Pesquisar este blog

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Anotações para a minha palestra sobre o romance O Retrato de Dorian Gray, Livraria Jaqueira, novembro de 2013



DORIAN GRAY e o espelho do que seria a vida
                                                                                      por Moisés Neto

“A arte tem uma alma, mas o homem  não a tem”
  (Oscar Wilde, em O RETRATO DE DORIAN GRAY)

Dorian Gray é romance publicado nos últimos anos do século XIX, 1891, em plena  Belle Époque e traz um viés parnasiano. Wilde não aprofundou nenhum dos seus personagens e quase todos falam como se estivessem numa loja de departamentos escolhendo mercadorias.  Não há ali possibilidade  de pobres dizerem algo que preste. Mulheres são fúteis e/ ou iludidas, embora a mulher do mentor de Dorian,  Lorde Henry (ou Harry), vá, depois de muito ser colocada em último plano, trocá-lo por outro homem.
* Começo a citar a edição das obras completas de Wilde, editora Nova Aguilar (p91)

 Homens neste livro são andróginos  em seus perfis dândis, e Londres é um carrossel de vaidades, por onde Narciso passeia. O esvaziamento de Narciso é emoldurado por uma fábula rebuscada, perfumada e asséptica.  O decadentismo é apenas uma futilidade que se não espanta aos olhos do nosso século XXI, também não atrai crítica pertinente aos burgueses vitorianos de Wilde, uma nobreza esnobe envolta em luxo e insensatez, pensando somente em si mesma e dane-se o resto!  Nosso Dorian é petulante e voluntarioso, como tantos jovens louvados como inteligentes e bonitos que se põem a admirar a si mesmos: louro, olhos azuis, lábios rubros, eternizado por Basil Hallward e insuflado por Lorde Henry Wotton, nosso radioso, adolescente com 20 anos, é um PRÍNCIPE ENCANTADOR, como o chama sua apaixonada Sibyl Vane, atriz de um teatro  pobre, a primeira vítima de mister Gray, nosso Narciso-Fausto, no seu pacto empulhado com um diabo que nem o narrador sabe quem é e só uma prostituta velha e bêbada ousará sugerir.
Em vez do lago  de narciso, Dorian tem um retrato obra-prima para mirar-se. Em vez do pacto, a dubiedade de uma alegoria é oferecida ao requintado leitor dessa obra. O texto reflete o espectador e não a vida  na sociedade do espetáculo. Texto espelho-lago à espera do Narciso-leitor, um magnífico ambiente entorpecente de perfume e cenário esplendoroso. E... o retrato é a fusão também da beleza do jovem em tensão com intelecto homem maduro.
(p.57)


Então: intelecto em excesso faz mal à beleza, é Narciso? Sem religião, sem um relato profundo sobre o passado, assim flagramos nosso infante terrível: sua mãe  era bela, mas engravidou de um pobre e o pai dela, o avô de Dorian e que lhe deixou fortuna, mandou matar o desgraçado porque era pobre. Nasce Dorian, a mãe morre. O avô é tirano. É só o que sabemos. E a infância? E a adolescência? Quase nada. Ele aparece como um objeto e o jogo se dá ao redor do espelho social com requintada moldura, no centro está o menino bonito que enfeitiçou o artista, tudo é arte e sofisticação, a arte do bon vivant , como Basil, autor do quadro maldito que dá nome ao romance, explica a Harry: o que a arte pode?
(p.63)

O retrato de Dorian Gray é um BRIC-À-BRAC, miscelânia, arquitetura narcísica sustentado por aforismos, às vezes mal costurados (p 28-30) como: “amar a si mesmo é o começo de um romance perpétuo”, “O primeiro dever na vida é ser tão artificial quanto possível. Quanto ao segundo dever, ninguém ainda o descobriu”, “nenhum crime  é vulgar mas toda a vulgaridade é um crime”.
É um texto que afirma que toda a influência é negativa. “Não existe influência boa... toda ela é imoral... a finalidade da vida é o desenvolvimento próprio... o mais elevado dever é o dever para consigo mesmo”. (p 68)
E incita o leitor a saciar todos os desejos para que não se transformem em veneno, e é bom não nos pouparmos de realizar nossos desejos, pois “somos castigados  por nossas renúncias”; não precisamos ter medo do desejo por aquilo que umas leis monstruosas fizeram monstruoso” (p 68-69)
Dorian conhece Basil há poucos meses quando o encontramos no primeiro Capítulo  dos 19 que se seguem; em todos o mesmo mote: a juventude é a única coisa que vale a pena. O mistério do mundo é o visível, o que vale é a aparência. O triunfo cabe a Narciso, até aqui
(p 74):

