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domingo, 9 de junho de 2013

Depois do vestido de noiva
A Falecida no contexto da obra de Nelson Rodrigues:
comentando a direção de Antunes Filho, em 2009, estreia nacional no Recife, produção local de Simone Figueiredo

                                                                          por Moisés Neto

(Resumo/ Roteiro da palestra conferida no dia 22 de agosto de 2012 no auditório da Livraria Cultura –Recife- dentro do 10º Festival Recifense de Literatura)


Teatro é  arte escrita no vento (Peter Brook)

 De maneira nenhuma, pode-se dizer que não haja nada num palco vazio, num palco que se pise de improviso. Pelo contrário, existe ali, um mundo transbordante de coisas. Ou melhor, é como se do nada surgisse uma infinidade de coisas e de acontecimentos, sem que se saiba como e quando. (Kazuo Ohno)

O sujeito que escreve deixa de ser ele mesmo. Uma simples frase nos falsifica ao infinito (Nelson Rodrigues)
                                                                                                                           


Como entender o mitopoético em Nelson Rodrigues?  Como analisar esta Poética?  Inicialmente temos que compreender que ela traduz o anseio de discutir o desejo, a pulsão. É uma escrita sensacionalista em tom grandiloquente.  Nelson é, antes de tudo, um poeta. Gerado no meio parnasiano (belle époque recifense, Olegário Mariano, romântico retardatário na periferia da modernidade, era amigo dos Rodrigues), mas com algo mais próximo a Augusto dos Anjos, Aluísio Azevedo, ou até um reescrito simbolismo, expressionismo, Nelson não se prendeu a Escolas nem teve respaldo de nenhum movimento.

Perverso lirismo ou antilirismo? E aqui usamos este termo nos moldes de Costa Lima que via o esvaziamento do sentimentalismo na corrente que vinha de Bandeira passando por Drummond e chegando em João Cabral.

Como se desenvolve esta poética? Compreendemos que é a partir da tragicidade. O desespero, o êxtase, a busca do inconsciente, o retorno do recalcado. Percebemos nesta escrita uma negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). Eros e Tanatos estão acoplados nos seus textos. Bem e mal como no Tao chinês (o absoluto, só pode ser atingido pela intuição) têm suas fronteiras desconstruídas e são mostrados como complementaridade na necessidade da dialética na luta dos “contrários” onde o Outro se revela na ruptura, nessa poética que funde gêneros e tritura a cor local. O indizível vai sendo vomitado, a linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa.

O capricho, o pessimismo, o sadismo vão servindo como portais para que atingir outras dimensões do ser. Os personagens de Nelson, na sua atração pelo desconhecido, proporcionam o retorno do recalcado, em meio a frases com mais exclamações do que reticências.

Freud apontou que no inconsciente estariam os rejeitos do consciente e atribuiu a energia da libido ao sexo, já Jung (que também trocou ideias com Einstein) esclareceu que a libido é toda a energia psíquica e que os arquétipos são traços funcionais do inconsciente coletivo, viriam da repetição infinita e estão (unindo) em todos os homens. O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca essa raiz comum, dentre outras coisas. O faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o registro rodriguiano vai além dos clichês freudo-marxistas. Aliás, ele os põe em xeque.

II

A assombração da tuberculose (Zulmira de A falecida morre por doença nos pulmões) teria provocado nele um distanciamento em relação à vida. A pobreza (uma amiga do Recife ao visitar a família dele no Rio ficou chocada ao vê-los no almoço comendo somente café sem leite e macaxeira) que o impediu inicialmente de um tratamento mais adequado, as humilhações de ter pouquíssimo dinheiro e andar maltrapilho, em transportes coletivos, frequentar prostíbulos na adolescência, conviver com tuberculosos pobres (o horripilante pneumotórax), a torturante a úlcera (quando adulto) o clima de guerra e sarcasmo das redações dos jornais, conhecer os bastidores da política e a alma do povo retratados nos periódicos nos quais também escrevia e aos quais sua família desde a geração anterior se dedicava, tudo isto está  expresso no seu riso entreaberto segurando um cigarro, entre os dentes, postiços (teve que arrancar todos por causa da tuberculose, ainda jovem).

