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quinta-feira, 3 de maio de 2018

REGIONALISMO EM XEQUE?




Creio que a linha de pensamento que procura descobrir nos fenômenos de desenvolvimento cultural o papel desempenhado por um superego promete ainda outras descobertas.[...] Por uma ampla gama de razões, está muito longe de minha intenção exprimir uma opinião sobre o valor da civilização humana. Esforcei-me por resguardar-me contra o preconceito entusiástico que sustenta ser a nossa civilização a coisa mais preciosa que possuímos ou poderíamos adquirir, e que seu caminho necessariamente conduzirá a ápices de perfeição inimaginada.  (FREUD in O Mal-estar na Civilização)

Veja as cores destas casas antigas: excelentes; repare na pintura destas casas modernas: horríveis...E não pense que há incoerência nas minhas expressões, porque sou modernista. Sou-o sobretudo, por ser brasileiro. Quero, por isso, a formação de uma arte nacional, que se há de extrair, sem dúvida, da obra dos antepassados. (Oswald de Andrade)



No meu blog publiquei: O Manifesto Regionalista faz 90 anos. Ainda fez sentido? Se pensarmos o que as rodas pensantes discutiam no início dos anos 20 / 30 do século passado, as idéias de Inojosa sobre o Modernismo, Freyre e Zé Lins sobre a civilização do açúcar, Rachel, Graciliano e Amado com seus vieses mais políticos e olharmos para nossos dias temos muito a discutir sobre o Nordeste no Brasil.
 (Estas “rodas”: seriampequenos grupos de artistas e intelectuais que, ao longo das décadas de 1920 e 30, se uniam para conduzir o espaço de produção cultural; eram compostas, dentre outras categorias sociais, por pintores, editores e escultores. Porém, os escritores constituíam o maior número entre seus integrantes). Raymond Williams (1980, cujos escritos em política, cultura, literatura e cultura de massas traduz pensamento marxista e na teoria cultural em geral) fala sobre o grupo de intelectuais londrinos – The Bloomsbury e seu significado social e cultural)  

Por exemplo, olhando para esta foto de Ariano e Chico fiquei aqui pensando:
Ariano Suassuna encontra Chico Science no Recife

Num mundo cada vez mais misturado e embalado em redes, vale a pena falar de Nordeste independente? Pãos ou pães: questão de opiniães, diz o peculiar Guimarães (regionalista universalizante e cheio de além) Rosa. Ah! Saudade do Futuro, eu juro. Vamos rasurar fronteiras ou deixo logo de besteira? Não fique magoado, vou falar do passado. Em 2016, o Manifesto Regionalista do Recife completou 90 anos. Este Movimento, nas palavras de Mauro Mota: teve e tem uma filosofia, tais as vigências dos seus métodos e suas diretrizes.
O Movimento Armorial e o nome do pai

O  Armorial foi forjado em que fogo? A oligarquia do couro e do algodão, decaída, queria manter nas mãos o poder cultural? O “nome do Pai”? (essa grande frase que quem está no poder chama “realidade”, e  a última “palavra” da severa figura que “cumpre” a função “paterna”, aqui  em relação à... cultura, isto é, um  parâmetro definidor da subjetividade); lembremos também O mal-estar na civilização é um texto do médico e fundador da psicanálise (Freud) que discute o fato da cultura - termo que o autor iguala à civilização - produzir um mal-estar nos seres humanos, pois que existe uma dicotomia entre os impulsos pulsionais e a civilização. Portanto, para o bem da civilização, o indivíduo é oprimido em suas pulsões e vive em mal-estar; neste trabalho Freud esboça a relação entre os elementos de sua teoria da consciência com uma teoria social.


