB flagra
situações-limite cheias de ambigüidades. Seu texto dialoga com essas tensões.
Ele usa a bricolagem na sua crítica cultural (a crítica da cultura) e esmiúça
as mensagens político-ideológicas através de um peculiar jogo de
interpenetrações, fricção por detrás das palavras/ construções sintáticas,
estendendo o abismo entre sentidos denotativo e conotativo. Poiesis democrática
e dialética: poesia moderna? Satírica? Filosófica? Claro enigma? Pouca gente se
arrisca a classificar JMB. O Real, o Imaginário e o Simbólico em sua obra são
particularíssima experiência na difusão de formas poéticas em todos os níveis:
do grande épico-satírico à busca de uma sonoridade, ao citado poema hipertexto cheio de links
parodístico-histórico-filosóficos. Há uma preocupação que atravessa toda a sua
escrita, um viés: a língua dos três pppês:
Política, Pedagogia e Poesia. Fundi-los à crítica cultural é o cerne desta
escrita jomardiana e processo alquímico que merece observação mais apurada.
JMB representa em poeticidade a relação dos
homens com o seu destino, com a vida, discute temas/ problemas fundamentais da
sociedade. Propõe a religação entre o
homem e o seu universo, entre os homens e o local da cultura (perdido), entre
os homens e sua comunidade. Expõe o desamparo dos sujeitos modernos.
O corpo desta poesia
surge na esteira de transformações sociais e subjetivas, como expressão, no
campo da arte, da reflexão como meio de acesso à verdade. Suas relações
solitárias de sujeito com a verdade tentam responder através da dúvida sistemática,
como os filósofos empiristas.
Mapear a obra poética
jomardiana é enlaçar-se com as contradições e coincidências entre a história
literária oficialesca e a construção
simbólica de indivíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas
e lugares particulares. É querer decifrar/ compreender a falta de certezas
universais e/ ou transcendentais numa poética que coloca o indivíduo como
centro de suas próprias referências. Uma poeticidade impregnada de revoluções
em enigmas contundentes.
Nos seus textos os marginalizados aparecem em linguagem
sincopada como reis, santos ou heróis, e além de pessoas comuns, se destacam da
massa ganhando uma história de vida digna de ser relatada - a identificação do
leitor funciona para simultaneamente: 1) legitimar a experiência e 2) autorizar
a diferença, legitimando a experiência. Ele autoriza a diferença: busca a adesão dos seus leitores/ouvintes que por um
motivo ou por outro não se ajustam perfeitamente nem à velha ordem decadente
nem à nova política.
Jogando entre os pólos,
em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo social, unindo
detalhes (sabendo que os detalhes da vida só adquirem existência quando
encontram palavras que expressem em determinação literária: anseios, desejos, sofrimentos
e gozos), sua literatura é campo de referências que se dirige ao
sujeito/leitor. Evitando o lugar-comum dos discursos de autoridade, essa
literatura faz-se campo de experiência
compartilhada de forte interpenetração
imaginária, ao mesmo tempo em que
interpela diretamente o indivíduo em seu isolamento. É ruptura, apóstrofe,
apelo aos sujeitos mergulhados no vazio, na ausência de sentido, na ameaça de
aniquilamento e de diluição das identidades. Escridura que está atenta ao seu próprio destino e escolhas morais.
Simultaneamente mais emancipada, encontra-se relativamente mais livre para o escreviver.
Convocado a dar conta
de sua própria experiência subjetiva, produzida no encontro tenso entre
"vivências de diversidade e de ruptura" e outras tendências, Jomard
articula o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de informações que
lhe chegam através de outros textos (atentados
poéticos!). Se não há nesta lira uma garantia de verdade, há pelo menos a
busca de interlocutores no meio da incerteza.
Desta rede de
interlocuções vêm as vozes de Jomard:
da relação com o semelhante, com o pequeno outro na sua condição de desamparo e
de dúvida. Ele também escreve para interrogar a falência dos enunciados de
verdade. São textos em que a dispersão e a fragmentação do eu encontram alguma unidade. Questionam a dificuldade de se
estabelecer qualquer certeza sobre o sentido da vida e do mundo.
