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domingo, 29 de dezembro de 2013

MOISÉS NETO e o Teatro cardoziano: literatura intensa

O CAPATAZ DE SALEMA
A PEÇA DE JOAQUIM CARDOZO
 Por MOISÉS NETO


Joaquim Cardoso é antes de tudo um poeta. Foi engenheiro por acaso. Esta peça escrita em verso é permeada de um poético surreal encantatório discurso. Quase todos os versos têm sete sílabas (e são brancos). São três personagens: O tal “capataz” (pescador?), Luzia (moradora de caiçara) e a avó/madrinha dela, Sinhá Ricarda (espécie de coro/fantasma). O mar é sugerido como personagem, ou como efeito fundamental para a encenação, o que exigiria recursos sonoros sofisticados.
A trama é simples João, o “capataz”, chega à casa de taipa coberta de palha e zinco, de frente para o mar. É tarde da noite e Luzia e a avó, doente, já se recolheram. Ele vem saber, mais uma vez, por que a moça o rejeitou. Ela diz que é terra, e ele é mar. Dois elementos que se encontram, mas não podem se unir.
A linguagem é um tanto quanto barroco – regionalista, lírica, acima de tudo, surreal busca de leveza, deste poeta-mestre do encantamento, Cardozo. A estrutura poética cria imagens fascinantes. Algo aqui nos lembra Garcia Lorca (poeta-dramaturgo espanhol). Não se pode dizer que o texto tem boa carpintaria teatral. Predominam as metáforas para homem/mar e mulher/terra. Céu, morte, noite, amanhecer.
“Vim de mares distantes (...) tentar a última vez (...) num pedido derradeiro implorar / que me digas a razão / Por que... me repeles”, diz João que em imagens neobarrocas se inflama: “Em busca da luz polar; / De tuas graças morenas”.
Joaquim, que ajudou Niemeyer a construir Brasília, aqui parece arquiteto de um sonho. Sua postura metafísica nos sugere o impossível dentro dos limites do real: água, areia, ressaca, bonança, morro, nuvem.
A segunda vez que João viu Maria foi num dia de procissão em Recife. Vestido de renda e galão, cravos no peito e “uma rosa em cada mão. Há chavões como “acavalo alazão” chamado “Ideal”, ou “fazer cortesia; num dia de carnaval”.
Assim ele se define “sou capataz/fiscal de pesca no mar/saber que sou capataz/ De Salema. Lá naquela / Praia do Norte, possuo / Também pequeno estaleiro / De bancos a vela/ E, mesmo... / nasci em terras de mangue, / onde se abraçam as marés, / em cujas águas brinquei / muitos siris apanhei”. Vemos aqui o mangue, o duplo doce / salgado. “andei por todas as praias / Dessa costa do nordeste; / Guardei todos os costumes / de nossa gente”. Sim, Joaquim descreve, aqui e acolá, alguns costumes regionais: comidas, etc.
Mas, Luzia não quer o amor dele: “Sou terra escura e constante/ És o mar independente”. Ora, poderíamos buscar aqui o jogo Luzia (luz) e Salema (sal) – misturado antes com água, depois solidificado.
A mulher que recebe no seio, humilde, “tudo que o mar rejeita. A avó/madrinha, Sinhá Ricarda, avisa: “cuidado! Que o mar derrama... / cuidado! Que o mar rasteja.
Numa de suas lembranças Luzia conta que teve boneca de louça na infância, que, quebrada em laços, num delírio foi levada por “canarinhos”, ao que o capataz, de modo enigmático, retruca: “É bem possível que à morte/ não só os vivos estejam ; sujeitos”. Metafísico, não? Poético.
Os chavões são inevitáveis: “Mulher sabe dar. Dar/ Vida e, portanto também / morte. Porém, como a terra. / Ela precisa de muito / Que em si própria não tem” (aqui ela fala de uma seca que veio do “alto sertão”, ao que o capataz / João retruca: “aqui tenho o que te falta: / é o meu amor verdadeiro. / Mais fiel que o meu veleiro. / Velejando em maré alta”. Ao que ela rebate: “minha terra tem marés / marés que são de águas vivas”, e a avó: “Toda mulher é uma várzea / onde um canavial cresceu (...) minha safra se perdeu”. A avó perdeu, viu morrer todos os seus filhos. Ela teve presságios como jangadas voando à noite, cruzando com a luz do farol. Ela própria ao morrer no final da peça é tida pela neta como um farol.
            