O subúrbio Aldeia Campista, onde mora Zulmira, personagem central de A Falecida (1953) é o mesmo onde morou Nelson, cheio de vizinhos que se imiscuíam na vida alheia, cheios da marca do baixo nível de vida, doenças, distorções da fé, adultérios etc.

O Rio que Nelson conheceu era uma metrópole reurbanizada, mas o choque de ricos / granfinos com pobres era gritante e ganha expressão dramática em sua obra, lembremo-nos de que a fantasia de Zulmira gira em torno de um enterro de milionária.

Homem e obra: “Caso de psicanálise”, sugereria um parente de Zulmira. “Freud era um vigarista”, rebateria outro. Os rejeitos do consciente que se localizam no inconsciente, segundo Freud, voltam e assumem contornos agressivos delineando um sexo perverso, mas que não se quer doentio. As palavras haveriam de sublimá-lo, como numa terapia.

Temos que lembrar que para Jung nem sempre conflito psíquico é de origem sexual- libido para Jung vem toda a energia psíquica.

Em A Falecida, a família está sob o poder do pai. A voz do pai é silenciada, a adúltera não está arrependida, visa a glória, ou pelo menos esnobar a Glorinha (nome da sua prima com um seio extirpado). Estranho sonho de suburbana. Enterro de rico. Crucifixo de cristal, cortinas para cinco portas, cavalos com penachos, caixão com alças de bronze.

Zulmira, como tantos outros personagens rodrigueanos, é vítima do logro que parece ser a maldição, ou o estigma fundamental do homem, como aponta Sábato Magaldi sobre “A Falecida” (Nelson Rodrigues. Teatro Completo. RJ. Ed. Nova Fronteira, 1985)

III

Antunes vai estilhaçar o painel rodriguiano e o reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de cômico, em Nelson. Afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista, fazendo com que a tragédia fale de si mesma, desmontando estereótipos.
Levando o ator a pensar o seu papel dentro da arquitetura teatral e atingir a unidade do espetáculo, da escritura cênica, Antunes assume atitude ZEN diante dos dogmas e vê na poética de Nelson um desafio cósmico.


Ao desdobrar a totalidade da existência, observar o todo desdobrado em si e sua relação com a realidade, Antunes faz de A Falecida um espetáculo onde cada parte, no contexto do todo, se coloca em superposição.

Ele afirma que não conseguirá fazer mais nenhum espetáculo que não expresse essa simultaneidade tão presente na vida. Esse ritmo frenético. Os sentidos ligados em várias coisas ao mesmo tempo.

 As cenas são como que projetadas sobre o cenário de um bar (onde não para de tocar samba em BG). O tinir de copos e garrafas, o burburinho, o vaivém dos que ali estão transformam o diálogo dos personagens em estranha sincronicidade junguiana. O tempo parece estar sendo comprimido ao ponto de explodir.

Assentada, a imagem caleidoscópica parece sempre aberta: a um novo giro, novo desenho. Quer múltipla percepção. Estabelece insólitas relações.

O que é fundamental e o que é secundário aparecem na cena como vem à memória, ao sonho.

O diretor articulou as cenas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, calcados no sugestivo texto de Rodrigues, provoca a cena que não quer se alienar está longe do convencional, tem língua própria e dinâmica.

O “golpe de teatro”, no caso a cena em que Tuninho fica sabendo que a esposa lhe era infiel. Ele e a plateia descobrem ao mesmo tempo. Antunes trabalha esta cena, que é calcada no abandono, a violência e o ódio, de modo que o riso e o choro se empalideçam. Tuninho é enfocado no seu esvaziamento, simplesmente. Ele bancou o bobo, não só por causa da esposa, mas pela sua própria constituição de idiota que tem a personalidade calcada em estereótipos oferecidos por uma sociedade manipulada. O torcedor de futebol (Vasco). Sua preocupação com o time se mescla à humilhação imposta pela miséria física e intelectual. Seu desamparo dentro do mal-estar da civilização.

O ator/ jogador está guiado por uma batuta que aponta para novas possibilidades do idioma cênico. O que vemos, não só em Tuninho, mas também em Pimentel (“amante” de Zulmira) e Timbira (agente funerário) é a representação do homem brasileiro, em expressão universalista.

Para Antunes o ator é um servidor do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. O que vemos é a expressão brasileira, não através de filtros intelectuais, de conceitos generalizantes, mas a partir do material humano que participa da sua criação, o ator.