Cabe a esta poética
nomear nosso precário saber, afinal o que podemos saber sobre as coisas é
apenas aquilo que propomos a respeito delas sabendo que a significação de uma
palavra é seu uso na linguagem contra a tirania do Um.
Eis o texto jomardiano:
sem ocupar um lugar de autoridade e buscando a interlocução; poesia lúdica
buscando a legitimação simbólica sem a pretensão a fundar uma exceção perversa.
Alguns nomes são
recorrentes na obra de Jomard: os irmãos Campos e Pignatari, por exemplo,
admiradores de Caetano e incentivadores da Tropicália, que retomaram a linha
evolutiva do baiano e deram organicidade e fortaleceram seus julgamentos de
criação, nisso está uma intersecção com Jomard que, dentre vários vieses ataca
nacionalismos passadistas, nacionaloides
do tipo macumba para turistas citada
por Oswald de Andrade. Quanto ao mencionado movimento liderado por Caetano e
Gil, Luís Carlos Barreto deu nome à canção Tropicália,
por causa de uma instalação do carioca Hélio Oiticica. Logo a seguir Nelson
Motta escreveu um texto no qual batizou o movimento que surgia, foi aí que
Caetano resignou-se ao nome Tropicália,
por falta de opções, Tropicalismo lhe soava gasto por causa de Gilberto Freyre.
A Tropicália enquanto miscelânia de informações que vão de Louis Malle, pelo
filme Maria, com Brigitte Bardot,
passando por Garota de Ipanema (em
tupi: água ruim), identificações com Terra
em Transe, com toda a esperteza e fúria da estética de Glauber; Jomard
une-se ao grupo em 1968 e instala-se nos limites do Tropicalismo (diferir da tropicologia freyriana). Longe da
esquerda festiva, tal vanguarda livra-se de possíveis angústias da influência
em intensa radicalidade, como no espírito tropicalista. A poesia de Jomarde é
de cunho jamesjoyciano, fundo verbivocovisual
com versos em palavras-montagens, em translíngua.
De João Cabral, outra das referências na poética de Jomard, vem o olhar lúcido,
o nível de argumentação, defesa crítica, determinação inabalável. Do noigandres do Concretismo às perguntas
sobre a significação (em louca tenacidade) nos poemas-manifestos jomardianos
contra os mantenedores do subdesenvolvimento na geleia geral (como na letra de Torquato Neto) brasileira que a
mídia anuncia.
Surge o texto como a
quebra dos resguardos, como reflexo de ruidosas performances, numa escrita
paródico-carnavalesca de aspecto inventivo-construtivista (de combatividade)
buscando a imparcialidade, a expor as entranhas do Brasil em radicalidade antilírica, como num filme
de Godard, ver a abertura de Pierrot le fou, numa poética cheia de lugares
incomuns, poesia enquanto palavra-impacto, composição (des)construtora de efeitos, linguagem organizada de maneira
meticulosa em meio ao caos criativo vertiginoso numa época em que os ouvidos
têm paredes, num mundo que se mostra mais intolerante do que nos libertários
anos nos quais JMB iniciou sua produção poética. Augusto de Campos já disse que
a poesia é uma família de náufragos nadando no espaço e no tempo. Busco nesta
minha explanação a trans-historicidade contra a banalização do passado no texto
de Jomard, onde diluição e invenção, qualidade de percepção do mundo buscam,
talvez, expressar o indizível, apontar que a captação do fenômeno qualitativo e
sensível, longe do sentimentalismo, em protesto contra a vulgarização da vida
na era da disparada da tecnologia e mudança rápida de valores morais. Seu texto
tem cunho antropológico e expressividade não linear. Trata-se de algo próximo
ao construtivismo indigesto e antropófago. Seus textos parecem fora de controle
numa escrita mais intuitiva do que coerente, incitavam à demolição, contra o
acanhamento e incluem os erros como contribuições.
