Depois
do vestido de noiva
A Falecida
no contexto da obra de Nelson Rodrigues:
comentando
a direção de Antunes Filho, em 2009, estreia nacional no Recife, produção local de Simone Figueiredo
por Moisés Neto
(Resumo/
Roteiro da palestra conferida no dia 22 de agosto de 2012 no auditório da
Livraria Cultura –Recife- dentro do 10º
Festival Recifense de Literatura)
Teatro é arte escrita no vento (Peter Brook)
De maneira nenhuma, pode-se dizer que não haja
nada num palco vazio, num palco que se pise de improviso. Pelo contrário,
existe ali, um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como se do nada
surgisse uma infinidade de coisas e de acontecimentos, sem que se saiba como e
quando. (Kazuo Ohno)
O sujeito que escreve deixa
de ser ele mesmo. Uma simples frase nos falsifica ao infinito (Nelson
Rodrigues)
Como entender o mitopoético em Nelson
Rodrigues? Como analisar esta Poética? Inicialmente temos que compreender que ela
traduz o anseio de discutir o desejo, a pulsão. É uma escrita sensacionalista em
tom grandiloquente. Nelson é, antes de
tudo, um poeta. Gerado no meio parnasiano (belle
époque recifense, Olegário Mariano, romântico retardatário na periferia da
modernidade, era amigo dos Rodrigues), mas com algo mais próximo a Augusto dos
Anjos, Aluísio Azevedo, ou até um reescrito simbolismo, expressionismo, Nelson não
se prendeu a Escolas nem teve respaldo de nenhum movimento.
Perverso lirismo ou antilirismo? E aqui usamos este termo
nos moldes de Costa Lima que via o esvaziamento do sentimentalismo na corrente
que vinha de Bandeira passando por Drummond e chegando em João Cabral.
Como se desenvolve esta poética? Compreendemos
que é a partir da tragicidade. O
desespero, o êxtase, a busca do inconsciente, o retorno do recalcado. Percebemos nesta escrita uma
negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). Eros e
Tanatos estão acoplados nos seus textos. Bem e mal como no Tao chinês (o absoluto, só pode ser atingido pela intuição) têm
suas fronteiras desconstruídas e são mostrados como complementaridade na
necessidade da dialética na luta dos
“contrários” onde o Outro se revela
na ruptura, nessa poética que funde gêneros e tritura a cor local. O indizível
vai sendo vomitado, a linguagem é usada para livrar os personagens do
sentimento de culpa.
O capricho, o pessimismo, o sadismo
vão servindo como portais para que atingir outras dimensões do ser. Os
personagens de Nelson, na sua atração pelo desconhecido, proporcionam o retorno
do recalcado, em meio a frases com mais exclamações do que reticências.
Freud apontou que no inconsciente
estariam os rejeitos do consciente
e atribuiu a energia da libido ao sexo, já Jung (que também trocou ideias com
Einstein) esclareceu que a libido é toda a energia psíquica e que os arquétipos
são traços funcionais do inconsciente coletivo, viriam da repetição infinita e
estão (unindo) em todos os homens. O
inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um
material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson
busca essa raiz comum, dentre outras coisas. O faz de maneira um tanto
quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar
ao papel (persona) e se esquecer de
si. Mas o registro rodriguiano vai além dos clichês freudo-marxistas. Aliás,
ele os põe em xeque.
II
A assombração da tuberculose (Zulmira
de A falecida morre por doença nos pulmões) teria provocado nele um
distanciamento em relação à vida. A pobreza (uma amiga do Recife ao visitar a
família dele no Rio ficou chocada ao vê-los no almoço comendo somente café sem
leite e macaxeira) que o impediu inicialmente de um tratamento mais adequado,
as humilhações de ter pouquíssimo dinheiro e andar maltrapilho, em transportes
coletivos, frequentar prostíbulos na adolescência, conviver com tuberculosos
pobres (o horripilante pneumotórax), a torturante a úlcera (quando adulto) o
clima de guerra e sarcasmo das redações dos jornais, conhecer os bastidores da
política e a alma do povo retratados nos periódicos nos quais também escrevia e
aos quais sua família desde a geração anterior se dedicava, tudo isto está expresso no seu riso entreaberto segurando um
cigarro, entre os dentes, postiços (teve que arrancar todos por causa da
tuberculose, ainda jovem).
O subúrbio Aldeia Campista, onde mora
Zulmira, personagem central de A Falecida
(1953) é o mesmo onde morou Nelson, cheio de vizinhos que se imiscuíam na vida
alheia, cheios da marca do baixo nível de vida, doenças, distorções da fé,
adultérios etc.
