DORIAN GRAY e o espelho
do que seria a vida
por Moisés Neto
“A
arte tem uma alma, mas o homem não a
tem”
(Oscar
Wilde, em O RETRATO DE DORIAN GRAY)
Dorian Gray é romance
publicado nos últimos anos do século XIX, 1891, em plena Belle
Époque e traz um viés parnasiano. Wilde não aprofundou nenhum dos seus
personagens e quase todos falam como se estivessem numa loja de departamentos
escolhendo mercadorias. Não há ali possibilidade de pobres dizerem algo que preste. Mulheres
são fúteis e/ ou iludidas, embora a mulher do mentor de Dorian, Lorde Henry (ou Harry), vá, depois de muito
ser colocada em último plano, trocá-lo por outro homem.
* Começo a citar a edição das obras completas de Wilde, editora Nova Aguilar (p91)
Homens neste livro são andróginos em seus perfis dândis, e Londres é um
carrossel de vaidades, por onde Narciso passeia. O esvaziamento de Narciso é
emoldurado por uma fábula rebuscada, perfumada e asséptica. O decadentismo é apenas uma futilidade que se
não espanta aos olhos do nosso século XXI, também não atrai crítica pertinente
aos burgueses vitorianos de Wilde, uma nobreza esnobe envolta em luxo e
insensatez, pensando somente em si mesma e dane-se o resto! Nosso Dorian é petulante e voluntarioso, como
tantos jovens louvados como inteligentes e bonitos que se põem a admirar a si
mesmos: louro, olhos azuis, lábios rubros, eternizado por Basil Hallward e insuflado
por Lorde Henry Wotton, nosso radioso, adolescente com 20 anos, é um PRÍNCIPE
ENCANTADOR, como o chama sua apaixonada Sibyl Vane, atriz de um teatro pobre, a primeira vítima de mister Gray, nosso Narciso-Fausto, no
seu pacto empulhado com um diabo que nem o narrador sabe quem é e só uma
prostituta velha e bêbada ousará sugerir.
Em vez do lago de narciso, Dorian tem um retrato obra-prima
para mirar-se. Em vez do pacto, a dubiedade de uma alegoria é oferecida ao
requintado leitor dessa obra. O texto reflete o espectador e não a vida na sociedade do espetáculo. Texto espelho-lago
à espera do Narciso-leitor, um magnífico ambiente entorpecente de perfume e
cenário esplendoroso. E... o retrato é a fusão também da beleza do jovem em
tensão com intelecto homem maduro.
(p.57)
Então: intelecto em
excesso faz mal à beleza, é Narciso? Sem religião, sem um relato profundo sobre
o passado, assim flagramos nosso infante terrível: sua mãe era bela, mas engravidou de um pobre e o pai
dela, o avô de Dorian e que lhe deixou fortuna, mandou matar o desgraçado
porque era pobre. Nasce Dorian, a mãe morre. O avô é tirano. É só o que sabemos.
E a infância? E a adolescência? Quase nada. Ele aparece como um objeto e o jogo
se dá ao redor do espelho social com requintada moldura, no centro está o
menino bonito que enfeitiçou o artista, tudo é arte e sofisticação, a arte do bon
vivant , como Basil, autor do quadro maldito que dá nome ao romance,
explica a Harry: o que a arte pode?
(p.63)
O
retrato de Dorian Gray é um BRIC-À-BRAC, miscelânia,
arquitetura narcísica sustentado por aforismos, às vezes mal costurados (p 28-30)
como: “amar a si mesmo é o começo de um
romance perpétuo”, “O primeiro dever na vida é ser tão artificial quanto
possível. Quanto ao segundo dever, ninguém ainda o descobriu”, “nenhum
crime é vulgar mas toda a vulgaridade é
um crime”.
É um texto que afirma
que toda a influência é negativa. “Não existe influência boa... toda ela é
imoral... a finalidade da vida é o desenvolvimento próprio... o mais elevado dever
é o dever para consigo mesmo”. (p 68)
E incita o leitor a
saciar todos os desejos para que não se transformem em veneno, e é bom não nos
pouparmos de realizar nossos desejos, pois “somos castigados por nossas renúncias”; não precisamos ter
medo do desejo por aquilo que umas leis monstruosas fizeram monstruoso” (p
68-69)
Dorian conhece Basil há
poucos meses quando o encontramos no primeiro Capítulo dos 19 que se seguem; em todos o mesmo mote: a
juventude é a única coisa que vale a pena. O mistério do mundo é o visível, o
que vale é a aparência. O triunfo cabe a Narciso, até aqui
(p 74):
“Perdendo a juventude,
matar-me-ia!”, diz Dorian (p 75).
Mas o tom em geral é de
superficialidade; Wilde mostra suas cenas como numa exposição, cabendo ao
leitor conclusões ou dúvidas. Lorde
Henry resume no seu personagem o a
bidimensionalidade especular: “posso simpatizar com tudo , menos com o
sofrimento[...] quanto menos falarmos sobre as chagas da vida, tanto melhor”,
diz Harry (p 85).