Há nos textos jomardianos um tom de
clandestinidade, androginia, pluralidade de estilos, desmantelamento de
cercas entre as classes sociais e gêneros; mas Jomard Muniz de Britto não é um
piadista nem um vanguardista datado. É poeta que usa o tratamento de choque em
ritual canibalista na movência do
Brasil, numa selvagem psicanálise a riscar o nome do Pai, em audacioso gesto
literário. Não em poesia límpida, mas em mistura de referências, estilo novo,
inaugural, a rir das desesperanças, dos comandantes
e dos alienados. Poesia que tenta
desalienar corações e mentes em meio
às tentativas vãs de unicidade e cinismo. Suas discussões sobre o gozo
imediato, sua recusa às migalhas lançadas pelo poder, sua atração pelos marginalizados, tudo isto, como uma
performance exerceu sobre mim simultaneamente atração e repulsa. Venceu a
primeira.
ENSAIO (13/09/2008)
Chico Science encontra Josué de Castro
No
mês de centenário do pensador pernambucano, uma análise instigante identifica
laços entre sua obra e a do criador do manguebeat. É como se os
"homens-caranguejos" de Josué ressurgissem na obra de Chico — não
mais como heróis frustrados, mas celebrando a vitória que realmente importa
Por Moisés Neto
Citado nas letras de
Chico Science e em depoimentos que o poeta registrou na mídia, o cientista e
professor Josué de Castro, recifense morto em 1973, é o autor do romance Homens
e Caranguejos (1966), o qual foi lido por Chico com avidez enquanto
formulava o conceito mangue. Este romance descreve o cotidiano de uma
comunidade erguida num manguezal do bairro de Afogados, Recife na primeira
metade do século 20. São pescadores de caranguejos, pessoas que tiram do mangue
seu sustento. Suas casas, construídas com o massapé, madeira e palha do local;
sua principal alimentação, os caranguejos: até as crianças eram criadas tomando
mingau feito com o caldo (o “leite da lama”) destes bichos que “fervilhavam”
nas margens do Capibaribe.
Seres
humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos.
Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homem e meio bichos [...]
parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como
caminham os caranguejos [...] habitantes dos mangues [...] dificilmente
conseguiriam sair do ciclo do caranguejo, a não ser soltando para a morte e,
assim, afundando-se para sempre dentro da lama [...] essa fossa pantanosa onde
aguarda o Recife (CASTRO: 2001, p. 10-11).
A visão de Josué é ao
mesmo tempo perturbadora e dinâmica. Expõe a fome de um povo que ao mesmo tempo
brinca com o bumba-meu-boi, o pastoril, o maracatu e outros folguedos (p. 113),
planeja uma revolução que tome a cidade das mãos dos ricos poderosos e dos
políticos, mostrados como hipócritas e ladrões. O mangue aparece
antropomorfizado:
agarrando-se
com unhas e dentes (...) gamas fincadas profundamente no lado [...] cabeleira
verde [...] braços numa amorosa promiscuidade [...] luta constante com o mar
como se fossem trapos de ocupação” (ibid. p. 12).
Este clima de mangue
vivo, onde o vegetal, mineral e animal se confundem influenciou profundamente
as concepções de Chico e Fred 04. O próprio manifesto “Caranguejos com cérebro”
é calcado neste tema, este ninho de lama que Josué comenta: “onde brota o
maravilhoso ciclo do caranguejo” e onde
O
bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto sonhando com boi-fantasma, que
cresce diante dos seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem de baixo
das apalpeladas das suas mãos... (ibid. p. 21).
O
romance de Josué traz balaieiros carregando frutas e verduras, vivendo entre
mosquitos e urubus; rostos magros, morenos, olhos negros e profundos. Alguns
sonham com a revolução do proletariado
A representação do
Recife nesta obra é influência de João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo e
Ascenso Ferreira. Ele descreve o cotidiano daqueles que migraram de sertão e da
zona da mata para o Recife e aqui se misturaram aos miseráveis da metrópole.
