por Moisés Neto
A poesia é mais divulgada no Brasil de hoje nas letras da música popular. Estava no rock dos anos 80 e no hip hop dos 90. Em nenhum outro país do mundo a canção popular atingiu um status tão intelectual quanto no Brasil. Nosso país é provavelmente o único ou um dos poucos em que se empregam largamente letras de música como parte do ensino de literatura nas escolas primárias e secundárias. Nos países mais desenvolvidos isso acontece em menor escala.
A própria canção popular tem-se alimentado da literatura. Nossa canção popular tem letras que merecem teses que rompam fronteiras entre o popular e erudito. Um dos maiores alvos de ataque por parte dos inimigos foi o suposto perigo representado pela quebra de fronteiras entre o popular (a música) e o erudito (os livros e a universidade).
A verdade é que as fronteiras vêm se alargando através da “revolução pop rock”.
No Brasil, nas últimas quatro décadas do século XX, nessa área o poeta maior surgido no Brasil teria sido Caetano Veloso, nome ao qual se agregam freqüentemente os de Chico Buarque, Renato Russo e Cazuza.
Foi como se a letra de música tivesse roubado o lugar cultural do poema literário. Com o tempo, viu-se que a situação não era tão drástica. Se por um lado, a letra de música roubara temporariamente a cena do poema literário, por outro, juntá-la ao patrimônio da literatura não deixava de representar um enriquecimento da cultura de quem cursou universidade. Com a liberação das fronteiras, além de Caetano-Chico-Renato Russo, passaram a fazer parte do panteão poético brasileiro. Integrou-se à literatura a produção de poetas-letristas, como foi no passado Vinicius de Moraes, como são no presente Arnaldo Antunes. Letristas de rock como Chico Science, Lobão, Cazuza e Renato Russo foram poetas destacados em nosso fim de século. Meteoritos poéticos. A poesia está no ar porque a canção popular está no ar.
Na verdade, a confusão entre poesia e canção tem uma longa história em nossa cultura literária. Foi assim que começou a tradição poética na língua portuguesa. As medievais cantigas de amor e de amigo, que inauguraram a poesia sentimental lusa na idade média, eram letras de composições musicais, como seus nomes bem indicam – cantigas. Pois suas melodias perderam-se no tempo e as letras sobreviveram, viraram literatura pura, literatura de livro. Literatura é texto que se guarda.
A duplicidade verbal/musical é indicada também pelo fato de que tantos poemas modernos em língua portuguesa chamam-se “cantigas”, “canções”. Basta pegar como exemplo um único grande nome na nossa poesia do século, Cecília Meireles, que as escreveu em grande quantidade, e não consta que se destinassem a ser efetivamente musicadas.
Claro que um poema intitulado “canção” usa esse nome a partir apenas de uma comparação. Canção é para ser cantada. Poema é para ser lido em silêncio ou falado em voz alta. Porém, todo poema pode receber melodia e virar canção. Poemas de Bandeira serviram de letras para composições de músicos eruditos brasileiros, como Villa-Lobos. Muitos textos de diversos outros poetas foram musicados como canções da MPB, do rock. Inversamente, qualquer letra de música pode perder a melodia e ser posta na página, virando poema. Se o poema assim transposto do musical para o livro fica melhor ou pior, é uma questão sempre em aberto.
Existem aqueles que defendem a letra de música como poesia e ponto. Sem maiores ressalvas. Em contrapartida, existem aqueles que defendem a poesia contra a letra de música, dizendo que esta jamais se sustenta como autêntica poesia de livro. No meu modo de ver, quando o poema-poema vira canção, ele ganha, porque ganha uma nova dimensão.
