Poesia, política e pedagogia:
a transgressão no Recife
de Jomard Muniz de Britto
Prof. Dr.
Moisés Monteiro de Melo Neto
Jomard Muniz de Britto:
pernambucano, ensaísta, pensador da cultura, autor de textos poéticos,
professor (aposentado) da UFPE e UFPB, pesquisador, filósofo e cineasta, é
intelectual que vem traduzindo suas intervenções por meio do objeto estético,
da construção simbólica, em textos filmes e vídeos, em reflexão poética e
sociocultural que recusa hegemonias. Ele usa uma linguagem de espelhos e
perspectivas, mise en abyme, com a qual reconstrói/desconstrói interesses
ideológicos, “culturais”, sociais, sexuais. São reflexões
estético-político-pedagógicas (em forma de síntese) que celebram tanto a luta
quanto a festa. É a palavra (indomável?) num poliédrico fruir poético-existencial. Rompe com o esquema do poema fechado em nome do processo
questionador, instala, dentre outras coisas, a suspeita da linguagem. Tal
obra é convite à transgressão das barreiras que impedem o indivíduo de pensar
por si mesmo, de construir uma nova relação com o outro, soltar a imaginação,
paixão, correr o risco de explorar novos
caminhos. Sua ação pedagógica
libertadora pede, por exemplo, que a Academia deixe de ser formada por
compartimentos fechados, horários fragmentados, docentes isolados e fortaleça o
lado de comunidade de aprendizagem e o professor transgrida, algumas vezes,
regras e normas estabelecidas. Seja professor transgressor do que existe pronto
e acabado, constituído e passado, e acompanhando a dinâmica da sociedade, inovando
em termos de atitudes e comportamentos, mudança de mentalidades também questione.
Que Recife é este de JMB? Cidade fetiche e reverso
de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Chico Science, do cinema de
Cláudio Assis, Paulo Caldas, Lírio Ferreira, de Cícero Dias, de Frei Caneca, da
Praieira, dos holandeses (Mauritsstad), da frevocracia; Arrecife de desejo, Paranambuco, onde viveu seus últimos dias o primeiro brasileiro a
entrar no cânone literário: Gregório de Matos. A vida pública de JMB começa no
Recife do final dos anos 50, início dos anos 1960: Ele encontra-se com GLAUBER,
com manterão intensa amizade até a morte deste; a seguir JMB assiste em Recife
a uma palestra/ debate com SARTRE; na sequência JMB torna-se professor da UFPE
(posteriormente também à UFPB) e une-se à equipe central do projeto do
professor PAULO FREIRE, da qual fazia parte também LUIZ COSTA LIMA. Vem então O
GOLPE MILITAR, JMB é preso e tem que responder processo, é aposentado aos vinte
e sete anos. Seu crime/delito maior: a psicanálise selvagem da cultura, das
relações interpessoais, a crítica à kultura
(com “K”, repressora segundo Freud). Conhece Gil e Caetano e com eles assina um
manifesto em tempos de TROPICÁLIA. Interessante observar aqui que o texto já
prenuncia a catalisação do seu processo existencial. A partir da prisão e da
aposentadoria JMB radicaliza e usa o humor filosófico com mais intensidade.
Dá-se então o seu encontro com Guilherme Coelho e com o grupo VIVENCIAL, que
mantinha uma espécie de cabaré entre Recife e Olinda (Vivencial Diversiones). Ele prega não somente a democratização
da cultura (levar cultura erudita ao povo), mas a Democracia cultural
(discutir quem controla o mecanismo de produção cultural em si mesmo). Em 1986,
foi presidente da Fundação de cultura Cidade do Recife, indicado através de uma
lista tríplice com assinatura de muitos intelectuais, ao prefeito Jarbas
Vasconcelos.
