Graciliano.
125 anos. Parabéns, senhor Ramos, HOMO LITERATUS, você está vivo e volta, mais
uma vez, a Palmeira dos Índios, aclamado, como que para sempre. Tua matemática
implacável que sempre queria subtrair do texto os excessos ainda está azeitada
como uma máquina potente, como um programa de computador a driblar tudo que é
material usando o zero e o um.
Tua
obra, permeada toda pelo furor sóbrio, como a Matemática, que em grego
significa “aquilo que se pode aprender”, exibe em quantidade e formas, uma
linguagem própria de representação, peculiar universalismo, que se julga tão exata,
sim, tua obra, Graciliano, também nos parece que foi desenvolvida para
solucionar problemas relacionados com o cotidiano, e se não tem a geometria
analítica de Descartes, relacionada com a álgebra e a geometria, ou se como Euler: não
cria uma relação que é utilizada para calcular o número de faces, vértices e
arestas de um poliedro, calcula as relações humanas, traz a racionalizaçãoda
nossa terrível solidão em meio a tantos relacionamentos. Teus textos parecem realizar
cálculos numéricos em operações que vêm do século XIX, quando nasceste, até
hoje, apurando-se, como a matemática, para solucionar desafios, (re) formulando
leis, que podem ser propriedades ou teoremas, metamorfoseando-se, como se fosse
uma visão do nosso hoje, em diversas fórmulas que facilitam os cálculos do
nosso dia a dia, em Propriedade comutativa, onde a ordem dos fatores não altera
o produto ou a ordem das parcelas não altera a soma. Propriedade distributiva: onde
a multiplicação de um número por uma soma ou subtração é igual ao produto desse
número por cada parcela. Enfim, como Regra geral, ou o Teorema dos números primos: estes,
que garantem a existência de infinitos números primos, como outros escritores
pelo mundo, que de maneira tão genial quanto o modo como construíste tua obra, são divisíveis por um, isto é, por si mesmo, e
significando, simbolicamente aqui cada ser humano, que se divide por ele mesmo,
sim, por ele mesmo. João Valério, de Caetés, Paulo Honório, de São Bernardo,
Luís da Silva, de Angústia são investigados por peculiares equações nas suas
inadequações.
Se a
Matemática hoje é ensinada desde os primeiros anos escolares e pode estender-se
até a Universidade, para aqueles que optarem por cursar Engenharia, Economia,
Matemática, entre outras ciências da área de exatas, teus textos, Graciliano
também assim deveriam ser, pois não és
apenas outra linguagem: és uma linguagem mais o apuradíssimo raciocínio,
linguagem mais a lógica; és instrumento para raciocinar; lembrando aqui
que toda biografia de artista contém uma dose de romance, e ele não consegue se
por em contato com a vida sem recriá-la, mas há sempre certo esqueleto de
realidade escorando os arrancos da fantasia, como disse Antônio Cândido, ao
tratar de você, hoje lhe temos, aqui em Palmeira, como um tradutor de nós
mesmo, de volta ao futuro, que te pertence, também.
E se
a Teoria Literária consiste no estudo e sistematização da Literatura
como área do conhecimento, bem como os modos de análise deste campo, a tua
obra, velho Graça, nos lembra inclusive
os princípios aristotélicos, que através da Poética, nos ajudam ainda agora a
trabalhar com as manifestações literárias, essa arte de escrever arte. No
romance CAETÉS, nos trazes Palmeira dos Índios da época em que nesta cidade
viveste, em singular registro definido de um tempo, mas contigo podemos
compará-la com a de hoje, traçando a evolução da nossa psique humana, sob o
foco da pedagogia, geografia, história, linguística, sociologia etc, como é do
interesse deste seminário da UNEAL.
Mas
se para o leitor comum, a teoria literária não tem grande utilidade, visto que
as leituras que realiza são determinadas especificamente pelo gosto. O
acadêmico, por sua vez, costuma fazer uma leitura mais complexa, dedicando-se
aos pormenores da crítica especializada de sua área, suas correntes de
pensamento.