“Mesmo que seja estranho seja você, mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro”, grita a compositora de pop rock Pitty. Outro que tem recebido recriminações é o compositor paulista Chorão, do grupo Charlie Brown Jr. Em conversa que tive com ele em janeiro passado ele me falou sobre isso. Chorão tem um eu-lírico que é meio punk, meio Peter Pan. Vejamos: às vezes ele diz “Logo eu? Que sempre achei legal ser tão errado” ou é óbvio: “O tempo às vezes é alheio a nossa vontade” (em Quebra-mar). E segue contraditório: “Estive pensando em mudar, sem te deixar pra trás” (em Tudo mudar). Suas letras lembram os versos do compositor baiano Marcelo Nova do grupo Camisa de Vênus dos anos 80/90, especialmente na música Hoje, que diz: “ouvi notícias de muito longe batendo na minha porta/ (...) tenho dinheiro, CPF, eu não me lembro é do meu nome. Não há mais festas (...) hoje eu estou atrasado. Pra que escolas e faculdades?(...) acho que fui enganado”. É uma revolta que cheira a adolescente no mau sentido. Já em Zoio de Lula, Chorão escreve: “Ela me ignora (...) o dia passou (...) as pessoa ao redor nunca me entendem (...) me deixe viver, me deixe ficar (...) meu escritório é na praia, eu estou sempre na área”. Não, não é nenhum Renato Russo, mas Chorão é o porta-voz de uma geração perdida na virada do milênio. Ele tem um lado meio família onde afirma que o pai foi a melhor coisa da sua vida e longe dele ele passou até fome. Mais adiante ele diz: “Eu não sei fazer poesia, não uso sapato, odeio gente chique” (em Eu não uso sapato). Em “A Banca” ele detona: “Coração de vagabundo bate na sola do pé”. Em “Não é sério": “O jovem no Brasil não é levado a sério / O que falam sobre os jovens não é sério. Eu sempre quis falar mas não estava ao meu alcance(...) é difícil acreditar mas um dia essa porra vai mudar”. Em “Proibida para mim”: “Se não eu, quem vai fazer você feliz? Guerra?”.
Ao virar poema-na-página, não apenas perde-se a melodia da letra, mas adquirem novos valores alguns elementos cruciais, um tipo de mudança que pode vir em desfavor da poesia. Um exemplo disso é o refrão. A existência de refrões e repetições pode ser boa de ouvir, mas às vezes é chata de ler. Fica pobre. O uso de refrões na poesia literária tem que ser feito com mais cuidado.
A questão pode também ser encarada do ponto de vista do criador. Todo letrista é poeta. Mas nem todo poeta é ou quer ser letrista. Poesia é emoção inteligente, inteligência emocionada. Recentemente, um poeta da geração 90, defendendo a poesia contra a letra da música, disse que esta não funciona sobre a página porque somos automaticamente levados a cantar quando lemos letra de música. Não creio que se situe aí a justificativa da necessidade de preservarmos um espaço separado para a poesia escrita, tanto do lado da criação quanto do lado da recepção. Não acredito que, se desconhecemos a melodia de uma letra, sejamos “automaticamente” levados a dar-lhe alguma melodia.
O que define em última instância o abismo entre literatura e canção, entre poema-poema e poema-letra-de-música é o suporte que permite sua sobrevivência como objeto cultuado num patrimônio estético e afetivo coletivo.
O poema literário é uma arte verbal vinculada ao suporte da escrita e da leitura silenciosa. A letra de música até pode sustentar-se sobre a leitura, mas sua condição de sobrevivência é ser cantada através das gerações.
No entanto, o poema literário também pode se desdobrar numa performance: sua vocalização pública, através da declamação memorizada ou da leitura em voz alta.
A leitura solitária é o produto de uma civilização em que existem práticas culturais radicalmente individuais. Só pode existir interesse pela literatura e pela poesia num contexto em que a solidão radical do indivíduo seja socialmente valorizada e seja considerada produtiva por esse indivíduo. Para quem nunca adquiriu a disciplina nem descobriu o prazer e o lucro trazidos pela leitura solitária e silenciosa de literatura, ler fica parecendo perda de tempo. Todo mundo que gosta de ler, principalmente no Brasil, aqui no Recife, sabe como é difícil ser respeitado nessa atividade. Logo aparecem esposa/ esposo, filhos, amigos, querendo arrancar o leitor ou leitora de seu livro e de seu silêncio.
Para muita gente, ler a não ser por obrigação é coisa para quando não se tem mais nada a fazer.
Nosso século poético foi marcado por duas grandes revoluções. A primeira foi a revolução modernista, nos anos 20. A segunda foi a revolução do pop rock, momento em que a poesia foi seqüestrada pela música, numa seqüência de movimentos que, de fins dos anos 50 a fins dos 60, levaram da bossa nova ao tropicalismo. O impacto da primeira revolução foi tão forte, que fez do século um século modernista. O impacto da segunda abalou o lugar cultural do poema, ao situá-lo entre livro e canção.
Poesia de primeira tanto pode estar num poema literário como num poema do pop rock, tanto pode estar num poema épico, quanto pode estar na letra rápida de uma canção do pop rock. Mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro.
