por Raphaelis Avgvstvs
Desde que pronunciamos Mímesis de mimésis e que o
Raul deixou claro em fotografia que era o próprio Che Guevara das críticas
contra o poder, a arte imita a vida, a vida imita a arte e “nas calhas de roda,
gira a entreter a razão” (Pessoa, 2001: 98), a intertextualidade no “Cotidiano”
do Chico e “Você não entende nada” do Caetano no “todo dia” em dignos verso e
tom, permanece-evolui-vive no nosso todo dia, cotidiano, e talvez você não
entende nada do que digo no entanto.
De fato, a
intertextualidade é uma das principais características da “Invenção” da
literatura como vemos em Homero e Virgílio, Gil Vicente e Ariano Suassuna,
Drummond e Pessoa, Lord Byron e Álvares de Azevedo, Victor Hugo e Castro Alves,
James Joyce e Oswald de Andrade, Allan Poe e Baudelaire, Álvaro de Campos e
Walt Wittman, enfim uma infinidade de exemplos. Exemplos esses que
desencadearam controvérsias e plágios fraternos sem distinção de direitos
autorais (até onde se sabe) no patamar da literatura mundial.
No caso de tal
artigo, proponho a intertextualidade de canções da nossa querida e majestosa
MPB com romances ditos clássicos da literatura. Porém, antes de exibi-los, é
relevante o destaque do “rei” das intertextualidades literárias, com textos que
podem ser tratados como exemplos de Escolas da Literatura, Caetano Veloso. No
assunto que sugere tal ofício, temos canções como “Os Argonautas” para dar
aulas sobre “Os Lusíadas”, de Camões ou “Mensagem”, de Fernando Pessoa, sem
esquecer que outra canção como “Um índio”, em performance bíblico-profética,
sugere os textos de José de Alencar e Gonçalves Dias que seguem a linha
aborígene do Nacionalismo. Ainda tendo canções como “O Quereres” para o
Barroco; “Esse Cara”, para cantiga de amigo trovadoresca; “Podres Poderes”,
para a geração condoreira do Romantismo; “Qualquer Coisa”, Simbolismo; e quase
um infinito número de composições para o assunto, diferindo intelectual e
intertextualmente de “bregões” como, por exemplo “Amor I love you” dos hoje
“Tribalistas”, que adicionaram (ou ridicularizaram) “O Primo Basílio” do Super
Eça com direito a recital pé-de-orelha do Arnaldo Antunes.
Além do
próprio Caetano, temos Chico Buarque com seus textos de amor e verdadeiras obras
futuristas, se aquele é possivelmente o rei, este sem dúvida é um deus, Tom
Jobim com o alicerce maduro e eficiente para canções como “Luísa”, e citações e
poemas musicados de muitos poetas de língua portuguesa ou língua estrangeira.
Só pra citar lá vai; Fagner, Adriana Calcanhoto, Renato Russo e Legião Urbana,
Paulo Diniz, Belchior, Gilberto Gil, sem esquecer que o campeão de poemas
musicados é Fernando Pessoa, que de Maria Bethânia a Secos & Molhados
deixou todo mundo com lágrimas nos olhos. Em sua homenagem já foi feito até um
CD muito bem produzido com direito a Jô Soares, Marco Nanini, Milton
Nascimento, Nana Caymmi e Ritchie. Mas tudo, em grande maioria, é citação; não
este tipo de intertextualidade que o artigo lança plumas a observar.
ZÉ RAMALHO E JOSÉ LINS DO REGO
“Eu prefiro um galope
soberano
A loucura do mundo me
entregar”
Zé Ramalho
Quando Zé
Ramalho despontou nas rádios em 1978, trouxe no seu matulão pesquisas místicas
e a vida no sertão no neologismo da letra “H” no melhor sistema anglo-saxônico,
“Avôhai” (lê-se avorrai). A música é dotada de incrível qualidade sonora em
dedilhados de cordas e arranjos, que assim como o título, em apóstrofe divina,
dão o tom simbolista a um senhor de idade e ao eu-lírico do poema. Em “Avôhai”
(nome que o cantor disse ouvir, ou melhor, escutar uma voz soprar no seu
ouvido, cujo significado seria “avô e
pai”, e é daí que se parte o estudo) pode-se observar a intertextualidade com
os livros “Menino de Engenho”, “Doidinho” e Bangüê” de José Lins do Rego, a partir
do relacionamento entre Carlinhos e o seu avô, o Coronel Zé Paulino. Vejamos
trechos que selam essa intertextualidade:
Meu avô me
levava sempre em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. (...) O
velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por
canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de
seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem. (
Rego, 2002: 65-66)
O meu avô
passava sem olhar.
Na mesa não tinha mais aquela alegria de outrora.
Falava da seca, do algodão em baixa, de tudo que não me interessava de perto.
E ele era
tudo para mim. Amava-o imensamente, sem ele saber. Via a sua caminhada para a
morte, sentindo que todo o Santa Rosa desaparecia com ele. Uma vez até pensara
em escrever uma biografia, a história simples e heróica de sua vida. Mas o que
valeria para ele uma história, o seu nome no papel de imprensa? Oitenta e seis
anos, a vida inteira acordando às madrugadas, dormindo com safras na cabeça,
com preço de açúcar, com futuros de filhos, com cheias de rios, com lagartas
comendo roçados. E eu o via passando pelo meu quarto sem me olhar, tossindo
pelo alpendre, a bater com o cacete na calçada, como nas noites em que ia olhar
o relâmpago nas cabeceiras. Seria que ele esperasse ainda por mim? Que um dia
eu deixasse a rede e os livros para empunhar o seu cacete de mando? (Rego,
1979)
Um velho cruza a soleira/ De botas longas de barbas
longas, de ouro o brilho do seu colar/ Na laje fria onde quarava sua camisa e
seu alforje de caçador/ Oh, meu velho e invisível Avôhai/ Oh, meu velho e
indivisível Avôhai
Os
fragmentos acima demonstram o misticismo e o respeito de ambos, Carlinhos e o
eu-lírico do poema, comprovando um sentimento maior que é refletido nas linhas
de Zé Lins, E ele era tudo para mim. Amava-o
imensamente sem saber, associado ao grito apaixonante do adjetivo possessivo
e simbolizado nos adjetivos que seguem rimados, que acompanham o substantivo
Avôhai, Oh, meu velho e invisível Avôhai/ Oh, meu velho e indivisível
Avôhai.
Ainda
num momento oportuno, os fragmentos revelam características dos velhos, em
surgimentos majestosos, ainda que o segundo trecho sobre Zé Paulino o demonstre
no fim da vida.
Seguindo mais um panorama de intertextualidade, os
sentimentos dos “eus” descrevem ainda o comportamento dos velhos em imagens de
ordem e ainda características físicas que se confundem com o semblante de
pessoas da região, exemplificando suas astúcias e “manias”.
O velho
José Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seus domínios. Gostava
de descansar os olhos em horizontes que fossem seus. (...) Herdara o Santa Rosa
pequeno, e fizera dele um reino, rompendo os seus limites pela compra de
propriedades anexas. (Rego, 2002: 103-104)
O brejo cruza a poeira/ De
fato existe um tom mais leve na palidez desse pessoal/ Pares de olhos tão
profundos que amargam as pessoas que fitar/ Mas que bebem sua vida, sua alma na
altura que mandar/ São os olhos, são as asas, cabelos de Avôhai
De fato, as semelhanças ainda permanecem quanto à
biografia de ambos autores, Zé Lins e Zé Ramalho. Foram dois meninos que
perderam os pais e foram morar com os avós e que mais tarde descreveriam suas
aventuras em determinadas regiões. Porém um único aspecto diferencia ambos.
Enquanto que Zé Lins foi morar num engenho, Zé Ramalho, no texto Avôhai,
descreve o maior temor de Carlinhos. É assim que é tratado o conflito “Engenho
X Usina”. Seguem as palavras do Contador de Histórias e a do Cantador John
Lennon da Caatinga:
Três dias depois da tragédia levaram-me para o
engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele. Um mundo novo se
abria para mim. (Rego, 2002: 37)
Na pedra de turmalina e
no terreiro da usina eu me criei/ Voava de madrugada e na cratera condenada eu
me calei.
Ainda no seguimento Zé Ramalho – Zelins, há muitas
intertextualidades entre os dois. Saindo de Avôhai e os três livros de
Carlinhos, há uma forte intertextualidade no romance “Cangaceiros” e a música
“Cavalos do Cão”, e ora, por que não tentarmos encontrar alguma entre Zé
Limeira e o Capitão Vitorino?
Tomando rédeas da literatura e música absurdamente
nomeadas de regionalistas pelas suas descrições de terra e gente e sentimentos
(o que não difere em nada da música e da literatura em qualquer parte do mundo,
uma vez que há músicas em qualquer estilo musical e há livros em qualquer
escola literária que tratam desses mesmos temas), podemos também encontrar a
intertextualidade em José Américo na sua principal obra, “A Bagaceira” e “A
Triste Partida” do Ave Poeta, Patativa do Assaré, uma vez que ambos os textos
refletem a vida de uma família de retirantes e a sua vida no sudeste do Brasil,
e isso é que faz diferença.
DJAVAN E FLAUBERT
“Eu quero ver
você mandar na razão”
Djavan
Puxando para o lado “polido” da MPB, podemos
encontrar no alagoano radicado fluminense, Djavan, uma boa pedida sobre o livro
do escritor francês Gustave Flaubert, Madame Bovary. Vejamos os trechos:
-
Acalme-se!
- Sim! – dizia ele, debatendo-se. – Vou ficar
quieto, não farei mal nenhum; mas me deixem... quero vê-la... é minha esposa!
E
chorava. (Flaubert, 2003: 387)
Havia/ Mais que um
desejo/ A força do beijo/ Por mais que vadia/ Não sacia mais/ Meus olhos
lacrimejam teu corpo/ Exposto à mentira.
O fragmento de Djavan é do poema “Álibi”, e o que há
de comum entre os dois textos é o leve desespero em torno de camadas insólitas
do sentimento quanto à perda da pessoa amada. Há a afirmação de Charles Bovary
entre lágrimas “...é minha esposa!” e o domínio da imagética em “Meus
olhos lacrimejam teu corpo”, dando uma ênfase ainda maior que no primeiro
fragmento que tem todo um desenvolvimento do romance para saber que ambas
imagens se relacionam, enquanto que o verso do cantor exprime não só o choro,
mas uma imagem que apareceria no romance com o Charles chorando sobre o corpo
da mulher ou até mesmo muito mais que isso, já que o verso parece ser maior que
o poema.
Contudo, poderia o leitor me dizer “O que há demais
no exemplo? Há inúmeros textos da literatura que interpretam tal angústia. Qual
o porquê de Me. Bovary?”
- Ah!
É horrível, meu Deus!
Charles
ajoelhou-se ao pé da cama.
-
Fale! O que foi que você comeu? Responda, em nome do céu!
E a
fitava com olhos de uma ternura como ela jamais vira.
- Pois
bem, ali... ali... – disse Ema, com voz quase extinta (Flaubert, 2002: 375)
A tortura está por um
triz/ Mas a gente atura/ E até se mostra feliz/ Quando se tem o álibi/ De ter
nascido ávido/ E convivido inválido/ Mesmo sem ter havido.
O clímax dessa intertextualidade dá-se no seguinte
parâmetro, “A tortura está por um triz” e “- Ah! É horrível, meu
Deus!” “Charles ajoelhou-se ao pé da cama”. O contexto acrescenta a
esperança do marido, como se olhasse a esposa em tal sofrimento e despejasse já
o dito, “Mas a gente atura”, ainda que banhado ao descontrole sai de
forma delineada a ingênua tentativa de resolução, “- Fale! O que foi que
você comeu? Responda, em nome do céu!”. Mas desfazendo-me de atropelos e
talvez falsas intertextualidades, vem o cume no questionamento do marido apaixonado
e traído a olhar a mulher com seus “olhos infantis” a linha, “E a fitava com
olhos de uma ternura como ela jamais vira.” E ela, no seu momento de culpa
e morte, expressa-se nas linhas de um casamento capaz “de ter nascido ávido/
E convivido inválido/ Mesmo sem ter havido”. E isso confirma desde já o
intertexto.
Mas por falar em Ema Bovary, heroína de Madame
Bovary, primeiro romance do neo-Realismo, partamos à intertextualidades
mais conhecidas da literatura brazuca. Falo do tão aclamado e um dos mais
conhecidos romances da literatura brasileira, Dom Casmurro. Intertextualidades
a parte, sabemos da seqüência de personagens: Desdêmona, Ema, Luísa e Capitu.