Aqui seria interessante  analisar as disputas ocorridas no mundo do livro dos anos 1930, a partir da “roda de
Maceió”. A escolha por essa década justifica-se pelo fato de ser o período de confronto entre as idéias lançadas no chamado Movimento Modernista e o projeto Regionalista preconizado por Gilberto Freyre, ambos com o propósito de pensar uma estética e linguagem estritamente nacionais. O interesse de tentar compreender a discussão a partir da “roda de Maceió” dá-se pelo fato de seu projeto regionalista imprimir uma narrativa contrária àquela do grupo paulista. Analisar o processo de construção da grande narrativa regional através
dos eventos e fatos nos quais a “roda de Maceió”foi protagonista.
Em Machado de Assis (século XIX), podemos encontrar registros de reuniões de amigos escritores, formação de grupos com ideologia semelhante, porém a base e a função dessas associações no início do século XX são muito diferentes. Elas deixam de ser uma simples associação de companheiros de ofício, para ser uma ‘instituição’ determinante para o mundo do livro. No tempo de Machado de Assis, essas associações não eram imprescindíveis ao mundo do livro quanto ao seu funcionamento. Até aproximadamente meados da década de
1920, o mundo do livro era restrito a um pequeno número de consumidores e os artistas continuavam, como em épocas anteriores, sendo patrocinados por mecenas;  eram inúmeras as interpretações do modernismo feitas pelas rodas de diferentes lugares do Brasil. E a década de 30 é o momento em que a arte produzida a partir dessas diferentes interpretações é divulgada. A publicação de livros nacionais era feita em tiragens restritas e ao processo de reprodução cultural. Havia a instituição oficial [jornal/revista], e os seus colaboradores, que quando consagrados, quase sempre também ocupavam um cargo público, o que lhe garantia também A constituição das rodas de artistas explicita uma ruptura com o sistema de dependência total dos artistas das elites econômicas. As rodas passam a ser o meio pelo qual os artistas produzem suas obras. Eram elas, as responsáveis pelo julgamento, pela crítica e pela divulgação do produto artístico. Elas são mais que associações de amigos; passam a dispor de mecanismos necessários e indispensáveis ao espaço literário. A participação dos mecenas, após a constituição e afirmação das rodas como parte do espaço de produção cultural, resumira-se em um patrocínio econômico. Já não cabia mais aos mecenas uma crítica ou uma determinação ‘estética’. Todas as atividades do espaço cultural, a partir da configuração das rodas como parte daquele sistema de produção, cabiam aos amigos pertencentes às mesmas. No caso do mundo do livro, por exemplo, evidencia-se a importância que as rodas passam a exercer no processo fundamental para a promoção do escritor – a publicação dos livros. Vejamos o caso específico da roda de Maceió.
Após sair de Manhuaçu (Minas Gerais), onde era promotor público, José Lins do Rego vai para Maceió. Lá, ele passa a fazer parte da roda de Maceió, da qual já eram “membros” Rachel Queiroz, Graciliano Ramos, Valdemar Cavalcanti (1912-1982), alagoano jornalista, crítico literário e funcionário público (IBGE), fez parte de uma das maiores e mais refinadas safras de escritores regionais brasileiros como Jorge de Lima, Jorge Amado, José Condé (de Caruaru) e Santa Rosa, entre outros. No jornalismo, Valdemar tornou-se o primeiro crítico literário, e o pioneiro como colunista diário do jornalismo impresso, pelo ‘O Jornal’, de Assis Chateaubriand, onde por duas décadas manteve a coluna ‘Jornal Literário’.) e Aurélio Buarque de Holanda (primo de Chico), entre outros. Quase todos esses escritores se assemelhavam, no que concerne à situação econômica e à formação escolar. Foi dentro desse clima quase familiar que o escritor José Lins do Rego, paralelo à sua atividade de fiscal de bancos, prosseguiu dedicando- se à literatura, chegando até a assinar críticas literárias e pequenos artigos. Menino de Engenho seria, a princípio, uma biografia do avô do autor. Conforme Rachel de Queiroz: “José Lins, já na casa dos trinta, começava como romancista, mas era nome feito nas rodas intelectuais do Recife e até do Rio, autor de artigos, ensaios e estudos de crítica, já tinha bem afiada a sua ferramenta e já completa a sua formação literária; e com Menino de Engenho [...]