Já dizia Rita Lee: "Quando a lua apareceu, ninguém sonhava mais do que eu, já era tarde, mas a noite é uma criança distraída. Depois que eu envelhecer, ninguém precisa mais me dizer como é estranho, ser humano nessas horas de partida (...) depois da estrada começa uma grande avenida, (...) são coisas da vida, a gente se olha e não sabe se vai ou se fica.”
A própria canção popular tem-se alimentado da literatura. Nossa canção popular tem letras que merecem teses que rompam fronteiras entre o popular e erudito. Um dos maiores alvos de ataque por parte dos inimigos foi o suposto perigo representado pela quebra de fronteiras entre o popular (a música) e o erudito (os livros e a universidade).
A verdade é que as fronteiras vêm se alargando através da “revolução pop rock”.
No Brasil, nas últimas quatro décadas do século XX, nessa área o poeta maior surgido no Brasil teria sido Caetano Veloso, nome ao qual se agregam freqüentemente os de Chico Buarque, Renato Russo e Cazuza.
Foi como se a letra de música tivesse roubado o lugar cultural do poema literário. Com o tempo, viu-se que a situação não era tão drástica. Se por um lado, a letra de música roubara temporariamente a cena do poema literário, por outro, juntá-la ao patrimônio da literatura não deixava de representar um enriquecimento da cultura de quem cursou universidade. Com a liberação das fronteiras, além de Caetano-Chico-Renato Russo, passaram a fazer parte do panteão poético brasileiro. Integrou-se à literatura a produção de poetas-letristas, como foi no passado Vinicius de Moraes, como são no presente Arnaldo Antunes. Letristas de rock como Chico Science, Lobão, Cazuza e Renato Russo foram poetas destacados em nosso fim de século. Meteoritos poéticos. A poesia está no ar porque a canção popular está no ar.
Na verdade, a confusão entre poesia e canção tem uma longa história em nossa cultura literária. Foi assim que começou a tradição poética na língua portuguesa. As medievais cantigas de amor e de amigo, que inauguraram a poesia sentimental lusa na idade média, eram letras de composições musicais, como seus nomes bem indicam – cantigas. Pois suas melodias perderam-se no tempo e as letras sobreviveram, viraram literatura pura, literatura de livro. Literatura é texto que se guarda.
A duplicidade verbal/musical é indicada também pelo fato de que tantos poemas modernos em língua portuguesa chamam-se “cantigas”, “canções”. Basta pegar como exemplo um único grande nome na nossa poesia do século, Cecília Meireles, que as escreveu em grande quantidade, e não consta que se destinassem a ser efetivamente musicadas.
Claro que um poema intitulado “canção” usa esse nome a partir apenas de uma comparação. Canção é para ser cantada. Poema é para ser lido em silêncio ou falado em voz alta. Porém, todo poema pode receber melodia e virar canção. Poemas de Bandeira serviram de letras para composições de músicos eruditos brasileiros, como Villa-Lobos. Muitos textos de diversos outros poetas foram musicados como canções da MPB, do rock. Inversamente, qualquer letra de música pode perder a melodia e ser posta na página, virando poema. Se o poema assim transposto do musical para o livro fica melhor ou pior, é uma questão sempre em aberto.
Existem aqueles que defendem a letra de música como poesia e ponto. Sem maiores ressalvas. Em contrapartida, existem aqueles que defendem a poesia contra a letra de música, dizendo que esta jamais se sustenta como autêntica poesia de livro. No meu modo de ver, quando o poema-poema vira canção, ele ganha, porque ganha uma nova dimensão.
“Mesmo que seja estranho seja você, mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro”, grita a compositora de pop rock Pitty. Outro que tem recebido recriminações é o compositor paulista Chorão, do grupo Charlie Brown Jr. Em conversa que tive com ele em janeiro passado ele me falou sobre isso. Chorão tem um eu-lírico que é meio punk, meio Peter Pan. Vejamos: às vezes ele diz “Logo eu? Que sempre achei legal ser tão errado” ou é óbvio: “O tempo às vezes é alheio a nossa vontade” (em Quebra-mar). E segue contraditório: “Estive pensando em mudar, sem te deixar pra trás” (em Tudo mudar). Suas letras lembram os versos do compositor baiano Marcelo Nova do grupo Camisa de Vênus dos anos 80/90, especialmente na música Hoje, que diz: “ouvi notícias de muito longe batendo na minha porta/ (...) tenho dinheiro, CPF, eu não me lembro é do meu nome. Não há mais festas (...) hoje eu estou atrasado. Pra que escolas e faculdades?(...) acho que fui enganado”. É uma revolta que cheira a adolescente no mau sentido. Já em Zoio de Lula, Chorão escreve: “Ela me ignora (...) o dia passou (...) as pessoa ao redor nunca me entendem (...) me deixe viver, me deixe ficar (...) meu escritório é na praia, eu estou sempre na área”. Não, não é nenhum Renato Russo, mas Chorão é o porta-voz de uma geração perdida na virada do milênio. Ele tem um lado meio família onde afirma que o pai foi a melhor coisa da sua vida e longe dele ele passou até fome. Mais adiante ele diz: “Eu não sei fazer poesia, não uso sapato, odeio gente chique” (em Eu não uso sapato). Em “A Banca” ele detona: “Coração de vagabundo bate na sola do pé”. Em “Não é sério": “O jovem no Brasil não é levado a sério / O que falam sobre os jovens não é sério. Eu sempre quis falar mas não estava ao meu alcance(...) é difícil acreditar mas um dia essa porra vai mudar”. Em “Proibida para mim”: “Se não eu, quem vai fazer você feliz? Guerra?”.
