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domingo, 9 de junho de 2013

Literatura & Movimento Mangue: Recife em foco.

Por Moisés Monteiro de Melo Neto

Citado nas letras de Chico Science e em depoimentos que o poeta registrou na mídia, o cientista e professor Josué de Castro, recifense morto em 1973, é o autor do romance Homens e Caranguejos (1966), que foi lido por Chico com avidez enquanto ele formulava o conceito Mangue. Esse romance descreve o cotidiano de uma comunidade erguida num manguezal do bairro de Afogados, Recife na primeira metade do século XX. São pescadores de caranguejos, pessoas que tiram do mangue seu sustento. Suas casas construídas com o massapé, madeira e palha do local, e sua principal alimentação, os caranguejos. Até as crianças eram criadas tomando mingau feito com o caldo (o “leite da lama”) desses bichos, que “fervilhavam” nas margens do Capibaribe.

Seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homem e meio bichos [...] parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos [...] habitantes dos mangues [...] dificilmente conseguiriam sair do ciclo do caranguejo, a não ser soltando para a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama [...] essa fossa pantanosa onde aguarda o Recife (CASTRO, 2001: 10-11).

A visão de Josué é perturbadora e dinâmica. Expõe a fome de um povo que, ao mesmo tempo em que brinca com o bumba-meu-boi, o pastoril, o maracatu e outros folguedos (p. 113), planeja uma revolução que tome a cidade das mãos dos ricos poderosos e dos políticos, mostrados como hipócritas e ladrões. O mangue aparece antropomorfizado, com uma vegetação:

Agarrando-se com unhas e dentes [...] gamas fincadas profundamente no lado [...] cabeleira verde [...] braços numa amorosa promiscuidade [...] luta constante com o mar como se fossem trapos de ocupação (ibid., p. 12).

Esse clima de mangue vivo, onde o vegetal, o mineral e o animal se confundem, influenciou profundamente as concepções de Chico e Fred Zeroquatro. O próprio manifesto “Caranguejos com cérebro” é calcado nesse tema, esse ninho de lama que Josué comenta: “onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo” e onde

O bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto sonhando com boi-fantasma, que cresce diante dos seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem de baixo das apalpeladas das suas mãos (ibid., p. 21).

A representação do Recife nessa obra sofre influência de João Cabral, Joaquim Cardozo e Ascenso Ferreira. Ele descreve o cotidiano daqueles que migraram do sertão e da zona da mata para o Recife e aqui se misturaram aos miseráveis da metrópole. São balaieiros carregando frutas e verduras, que vivem entre mosquitos e urubus, rostos magros, morenos, olhos negros e profundos, na Comunidade de Aldeia Teimosa, onde alguns sonham com a revolução do proletariado. Lembremo-nos que quase 40 anos depois, em 2003, segundo pesquisa do Ibam/Banco Mundial, 54,9% da população do Recife ainda morava em favelas, segundo o Jornal do Commercio (GÓIS, 2003: 2 ).
 Corrosiva e às vezes sarcástica, a ironia do autor mistura-se ao lirismo de um final em que o menino João Paulo integra-se repentinamente à luta armada e desaparece no meio do combate à beira do mangue, às margens do Capibaribe, em seu desejo de libertação no meio daquele cheiro frio de lama podre, de terra morta em decomposição. E o narrador conclui:

 São heróis de um mundo à parte. São membros de uma mesma família, de uma mesma nação, de uma mesma classe: a dos heróis do mangue (ibid., p. 43).

A palavra “nação” e esse senso de comunidade com espírito revolucionário devem ter incendiado as idéias de Chico e seu ideal de representação do Recife. Muitos pescadores de caranguejos no romance cobriam-se de lama com a finalidade de fugir dos mosquitos. No clipe da música Maracatu Atômico, Chico e a Nação Zumbi aparecem cobertos de lama, como numa alusão aos pescadores do mangue. O uso de neologismos também serviria de inspiração a Science. Por exemplo, o verbo “jiboiar”, ao se referir à capacidade de a jibóia engolir “um homem inteiro” e passar um mês digerindo-o (p. 61). Outro ponto em comum seria a zoomorfização: homens e bichos se confundem na narrativa de forma implacável. Science vai resgatar isso também em sua obra, mas de forma menos naturalista e mais caricata. Os mocambos, descritos por Josué, aparecem também na lira scienciana como símbolo da moradia, do pobre no Recife.
Enquanto Josué opta por uma visão pessimista, o trabalho de Science é, de certa forma, quixotesco. Os monstros contra os quais investe suas armas são tanto produtos da realidade quanto o são da sua mente, e na sua obra encontramos o ser metamorfoseado. Se os heróis de Josué são frustrados, os de Science celebram a vitória sígnica:

A façanha de ser prova: consiste não em triunfar realmente – é por isso que a vitória não importa no fundo –, mas em transformar a realidade em signos. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conforme as próprias coisas [...]. O poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentes subterrâneos das coisas (FOUCAULT, 2002:64-67).