“Perdendo a juventude, matar-me-ia!”, diz Dorian (p 75).
Mas o tom em geral é de superficialidade; Wilde mostra suas cenas como numa exposição, cabendo ao leitor conclusões ou dúvidas.  Lorde Henry resume no seu personagem  o a bidimensionalidade especular: “posso simpatizar com tudo , menos com o sofrimento[...] quanto menos falarmos sobre as chagas da vida, tanto melhor”, diz Harry (p 85).
A política é criticada em tom de chacota, o mesmo utilizado para menosprezar os norte-americanos, no texto, que são exibidos como grosseiros/ vulgares, longe dos padrões estéticos aceitáveis.
O amor é reificado, coisificado, e só exprime-se nas duas vezes que Dorian ama, e o leitor não tem acesso aos diálogos que Dorian mantém com Hetty, sua segunda bem-amada. . . como muita coisa neste livro só temos acesso às informações depois do ocorrido.
Quanto aos pobres, eles jamais teriam capacidade de atingir um nível intelectual superior, pois são “gente vulgar e grosseira, feições rudes e de  gestos brutais [...] pensar que... essa gente tem a mesma carne e sangue que nós! Oh, não o creio”, diz Harry. (p 116-117)
E “crime é coisa de pobres”: “O crime é propriedade exclusiva da classe baixa. E não a censuro por isso. Imagino que o crime é para ela o que a arte é para nós; simplesmente um meio de alcançar novas sensações”. (p 216)
O próprio Narciso se desconstrói (“sentiu uma infinita piedade, não por si, mas pelo retrato”- depois da morte de Sibyl), mas logo se recupera e beija seus próprios lábios do reflexo (sua própria imagem no quadro), enamorou-se do espelho/ retrato, mas agora o espelho está deformando sua imagem...

                                       (p 134)

O horror concentra-se num cômodo da velha mansão de Gray, no antigo salão de jogos, de estudos, onde passou parte da infância, para onde ele levou o quadro que é na verdade a sua alma envilecendo, envelhecendo de maneira sinistra: “ o horrível objeto [de] corrupção própria, pior ainda que a corrupção da morte”, precisava esconder o espelho, ele agora era o espelho e o espelho era sua alma... prestes a afogar-se num lago maldito!

                                     (p144)
Mas nem isso detém o clima satírico que paira sobre o romance que mescla horror e banalidade ás mais interessantes e /ou fúteis teorias artísticas que tanto nos engrandecem, às vezes.
Depois de citar Dante, o narrador compara Dorian a Petronio, autor de Satiricon, árbitro de elegância que retratou com audácia a época em que viveu (70 DC, Roma), como Dorian faz com Londres.
Às vezes são 10 páginas seguidas sem quase citar nenhum personagem da trama, só uma crítica artística, uma “aula” sobre o belo (p155-165).
Na página 168, sabemos que Dorian já desencaminhou muitas pessoas, principalmente rapazes, Basil comenta isso pouco antes de ser assassinado por seu modelo favorito, Dorian.  Esse crime é precedido por frases como ”você vai ver o que, segundo se crê, só Deus pode ver” (p 170). O retrato é como o diário de Dorian, é também, como dissemos, sua alma. 
O horror de Basil (p 174), pintor do retrato de Gray reflete-se em Dorian  e nos é transmitido através do narrador: “Vamos rezar, Dorian, vamos rezar! Não foi isso que ensinaram na nossa infância? ‘Não nos deixeis cair em tentação[...] minha adoração por você foi grande demais. Fui castigado por isso. Você também venerou a si mesmo em demasia...”

Inicia-se o terror de Dorian...


                                     (p 180)

Nesse ponto, há algo no texto sobre psicólogos e o desejo do pecado (p 198):

É a tal prostituta de um opiário que diz que Dorian se vendeu ao diabo (p 200), mas isso não é nada diante da arte e da ... felicidade que o leitor já desfrutou ao lado desse enfant terrible!
No penúltimo capítulo (XIX), Dorian resolve ser “bom”, amainar seu narcisismo e hedonismo, seus atos “terríveis”, permanecendo no campo. Apaixona-se uma segunda vez, agora por Hetty, mas resolve poupá-la de sua vilania. Harry diz que isso não seria possível, depois que alguém conhece algo superior não se acostumaria ao vulgar ou ao óbvio tão facilmente.
Mas de si mesmo Narciso não escapa e ao tentar fazer algo de bom, Dorian pensa que o retrato, isto é, sua alma, voltaria a ter traços menos terríveis, porém não é o que acontece. O espelho distorcido de Narciso apenas reflete-o mais cínico, irônico e Dorian continua mais aterrorizado diante da ideia da morte. Ele está depressivo, Harry, abandonado pela esposa, consola-o:

                   (p 219)
Mas Dorian começa a  pensar diferente, numa espécie de síndrome de pânico:


                                             (p221)
O narciso vai murchando; solitário, nosso anti-herói quer destruir o retrato com a mesma faca que matou o pintor que o eternizou naquela imagem, mas a faca atinge o próprio Dorian e a arte vence: o retato rejuvenesce, enquanto o cadáver de Gray é o mais sórdido possível.
O Lago de Narciso é purificado depois do afogamento em sangue humano, seu próprio sangue estranho rito de passagem.
The dream (or nightmare)is over!




Nenhum comentário:

Postar um comentário