É que nós surgimos no mesmo tempo: Jorge, eu, Graciliano, Zé Lins, Amando Fontes(São Paulo e Sergipe, sua primeira obra, regionalista, Os Corumbás, ou Os Corumbas, sertanejos). Éramos um grupo de contemporâneos e ainda amigos. O José Américo era meu amigo pessoal. Eu conheci quando ele era Ministro do Getúlio... éramos grandes amigos, eu, Graciliano e a mulher dele. A gente se freqüentava muito. Nesse período em Maceió, por coincidência, Zé Lins morava lá, engraçado. Ele era fiscal de imposto de consumo e morava lá. E o Aurélio Buarque de Holanda também morava lá; era de lá. Era uma roda de tantos que depois vieram para o Rio! Então a gente tinha um botequim, um café, um ponto chique de Maceió, onde a gente reunia-se todas as tardes a tomar um choppinho, um cafezinho, a conversar.
Depois viemos para cá [Rio], o Alberto Passos Guimarães (jornalista alagoano de esquerda, perseguido em 1932), Valdemar Cavalcanti (também foi membro honorário da Academia Francesa de Letras e levantou, em 1965, o Prêmio Jabuti, como Melhor Crítica e/ou Noticiário Literário (Jornais), além do consagrado Prêmio Machado de Assis), Aurélio Buarque de Holanda, do dicionário, Graciliano, eu e Zé Lins.
Nos reunimos em Maceió nesse período.  (Entrevista de Rachel de Queiroz, concedida a Gustavo de SORÁ, em 25/02/1997).
Em 1934, Freyre escreve a  José Lins do Rego: “ [...] todos estão cheios de admiração por você. Nas RODAS mundanas, de que fugi, achei também sinais de uma admiração quase mística pelo grande romancista que o Norte (!) afinal deu (como era de seu dever) ao Brasil, depois de ter se ensaiado em Bagaceira, em O Quinze, Cacau[...]”.Alguns livros dos escritores da roda de Maceiópertenciam ao catálogo literário da Schmidt Editora; como exemplo, cito: João Miguel, 1932, de Rachel de Queiroz e Cahetés, 1933, de Graciliano Ramos; era importante para a roda ter amigos em outros lugares, principalmente em centros como Rio de Janeiro e São Paulo, que pudessem defender sua produção; da roda de Maceió. José Lins, por exemplo, foi o primeiro do grupo a ir para a Editora José Olympio. José Lins fez com que a terceira edição de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, que era amigo dos artistas da roda de Maceió, saísse por essa Casa. E é através dessa dinâmica que, depois de 1935, temos quase toda a roda de Maceióno Rio deJaneiro.
A diferença entre as décadas de 1920 e 1930 está no fato de a partir dos anos 30, a prosa brasileira ser elaborada segundo um realismo ora ingênuo, ora crítico; política e não mais mítica; moderna e não mais modernista. O encontro das rodas no concorrido mercado do Rio de Janeiro gerou disputas de prestígio e poder entre elas; Os integrantes das rodas não trocavam palavras ofensivas em seus comentários
sobre um livro ou um quadro; mas os escritores, em suas respectivas rodas, lutavam para defender suas idéias e impô-las como as mais legítimas do mundo do livro. Mário de Andrade e seu grupo (dos “cinco”, pioneiros e mentores da introdução da arte moderna no Brasil: Tarsila, Oswald, Menotti, Anita) acreditavam que o nacional não poderia ser verdadeiramente representado, se partissem de uma descrição de uma região ou de um único local. Eles acreditavam na inserção da arte nacional no cenário internacional, e para isso tinha que ser uma arte menos regional e mais nacional. “A busca do nacional não pode perder-se nas particularidades de uma região. Daí as críticas ao regionalismo. Uma visão crítica e sintetizadora do Brasil como um todo é que permite o diálogo com o universal”; mas a  ficção hermética diluída, por exemplo,em Macunaíma “cedeu” espaço para uma narrativa neorrealista dos contos e romances dos anos 1930.