O mangueboy Chico e as personagens do lugar-mangue recriado por Josué parecem se articular num mesmo contexto de realidade mágica e desgraçada. Ambos tateiam em busca de saída e de fazer a linguagem romper seu parentesco com a realidade opressora e terminam criando uma alegoria, instaurando um pensamento novo. E assim surge uma reviravolta cultural na cidade do Recife, marca-se um estilo, uma época, um período, uma ruptura, uma descentralização, um deslocamento. Algo que rompeu estruturas arcaicas. Hoje analisamos o Mangue já com um certo distanciamento daquele período, mas é possível detectar onde se deu a ruptura e quais as suas possibilidades. Vejamos o que Foucault argumentou sobre essa questão da divisão da cultura em períodos:

Pretende-se demarcar um período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo, rupturas simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário? A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em seguida, se desvaneceria e se deslocaria? [...] Que quer dizer inaugurar um pensamento novo? [...] Uma cultura deixa de pensar  como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo [...] O problema que se formula é o das relações do pensamento com a cultura (ibid., p. 69).

A ruptura que podemos observar nos estudos de Josué aponta para a desigualdade econômica como responsável pelo fenômeno social da fome, numa época em que se acreditava que ela resultava do acelerado crescimento populacional desproporcional ao aumento dos recursos naturais. Science e outros poetas do Manguebeat, de outro modo, lutavam por romper com os feudos culturais que estagnavam Recife com seus discursos reacionários. Josué foi deportado pela ditadura nos anos 60, mas seu legado serviu de base para os mangueboys, que sedimentaram a luta dele unindo essas idéias à música e à poesia no início dos anos 90. Letras como Rios, Pontes e Overdrives, Antene-se,  Da Lama ao Caos, Risoflora, Manguetown, Corpo de Lama e outras são exemplo do que estamos afirmando. Elas se aproximariam do que Foucault questionou como sendo “ruptura”, inauguraram o “pensamento novo” e buscaram novas relações entre o pensamento e a cultura.
A cultura popular foi sacudida pela nova Cena. O governo logo percebeu que seria conveniente apoiar os mangueboys. Inicia-se a fase das negociações. O antigo regime parece querer cooptar a nova revolução, mesmo olhando-a meio de banda. E Science inicia negociações com Suassuna, dialoga com Alceu Valença. Nos moldes do antropólogo Renato Ortiz, tradição e modernidade mesclam-se no Brasil, país onde a ruptura nunca se realiza plenamente nem deixa de ser tentada, como aconteceu nos anos 60 com a Tropicália e o Cinema Novo.

A movimentação política, mesmo quando identificada como populista, impregnava o ar, impedindo que os atores sociais percebessem que sob os seus pés se construía uma tradição moderna (ORTIZ, 2001: 110).

Como ressaltamos antes, o Mangue, em plenos anos 90, ainda ressaltava ícones como cangaceiros e reforçava mitos como o de o nordestino ser um tipo desengonçado. É uma postura construtiva que surge no auge do poder da indústria cultural sobre as massas, no fim do século XX. Fala de conflitos e exige a luta dos desfavorecidos numa sociedade que pode ser vista sob diversos ângulos. A ação é considerada na poesia do mangue foco central na orientação dos comportamentos; estimula-se a realização das vontades e a retomada do espaço público.
Uma posição mais extremada é certamente a de Adorno, quando descreve a sociedade de massa como um espaço onde praticamente não existem mais conflitos, uma vez que a luta de classes deixa de existir e a própria possibilidade de alienação se torna impossível. Sociedade marcada pela unidimensionalidade das consciências, o que reforça a integração da ordem social e elimina a expressão dos antagonismos (ibid. p. 150).
Marcada pelos estigmas da contracultura, a poesia de Chico exibe o ridículo e o êxtase do ser e anda na corda bamba entre o racional e o irracional. Como entender essa discrepância? Nossa tese é que Science propôs a redefinição desses e outros conceitos. Sua arma, como Barthes tanto sugeriu como sendo a melhor para se revolucionar, foi a linguagem. E Chico usou a língua do povo do Recife. Como Josué, foi buscar nas camadas de baixa renda da população da cidade o motivo da estagnação dessa metrópole-lama.

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GRAVAÇÕES EM COMPACT DISC

BAILE PERFUMADO: trilha sonora. S/l: Natasha Record, 1997. 1 disco laser. Gravação de som.
CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da Lama ao Caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994. 1 disco laser. Gravação de som.
_______________. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996. 1 disco laser. Gravação de som.
ENJAULADO: Música para ouvir trancado. São Paulo: Sonopress – Ritmo, 1997. 1 disco laser. Gravação de som.
FACES DO SUBÚRBIO. Faces do subúrbio. São Paulo: Polygram do Brasil, 1998. 1 disco laser. Gravação de som.
________________. Como é triste de olhar. São Paulo: Universal, 2000. 1 disco laser. Gravação de som.

MUNDO LIVRE S/ A . Samba Esquema Noise. S/l:Banguela Records, 1994. 1 disco laser. Gravação de som.

___________________Guentando a ôia. São Paulo: Excelente Records, 1996. 1 disco laser. Gravação de som.

_______________ . Por Pouco. s / l : Abril Music, 2000. 1 disco laser.
_______________. O outro mundo de Manuela Rosário.s/l: Candeeiro Records, 2003.
NAÇÃO ZUMBI. Rádio S. Amb. A: Serviço Ambulante da Afrociberdelia.s/l: Ybrasil? Music, 2000.
OTTO. Samba pra burro. São Paulo: Trama Promoções Artísticas, s/d. 1 disco laser. Gravação de som.





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