O Rio que Nelson conheceu era uma
metrópole reurbanizada, mas o choque de ricos / granfinos com pobres era
gritante e ganha expressão dramática em sua obra, lembremo-nos de que a
fantasia de Zulmira gira em torno de um enterro de milionária.
Homem e obra: “Caso de psicanálise”, sugereria
um parente de Zulmira. “Freud era um vigarista”, rebateria outro. Os rejeitos
do consciente que se localizam no inconsciente, segundo Freud, voltam e assumem
contornos agressivos delineando um sexo perverso, mas que não se quer doentio.
As palavras haveriam de sublimá-lo, como numa terapia.
Temos que lembrar que para Jung nem
sempre conflito psíquico é de origem sexual- libido para Jung vem toda a
energia psíquica.
Em A
Falecida, a família está sob o poder do pai. A voz do pai é silenciada, a
adúltera não está arrependida, visa a glória, ou pelo menos esnobar a Glorinha
(nome da sua prima com um seio extirpado). Estranho sonho de suburbana. Enterro
de rico. Crucifixo de cristal, cortinas para cinco portas, cavalos com
penachos, caixão com alças de bronze.
Zulmira, como tantos outros
personagens rodrigueanos, é vítima do logro que parece ser a maldição, ou o
estigma fundamental do homem, como aponta Sábato Magaldi sobre “A Falecida”
(Nelson Rodrigues. Teatro Completo. RJ. Ed. Nova Fronteira, 1985)
III
Antunes vai estilhaçar o painel
rodriguiano e o reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de cômico, em
Nelson. Afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista, fazendo
com que a tragédia fale de si mesma, desmontando estereótipos.
Levando o ator a pensar o seu papel
dentro da arquitetura teatral e atingir a unidade do espetáculo, da escritura
cênica, Antunes assume atitude ZEN diante dos dogmas e vê na poética de Nelson
um desafio cósmico.
Ao desdobrar a totalidade da
existência, observar o todo desdobrado em si e sua relação com a realidade, Antunes
faz de A Falecida um espetáculo onde
cada parte, no contexto do todo, se coloca em superposição.
Ele afirma que não conseguirá fazer
mais nenhum espetáculo que não expresse essa simultaneidade tão presente na
vida. Esse ritmo frenético. Os sentidos ligados em várias coisas ao mesmo
tempo.
As cenas são como que projetadas sobre o cenário de um bar (onde não para de tocar samba em
BG). O tinir de copos e garrafas, o burburinho, o vaivém dos que ali estão
transformam o diálogo dos personagens em estranha sincronicidade junguiana. O tempo parece estar sendo comprimido ao
ponto de explodir.
Assentada, a imagem caleidoscópica parece
sempre aberta: a um novo giro, novo desenho. Quer múltipla percepção.
Estabelece insólitas relações.
O que é fundamental e o que é
secundário aparecem na cena como vem à memória, ao sonho.
O diretor articulou as cenas de tal
modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, calcados no sugestivo
texto de Rodrigues, provoca a cena que não quer se alienar está longe do
convencional, tem língua própria e dinâmica.
O “golpe de teatro”, no caso a cena em
que Tuninho fica sabendo que a esposa lhe era infiel. Ele e a plateia descobrem
ao mesmo tempo. Antunes trabalha esta cena, que é calcada no abandono, a
violência e o ódio, de modo que o riso e o choro se empalideçam. Tuninho é
enfocado no seu esvaziamento, simplesmente. Ele bancou o bobo, não só por causa
da esposa, mas pela sua própria constituição de idiota que tem a personalidade
calcada em estereótipos oferecidos por uma sociedade manipulada. O torcedor de
futebol (Vasco). Sua preocupação com o time se mescla à humilhação imposta pela
miséria física e intelectual. Seu desamparo dentro do mal-estar da civilização.
O ator/ jogador está guiado por uma
batuta que aponta para novas possibilidades do idioma cênico. O que vemos, não
só em Tuninho, mas também em Pimentel (“amante” de Zulmira) e Timbira (agente
funerário) é a representação do homem brasileiro, em expressão universalista.
Para Antunes o ator é um servidor do
poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. O que vemos é a expressão
brasileira, não através de filtros intelectuais, de conceitos generalizantes,
mas a partir do material humano que participa da sua criação, o ator.