Da esquerda para direita Graciliano Ramos, Aluísio Branco, Théo Brandão, José Auto, Rachel de Queiroz e Valdemar Cavalcanti em Maceió



Enquanto isso, no Recife...
Influenciados por Gilberto Freyre, os artistas da roda de Maceióproduziram uma literatura nem mítica, nem citadina. Trouxeram para seus livros, para seus quadros, aqueles personagens do quintal de suas casas, ou aqueles de suas ruas, ou ainda os de sua cidade. Esse estilo de linguagem chegou a ser comparado, por alguns estudiosos do período, às descrições etnográficas. E assim foi surgindo nos romances um Moleque Ricardo, um São Bernardo, a família de retirantes, os mulatos de Di Cavalcanti, etc. (Gilberto Freyre dirigiu a coleção “Documentos Brasileiros”, editada, em 1936, pela José Olympio, na qual estava grande parte dos escritores
da roda de Maceió.)

Retirantes, Portinari, 1944

O Mulato, de Portinari



A 20 de abril de 1924, fundou-se no Recife o Centro Regionalista do Nordeste que, em 1926, organizou o Congresso Regionalista Tradicionalista e, ao seu modo, Modernista. Esse encontro deu ênfase à cozinha, sobretudo, à afro-brasileira, e à doçaria e confeitaria das senhoras de engenhos e dos NEGROS DE TABULEIRO do Nordeste. Ao mesmo tempo, enfatizaram as tendências modernas da pintura, escultura, arquitetura, móvel, cerâmica e renda. As reuniões desse grupo que organizou o congresso aconteciam na casa do professor Odilon Nestor; sobre o Movimento, este trecho é esclarecedor:
“[...] Seu fim não é desenvolver a mítica de que, no Brasil, só o Nordeste tenha valor, só sequilhos feitos por mãos pernambucanas ou paraibanas de sinhás sejam gostosos, só as rendas e redes feitas por cearenses ou alagoanos tenham graça, só os problemas da região da cana ou da área das secas ou da do algodão apresentam importância. Os animadores desta nova espécie de regionalismo desejam ver se desenvolverem no país outros regionalismos que se juntam ao do nordeste, dando ao movimento o sentido organicamente brasileiro... (...). Querer museus com panelas de barros, facas de ponta, cachimbo de matutos, sandálias de sertanejos, miniaturas de almanjarras, figuras de cerâmica, bonecos de pano, carros- de-boi, e não apenas com relíquias de heróis de guerras e mártires de revolução” gloriosa. Exaltar bumba-meu-boi, maracatus, mamulengos, pastoris e clubes populares de carnaval, em vez de trabalhar pelo desenvolvimento do ‘Rádio Clube’ ou concorrer para o brilho dos bailes do ‘Clube Internacional. (...). Ao voltar da Europa há três anos, um dos meus primeiros desapontamentos foi o de saber que a água de coco verde era refresco que não se servia nos cafés elegantes do Recife onde ninguém se devia lembrar de pedir uma tigela de arroz doce ou um prato de munguzá ou uma tapioca molhada. Os cafés elegantes do Recife não servem senão doces e pastéis afrancesados e bebidas engarrafadas. E nas casas? Nas velhas casas do Recife? Nas casas- grandes dos engenhos? Quase a mesma vergonha de servirem as senhoras os pratos regionais que nos cafés e hotéis elegantes da capital. [...]. Pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura... Donde a necessidade deste Congresso de Regionalismo definir-se a favor dos valores assim negligenciados e não apenas em prol das igrejas maltratadas e dos jacarandás, das pratas e ouros de família e de igreja vendidos aos estrangeiros... (GILBERTO FREYRE).

 Por mais que alguns historiadores sociais ou literários o excluam ou reduzam em comentários e até citações, o "Movimento Regionalista de 1926" no Recife, comandado pelos estudos de Gilberto Freyre (que a esquerda ainda não perdoa e nós arregalamos também os olhos para o que ele fez no período 1964-79) e por Gilberto Freyre em pessoa, significou o início de uma fase nova na cultura brasileira, aí tida, não em termos de localização geográfica ou cronológica, mas em termos do espírito mais autenticamente brasileiro, que ganharia espaço, tempo e seguidores nas diversas regiões brasileiras, sem perda das características de cada uma. 
Enquanto isso... ao mesmo tempo em que se defendia, atacando a produção da roda adversária, o grupo dos cinco era frequentemente acusado de falhar, ao tentar fazer arte nacional baseando-se em parâmetros internacionais.



Em nota de 1952, o autor do "Manifesto do Movimento de 1926" define o Regionalismo, como criação pura no que assumiu de complexo em suas combinações novas de idéias porventura velhas, sistematização brasileira, realizada por um grupo de homens do Recife, não só de novos critérios regionais de vida, de estudo e de arte como de vagas e dispersas tendências para-regionalistas já antigas no Brasil, mas quase sempre absorvidas pelo caipirismo ou deformadas em aventuras de pitorescos ou cor local, está, de modo geral, para a cultura brasileira, que libertou dos excessos de centralização, como o Federalismo está, em particular, para a vida política do país, descentralizada, embora sob alguns aspectos erradamente descentralizada pelo ideal da República. Essa definição corresponde a uma realidade, a que o Movimento deu corpo, vida, expressão e expansão. A esta altura, além de estudá-lo nas origens, seria de mais interesse estudá-la nas conseqüências, através do levantamento de território e implicações. Um dos mais importantes domínios é o domínio sobre o tempo. Enquanto nem se fala mais em outras tentativas renovadoras ou assim apresentadas, vale perguntar: a chama de 26 continua acesa diante das novas gerações? Aqui devemos lembrar do potiguar
Luís da Câmara Cascudo.


