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domingo, 9 de junho de 2013

Bernardo Carvalho, madeira de lei
Por Moisés Neto

O escritor Bernardo Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, vive em São Paulo, mas para ele é fundamental o sentimento de não pertencer a um lugar, um certo deslocamento que impossibilita ao mesmo tempo integração e  reconhecimento, ver as coisas de fora. São Paulo é sua terra estrangeira dentro do Brasil, seu estranhamento e em O sol se põe em São Paulo o narrador-protagonista (publicitário, neto de japoneses imigrantes) encontra-se com a dona de um restaurante japonês, Setsuko  (80 anos) instalam ali mesmo um terceiro espaço, cheio de identidades trocadas: ela lhe conta para que ele escreva, e  fazemos assim a viagem com eles a um Japão reinventado. “ Ela vinha de Osaka, o berço da Yakuza. No fundo, sou um moralista. O mundo está cheio deles. É um azar quando se tornam escritores. Estão sempre prontos a dar opinião sobre tudo.”(p.16). Ele critica a opção da irmã, que migrou para o Japão, em busca de emprego.   O jogo metalingüístico é óbvio, as frases curtas nos ao narrador que retornara àquele restaurante depois de 10 anos. Este narrador está desempregado e descasado; é descendente de japoneses; sua irmã foi morar no Japão – ele não fala muito sobre as duas. É a inquietação do um eu em passagem, há também o triângulo amoroso que nos remete ao passado, no Japão, depois da guerra. E os  personagens nesse entre-lugar tentam reconstruir suas identidades. Pós-moderno? Avesso dos estrangeiros no Brasil? Parecem inúteis tais classificações aqui, onde as informações históricas, geográficas mesclam-se em tom agressivo: “depois de me foder por nada, trabalhando como redator de comerciais de uma agência de publicidade...”.  Parece Dashiel Hammet. Pressentimos o Noir.
 O pôr-do-sol em São Paulo pode ser belo na poluição e Setsuko, voz dupla com o narrador, vem da terra do sol nascente, que vem se pôr em São Paulo. São universos paralelos, sutilmente contraditórios  Nissei (americano filho de japonês), sansei (neto)? Da Ásia,da América do Sul, fugindo da miséria, da opressão, do nada e seguindo um sonho. E o narrador escuta as histórias como se tudo estivesse na sombra no restaurante Seiyoken. Sakê, cerveja o apagar das luzes , perguntas, códigos: estrada de  palavras. Fecha-se a trilogia ''Nove noites'' (2002) e ''Mongólia'' (2003) são fronteiras apagadas, Setsuko foi jovem de família respeitada, conhecemos através dela o filho de um industrial e um ator de kyogen, o teatro cômico local.  Tudo parece um outro lugar, a ambigüidade, a entrega, as imposturas, angústia, a literatura como dissimulação...
O sol se põe em São Paulo foi reescrito 20 vezes. Temos nele a metalinguagem . É um livro que trata de literatura japonesa, cuja sociedade não preza a individualidade, não preza o estilo individual - a ruptura não faz parte da tradição cultural.
Carvalho faz parte de uma vertente da literatura brasileira a partir dos anos 80 : Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e Chico Buarque. O jogo e a história em dubiedade: toda parte, lugar nenhum. A desconfiança A relação com o passado , com o conhecer-se, qual Édipo. Em “O sol se põe...”:  há ainda a história contada pelo homem com o lábio leporino que vamos conhecer no final da obra. Paira sobre tudo a desconfiança em relação a uma verdade histórica Há muitos microrelatos, vestígios, alguns enganosos. É literatura falando de si em processo metaficcional historiográfico o errante e sua relação com as coisas. Instabilidade, o desconhecido, projetos da existência e da experiência subjetiva: problematizações, desconstruções, como em O sol se põe em São Paulo, a construção do personagem principal, ambígua : “Voltar ao Japão como operário (apesar de nunca ter posto os pés lá antes) seria perpetuar o
fracasso e o erro, a fuga apenas nos afundava ainda mais no inferno. A literatura podia ser a minha miragem, mas pelo menos era uma forma de abraçar o inferno como pátria. No fundo, era nisso que eu acreditava.” (CARVALHO, 2007, p. 20).
Carvalho ressalta: “A literatura que serve para alguma coisa é a que o mercado quer. Se vivêssemos na Idade Média, a literatura serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura oficial. Não servir para nada é um negócio radical e muito importante; permite que se faça uma literatura de ruptura, que não obedece a demandas preexistentes. Não é o novo pelo novo. Não é isso. É criar um mundo que ainda não existe. Criar uma vontade nas pessoas que elas ainda não têm (romance de demanda). Isso é genial. É uma oferta para ver se germina. É lógico que eu acho que a literatura serve para alguma coisa. Mas preciso manter esta idéia, porque é uma idéia política, de resistência: literatura não serve para nada mesmo. Mas eu vou continuar fazendo. A ilusão de que não tem função é super-importante. Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar. Para o tipo de literatura que eu faço, há cada vez menos espaço. A maioria dos escritores é composta por ingleses e americanos. Passei dois meses convivendo com alguns escritores anglo-saxões e me dei conta de que a importância do mercado é um negócio chocante. Esses escritores só funcionam em função do mercado porque se você for um escritor nos Estados Unidos e na Inglaterra e não funcionar no mercado, você não existe. Para mim, fazer literatura com essa preocupação é algo muito sem graça.”