João ainda promete a Luzia que se ela se casar com ele: “Todos os dias trarei / o peixe melhor que encontrar” (camorins, Ciobas, garajubas, cavalas, “pernas de moça”. E “se Casares comigo/ tua será minha lancha (...) a minha rede de arrasto”. Mas ela recusa: “Gosto de ficar sozinha / De nunca ser pressentida / De nunca ser contemplada / no que em mim há de mim mesmo”. Há um pouco da solidão mística cardoziana, poética, aqui. Algo de mestre.” E me julgo encarcerada / Por meu corpo me sentindo / A um outro corpo algemada / Casar é louco ideal / É no querer de ser um / Somente alguém se obter/ Que ainda é duplo e desigual / – Ilusão de achar comum / O que é contrário e irreal”. Logo aqui Cardozo busca a musicalidade no seu Simbolismo. Mais parece letra de música! E o enamorado (mar) responde à sua amada (terra) “Do que te disse que não, / Não sabes dizer que sim”. Se despede dizendo que é forte e vai levando a lembrança da roupa dela cheirando a malva-rosa e alecrim e vai levando a certeza: há de ouvir falar de mim / E verás na noite azul / A estrela negra anoitando / A minha sorte ruim”.


                                

Quando ele parte a avó morre e Luzia depois de cobri-la numa espécie de transe poético / profético entre os últimos versos do texto teatral: “Como terra que sou (...) eu mesmo quem te encerra;/ Quem te cobre para o fim / Morte-mãe. Morte-avó de mim/ De mim, terra e mulher/ nem de terra nem de mar serás / Nem de vento hás de ter véu./ Madrinha! Serás um farol/ Um farol em torno do qual / Jangadas verás passar / Voando. Voando para além... / E este farol de tão breve / Não dá para guiar navios (...) Mas será o bastante / Para servir de coivara / Na minha roça perdida / Em terra inútil e cansada / Nela somente deixando / Marca de terra queimada!.
Então a avó seria o elemento que faltava aqui. O mar (água), a terra, ar (vento) e ela... o fogo! (a coivara). Completada a alquimia cardoziana, Luzia sai em busca do seu destino. Há então a sugestão de um canto e de um coro: “Vento que sempre ouvi cantar / Vento alento da terra / Canto pranto da terra que morre / Estendida aos pés do mar (...) ainda te ouvirei / Quando enfim tu descrever / Chovendo água de chuva / No mar onde estarei / Vento terral / Vento Luzia!
É surreal, é poético: as chamas envolvem o cadáver de Sinhá Ricarda.