São balaieiros
carregando frutas e verduras, vivendo entre mosquitos e urubus; rostos magros,
morenos, olhos negros e profundos, na Comunidade de Aldeia Teimosa, onde alguns
sonham com a revolução do proletariado. Lembremo-nos que quase quarenta anos
depois, em 2003, 54,9% da população do Recife ainda morava em favelas segundo o
Jornal do Commercio [1],
segundo pesquisa do Ibam / Banco Mundial.
Corrosiva e às vezes
sarcástica, a ironia do autor mistura-se ao lirismo de um final onde o menino
João Paulo integra-se repentinamente à luta armada e desaparece no meio do
combate à beira do mangue, às margens do Capibaribe, em seu desejo de
libertação no meio daquele cheiro frio de lama podre, de terra morta em decomposição. E o
narrador conclui:
São
heróis de um mundo à parte. São membros de uma mesma família, de uma mesma
nação, de uma mesma classe: a dos heróis do mangue (ibid. p. 43).
A palavra “nação” e
este senso de comunidade com espírito revolucionário devem ter incendiado as
idéias de Chico e seu ideal de representação do Recife. No romance, muitos
pescadores de caranguejos cobriam-se de lama com a finalidade de fugir dos
mosquitos. No clipe da música Maracatu atômico Chico e a Nação Zumbi
aparecem cobertos de lama, como numa alusão aos pescadores do mangue. O uso de
neologismos também serviria de inspiração a Science, por exemplo: verbo
“jiboiar”, ao se referir a capacidade da jibóia de engolir “um homem inteiro” e
passar um mês digerindo-o (p. 61). Chico cria o verbo (neologismo)
“urubuservar” na introdução de “Maracatu de tiro certeiro”, na parceria com
Jorge du Peixe (CSNZ, 1994). Outro ponto em comum seria a zoomorfização: homens
e bichos se confundem na narrativa de forma implacável. Science vai resgatar
isto também em sua obra, só que forma menor naturalista e mais caricata. Os
mocambos, descritos por Josué, aparecem também na lira scienciana como símbolo
da moradia, do pobre no Recife.
O
mangueboy Chico e as personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se
articular num mesmo contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em
busca de saída e de fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade
opressora
Enquanto Josué opta por
uma visão pessimista, o trabalho de Science, é, de certa forma, quixotesco. Os
monstros contra os quais investe suas armas são produtos tanto da realidade
quanto da sua mente e na sua obra encontramos o ser metamorfoseado. Se os
heróis de Josué são frustrados, os de Science celebram a vitória sígnica:
A
façanha de ser prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a
vitória não importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signos. Em signo de que
os signos da linguagem são realmente conforme às próprias coisas [...] o poeta
é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas,
reencontra os parentes subterrâneos das coisas” (FOUCAULT: 2002, p. 64-67).
O mangueboy Chico e as
personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se articular num mesmo
contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em busca de saída e de
fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade opressora e terminam
criando uma alegoria, instaurando um pensamento novo. E assim surge uma
reviravolta cultural na cidade do Recife, marca-se um estilo, uma época, um
período, uma ruptura, uma descentralização, um deslocamento. Algo que rompesse
estruturas arcaicas. Hoje analisamos o Mangue já com um certo distanciamento
daquele período, mas é possível detectar onde se deu a ruptura e quais as suas
possibilidades. Vejamos o que Foucault argumentou sobre esta questão da divisão
da cultura em períodos:
Pretende-se
demarcar um período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do
tempo rupturas simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e
unitário? A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em
seguida, se desvaneceria e se deslocaria? [...] que quer dizer inaugurar um
pensamento novo? [...] uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se
põe a pensar outra coisa e de outro modo [...] o problema que se formula é o
das relações do pensamento com a cultura. (ibid., p. 69).