Voltemos ao mito da antropofagia (antes da proposta de Oswald, em 1928; eis um escritor querendo definir o que era um canibal, no caso João Valério, do romance  CAETÉS, de 1933):
“Entrei no quarto, abri a janela que deita para a rua, tirei o manuscrito da gaveta. A dificuldade era apanhar os portugueses que tinham escapado ao naufrágio, amarrá-los, levá-los para a taba e preparar um banquete de carne humana. Trabalhei danadamente, e o resultado foi medíocre. Sou incapaz de saber o que se passa na alma de um antropófago. De indivíduos das minhas relações o que tem parecença moral com antropófago é o Miranda, mas o Miranda é inteligente, não serve para caeté. Conheço também Pedro Antônio e Balbino, índios. Moram aqui ao pé da cidade, na Cafurna, onde houve aldeia deles. São dois pobres degenerados, bebem como raposas e não comem gente. O que me convinha eram canibais autênticos, e disso já não há. [...] eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha com algumas diferenças." (RAMOS, Graciliano in CAETÉS)

Será que no romance CAETÉS, podemos detectar uma crítica ao atraso da civilização brasileira entre as mais desenvolvidas do mundo, e que o autor  busca, talvez pela negatividade da paródia moderna, trabalhar uma forma de representar nosso país em seu novo momento histórico e estético? Em algo nos lembraria o autor do Realismo português Eça de Queiroz?
 Vejamos.
 1928:  entre  jornalistas, políticos, padres, bacharéis, farmacêuticos, médicos, comerciantes, etc. de Palmeira dos Índios, há um funcionário que tem alguma inserção na classe alta do meio onde vive, mas que se sente inferiorizado e busca ascender socialmente. Conheça João Valério. Ele quer ser escritor e está envolvido num caso de adultério com a esposa do seu chefe. Porém, mais do que ser escritor ou do que sua paixão, estaria sua intenção de ascensão social acima de tudo?
Que “vozes” podem ser ouvidas no discurso de CAETÉS? Podemos realmente distinguir, dentro do fenômeno estético que é a obra literária, a polifonia, no sentido bakhtiniano do termo (ver a ligação deste teórico com os Formalistas russos, focados em análise puramente linguístico-textuais? Como podemos avaliar, na referida obra de Graciliano (agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra), a questão da ética em cotejo com a estética?
Estaria o autor distanciado da voz do narrador (João Valério, que tem pretensões estéticas “sei metrificar”)? Podemos  encontrar o plurilinguismo neste ,  o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor (no dizer de Bakhtin)?  A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial e serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor?
Podemos encontrar elementos paródicos na composição deste romance?
Gustavo Arnt, em artigo publicado na revista eletrônica Darandina, levanta questões interessantes a este respeito. 
PERSONAGENS: João Valério (de contador a sócio da firma), Adrião Teixeira, Luísa, Marta Varejão, os Mendonça, Evaristo Barroca, Isidoro, Padre Atanásio
O que parece é que para Valério: Literatura e propriedade são incompatíveis. Atingida uma posição social mais proeminente, Valério já não precisa mais da literatura.
Observar diferenças entre Graciliano e João Valério, por exemplo, quando este afirma que: leu “na escola primária, uns carapetões [mentiras] interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar [os dois maiores autores do Romantismo brasileiro], mas já esqueci tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança de poder transformar esse material arcaico numa brochura de cem a duzentas páginas, cheia de lorotas em bom estilo, editada no Ramalho” (crítica IRÔNICA-PARODÍSTICA ao NACIONALISMO UFANISTA, como neste outro trecho: “De repente imaginei o morubixaba pregando dois beijos na filha do pajé. Mas, refletindo, compreendi que era tolice. Um selvagem, no meu caso, não teria beijado Luísa, tê-la-ia provavelmente jogado para cima do piano, com dentadas e coices, se ela se fizesse arisca. Infelizmente não sou selvagem. E ali estava, mudando a roupa com desânimo, civilizado, triste, de cuecas “).Ao fim do romance, o narrador diz “caetés somos nós”, isto é, o Brasil foi construído graças à barbárie, à exploração, ao extermínio de índios (e o trabalho forçado dos escravos).