A literatura no Brasil, país de analfabetos , onde o texto faz parte apenas de uma cultura de classe média ou de uma elite grosseira, iletrada, ignorante, que cultiva e reproduz a ignorância para os seus filhos: a arte que Carvalho defende não funciona na sociedade, não tem função, entra em desacordo - não tem lugar no Brasil . trata-se de um tipo de literatura que tem importância mas ele diz não ter nenhuma conseqüência social. Uma literatura que pode ser de resistência, A idéia de que a literatura não serve para nada surgiu na modernidade, e ele a considera importante. É uma idéia política. É essa idéia que faria a literatura de verdade sobreviver.
É uma literatura que se quer militante contra a perda do interesse dos leitores pela ficção na literatura. “Parte do livro pode ser lida como um pastiche dos romances do Tanizaki, narrado por uma das personagens principais. O Japão produziu grandes escritores no século XX. E isso em termos absolutos, mundiais. No caso desse romance, o que me interessava era o deslocamento do qual eu vinha falando, o Japão no Brasil e o Brasil no Japão, as coisas fora do lugar. E o curto-circuito que a inadequação e o estranhamento podem provocar na criação de outros pontos de vista, de outras maneiras de ver. Há uma frase no final do livro que resume esse sentimento e essa vontade: o oposto é o que mais se parece conosco".
Uma professora universitária escreveu um ensaio longuíssimo sobre Nove noites, dizendo que o personagem era um gay enrustido. E como o romance seria autobiográfico, só podia ser eu o gay enrustido. Então, com O sol se põe em São Paulo, eu queria fazer um livro que essa professora não descobrisse que o gay enrustido era eu. Até agora ela não descobriu.Se eu trato de gay enrustido, é porque isso me interessa, mas aquele não sou eu.”
Bernardo lembra Beckett a escreve algo dissonante, novo e inovador que demanda força de vida , um mundo sombrio, Sade também: Vozes dissonantes, incompatíveis com seu tempo. Forte, paradoxal. Uma celebração do humano.
Ele faz  o elogio da ficção e propõe uma formulação que não é simples ao ver " a imaginação como elemento constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo". É parte da tendência da literatura brasileira contemporânea ao realismo e ao documental, uma tendência natural. Quanto maior a violência dessa realidade, mais ela vai impor uma representação unívoca, mais ela vai reduzir as possibilidades de representação. A questão não é representar ou deixar de representar a realidade (até porque, de alguma forma, ela sempre acaba representada), mas não sucumbir a uma determinada idéia de representação da realidade como modelo e paradigma. A imaginação é um elemento complexo da realidade. A literatura e a arte cessam quando você passa a aceitar modelos para a criação.
Os seus livros explicitam a manipulação do leitor até quase o grotesco. É muito visível. Mas o que o romance faz é manipular o leitor e fazer com que ele participe?
Carvalho polemiza: “Guimarães Rosa, que eu considero um gênio. Há três traduções no mundo do Rosa: duas boas (Itália e Alemanha) e uma na França (mais ou menos). Mas se perguntar para um alemão, italiano ou francês quem é Guimarães Rosa, ninguém sabe. Nos Estados Unidos, Grande sertão foi traduzido como bangue-bangue. Este jornalista nunca ouviu falar em Guimarães Rosa. É triste: você pode ser um gênio da literatura, pode fazer uma obra incontestável, e mesmo assim não vai ter lugar para você. No cânone internacional, ocidental, não tem lugar para o brasileiro, pode ser o maior gênio da raça. Você fica babando ovo para escritor inglês e americano (há alguns geniais), mas não tem a contrapartida. Ninguém vai ler escritor brasileiro. E não é escritor pequenininho como eu, é Guimarães Rosa. Ninguém sabe quem é Guimarães Rosa e nem quer saber. A cultura brasileira é samba, futebol e música popular. Não é alta cultura. O Brasil tem a oferecer cultura popular, futebol e administração da miséria. Não sei como lidar com isso. Eu sou um pouco paranoico. Mas se pode ver a paranoia como a criação do sentido. Se o mundo não faz sentido - e não faz -, o paranoico é que aquele que vê sentido onde não tem. O mundo não faz sentido, a vida não tem sentido, não faz sentido eu estar vivo. A paranoia me atraía como uma matriz de sentido, uma matriz desvairada. A ideia da paranoia me atraía como ficção, como produção de ficção.Eu escrevo os romances que eu gostaria de ler. É importante que o leitor participe de forma ativa da leitura, que seja empurrado para dentro do texto não de maneira meramente passiva, queria deixar isso claro. Então, o jogo em meus livros é importante. Tem a função de cooptar o leitor, de fazê-lo ter uma participação ativa no livro”.


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