A ruptura que podemos
observar nos estudos de Josué aponta para a desigualdade econômica como
responsável pelo fenômeno social da fome, numa época em que se acreditava que
ela resultava do acelerado crescimento populacional, desproporcional ao aumento
dos recursos naturais. Já Science e outros poetas do Manguebeat lutavam por
romper com os feudos culturais que estagnavam Recife com seus discursos
reacionários. Josué foi deportado pela ditadura nos anos 60, mas seu legado
serviu de base para os mangueboys que sedimentaram sua luta unindo estas idéias
à música e à poesia, no início dos anos 90. Letras como “Rios, pontes e
overdrives”, “Antene-se”, “Da lama ao caos”, “Risoflora”, “Manguetown”, “Corpo
de lama” e outras são exemplos do que estamos afirmando. Elas se aproximariam o
que Foucault questionou como sendo “ruptura”. Inauguraram o “pensamento novo” e
buscaram novas relações entre o pensamento e a cultura.
O
Mangue carrega consigo a idéia de libertação que não se vincula a uma classe
específica — embora o universo poético centre-se nos pobres — mas na mente de
todos. Propõe a transformação da própria concepção do que é cultura
A cultura popular foi
sacudida pela nova cena. O governo logo percebeu que seria conveniente apoiar
os mangueboys. Inicia-se a fase das negociações. O antigo regime parece querer
cooptar a nova revolução, mesmo olhando-a meio de banda. E Science inicia
negociações com Ariano Suassuna, dialoga com Alceu Valença. Nos moldes do
antropólogo Renato Ortiz, a tradição e modernidade mesclam-se no Brasil, país
onde a ruptura nunca se realiza plenamente nem deixa de ser tentada, como
aconteceu nos anos 60 com a Tropicália e o Cinema Novo.
A
movimentação política, mesmo quando identificada como populista, impregnava o
ar, impedindo que os atores sociais percebessem que sob os seus pés se
construía uma tradição moderna (ORTIZ: 2001, P. 110).
Como ressaltamos antes,
o Mangue, em plenos anos 90, ainda ressaltava ícones como cangaceiros e
reforçava mitos como o do nordestino ser um tipo desengonçado, mas não é uma
poesia, nem uma música, que expresse conformismo, ou que demonstre uma unidimensionalidade
das consciências. É uma postura construtiva que surge no auge do poder da
indústria cultural sobre as massas, o final do século 20. Fala de conflitos e
exige a luta dos desfavorecidos, numa sociedade que pode ser vista sob diversos
ângulos. A ação é considerada na poesia do mangue como foco central na
orientação dos comportamentos. Estimula-se a realização das vontades e a
retomada do espaço público.
Uma
posição mais extremada é certamente a de Adorno, quando descreve a sociedade de
massa como um espaço onde praticamente não existem mais conflitos, uma vez, que
a luta de classes deixa de existir e a própria possibilidade de alienação se
torna impossível. Sociedade marcada pela unidimensionalidade das consciências,
o que reforça a integração da ordem social e elimina a expressão dos
antagonismos (ibid. p. 150).
O Mangue carrega
consigo a idéia de libertação que não se vincula a uma classe específica —
embora o universo poético centre-se nos pobres — mas na mente de todos. Propõe
a transformação da própria concepção do que é cultura, justamente numa época de
mudança de parâmetros na economia global com o fim da Guerra Fria.
Marcada pelos estigmas
da contracultura, a poesia de Science exibe o ridículo e o êxtase do ser e anda
na corda bamba entre o racional e o irracional. Como entender essa
discrepância? Minha tese é de que Science propôs a redefinição desses e outros
conceitos. Sua arma – que Barthes tanto sugeriu ser a melhor para se
revolucionar — foi a linguagem. E Chico usou a língua do povo do Recife. Como
Josué foi buscar nas camadas de baixa renda da população da cidade o motivo da
estagnação dessa metrópole-lama.