A política é criticada
em tom de chacota, o mesmo utilizado para menosprezar os norte-americanos, no
texto, que são exibidos como grosseiros/ vulgares, longe dos padrões estéticos
aceitáveis.
O amor é reificado,
coisificado, e só exprime-se nas duas
vezes que Dorian ama, e o leitor não tem acesso aos diálogos que Dorian mantém
com Hetty, sua segunda bem-amada. . . como muita coisa neste livro só temos
acesso às informações depois do ocorrido.
Quanto aos pobres, eles
jamais teriam capacidade de atingir um nível intelectual superior, pois são “gente
vulgar e grosseira, feições rudes e de
gestos brutais [...] pensar que... essa gente tem a mesma carne e sangue
que nós! Oh, não o creio”, diz Harry. (p 116-117)
E “crime é coisa de pobres”:
“O crime é propriedade exclusiva da classe baixa. E não a censuro por isso.
Imagino que o crime é para ela o que a arte é para nós; simplesmente um meio de
alcançar novas sensações”. (p 216)
O próprio Narciso se desconstrói (“sentiu uma
infinita piedade, não por si, mas pelo retrato”- depois da morte de Sibyl), mas
logo se recupera e beija seus próprios lábios do reflexo (sua própria imagem no
quadro), enamorou-se do espelho/ retrato, mas agora o espelho está deformando sua imagem...
(p 134)
O horror concentra-se
num cômodo da velha mansão de Gray, no antigo salão de jogos, de estudos, onde
passou parte da infância, para onde ele levou o quadro que é na verdade a sua
alma envilecendo, envelhecendo de maneira sinistra: “ o horrível objeto [de]
corrupção própria, pior ainda que a corrupção da morte”, precisava esconder o
espelho, ele agora era o espelho e o espelho era sua alma... prestes a
afogar-se num lago maldito!
(p144)
Mas nem isso detém o
clima satírico que paira sobre o romance que mescla horror e banalidade ás mais
interessantes e /ou fúteis teorias artísticas que tanto nos engrandecem, às
vezes.
Depois de citar Dante,
o narrador compara Dorian a Petronio, autor de Satiricon, árbitro de
elegância que retratou com audácia a época em que viveu (70 DC, Roma), como
Dorian faz com Londres.
Às vezes são 10 páginas
seguidas sem quase citar nenhum personagem da trama, só uma crítica artística,
uma “aula” sobre o belo (p155-165).
Na página 168, sabemos
que Dorian já desencaminhou muitas pessoas, principalmente rapazes, Basil
comenta isso pouco antes de ser assassinado por seu modelo favorito, Dorian. Esse
crime é precedido por frases como ”você vai ver o que, segundo se crê, só Deus
pode ver” (p 170). O retrato é como o diário de Dorian, é também, como
dissemos, sua alma.
O horror de Basil (p
174), pintor do retrato de Gray reflete-se em Dorian e nos é transmitido através do narrador: “Vamos
rezar, Dorian, vamos rezar! Não foi isso que ensinaram na nossa infância? ‘Não
nos deixeis cair em tentação[...] minha adoração por você foi grande demais.
Fui castigado por isso. Você também venerou a si mesmo em demasia...”
Inicia-se o terror de
Dorian...
(p 180)
Nesse ponto, há algo
no texto sobre psicólogos e o desejo do pecado (p 198):
É a tal prostituta de
um opiário que diz que Dorian se vendeu ao diabo (p 200), mas isso não é nada
diante da arte e da ... felicidade que o leitor já desfrutou ao lado desse enfant terrible!
No penúltimo capítulo
(XIX), Dorian resolve ser “bom”, amainar seu narcisismo e hedonismo, seus atos
“terríveis”, permanecendo no campo. Apaixona-se uma segunda vez, agora por Hetty,
mas resolve poupá-la de sua vilania.
Harry diz que isso não seria possível, depois que alguém conhece algo superior
não se acostumaria ao vulgar ou ao óbvio tão facilmente.
Mas de si mesmo Narciso
não escapa e ao tentar fazer algo de bom, Dorian pensa que o retrato, isto é,
sua alma, voltaria a ter traços menos terríveis, porém não é o que acontece. O espelho distorcido de Narciso apenas reflete-o
mais cínico, irônico e Dorian continua
mais aterrorizado diante da ideia da morte. Ele está depressivo, Harry,
abandonado pela esposa, consola-o:
(p 219)
Mas Dorian começa a pensar diferente, numa espécie de síndrome de
pânico:
(p221)
O narciso vai murchando;
solitário, nosso anti-herói quer destruir o retrato com a mesma faca que matou
o pintor que o eternizou naquela imagem, mas a faca atinge o próprio Dorian e a
arte vence: o retato rejuvenesce, enquanto o cadáver de Gray é o mais sórdido
possível.
O Lago de Narciso é
purificado depois do afogamento em sangue humano, seu próprio sangue estranho
rito de passagem.
The dream (or nightmare)is
over!
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