E a questão da METALINGUAGEM [“Caciques. Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor uma novela em que arrumasse Padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia. Mas como achar enredo, dispor as personagens, dar-lhes vida? Decididamente não tinha habilidade para a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e amorfa.”] ? O capítulo 7, todo ele destinado ao romance de Valério: “O guarda-livros começa, então, a narrar sua empreitada em descrever um “cemitério indígena, que havia imaginado no escritório, enquanto Vitorino folheava o caixa [...] O meu fito era empregar uma palavra de grande efeito: tibicoara. Se alguém me lesse, pensaria talvez que entendo de tupi, e isto me seria agradável. Continuei. Suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracás, igaçabas, penas de araras, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei pedaços de AdriãoTeixeira ao pajé: o beiço caído, a perna claudicante, os olhos embaçados; para completá-lo, emprestei-lhe as orelhas de Padre Atanásio. Fiz do morubixaba um bicho feroz, pintei-lhe o corpo e enfeitei-o. Mas aqui surgiu uma dúvida: fiquei sem saber se devia amarrar-lhe na cintura o enduape ou o canitar. Vacilei alguns minutos e afinal me resolvi a pôr-lhe o enduape na cabeça e o canitar entre parênteses.” (notem o humor sarcástico). O narrador acha que dominar a língua, o que poderia lhe render distinção social. Valério também diz ter escrito (percebam os traços cômicos e grotescos) “dez tiras salpicadas de maracás, igaçabas, penas de araras, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes” e, em seguida, descreve os procedimentos por meio dos quais compôs a figura de um índio (de forma cômica): feito de pedaços de outras pessoas: Adrião Teixeira e Padre Atanásio;
No contexto histórico em que Graciliano produz, os anos 1930, já não há mais as convenções literárias e sociais que permitissem um romance histórico nos moldes do indianismo. A década de 1930 já está marcada pelo que o crítico Antônio Candido chamava de “consciência catastrófica do atraso”, e Graça, num gesto quase paródico zomba: tentando elaborar uma cena ritualística de antropofagia, apela a D. Maria José, sua locatária, para saber como “se prepara uma buchada”. Ao passo que ela vai dando a receita, Valério elabora a cena e faz observações, como “Exatamente, numa gamela, já ouvi dizer. E viram-se as tripas pelo avesso, também já ouvi dizer. Mas os caetés não tinham higiene.”; “vou preparar o Sardinha pela receita e misturo com pirão de farinha de mandioca. Fica uma porcaria”. Percebendo que a hora já se ia adiantada, se admira do tempo gasto em sua tarefa: “Será possível? Ora veja. A arte é coisa admirável. Com a preocupação de arranjar os jantares dos índios, esqueci o meu jantar.” E se decide a mais uma vez abandonar sua empreitada literária: “Pois eles que esperem, não comem hoje. E traga-me o conhaque. Deus lhe pague D. Maria. A senhora acaba de prestar um grande serviço à pátria.”
Vejamos outro romance de 30, regionalista, JOÃO MIGUEL, de Rachel de Queiroz: Na obra o narrador acompanha o drama de um homem simples que, sob efeito momentâneo do álcool, assassina um desafeto e vai para a prisão.
A intenção da romancista parece ter sido apreender a origem, no plano subconsciente e sob determinado condicionamento social, do impulso assassino, que sobrepuja por instantes o sentimento de humanidade passiva e submissa do caboclo sertanejo. Não se sabe por que e nem ele próprio formará a consciência moral do ato praticado. Não alimentará, portanto, qualquer sentimento de culpa. Seu ato impulsivo, num instante cego, exprime o afloramento de elementos atávicos, revivendo atos de seres primários. E isto pode ser por um instante, como no caso de João Miguel, ou por períodos longos, como nas manifestações múltiplas do cangaço (MARCADO TAMBÉM PELO PODER DO HOMEM).
Só Rachel se sobrepôs e escreveu seu nome no CÂNONE com mais força). O romance se faz sobretudo com situações e fatos tomados como elementos de ambientação, num presídio de interior, no Nordeste, em que avulta a figura de João Miguel, que depois de ter matado seu oponente... Houve um crime num ambiente ruralista e o drama surge daí. João precisa aprender a lidar bem com seu tempo na cadeia, a preencher as horas ociosas, e vendo seu relacionamento com Santa ir minguando com o decorrer dos meses... 
Considereda do ponto de vista regionaista, apresenta acentuadas características peculiares ao linguajar caboclo ou próprio da massa sertaneja.
Pelo estilo dos modernistas como Rachel, o leitor é levado a conhecer as instalações da prisão, desde células individuais, presos dormindo em suas redes, ou fazendo trabalhos artesanais, o transito relativamente livre dos detentos. João Miguel,  um pobre sem pai nem mãe, que sempre viveu da enxada, até o dia do CRIME. a realidade carcerária do Brasil numa cidade (Baturité do Riachão) da caatinga nordestina nos idos do início do séc. XX. Aliás, aqui, a leitura do romance se combina com alguns pressupostos da história do Brasil: o ambiente em que se dá a narrativa é de um Brasil ainda distante de qualquer traço de modernidade, em que o poder econômico se funda no poder do latifúndio, o Brasil dos coronéis, onde o próprio João Miguel já reconhece, que apenas o pobre vai para a cadeia. A ausência de modernidade também diz respeito a uma cultura patriarcal baseada em relações de favor: não existe distribuição de comida aos presos, a não ser mediante algum pagamento à cozinheira, a disciplina interna é toda ela centralizada na figura de seu Doca que dirige o estabelecimento baseado em relações de confiança pessoal. 