João Roberto Costa do Nascimento, Secretário de Cultura da Prefeitura Cidade do Recife enfatiza sobre a publicação da obra teatral de Cardozo: Editar texto cardoziano não é ato que se pratique para honrar a memória desse dramaturgo quase desconhecido, poeta notável, engenheiro calculista de rara competência, humanista e erudito, pois honra nunca lhe faltou, nem para auferir dividendos de direitos autorais, que nada acrescentam à grandeza de sua alma. A quem poderiam interessar, uma vez disponíveis, as estantes das livrarias e bibliotecas, as seis peças de Cardozo que agora se publicam? A resposta é simples: à instituição editora, no caso, Prefeitura do Recife, que ganha o privilégio de oferecer aos leitores um valioso produto intelectual, e à comunidade leitora, que recebe este presente como quem desenterra uma botija cheia de pedras preciosas.
Reapresentadas em brochuras simples, bonitas e acessíveis, pela Secretaria de Cultura, por meio de sua Fundação, lançadas no IV Festival Recife do Teatro Nacional (2001), as seis peças haviam sido anteriormente editadas, na seguinte ordem cronológica: Civilização Brasileira (O coronel de Macambira, 1963); Ediouro (O coronel de Macambira, 2ª ed., 1970); Agir Editora (De uma noite de festa, 1971); Diagraphis (Os anjos e os demônios de Deus, 1973); Agir Editora (O capataz de Salema, Antônio Conselheiro e Marechal, boi de carro, em único volume, 1975). Tanto tempo sem acesso à obra teatral de Joaquim Cardozo justifica o esforço conjugado de pesquisadores, dramaturgos e Prefeitura em preparar a presente edição de cinco volumes, que reúne em um deles Antônio Conselheiro e o Capataz de Salema, ficando os demais em volumes independentes. É princípio básico da atual gestão municipal oferecer ao público a oportunidade de usufruir, a preço módico, todo e qualquer bem cultural, em cuja produção a Prefeitura tenha participação majoritária, como é o caso destes livros que compõe o teatro completo de um dos mais expressivos e talvez o mais ignorado dos dramaturgos brasileiros.