Muitos paradoxos: JMB angustia-se à medida que se
alegra e dinamiza-se na língua dos 3 pppês: POESIA (no
corpo, prazer da utopia)- POLÍTICA (reflexão sobre o poder das hegemonias) e
PEDAGOGIA (promovendo diálogo com a voz do oprimido): PPP, encruzilhada de
todos os vivos, RE-VOLUÇÕES! Seus
livros tratam com particular poeticidade as relações sociais agenciando diferenciações da cultura nacional e
seus vieses em intensa conversação. Vanguarda contra retaguarda,
sexo contra dogmas, radicalidade
contra comodismo, ultrapassando o subdesenvolvimento através da explosão
opondo-se ao tropicanalhismo
conservador e purista, passadismo com nostalgia, donzelismo pitoresco,
cartão postal da carência de informação, contra a desprezível sordidez reinante:
do golpe militar de 64 ao século XXI, no Brasil, mostrando que o dogmatismo é a
atitude mais desaconselhável em termos de filosofia da cultura. Para ele devem
ser propostas interrogações verdadeiras (conhece-te a ti mesmo, eterno saber
que nada sabe etc.): O que há por trás de tudo? A quem servimos? Que interesses
estão camuflados? Que farelos de Poder me são oferecidos? Meu medo é um
segredo? Contra isso e com isso: que venha a artevida enquanto
TRANGRESSÃO!
JMB observa as correlações de identidade e poder (identificação/
diferenciação/ desigualdade/etnicidade/ classe social/idade). Ele passeia pelos
campos das metáforas e das analogias entre símbolos culturais e o faz na língua dos 3 pppês, em esforço de
leitura e desconstrução, a crítica às abordagens mais tradicionais,
desenvolvendo o que concordamos em chamar de viragem culturalista liberal. Ele coloca em interface o ser e sua
existência histórico-social essa poeticidade, num trabalho de
expansão da significação da palavra, utiliza-se da intertextualidade,
neologismos, trocadilhos, inexatidão, imprecisão, chiste na busca de uma
consciência possível. Lança-se do Recife
de Desejo o discurso-delito, estranhamento, transformando signo em denúncia
e teatralidade. É jogo dialético onde a memória da formação social se compondo,
decompondo, recompondo, atualiza-se através da linguagem artística, evitando o esquematismo e a redundância. São versos
permeados de um inacabamento perdurante, marcados por uma atitude de vanguarda
permanente, contra definições programáticas. Seu texto sugere um fazer coletivo, antidiscurso e criatividade compartilhada com o leitor, rompendo as
fronteiras entre o poético e a crítica da cultura. Afasta-se da história oficial para criar algo novo,
intempestivo. Abre a caixa de surpresas dos gêneros e trata poeticamente, politicamente, pedagogicamente
o lugar onde crimes, delitos, transgressões, terror e êxtase fazem jogo e
negócio. Ali os marginalizados aparecem,
em linguagem sincopada, como anti-heróis e/ou heróis, para além de pessoas
comuns, se destacam da massa ganhando uma história de vida digna de ser
relatada. Como é o caso do longo poema intertextualizado, inspirado em texto de
Drummond, onde JMB trata da questão do ator transformista Pernalonga, do grupo
Vivencial:
Os sobrados escondem os homens/ que percorrem todas
as direções. / A manhã talvez fosse azul / não faltassem tantas canções. // Os
bancos espiam os homens / que correm atrás dos dinheiros [...] as casas espiam
os machos / que correm adiante das fêmeas. /A tarde talvez fosse anil / não
existisse tamanho fastio// O ônibus que passa cheio de braços: / braços de
todas as cores; / pra que tanto braço, meu Deus, pergunta minha solidão. /
Porém meus olhos/ perguntam muito mais// Tantos braços, onde estão os abraços?
[...] Mundo pequeno mundo / mundo mundo mundo aldeia do mundo [...] devastado
mundo/ nem Pernalonga nem rímel nem solução / nem Raimundo ou qualquer
substituição2
A identificação do leitor funciona para simultaneamente: 1) legitimar
a experiência e 2) autorizar a diferença.