Ao virar poema-na-página, não apenas perde-se a melodia da letra, mas adquirem novos valores alguns elementos cruciais, um tipo de mudança que pode vir em desfavor da poesia. Um exemplo disso é o refrão. A existência de refrões e repetições pode ser boa de ouvir, mas às vezes é chata de ler. Fica pobre. O uso de refrões na poesia literária tem que ser feito com mais cuidado.
A questão pode também ser encarada do ponto de vista do criador. Todo letrista é poeta. Mas nem todo poeta é ou quer ser letrista. Poesia é emoção inteligente, inteligência emocionada. Recentemente, um poeta da geração 90, defendendo a poesia contra a letra da música, disse que esta não funciona sobre a página porque somos automaticamente levados a cantar quando lemos letra de música. Não creio que se situe aí a justificativa da necessidade de preservarmos um espaço separado para a poesia escrita, tanto do lado da criação quanto do lado da recepção. Não acredito que, se desconhecemos a melodia de uma letra, sejamos “automaticamente” levados a dar-lhe alguma melodia.
O que define em última instância o abismo entre literatura e canção, entre poema-poema e poema-letra-de-música é o suporte que permite sua sobrevivência como objeto cultuado num patrimônio estético e afetivo coletivo.
O poema literário é uma arte verbal vinculada ao suporte da escrita e da leitura silenciosa. A letra de música até pode sustentar-se sobre a leitura, mas sua condição de sobrevivência é ser cantada através das gerações.
No entanto, o poema literário também pode se desdobrar numa performance: sua vocalização pública, através da declamação memorizada ou da leitura em voz alta.
A leitura solitária é o produto de uma civilização em que existem práticas culturais radicalmente individuais. Só pode existir interesse pela literatura e pela poesia num contexto em que a solidão radical do indivíduo seja socialmente valorizada e seja considerada produtiva por esse indivíduo. Para quem nunca adquiriu a disciplina nem descobriu o prazer e o lucro trazidos pela leitura solitária e silenciosa de literatura, ler fica parecendo perda de tempo. Todo mundo que gosta de ler, principalmente no Brasil, aqui no Recife, sabe como é difícil ser respeitado nessa atividade. Logo aparecem esposa/ esposo, filhos, amigos, querendo arrancar o leitor ou leitora de seu livro e de seu silêncio.
Para muita gente, ler a não ser por obrigação é coisa para quando não se tem mais nada a fazer.
Nosso século poético foi marcado por duas grandes revoluções. A primeira foi a revolução modernista, nos anos 20. A segunda foi a revolução do pop rock, momento em que a poesia foi seqüestrada pela música, numa seqüência de movimentos que, de fins dos anos 50 a fins dos 60, levaram da bossa nova ao tropicalismo. O impacto da primeira revolução foi tão forte, que fez do século um século modernista. O impacto da segunda abalou o lugar cultural do poema, ao situá-lo entre livro e canção.
Poesia de primeira tanto pode estar num poema literário como num poema do pop rock, tanto pode estar num poema épico, quanto pode estar na letra rápida de uma canção do pop rock. Mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro.
Já dizia Rita Lee: "Quando a lua apareceu, ninguém sonhava mais do que eu, já era tarde, mas a noite é uma criança distraída. Depois que eu envelhecer, ninguém precisa mais me dizer como é estranho, ser humano nessas horas de partida (...) depois da estrada começa uma grande avenida, (...) são coisas da vida, a gente se olha e não sabe se vai ou se fica.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário