Pesquisar este blog

segunda-feira, 28 de maio de 2018

INTERTEXTUALIDADE ENTRE CLÁSSICOS DA LITERATURA E MPB SONGS




por Raphaelis Avgvstvs


Desde que pronunciamos Mímesis de mimésis e que o Raul deixou claro em fotografia que era o próprio Che Guevara das críticas contra o poder, a arte imita a vida, a vida imita a arte e “nas calhas de roda, gira a entreter a razão” (Pessoa, 2001: 98), a intertextualidade no “Cotidiano” do Chico e “Você não entende nada” do Caetano no “todo dia” em dignos verso e tom, permanece-evolui-vive no nosso todo dia, cotidiano, e talvez você não entende nada do que digo no entanto.
De fato, a intertextualidade é uma das principais características da “Invenção” da literatura como vemos em Homero e Virgílio, Gil Vicente e Ariano Suassuna, Drummond e Pessoa, Lord Byron e Álvares de Azevedo, Victor Hugo e Castro Alves, James Joyce e Oswald de Andrade, Allan Poe e Baudelaire, Álvaro de Campos e Walt Wittman, enfim uma infinidade de exemplos. Exemplos esses que desencadearam controvérsias e plágios fraternos sem distinção de direitos autorais (até onde se sabe) no patamar da literatura mundial.
No caso de tal artigo, proponho a intertextualidade de canções da nossa querida e majestosa MPB com romances ditos clássicos da literatura. Porém, antes de exibi-los, é relevante o destaque do “rei” das intertextualidades literárias, com textos que podem ser tratados como exemplos de Escolas da Literatura, Caetano Veloso. No assunto que sugere tal ofício, temos canções como “Os Argonautas” para dar aulas sobre “Os Lusíadas”, de Camões ou “Mensagem”, de Fernando Pessoa, sem esquecer que outra canção como “Um índio”, em performance bíblico-profética, sugere os textos de José de Alencar e Gonçalves Dias que seguem a linha aborígene do Nacionalismo. Ainda tendo canções como “O Quereres” para o Barroco; “Esse Cara”, para cantiga de amigo trovadoresca; “Podres Poderes”, para a geração condoreira do Romantismo; “Qualquer Coisa”, Simbolismo; e quase um infinito número de composições para o assunto, diferindo intelectual e intertextualmente de “bregões” como, por exemplo “Amor I love you” dos hoje “Tribalistas”, que adicionaram (ou ridicularizaram) “O Primo Basílio” do Super Eça com direito a recital pé-de-orelha do Arnaldo Antunes.
Além do próprio Caetano, temos Chico Buarque com seus textos de amor e verdadeiras obras futuristas, se aquele é possivelmente o rei, este sem dúvida é um deus, Tom Jobim com o alicerce maduro e eficiente para canções como “Luísa”, e citações e poemas musicados de muitos poetas de língua portuguesa ou língua estrangeira. Só pra citar lá vai; Fagner, Adriana Calcanhoto, Renato Russo e Legião Urbana, Paulo Diniz, Belchior, Gilberto Gil, sem esquecer que o campeão de poemas musicados é Fernando Pessoa, que de Maria Bethânia a Secos & Molhados deixou todo mundo com lágrimas nos olhos. Em sua homenagem já foi feito até um CD muito bem produzido com direito a Jô Soares, Marco Nanini, Milton Nascimento, Nana Caymmi e Ritchie. Mas tudo, em grande maioria, é citação; não este tipo de intertextualidade que o artigo lança plumas a observar. 

 

ZÉ RAMALHO E JOSÉ LINS DO REGO


“Eu prefiro um galope soberano
A loucura do mundo me entregar”

Zé Ramalho


Quando Zé Ramalho despontou nas rádios em 1978, trouxe no seu matulão pesquisas místicas e a vida no sertão no neologismo da letra “H” no melhor sistema anglo-saxônico, “Avôhai” (lê-se avorrai). A música é dotada de incrível qualidade sonora em dedilhados de cordas e arranjos, que assim como o título, em apóstrofe divina, dão o tom simbolista a um senhor de idade e ao eu-lírico do poema. Em “Avôhai” (nome que o cantor disse ouvir, ou melhor, escutar uma voz soprar no seu ouvido, cujo significado seria  “avô e pai”, e é daí que se parte o estudo) pode-se observar a intertextualidade com os livros “Menino de Engenho”, “Doidinho” e Bangüê” de José Lins do Rego, a partir do relacionamento entre Carlinhos e o seu avô, o Coronel Zé Paulino. Vejamos trechos que selam essa intertextualidade:

Meu avô me levava sempre em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. (...) O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem. ( Rego, 2002: 65-66)

O meu avô passava sem olhar.
Na mesa não tinha mais aquela alegria de outrora. Falava da seca, do algodão em baixa, de tudo que não me interessava de perto.
E ele era tudo para mim. Amava-o imensamente, sem ele saber. Via a sua caminhada para a morte, sentindo que todo o Santa Rosa desaparecia com ele. Uma vez até pensara em escrever uma biografia, a história simples e heróica de sua vida. Mas o que valeria para ele uma história, o seu nome no papel de imprensa? Oitenta e seis anos, a vida inteira acordando às madrugadas, dormindo com safras na cabeça, com preço de açúcar, com futuros de filhos, com cheias de rios, com lagartas comendo roçados. E eu o via passando pelo meu quarto sem me olhar, tossindo pelo alpendre, a bater com o cacete na calçada, como nas noites em que ia olhar o relâmpago nas cabeceiras. Seria que ele esperasse ainda por mim? Que um dia eu deixasse a rede e os livros para empunhar o seu cacete de mando? (Rego, 1979)

Um velho cruza a soleira/ De botas longas de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar/ Na laje fria onde quarava sua camisa e seu alforje de caçador/ Oh, meu velho e invisível Avôhai/ Oh, meu velho e indivisível Avôhai

Os fragmentos acima demonstram o misticismo e o respeito de ambos, Carlinhos e o eu-lírico do poema, comprovando um sentimento maior que é refletido nas linhas de Zé Lins, E ele era tudo para mim. Amava-o imensamente sem saber, associado ao grito apaixonante do adjetivo possessivo e simbolizado nos adjetivos que seguem rimados, que acompanham o substantivo Avôhai, Oh, meu velho e invisível Avôhai/ Oh, meu velho e indivisível Avôhai.
Ainda num momento oportuno, os fragmentos revelam características dos velhos, em surgimentos majestosos, ainda que o segundo trecho sobre Zé Paulino o demonstre no fim da vida.
Seguindo mais um panorama de intertextualidade, os sentimentos dos “eus” descrevem ainda o comportamento dos velhos em imagens de ordem e ainda características físicas que se confundem com o semblante de pessoas da região, exemplificando suas astúcias e “manias”.  

O velho José Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seus domínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes que fossem seus. (...) Herdara o Santa Rosa pequeno, e fizera dele um reino, rompendo os seus limites pela compra de propriedades anexas. (Rego, 2002: 103-104)

O brejo cruza a poeira/ De fato existe um tom mais leve na palidez desse pessoal/ Pares de olhos tão profundos que amargam as pessoas que fitar/ Mas que bebem sua vida, sua alma na altura que mandar/ São os olhos, são as asas, cabelos de Avôhai

De fato, as semelhanças ainda permanecem quanto à biografia de ambos autores, Zé Lins e Zé Ramalho. Foram dois meninos que perderam os pais e foram morar com os avós e que mais tarde descreveriam suas aventuras em determinadas regiões. Porém um único aspecto diferencia ambos. Enquanto que Zé Lins foi morar num engenho, Zé Ramalho, no texto Avôhai, descreve o maior temor de Carlinhos. É assim que é tratado o conflito “Engenho X Usina”. Seguem as palavras do Contador de Histórias e a do Cantador John Lennon da Caatinga:

Três dias depois da tragédia levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele. Um mundo novo se abria para mim. (Rego, 2002: 37)

Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei/ Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei.

Ainda no seguimento Zé Ramalho – Zelins, há muitas intertextualidades entre os dois. Saindo de Avôhai e os três livros de Carlinhos, há uma forte intertextualidade no romance “Cangaceiros” e a música “Cavalos do Cão”, e ora, por que não tentarmos encontrar alguma entre Zé Limeira e o Capitão Vitorino?
Tomando rédeas da literatura e música absurdamente nomeadas de regionalistas pelas suas descrições de terra e gente e sentimentos (o que não difere em nada da música e da literatura em qualquer parte do mundo, uma vez que há músicas em qualquer estilo musical e há livros em qualquer escola literária que tratam desses mesmos temas), podemos também encontrar a intertextualidade em José Américo na sua principal obra, “A Bagaceira” e “A Triste Partida” do Ave Poeta, Patativa do Assaré, uma vez que ambos os textos refletem a vida de uma família de retirantes e a sua vida no sudeste do Brasil, e isso é que faz diferença.




DJAVAN E FLAUBERT

“Eu quero ver você mandar na razão”
Djavan

Puxando para o lado “polido” da MPB, podemos encontrar no alagoano radicado fluminense, Djavan, uma boa pedida sobre o livro do escritor francês Gustave Flaubert, Madame Bovary. Vejamos os trechos:

- Acalme-se!
- Sim! – dizia ele, debatendo-se. – Vou ficar quieto, não farei mal nenhum; mas me deixem... quero vê-la... é minha esposa!
E chorava. (Flaubert, 2003: 387)

Havia/ Mais que um desejo/ A força do beijo/ Por mais que vadia/ Não sacia mais/ Meus olhos lacrimejam teu corpo/ Exposto à mentira.

O fragmento de Djavan é do poema “Álibi”, e o que há de comum entre os dois textos é o leve desespero em torno de camadas insólitas do sentimento quanto à perda da pessoa amada. Há a afirmação de Charles Bovary entre lágrimas “...é minha esposa!” e o domínio da imagética em “Meus olhos lacrimejam teu corpo”, dando uma ênfase ainda maior que no primeiro fragmento que tem todo um desenvolvimento do romance para saber que ambas imagens se relacionam, enquanto que o verso do cantor exprime não só o choro, mas uma imagem que apareceria no romance com o Charles chorando sobre o corpo da mulher ou até mesmo muito mais que isso, já que o verso parece ser maior que o poema.
Contudo, poderia o leitor me dizer “O que há demais no exemplo? Há inúmeros textos da literatura que interpretam tal angústia. Qual o porquê de Me. Bovary?”

- Ah! É horrível, meu Deus!
Charles ajoelhou-se ao pé da cama.
- Fale! O que foi que você comeu? Responda, em nome do céu!
E a fitava com olhos de uma ternura como ela jamais vira.
- Pois bem, ali... ali... – disse Ema, com voz quase extinta (Flaubert, 2002: 375)

A tortura está por um triz/ Mas a gente atura/ E até se mostra feliz/ Quando se tem o álibi/ De ter nascido ávido/ E convivido inválido/ Mesmo sem ter havido.

O clímax dessa intertextualidade dá-se no seguinte parâmetro, “A tortura está por um triz” e “- Ah! É horrível, meu Deus!” “Charles ajoelhou-se ao pé da cama”. O contexto acrescenta a esperança do marido, como se olhasse a esposa em tal sofrimento e despejasse já o dito, “Mas a gente atura”, ainda que banhado ao descontrole sai de forma delineada a ingênua tentativa de resolução, “- Fale! O que foi que você comeu? Responda, em nome do céu!”. Mas desfazendo-me de atropelos e talvez falsas intertextualidades, vem o cume no questionamento do marido apaixonado e traído a olhar a mulher com seus “olhos infantis” a linha, “E a fitava com olhos de uma ternura como ela jamais vira.” E ela, no seu momento de culpa e morte, expressa-se nas linhas de um casamento capaz “de ter nascido ávido/ E convivido inválido/ Mesmo sem ter havido”. E isso confirma desde já o intertexto.
Mas por falar em Ema Bovary, heroína de Madame Bovary, primeiro romance do neo-Realismo, partamos à intertextualidades mais conhecidas da literatura brazuca. Falo do tão aclamado e um dos mais conhecidos romances da literatura brasileira, Dom Casmurro. Intertextualidades a parte, sabemos da seqüência de personagens: Desdêmona, Ema, Luísa e Capitu.
De fato, o episódio do adultério comove. Ninguém quer ser traído, mas todo mundo quer saber como é que é, ou melhor, todos os livros supra-citados foram sucessos de venda e leituras obrigatórias em muitas formações educacionais.

CAETANO VELOSO E MACHADO DE ASSIS

“Só pra provar que inda sou tua”
Chico Buarque

Bentinho olha para Capitu e dela resgata em seus olhos de esposa, os famosos olhos de ressaca (há muitas explicações para os tais olhos, mas nenhuma delas chega bem perto do famoso significado que damos à palavra ressaca). Mas não vamos nos prender em tal ressaca, parte-se para o capítulo CXXXVI A Xícara e posteriores até CXLI A Solução dos problemas que seguem. Vejamos os textos dessa nova intertextualidade:

“Não disse tudo; mal pude iludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:
- Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
(...)
- Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer is nada.”(Assis, 1998:175)

Capitu ri-se, e ri-se e cita o nome de Deus. E é casualidade da semelhança. E é irônica e melancólica quando acusada de traidora. Não quero afirmar que a dondoca tivera mesmo traído o marido como Ema e Luísa. Daí a dúvida de Bento Santiago a compará-la com Desdêmona, a santa. Mas não nos afastemos; não é aula sobre quem leu o livro. Assim, de acordo com o conhecimento de cada qual, vejamos o texto do Caetano “Dom de Iludir” e concluamos um diálogo entre Bento e Capitu:

                                                BENTO
       
Não me venha falar
Na malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor
E a delícia de ser o que é.



CAPITU

Não me olhe como se a polícia
Andasse atrás de mim
Cale a boca

BENTO

E não cale a boca
Notícia ruim.
Você sabe explicar

 CAPITU

Você sabe entender

 BENTO

Tudo bem

CAPITU

Você está, você é

BENTO

Você faz, você quer

CAPITU

Você tem

BENTO

Você diz a verdade
A verdade é seu dom de iludir

CAPITU

Como pode querer que a mulher
Vá viver sem mentir?
  
Você, Leitor, é digno de conhecimento e aprovação dessa intertextualidade? Não será necessário explicação para dizer que o poema de Caetano, em que há um eu-feminino, que dialoga com o cônjuge. Daí é importante notar que alguns versos se enquadrariam bem com a fala do parceiro, ou melhor, com a situação Bento X Capitu, com ela dizendo “Não me olhe como se polícia andasse atrás de mim” e ele com a antológica “Você diz a verdade. A verdade é seu dom de iludir” e ainda em tom humorístico, “Você faz, você quer”, ou melhor dizendo, “Você fez, você quis”. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 35 ed. São Paulo: Ática, 1998.
DJAVAN. Djavan ao vivo – volume 2. Álibi Rio de Janeiro: Epic, 1999 faixa 7
DJAVAN. Djavan ao vivo – volume 2. Fato Consumado Rio de Janeiro: Epic, 1999 faixa 5
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Abril, 2003
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2001. 98p.
RAMALHO, Zé. Zé Ramalho. Avôhai.Rio de Janeiro: CBS, 1978 faixa 1
RAMALHO, Zé. A Terceira Lâmina. Canção Agalopada. Rio de Janeiro: CBS, 1981 faixa 1
REGO, José Lins do. Menino de Engenho. 84 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002
REGO, José Lins do. Bangüê. 11 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999
VELOSO, Caetano & BUARQUE, Chico. Caetano e Chico juntos e ao vivo. Atrás da Porta. São Paulo: Universal, 1972 faixa 6
VELOSO, Caetano. Totalmente demais. Dom de Iludir. São Paulo: Polygram, 1986 faixa 11


 









Nenhum comentário:

Postar um comentário