O crime como decorrência de impulso momentâneo João Miguel é um romance social, com um penetrante aprofundamento da análise psicológica. A autora conta uma estória sobre a prisão de um caboclo sertanejo que assassinou um homem, após uma discussão no bar onde bebiam. Sem motivo aparente João Miguel comete o crime cortando o homem com uma faca. Nem mesmo o próprio personagem formulou a consciência do ato que praticou. Desta forma também não alimentou qualquer sentimento de culpa, seu ato impulsivo, num instante cego,exprime o aflorar de elementos presentes só em seus ascendentes remotos, revivendo atos de seus primários. E isto pode ocorrer em um instante passageiro, como no caso de  João Miguel, ou por períodos longos, como nas manifestações múltiplas do cangaço.No plano do subconsciente e sob determinado condicionamento social, o impulso assassino sobrepuja por instantes o sentimento de humanidade passiva esubmissa do caboclo sertanejo.
“Sabemos que, frequentemente, os estados emocionais têm efeitos
perturbadores na realização de nossos objetivos. É sabido também, que algunspsicólogos afirmam que o efeito da emoção é
sempre
negativo e perturbador. Segundosua maneira de pensar, os processos racionais são necessariamente perturbados sempreque ocorre emoção, e essa perturbação é sempre prejudicial para a busca dos objetos.Outros psicólogos não têm uma opinião tão sombria quanto ao valor das emoções.Embora também admitam que as emoções frequentemente perturbam os processos
racionais, indicam seu valor na ativação do organismo.”
Quando João vai a julgamento, sua defesa alega a privação de sentidos e de inteligência provocadas pela embriaguez. Além da embriaguez, a cólera que surgiu no personagem na hora da discussão. Esta perturbação emocional levou João Miguel acometer o crime sem um motivo específico. E não só ele, mas outros personagens,companheiros de cadeia. Cada um com seu motivo, também cometeram assassinato. Podemos citar o Coronel Nonato que num impulso matou Dr. Barretinho com um tiro no peito,
após terem se encontrado na rua se “pegaram numa conversa alta”.Também Maria Elói, uma mulher sofredora, que abandonada pelo marido lutava com unhas e dentes para criar os dois filhos. Feriu a navalhadas com intenção de matar, a mulher que tomara seu marido, pois a mesma a provocara dizendo-lhe desaforos.

Pela sua presença e com as suas relações humanas na prisão, ele se torna o eixo do romance e o principal ângulo de observação e pesquisa da romancista. Forma-se assim um agrupamento humano, que continua a manter no presídio o sentido e os hábitos da vida cotidiana em liberdade. Compõem-no: Santa, companheira de João Miguel, e que o abandona pelo cabo Salu, Maria Elói, Filó, Zé Milagreiro ( que está preso na mesma cadeia, mata o tempo a fazer ex-votos, milagres de madeira, que são encomendados por gente que deseja pagar promessas. A angústia da prisão, a tensão de João Miguel  que, com a mão assassina vai compondo seus trabalhos manuais com a fibra da carnaúba. Nesse caso, a prisão vigora apenas como restrição circunstancial do espaço de relações, mas sem qualquer reflexo corretivo ou punitivo sobre os que lá vivem.


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