II
De algum modo, a
representação do Recife uma obra de Science comprovou o primado do significante
sobre o significado, da significação sobre a representação, da semiose sobre a
mimese. Não se buscava a realidade e sim autonomia da língua em relação à
realidade, o signo em fragmentada relação com o seu objeto, como se o referente
não existisse fora da linguagem e dependesse da interpretação. Detectamos
função poética colocando em evidência o lado palpável dos signos e tornando
evidente que o poeta selecionou e combinou de modo particular e especial as
palavras para daí obter um ritmo, que lhe era intuitivo. Chico escutou muitos
tipos de música e tinha aptidão nata para trabalhar a linguagem de forma
musical. Por ter tido contato com comunidades de baixa renda como as de
Peixinhos, Rio Doce, Ilha do Maruim e outras do Grande Recife, ele absorveu o
linguajar, a sonoridade e aproveitou-se da psicodelia para ressaltar o
inusitado das imagens. Recife perdia o peso do ser, se esvaziava e se enchia
tornando-se diferente a cada verso, como se existisse no mundo numa hora
estranha onde ontem, hoje e amanhã se confundiam.
No trabalho poético com
o signo lingüístico, o significante Recife é substituído às vezes por
“Manguetown” como num rompimento de um contrato e a celebração do novo signo
como meio de superar ou resolver uma dificuldade. A esperança é camuflada pelo
gozo de ser expresso na exploração máxima da sonoridade das vogais,
alongando-as e interpretando as palavras como se houvesse uma exclamação após
cada uma delas. O senso de espetáculo e/ou festa parecem impregnar cada uma das
composições. Um atrevido arrebatamento é posto em ação. O “real” da vida ou
o que seria o “referencial” transformado em linguagem torna-se aventura
festejada.
Ao comentar os textos
de Barthes e Mallarmé, o professor Antoine Compagnon comenta algo que em muito
se assemelha com o nosso estudo sobre Science:
Barthes
cita, em nota, Mallarmé para justificar essa exclusão da referência e esse
primado da linguagem, porque é exatamente a linguagem, tornado-se, por sua vez,
a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como
se fosse necessário, ainda assim, um real. E na verdade, salvo se conduzirmos
toda a linguagem a onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo que a
linguagem pode imitar é a linguagem: isso parece evidente (COMPAGNON: 2001, p.
101).
Poesia e realidade
transformadas em produtos comerciais onde o que parecia imitado não eram os
habitantes do Recife, mas a ação deles, o modo como eles se expressam. Muito
mais o artefato sonoro-poético produzido pelo “imitador” (Chico) do que o
objeto imitado, o homem pobre e a cidade estigmatizada. No arranjo que o poeta
faz não importava mais se sua interpretação era fruto do engajamento ou da
alienação. A natureza, o lugar, a poesia, a cultura e a ideologia parecem de
tal forma estar amalgamados, que olhar o que aconteceu no Recife de Chico
Science faz-nos muito mais pensar no que poderia ter acontecido. O
absurdo poeta-caranguejo era persuasivo ao desconstruir antigos
conceitos de representação da cidade ou da “terra dos altos coqueiros / de
beleza soberba estendal”, da “nova Roma, de bravos guerreiros / Pernambuco /
imortal, imortal” como está na letra do livro de Pernambuco, cujo autor é Oscar
Brandão da Rocha.
A
representação scienciana surge como ápice de um século que em Recife foi
marcado pela procura da própria identidade, um projeto controverso e cheio de
perspectivas numa era onde a cibernética popularizou-se
Por isso não abordamos
Science com uma aparelhagem estruturalista: optamos pelos estudos culturais,
por analisar a postura do poeta diante de um contexto que lhe era adverso e
como ele reverteu esta situação através da blague, do humor afrociberdélico,
numa particular interpretação daquele momento, o final do segundo milênio, os
anos 90 na Manguetown, provocando nova ilusão ao substituir a realidade pela
sua representação.