De fato, o episódio do adultério comove. Ninguém
quer ser traído, mas todo mundo quer saber como é que é, ou melhor, todos os
livros supra-citados foram sucessos de venda e leituras obrigatórias em muitas
formações educacionais.
CAETANO VELOSO E MACHADO DE ASSIS
“Só pra provar
que inda sou tua”
Chico Buarque
Bentinho olha para Capitu e dela resgata em seus
olhos de esposa, os famosos olhos de ressaca (há muitas explicações para os
tais olhos, mas nenhuma delas chega bem perto do famoso significado que damos à
palavra ressaca). Mas não vamos nos prender em tal ressaca, parte-se para o
capítulo CXXXVI A Xícara e posteriores até CXLI A Solução dos
problemas que seguem. Vejamos os textos dessa nova intertextualidade:
“Não disse tudo; mal pude iludir aos amores de
Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que
eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e
melancólico:
- Pois
até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!
(...)
- Sei a razão disto; é a casualidade da
semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do
seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos
fica bem dizer is nada.”(Assis, 1998:175)
Capitu ri-se, e ri-se e cita o nome de Deus. E é
casualidade da semelhança. E é irônica e melancólica quando acusada de traidora.
Não quero afirmar que a dondoca tivera mesmo traído o marido como Ema e Luísa.
Daí a dúvida de Bento Santiago a compará-la com Desdêmona, a santa. Mas não nos
afastemos; não é aula sobre quem leu o livro. Assim, de acordo com o
conhecimento de cada qual, vejamos o texto do Caetano “Dom de Iludir” e
concluamos um diálogo entre Bento e Capitu:
BENTO
Não me
venha falar
Na
malícia de toda mulher
Cada um
sabe a dor
E a
delícia de ser o que é.
CAPITU
Não me
olhe como se a polícia
Andasse
atrás de mim
Cale a
boca
BENTO
E não
cale a boca
Notícia
ruim.
Você
sabe explicar
CAPITU
Você
sabe entender
BENTO
Tudo bem
CAPITU
Você
está, você é
BENTO
Você
faz, você quer
CAPITU
Você tem
BENTO
Você diz
a verdade
A
verdade é seu dom de iludir
CAPITU
Como
pode querer que a mulher
Vá viver
sem mentir?
Você, Leitor, é digno de conhecimento e aprovação
dessa intertextualidade? Não será necessário explicação para dizer que o poema
de Caetano, em que há um eu-feminino, que dialoga com o cônjuge. Daí é
importante notar que alguns versos se enquadrariam bem com a fala do parceiro,
ou melhor, com a situação Bento X Capitu, com ela dizendo “Não me olhe como
se polícia andasse atrás de mim” e ele com a antológica “Você diz a
verdade. A verdade é seu dom de iludir” e ainda em tom humorístico, “Você
faz, você quer”, ou melhor dizendo, “Você fez, você quis”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS,
Machado de. Dom Casmurro. 35 ed. São Paulo: Ática, 1998.
DJAVAN. Djavan ao vivo –
volume 2. Álibi Rio de Janeiro: Epic, 1999 faixa 7
DJAVAN. Djavan ao vivo –
volume 2. Fato Consumado Rio de Janeiro: Epic, 1999 faixa 5
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary.
Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Abril, 2003
PESSOA, Fernando. Mensagem.
São Paulo: Martin Claret, 2001. 98p.
RAMALHO, Zé. Zé Ramalho. Avôhai.Rio
de Janeiro: CBS, 1978 faixa 1
RAMALHO,
Zé. A Terceira Lâmina. Canção Agalopada. Rio de Janeiro: CBS, 1981 faixa
1
REGO, José Lins do. Menino
de Engenho. 84 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002
REGO, José Lins do. Bangüê.
11 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999
VELOSO, Caetano &
BUARQUE, Chico. Caetano e Chico juntos e ao vivo. Atrás da Porta. São
Paulo: Universal, 1972 faixa 6
VELOSO,
Caetano. Totalmente demais. Dom de Iludir. São Paulo: Polygram, 1986
faixa 11
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