            O escritor e professor potiguar João Denys Araújo Leite fala sobre a obra de Joaquim Maria Moreira Cardozo (1897 – 1978): Afastando-se da forma dos espetáculos populares que arquitetou seus Bumbas O coronel de Macambira (1963), Marechal, boi de carro (1975) e o Pastoril Os anjos e os demônios de Deus (1973), Cardozo mantém em seus textos a luta infindável dos subalternos em busca de uma atitude na qual prevaleça um pensamento independente e uma conquista de liberdade, ou seja, ele persiste em colocar os errantes e desvalidos na vanguarda dos seus textos teatrais, protagnizando suas histórias, fazendo-os emergir, ainda que mortos, dos escombros de suas derrotas. Essa luta dos deserdados, filtrada pela voz do poeta, não poupa nada, não poupa ninguém. Nem a vida, nem a morte, nem as sedutoras promessas do amor.
Em O capataz de Salema o conflito irresolvido (a paixão de um homem que manda e vigia pescadores por uma jovem filha de pescadores) e estabelecido por quatro personagens antagônicas: Sinhá Ricarda, velha mãe de pescadores, no fim dos seus dias; Luzia, jovem neta de Sinhá Ricarda; o Capataz, apenas nomeado pela sua condição, e o Mar, personagem sonora antilusionista, como um concerto concretista, um emaranhado de sons presente em todo o desenrolar da ação.
As personagens são profundamente marcadas pelas diferenças sociais (masculino-feminino, comandante-comandado, diferentes níveis de pobreza) que as identificam e as oprimem, e as forças dos elementos que as dominam (a terra, a água, o fogo, o vento). A terra (fêmea), que tudo germina, e o mar (macho), que tudo oferece e tudo devora, entabulam uma aproximação que possui a mesma pulsação das ondas sobre a areia da praia. Toda a cadência do texto expressa essa imagem. Nela, a natureza, a cultura, as oposições, a sorte ruim, se atritam em face do mito que engendra e devora seus filhos.
Cardozo, com O capataz de Salema, alcança o maior grau de concisão dramatúrgica. É a peça de menor extensão de sua obra dramática; com menor número de personagens; em um único ato e desenrolada num único espaço (o casebre de Sinhá Ricarda).
Os dois textos, épicos contemporâneos, que hoje vêm aos olhos e à imaginação dos leitores são dois polos formais distintos, cujo conteúdo se expande de um mesmo vórtice de imagens e contraimagens características da singular obra dramática cardoziana. Nestes textos, como em toda a sua dramaturgia, o autor não se furta em experimentar linhas, formas, volumes, cores, sons, numa grande sinfonia tanática de palavras para a cena nova que constrói. Neles, ainda, revela-se mais apurada a sua visão de artífice imaginário da cena e do teatro, mesmo sem tê-lo praticado na rua ou no tablado. Suas proposições modernas de teatro híbrido, épico, político, social, sem proselitismo, mas essencialmente dialético e o sobremaneira poético-teatral, nos faz perceber, por exemplo, o sonoplasta que transcende poeticamente sua função, conferindo uma dimensão ousada e atual as suas criações como, por exemplo, a personagem Mar, sonora, polifônica, invisível com sua vertiginosa presença em todo O capataz de Salema. Se o leitor penetrar em toda a sua obra irá descobrir também o exímio coreógrafo, o lúcido iluminador, o claro construtor de máscaras e vestimentas, o poeta encenador contemporâneo a ordenar os ínfimos detalhes de sua encenação. As indicações cênicas de Antônio Conselheiro nos fazem reconhecer um Cardozo agindo como um diretor de cinema, em proveito do teatro, com seus cortes, suas montagens, seus fragmentos, suas visões panorâmicas contrapondo-se a pequenos detalhes, suas fusões, seus efeitos.
Enquanto que em O capataz de Salema prevalecem a quase pétrea imobilidade, o âmbito restrito e particular, a idéia de que entre os pobres existem aqueles que dominam outros mais pobres, em Antônio Conselheiro predominam a multiplicidade, a exuberância de quadros dispostos lado a lado, como num vagão, como numa feira se dispõem as barracas. Destaca-se na peça sobre o povo de Canudos a síntese da carnificina, os desdobramentos da infâmia, as orações, o deboche bestial das elites “competentes”: historiadores, sociólogos, jornalistas, clérigos, entre outros, quais santos nos altares.
O capataz – visitando Luzia em seu casebre, nas proximidades de Olinda, para declarar sua paixão através da noite mais escura – é detentor de uma ampla carga semântica concentrada na palavra Salema: nome de um belo peixe – em sua coloração esverdeada, plúmbea e prateada, ornado com um círculo negro -, comedor de outros peixes e que, entre outras denominações, o chamam mercador. Seus significados ampliam-se, no contexto da peça, se jogarmos com os deslocamentos e combinações de suas letras e sílabas: ele ama e implora que o ame; ele é de sal e de mar; ele é sela e cela de si mesmo; é figura do além a exsudar, por amor, seu mel, seu mal, seu lema e sua lama.
A recusa aos grandes discursos salvacionistas que exaram promessas e um mal-disfarçada piedade pelos famintos e desamparados percorre as duas peças, aqui vizinhas. Porém, o que é conjectura e impossibilidade em O capataz de Salema realiza-se como amor pleno,
Em O capataz de Salema, o Mar, para além do mito que ele representa, é fonte de toda riqueza e beleza daquele universo enfocado. Porém, é também e antes de tudo, o campo de trabalho, de batalha cotidiana pela sobrevivência. Se o mar oferece aos homens tantas dádivas, é, na opinião da endurecida Luzia, de onde Vem é a miséria, é a morte / A fome dos pescadores / Que capatazes não são... / Que sofrem tempos sem conta / Sem de ninguém proteção.
A impossibilidade da convivência amorosa do Capataz com Luzia, a inadequação de forças contrárias, a união do homem e da mulher produzem, igualmente, um significado subjacente: o inconformismo de Luzia, sua não aceitação do imobilismo, seu descrédito nas inúteis promessas de uma vida melhor, feitas por quem explora o trabalho dos outros, por quem manda e oprime.
Na peça do amor impossível entre um homem e uma mulher, tudo finda em direções opostas e o que resta é um corpo crepitando em chamas, como num ritual fúnebre indiano, à beira das águas, feito um farol, um luzeiro, uma coivara para guiar os mortos de fome e da mar. Que o leitor não se assuste. Tudo está para começar e você pode descobrir um universo insondável se empreender a leitura desse teatro varado pela Morte com o sabor da Vida, em que arte e cultura se conjugam numa obra e num autor dramático dos mais relevantes de uma história do teatro brasileiro que ainda está para ser escrita.








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