São paradoxais as
relações da poesia de Chico com o Recife: não podem ser definidas nem como
miméticas nem como antimiméticas. A cidade recriada parecia com a anterior
depois de teatral metamorfose. Seria impossível, neste caso, eliminar
totalmente a referência, mas a urbe aparece como alucinação, ficção, ilusão
poética como num show de mágica: “sumiu”, “voltou”, mas não é a mesma: é um
truque. Havia relações, agenciamentos, mas era o Recife como se fosse outra
cidade e o habitante transforma-se em turista acidental ou espectador de si
mesmo, ouvinte da própria história que parecia só existir por estar sendo
recontada daquele modo. Eis o valor heurístico, o valor da arte de inventar: a
representação scienciana surge como ápice de um século que em Recife foi
marcado pela procura da própria identidade (Regionalismo e o Movimento Armorial
do paraibano Suassuna que se desenvolveu nesta metrópole), um projeto
controverso e cheio de perspectivas numa era onde a cibernética popularizou-se.
Com a
digitalização e seus efeitos de onipresença e onividência (graças à ubiqüidade
do sujeito nas redes telemáticas), ser e estar não são verbos que possam mais
se colar semanticamente, (como na língua inglesa). A identidade desenraiza-se,
libera-se de suas contenções físicas localizáveis num espaço determinado e
aceita possibilidades inéditas de heterogeneização ou mesmo de fragmentação
[...] a consciência do sujeito assim como as relações intersubjetivas não podem
deixar de ser afetadas [...]Os corpos tornam-se vulneráveis à irradiação viral
dos signos, e as identidades podem ser produzidas como um bem de mercado, ou
então como qualquer figuração delirante na realidade sintética do ciberespaço
(SODRÉ, 1996. p. 178-179).
E a “figuração
delirante” na obra de Chico envolve as tradições e a literatura locais
misturando-as, como viemos afirmando, com a tecnologia nos anos 90, que
atingira as massas de forma avassaladora e a internet, que ajudou a estabelecer
novos parâmetros na mídia. Os mangueboys puderam contar já com estes recursos
que se encaixavam com a proposta da cidade reinventada, agora virtual e pronta
para ser despachada para qualquer lugar do mundo onde houvesse acesso à rede.
Colaram o que viam com o que ouviram dizer:
Este
corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que soul
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu
[...] eu caminho como aquele grupo de caranguejos
ouvindo, a música dos trovões
[...] há muitos meninos correndo em mangues distantes
[...] essa rua de longe que tu vê
esse mangue de longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
(CSNZ, 1996)
é apenas a imagem que soul
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu
[...] eu caminho como aquele grupo de caranguejos
ouvindo, a música dos trovões
[...] há muitos meninos correndo em mangues distantes
[...] essa rua de longe que tu vê
esse mangue de longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
(CSNZ, 1996)
Nesta
letra de Science, chamada “Corpo de lama”, além da liberdade gramatical a
liberdade de interpretar os signos como se fossem almas ou até ritmos musicais
(a imagem que “soul” – “alma” em inglês e um “ritmo” de música). A “música dos
trovões”, que os caranguejos escutam é uma referência ao romance de Josué de
Castro Homens e Caranguejos, no qual, aproveitando-se que os caranguejos
ficavam desnorteados em dia de tempestade com trovões, os homens forjavam
barulhos para simular esta situação e capturá-los assim. O “Corpo de lama”
também é referência aos pescadores do mangue, metonímia de determinada
população miserável da Manguetown que agora parece sem o cheiro na mídia. Com o
mangue e seu aparato tecnológico, a cibernética se instala na cultura recifense
definitivamente: Recife caiu na rede, comunhão entre homem e máquina. A
transmissão de um indivíduo de um lugar para o outro deixa de ser uma hipótese.
Tanto
a proteína (humana) como o metal (máquina) seriam transcendidos pela realidade
de informação, suscetível de transmissão eletrônica [...] a mutação se daria
pelo acoplamento do corpo humano a dispositivos maquinais [...] montagem de
personalidades combináveis [...] ritmo [...] a identidade viabiliza-se como um
jogo de signos realizados por imagens, que circulam aceleradamente, de forma
contagiante, à maneira de um processo viral [...] simulacros que se incorporam
aos sujeitos, criando outro tipo de relação com o mundo físico. (SODRÉ, 1996,
p. 173-174).