A
servidão humana preocupa JMB em seus antagonismos no que trata da tradição. O
que dizer de um homem casado que de repente descobre uma faceta sua, estranha a
ele mesmo até o momento em que começa a dedicar- se a uma insaciável busca do Outro? Em caráter metonímico uma cidade
como Caruaru (PE) pode ser o país que a contém. A irreverência aqui parece não
ter limites:
no país de caruaru- país de políticos,
empresários,/ dramaturgos, ceramistas, prestidigitadores- existe/ uma curiosa
feira de necessidades: a feira do/ troca-troca./ certo dia ensolarado, um
anônimo rurícula resolveu / trocar sua mulher, mãe abnegada de seus filhos, por
/ uma bicicleta sem freio. Ninguém perguntou pelos/ gaios da roseira do homem.
Ninguém quis saber dos maltratos- ou melhor, malvadezas duronas- que a / mulher
sofrera./ no mesmo dia, já menos ensolarado, um radinho de/ pilha foi trocado
por um cavalo sem ó, ou seja, sem/ popularidade./ ainda no mesmo dia
entardecendo, um chefe de família,/ sem entender as vontades do filho de fazer
teatro na/ companhia práxis- aquariana, foi trocá-lo por um/ turista
halterofilista. Sem mais saber de trocas ou / de termas ou de academias
romanas, aqueles músculos/ espartanos... aqueles pelos esplendorosos...aquela/
cintura e cicatriz.[i]
O
tom bufo volta em toda força crítica neste texto intitulado “vamos trocar?” (expressão de cunho
homoerótico). Por “feira de necessidades”, entenderíamos a inclusão do desejo
(também saciado nas termas para homens) vencendo complexos de castração, mesmo
quando isto significa liberar-se do papel de pai de família, em nome do prazer
(proibido). A colagem de imagens, das sugestões eróticas (anarco- queer ?), a crítica a uma política e mídia corruptas dão-se
tendo como pano de fundo/ metáfora, o frenesi de uma feira, aí o texto se
articula de modo diverso do convencional e traz o leitor para o centro do seu
fluxo, arrastando-o ao mesmo tempo em que propõe diversos pontos de vista.
Algumas dessas construções também remetem às fusões praticadas por José Celso
Martinez, Oswald de Andrade (o processo carnavalesco moderno-tropicalista). Os
possíveis cornos do macho tornam-se galhos de roseira na escritura que rompe
com as alternativas demasiado clássicas (o racionalismo positivista, por
exemplo) e arregimenta ideias, fazendo a consciência fluir sem levar a termo os
seus impasses. A feira “vadiamente” (jeitinho brasileiro?) pode ser toda uma
sociedade (“ferocidade”), expressão que o autor associa à cidade (expressa como
ferocidade) a um “concretista retardatário com um talvez complexo de castração”
e faz assim a transição interior/metrópole: o foco agora é um grupo de
advogados, no Recife (Praça do Diário), metidos em falcatruas e ligados às
“melhores famílias da região”, fica o registro do fenômeno através do recurso
artístico-literário. À memória se sobrepõem a sensualidade, às hipocrisias
advêm outras complexidades da alma humana. A referência direta à “euforia aberturial ou aberturiante”, fim da ditadura militar quando o jogo
político-econômico no Brasil mudava de mãos, aparentemente, é uma forma de
analisar satiricamente o processo de Abertura
política no país. Tais neologismos remetem ao chiste de quem observa sarcástica
e atentamente a rapinagem no balcão de negociações em que a pátria era exposta/
vendida mais uma vez, em “novelho” processo. As alegorias, do “país caruaru”,
do “turista halterofilista”, “forasteiro de belas nádegas”, o escritório
“funcional- ficcional” que abriga a corrupção que se espelha/ espalha na mídia.
