Clarice, A mulher que matou os peixes
por Moisés Neto
“Eu sei muito pouco, mas tenho a meu favor tudo que não sei e isso é
minha melhor parte, é a minha largueza”, dizia Clarice.
Ela que faz do escrever uma aventura que leva a linguagem a domínios
longínquos
Foi uma das que romperam com o narcisismo e lirismo convencionais aos estereótipos
impostos ao feminino
Seu intimismo não é simplesmente psicológico, está mais para questionamento
metafísico, introspecção que parece abismo.
No seu conto para crianças A
mulher que matou os peixes, sobre o qual vamos falar agora, escrito em
primeira pessoa, a narradora, que tem o mesmo nome da autora, vai logo buscando
a interlocução com os leitores (ou ouvintes, se alguém lê para eles), atenção:
“Essa mulher que matou os peixes
infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não
tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra.
Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer.
Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver.
Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.
Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.
Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?
E eu respondo:
- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer.
Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e me deem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” – em casa chamávamos os peixes de ‘vermelhinhos’”.
Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer.
Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver.
Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.
Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.
Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?
E eu respondo:
- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer.
Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e me deem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” – em casa chamávamos os peixes de ‘vermelhinhos’”.
Eis
a mulher que matou os peixes: prosa de
poesia, peixe como metáfora insólita, fluxo
de consciência para crianças, no espaço labiríntico da memória fazendo os
pequenos conhecerem abruptamente uma “verdade” que poderia ser chocante: um
crime, eis um dos objetivos da autora.,
mas faz do crime uma epifania: há inocência nesta ré misteriosa que transmite o texto como MOMENTO DE ILUMINAÇÃO, processo que ocorre a partir de cenas do seu
passado, que a fazem boa, é “como se, em vez de escrever, ela descrevesse,
conseguindo um efeito mágico no refluxo da linguagem, que deixa à mostra o
‘aquilo’, o ‘isto’, o ‘inexpressado’, o ‘inefável’.” Ela continua contando para
as crianças:
“Eu sempre gostei de bichos. Tive uma infância rodeada de gatos. Eu tinha uma gata que de vez em quando paria uma ninhada de gatos. E eu não deixava se desfazerem de nenhum dos gatinhos.
O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas infernal para as pessoas grandes. Afinal, não aguentando mais os meus gatos, deram escondido de mim a gata com sua última ninhada.
Eu fiquei tão infeliz que adoeci com muita febre.
Então me deram um gato de pano para eu brincar.
Eu não liguei para ele, pois estava habituada a gatos vivos.
A febre só passou muito tempo depois.[...]
Tenho esperanças de que até o fim do livro vocês possam me perdoar.
Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e meu coração vai ouvir.”
O tom coloquial é o de quem conhece o universo
das crianças, Clarice era mãe de dois filhos e é como quisesse o leitor como u
terceiro, um agregado querido. É muito amor que ela tem (por pessoas e bichos),
em meio a tantos caminhos nessa vida. É o que mostra na história da morte de uma
macaquinha que todos amavam (Lisete) a tristeza por ter de despedir-se de dois
cachorros, tudo é como se ela quisesse repassar poeticamente para as crianças, a
sua experiência de vida, de amor e perdão. Acima de tudo temos nela a PAIXÃO
PELA EXISTÊNCIA, encantamento, doses de explicações sobre violência e ...amor
Escrever não me trouxe o que eu queira: minha paz,
confidenciou Clarice um dia
Ela
queria aprofundar em si a vida
E o fez,
nesse A mulher que matou os peixes
ela repete algo que sugerira antes: “vive mais quem vive sensivelmente, bem
próximo do mundo animal
Todo
texto reduz a paixão á razão, afasta quem escreve do coração pulsante da vida
Ou se
escreve ou se vive”.
A
linguagem para ela era uma pesquisa contínua
Mergulhar
em si e ofertar-se ao outro é o que ela mais faz
O amor
está em cada linha de A mulher que matou os peixes, a narradora que, junto com os pequenos leitores, quer
descortinar o mundo, para chegarem juntos a descobrir
o que é ser gente e bicho
Dizer que matou os peixes é apenas um eixo de tensão para excitar os
pequenos, deixá-los curiosos, mas ela, como advogada que era, sabe conduzir sua
defesa e comover os “espectadores”, numa espécie de desdobramento cheio de
poesia e afeto, algo psicanalítico, como se ela se visse pelos olhos das
crianças, como se pressentisse cada um dos seus pequeninos leitores até quando a
criança já está morando dentro do corpo de uma pessoa mais velha, neste
seu A mulher que matou os peixes:
“Vocês ficaram tristes com essa história? Vou
fazer um pedido para vocês: todas as vezes que vocês se sentirem solitários,
isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar. Escolham uma pessoa
grande que seja muito boa para crianças e que entenda que às vezes um
menino ou uma menina estão sofrendo…” Eis um conselho da narradora que
exemplifica o que estamos a dizer.
As
histórias vão se sucedendo, e à medida que as crianças vão entrando
em contato com estas temáticas, vão sendo levadas a entender que
são sentimentos e situações que realmente podem acontecer, e que apesar de
não serem boas, podem ser superadas.
Através
de matrizes poéticas, das repetições, a narradora, artífice de um astucioso
agente lírico, arma sua teia verbal e faz com que cada palavra tenha um
significado praticamente infinito. No final do livro, a narrador leva o leitor
a perdoá-la pelo crime que cometeu de
ter matado os peixes.
Moisés Neto e parte do grupo ALETRAR, na Livraria Jaqueira
palestra sobre Clarice Lispector
Segue o
trecho final do livro:
“E assim
como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando
vão ver já se queimou toda a comida – eu estava
também ocupada escrevendo história. E simplesmente fiz uma coisa parecida
com deixar a comida queimar no fogo: esqueci três dias de dar comida aos
peixes! Logo aqueles que eram tão comilões, coitados.
Além de
dar comida, eu devia sempre trocar a água do aquário, para eles nadarem
em água limpa.
E a
comida não era qualquer uma: era comprada em lojas especiais. A comida
parecia um pozinho horrível, mas devia ser gostoso para peixe porque eles
comiam tudo.
Devem ter
passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, o cachorro late,
o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas
peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz para
reclamar e me chamar. E, quando fui ver, estavam parados, magros,
vermelhinhos – e infelizmente já mortos de fome.
Vocês ficaram
muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me deem perdão. Eu
também fiquei muito zangada com a minha distração. Mas era tarde demais
para eu lamentar.
Eu
peço muito que vocês me desculpem. Dagora em diante nunca mais
ficarei distraída.
Vocês me
perdoam?”
Se o crime
não foi intencional, como nos demonstrou a “criminosa”, através de tantas
histórias delicadas sobre suas relações com
animais, falando sobre a tristeza e alegria, de forma bem didática para a infância, fazendo com que os
pequenos construam ou fortaleçam um olhar esperançoso em relação ao mundo, aos
sentimentos dolorosos. Também nós adultos parece que somos incitados a virarmos
contadores de histórias.
ESTE LIVRO
INCITA À PERFORMANCE.
A narradora
compara suas experiências com a visão das crianças aprendendo a ser e estar num
mundo cheio de possibilidades, e parece que a melhor delas é fazermos amizades,
e é isso que a narradora quer: ser amiga e que... perdoemos o seu “crime”.
Está
perdoada, Clarice, a gente sabe que você não é má, que o seu querer é de amor e
mistério...
LISPECTOR, Clarice.
A mulher
que matou os peixes; ilustrações de Flor Opazo. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1999
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