A densidade dramática é ferida em seu
ponto nevrálgico. O homem encontra a si próprio, a partir da mínima verdade
trazida à cena sob a luz do teatro. Em expressionismo que nos faz lembrar que
Nelson assistiu a Cidadão Kane 15 dias antes de escrever Vestido de Noiva. Em A Falecida temos exposto o nervo principal da
sua obra: a família. A máscara parece o verdadeiro rosto. Pululam o prosaico, o
risível, as gírias, a ironia, o frenesi, a paródia da paródia e até as marcas
do inconsciente recifense, herança familiar de Nelson.
O sentido dialético na montagem de A Falecida, com estreia no Recife há
dois anos atrás, é levado ao extremo e a verdade dramática, as formas
estéticas, tempo, espaço e ação não se dobraram à disposição de análises
sociológicas ou psicológicas, simplesmente. O futebol, o desfile, a bebida, o
machismo, a fé, o desequilíbrio social, as contradições do homem brasileiro
escritas / inscritas na poética do espaço cênico como ruptura, transbordamento,
justaposição, no entrelaçamento de
cenas, no trabalho com o contratempo das falas, na gravidade poética que se estabelece naquele bar, onde o universo de
cada mesa não interage de forma direta com o das outras e os tipos que dividem
tal espaço parecem não enxergar os outros personagens. E na mesa do centro,
neste cenário, está um ator que representa Nelson Rodrigues (não nos moldes
tradicionais, mas por detalhes). Nelson, que praticamente arrancou da vida os
seus personagens, ali está. Cravado como um prego na cruz, ou para melhor dizer
na encruzilhada antuniana, cheia de fluxos e refluxos.
Doce e misteriosa Zulmira, adúltera e
santa, fugitiva de sinistro folhetim. Entre faunos (tarados urbanos?), como o
agente funerário timbira, o milionário Pimentel, ou mesmo do seu fiel marido,
que no fim também vai lhe trair, em nome de uma vingança póstuma.
A moreninha de olhos verdes Zulmira,
Bovary dos pobres. Em cinco minutos (!) traiu o marido (pela primeira vez?)
traiu o marido com um desconhecido no banheiro feminino de uma sorveteria. Sobrou-lhe
um enterro de cachorro em meio ao viveiro de ódios rodriguianos. Ao dizer “Já
não sou mais desse mundo”, ela parece dialogar com a Geni de Toda nudez
será castigada (1965): “Aqui quem te fala é uma morta”. Ela morre no final
do 2º ato, mas volta em flashback.
Para salvar a plateia, Rodrigues
encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao seu público um “pavoroso
fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu
conhecimento das condições do gênero teatral (“o bom teatro é o que sacode o
público”, disse Bandeira) não teme o grotesco e questiona conceitos.A esposa cadáver, infiel depois de morta.
Poema do subúrbio, flor tardia, rosa do povo. Da cornucópia verbal de Nelson,
Antunes eliminou pouca coisa. Só algo depois que Zulmira morre. Lá estão,
intactos, o sarcasmo e o humor. Poesia sufocada, como a personagem principal. Zulmira
e sua catarse maldita. Tanatos e Eros em simbiose. “Que fazemos nós desde que
nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro?”, pergunta o
recifense. “A ficção para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é
vil para que não sejamos” (?)
No cenário de Rosângela Ribeiro os
portais negros e a porta vaivém do bar- por onde os atores saem e entram
provocam violentas imagens. A tampa do caixão de Zulmira, que ela experimenta
de modo farsesco, é vaivém tragicômico também.
Já Antunes faz da farsa trágica de Nelson um exercício de vida, num espetáculo
seminal que mais do que uma encenação é uma atitude.Os ambientes da peça são demarcados
pelas ações dos personagens entre mesas, cadeiras num ritmo frenético, uma totalidade
ininterrupta, movimento fluente, onde a existência é desdobrada de dentro de
cada região do espaço e tempo. No
original de Nelson não há naturalismo. Lembrando que qualquer parte envolve o todo (dobrado) e nenhuma parte existe
independente nem pode deixar de ser afetada em tal relação. São imagens
paralelas e o espectador não consegue ter uma imagem isolada, sem
interferências. “Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver
claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a
nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios”, sentencia Antunes
Filho.
O homem só se salva se reconhecer a própria hediondez. A tragédia surge
como uma espécie de expurgo, acerto de contas de
Nelson com sua história, com todos os homens, com a vida, de modo cético,
sombrio e até... romântico. Temos , na obra de Nelson Rodrigues a letra
e a voz de todos os homens, de todos os
tempos.
Moisés Neto
professor, pesquisador, escritor
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