A densidade dramática é ferida em seu ponto nevrálgico. O homem encontra a si próprio, a partir da mínima verdade trazida à cena sob a luz do teatro. Em expressionismo que nos faz lembrar que Nelson assistiu a Cidadão Kane 15 dias antes de escrever Vestido de Noiva. Em A Falecida temos exposto o nervo principal da sua obra: a família. A máscara parece o verdadeiro rosto. Pululam o prosaico, o risível, as gírias, a ironia, o frenesi, a paródia da paródia e até as marcas do inconsciente recifense, herança familiar de Nelson.

O sentido dialético na montagem de A Falecida, com estreia no Recife há dois anos atrás, é levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobraram à disposição de análises sociológicas ou psicológicas, simplesmente. O futebol, o desfile, a bebida, o machismo, a fé, o desequilíbrio social, as contradições do homem brasileiro escritas / inscritas na poética do espaço cênico como ruptura, transbordamento, justaposição, no entrelaçamento de cenas, no trabalho com o contratempo das falas, na gravidade poética que se estabelece naquele bar, onde o universo de cada mesa não interage de forma direta com o das outras e os tipos que dividem tal espaço parecem não enxergar os outros personagens. E na mesa do centro, neste cenário, está um ator que representa Nelson Rodrigues (não nos moldes tradicionais, mas por detalhes). Nelson, que praticamente arrancou da vida os seus personagens, ali está. Cravado como um prego na cruz, ou para melhor dizer na encruzilhada antuniana, cheia de fluxos e refluxos.

Doce e misteriosa Zulmira, adúltera e santa, fugitiva de sinistro folhetim. Entre faunos (tarados urbanos?), como o agente funerário timbira, o milionário Pimentel, ou mesmo do seu fiel marido, que no fim também vai lhe trair, em nome de uma vingança póstuma.

A moreninha de olhos verdes Zulmira, Bovary dos pobres. Em cinco minutos (!) traiu o marido (pela primeira vez?) traiu o marido com um desconhecido no banheiro feminino de uma sorveteria. Sobrou-lhe um enterro de cachorro em meio ao viveiro de ódios rodriguianos. Ao dizer “Já não sou mais desse mundo”, ela parece dialogar com a Geni de Toda nudez será castigada (1965): “Aqui quem te fala é uma morta”. Ela morre no final do 2º ato, mas volta em flashback.

Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral (“o bom teatro é o que sacode o público”, disse Bandeira) não teme o grotesco e questiona conceitos.A esposa cadáver, infiel depois de morta. Poema do subúrbio, flor tardia, rosa do povo. Da cornucópia verbal de Nelson, Antunes eliminou pouca coisa. Só algo depois que Zulmira morre. Lá estão, intactos, o sarcasmo e o humor. Poesia sufocada, como a personagem principal. Zulmira e sua catarse maldita. Tanatos e Eros em simbiose. “Que fazemos nós desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro?”, pergunta o recifense. “A ficção para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos” (?)
No cenário de Rosângela Ribeiro os portais negros e a porta vaivém do bar- por onde os atores saem e entram provocam violentas imagens. A tampa do caixão de Zulmira, que ela experimenta de modo farsesco, é vaivém tragicômico também.

Já Antunes faz da farsa trágica de Nelson um exercício de vida, num espetáculo seminal que mais do que uma encenação é uma atitude.Os ambientes da peça são demarcados pelas ações dos personagens entre mesas, cadeiras num ritmo frenético, uma totalidade ininterrupta, movimento fluente, onde a existência é desdobrada de dentro de cada região do espaço e  tempo. No original de Nelson não há naturalismo. Lembrando que qualquer parte  envolve o todo (dobrado) e nenhuma parte existe independente nem pode deixar de ser afetada em tal relação. São imagens paralelas e o espectador não consegue ter uma imagem isolada, sem interferências. “Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios”, sentencia Antunes Filho.
O homem só se salva se reconhecer a própria hediondez. A tragédia surge como uma espécie de expurgo, acerto de contas de Nelson com sua história, com todos os homens, com a vida, de modo cético, sombrio e até... romântico. Temos , na obra de Nelson Rodrigues a letra e a  voz de todos os homens, de todos os tempos.
Moisés Neto
professor, pesquisador, escritor








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