Tudo isso é retratado num discurso que faz entender outro, é a “história”
desconstruída/ metaforizada em linguagem esquizoanalítica que vai
do centro às margens, numa poeticidade tanto em nuances críticas como em
deleites abruptos, interrelacionando diferentes margens. Longe de lamentar a
pureza perdida, o texto representa a insurgência da outridade, a reviravolta
na fixidez das formas de representação, literárias ou não, dos costumes que
oprimem, e chega até a questionar o mascaramento ideológico de alguns projetos ditos
libertários. O próprio socialismo é apresentado de modo dúbio no último
quarteirão do século XX, deixando o povo mantido sob controle (das elites). Os
líderes populares diante da euforia da “abertura” brasileira equilibravam-se
precariamente entre pressões do povo e as forças globais. É isto que JMB expõe
também no seu diálogo com as falas sobre o racionalismo neste jogo de
interesses conflitivos. A luta de classes está representada no texto
jomardiano, parar além da forma “nacionalista” (que “une” classes entrecruza
com as questões de etnia, de sexualidade).
JMB, em interface com o trabalho ativo na economia política, faz também
uma crítica à natureza de certos conceitos convencionais em meio aos instintos que
atiçam o corpo nos domínios da cultura, linguagem, significado. Há nos textos dele
um tom de clandestinidade, androginia, pluralidade de estilos, desmantelamento
de cercas entre as classes sociais e gêneros; mas Jomard Muniz de Britto não é
um piadista nem um vanguardista datado facilmente. É poeta que usa o tratamento
de choque em ritual antropofágico na movência do Brasil, a riscar o nome do
Pai, em audacioso gesto literário. Não em poesia límpida, mas em mistura de
referências, estilo novo, inaugural, a rir das desesperanças, dos comandantes e dos alienados. Poesia que tenta desalienar corações e mentes em meio às tentativas vãs de unicidade e cinismo.
Suas discussões sobre o gozo imediato, sua recusa às migalhas lançadas pelo poder, sua atração pela construção em
abismo, tudo isto se expressa como poesia-performance.
Ao tratar da oposição natureza / cultura e das explicações biológicas/
sociais, ele poetiza, trabalha didaticamente, a forma como processos culturais
e individuais se determinam, se ligam e aponta como necessário repensar
importância da trangressão na sociedade, por exemplo, sem perder de vista as
questões pedagógicas, políticas e poéticas em solo transcultural. Exibindo
subcenas, nem que seja nas camadas subterrâneas da escritura à mostra, esse
texto em interrelação com sua comunidade, assume uma posição diante do mundo
sendo ao mesmo tempo retrato transmutante e alerta do
pensamento, libido do pensamento em cotejo com a prática cotidiana.
Poeticidade catártica, de choque e/ou homeopatia artística convidando o leitor
a preencher os seus vazios, atuando de forma rizomática quando o
próprio texto se reorganiza e desponta mais adiante em outro contexto, como
semente que flutuou por muito tempo e brotou mais adiante, raiz sem centro,
tornando a dicotomia insatisfatória, multiplicando possibilidades, estimulando
a interação intelectual. É nessa sofreguidão contra a incidência do controle,
na dinâmica das ideias, na despersonalização para absorver na semelhança que
cria a diferença, sem tomar o experimentalismo como última palavra, e sim como
condição para a palavra inédita, que a obra de JMB atua,
em pleno século XXI, revelando
artimanhas.
Tentei
aqui conciliar preocupação social e consciência literária na obra deste
artista, pensador e professor sem fronteiras e captar a fecundidade das suas
delícias, horrores e embates na literatura contra a socialização alienante.
Agradeço a atenção e espero ter lançado uma semente em terreno fértil. O resto,
por enquanto, é silêncio que precede tempestades.
NOTAS:
2.
Ibid.,
p. 53-58.
Referências
BRITTO, Jomard Muniz de. terceira
aquarela do Brasil. Recife: Ed. do Autor, 1982.
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