O
“contágio”, ao qual se refere Sodré, era justamente a proposta do mangue. Do
mesmo modo que os habitantes/consumidores da Manguetown se transformaram em
caranguejos ao beber cerveja feita com água do mangue, com baba de caranguejo,
transformando-se em seres mutantes. A contaminação sígnica:
O
indivíduo atribui-se o nome que deseja e pode neste mesmo ato inventar e viver
uma identidade alternativa [...] superação da realidade corporal primitiva
[...] que no fundo seria pura desordem e falta de razão [...] multifacetado, o
sujeito, que se define como suporte permanente de traços acidentais, depara com
a sedução imagística e assiste à relativização da permanência pela mobilidade
veloz das máscaras, das variadas posições de indivíduos-atos, inerentes à
pessoa [...] é tentador buscar na ficção científica inspirações utópicas [...]
de mutações psíquicas e corporais” (SODRÉ, 1996. P. 175-177).
MAIS
>
2008 marca o centenário do nascimento de Josué de Castro (5/9/1908), que morreu
no exílio, em Paris, há 35 anos (24/9/2003). Para maiores informações sobre sua
vida e obra, pesquisar em www.josuedecastro.com.br. Há também um verbete
na Wikipedia
>
Ler também, em
Le Monde Diplomatique-Brasil :
Josué de
Castro, pensador indispensável
No momento em que a humanidade se depara com crises simultâneas de mudança climática e escassez de alimentos, vale a pena revisitar um pernambucano que dirigiu a FAO. Há meio século, ele já sugeria que só se pode combater a fome distribuindo renda e respeitando os limites da natureza (Por Marilza de Melo Foucher).
No momento em que a humanidade se depara com crises simultâneas de mudança climática e escassez de alimentos, vale a pena revisitar um pernambucano que dirigiu a FAO. Há meio século, ele já sugeria que só se pode combater a fome distribuindo renda e respeitando os limites da natureza (Por Marilza de Melo Foucher).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO,
Josué de. Geografia da
fome. Rio de Janeiro: Gryphos, 1992.
CASTRO,
Josué de. Homens e
caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001
COMPAGNON,
Antoine. O demônio da
crítica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
FOUCAULT,
Michel. As palavras e as
coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GILROY,
Paul; GROSSBERG, Lawrence; McROBBIE, Angela (org.). Without Guarantees: In Honor of Stuart
Hall. London: Verso, 2000.
GLISSANT.
Édouard. Caribbean
Discourse. Charlottesville: University of Virginia Press, 1992.
GREINER,
Christine; BIÃO, Armindo. Etnocenologia.
São Paulo: Annablume Editora, 1998.
HABERMAS,
Jürgen. O discurso
filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HALL,
Stuart. A identidade cultural
na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Editore, 2001.
HALL,
Stuart. Da diáspora –
identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.
ORTIZ,
Renato. Notas históricas
sobre o conceito de cultura popular. São Paulo: Kellog Institute,
1986.
ORTIZ,
Renato. A moderna tradição
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.
SODRÉ,
Muniz. Reinventando @
cultura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1996.
JORNAIS
GÓIS,
Ancelmo. Recife-Favela. Jornal do Commercio, 29 set. 2003. Caderno 1, p. 2.
GRAVAÇÕES
EM COMPACT DISC
CHICO
SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da Lama ao Caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994. 1
disco laser. Gravação de som. CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Afrociberdelia.
Rio de Janeiro: Sony Music, 1996. 1 disco laser. Gravação de som.
[1]
GÓIS, Ancelmo.“Recife-Favela”, Jornal do Commercio.Cad. 1, pág. 2, 29.09.03
[1] Moisés Monteiro de Melo Neto é
Mestre e Doutor em Letras pela UFPE, professor da Escola Superior de Relações
Públicas (Esurp). É autor de peças teatrais como Anjos de Fogo e Gelo (sobre a vida de Arthur Rimbaud), encenadas
com sucesso e livros como Chico Science:
A Rapsódia Afrociberdélica, sobre o Movimento Mangue, além de artigos
publicados em jornais e revistas como a Le
Monde Diplomatique.
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