Para
os estudantes de LETRAS poderíamos aqui citar algumas linhas da teoria
literária: o Formalismo Russo (primeiras décadas do século passado), poderia
trabalhar o texto em si, assim como o Estruturalismo Tcheco (década de 30 do
século passado), o Pós-Estruturalismo e o Desconstrutivismo franceses, que nos
deliciam ainda hoje como audaciosas interpretações, e ainda a Estética da
Recepção alemã (década de 60 do século passado): imaginem Caetés trabalhado sob
diversos “horizontes de expectativas”!
Se
fôssemos tratar as personagens do romance Caetés, como Luíza, Marta ou dona
Engrácia, de acordo com a Crítica de
Gênero (década de 70 do século passado), e os Estudos Pós-Coloniais e Culturais
(a partir da década de 80 do século passado), teríamos potentes ferramentas
para analisar sua obra, senhor Ramos.
Poderíamos
recorrer a Mikhail Bakhtin com seus estudos sobre polifonia e sátira menipeia, ao
tcheco Roman Jakobson, suas opiniões sobre lingüística, ou aos sensacionais
franceses Roland Barthes (pós-estruturalismo) e Jacques Derrida
(desconstrutivismo), aos alemães Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser (estética da
recepção), a norte-americana Judith Butler (crítica de gênero), ao palestino
Edward Said (estudos pós-coloniais) e a tantos outros que nos encantam com sua
perspicácias e pelo modo como nos instrumentalizam para as mais variadas
análises. Mesmo assim parecerás esfinge, Graciliano, que nós deciframos, mas tu
nos devoras.
Falarmos
das ferramentas de um escritor que usa a sociologia, mesmo que de maneira
implícita, é lembrarmos, também, o mestre Graça e o modo como ele trata do
seguinte enigma: como uma sociedade se diferencia sem se dissolver; a
sociologia na estilística de Graciliano está no seu primeiro romance Caetés: a
sociedade de Palmeira dos Índios, ali representada por personagens que tem fala
e outros que são apenas referidos, como o Prefeito (limpo, mas incompetente e
de família tradicional, o padre que mantém um jornal semanal (Graciliano
conviveu com um em Palmeira, assim), alguns de língua maldizente na própria
roda intelectual palmeirense que envolve o narrador João Valério, no Café Bacural,
nas reuniões da casa do capitalista Adrião, no advogado pobre que enriquece na
cidade e vira fazendeiro na expectativa de ser deputado e vira bajulador de
político, outro problema sociológico fundamental que é o de como a sociedade se
torna indivíduo, é tratado no narrador de forma quase obsessiva: Valério
enxerga a sua cidade como um universo onde ele se insere como intelectual preso
a um desejo que é “devorar” a mulher do sócio majoritário, sem perder seu
status de intelectual, que inclusive está escrevendo um romance “histórico”
sobre os canibais de Alagoas devorando o Bispo Sardinha no século XVI; são
alucinantes as cenas descritas na metalinguagem da construção do romance dentro
do romance. A desconstrução do nacionalismo ufanista se dá de modo corrosivo
onde José de Alencar, Gonçalves Dias e outros são decompostos em nome de uma
agressividade que zomba de animais nativos como uma “cotia arisca” ou sagüis e
macacos em dança enquanto o vento bate forte e Valério não sabe como descrever
a cena da refeição antropofágica.
A sensibilidade
sociológica de Graciliano dá-se pela identificação e exibe na crítica sua
qualidade literária, sem uma, digamos assim, análise sistemática de um esquema
de pensamento sociológico que eclipse sua obra ou afete a verossimilhança do
protagonistas q1ue também não o desconecte da realidade histórica retratada ali
(Palmeira dos Índios entre os anos 20 e 30 do século passado). Assim a tal verossimilhança
do fato literário de que o livro teria sido escrito por um homem que trabalha
com contabilidade numa próspera firma que vende álcool, açúcar e aguardente.
Achamos
que a leitura adequada desse texto pode ajudar a delinear a inteligibilidade
sociológica de práticas intelectuais que repercutem ainda hoje. Encontra-se
ali, Alagoas, no final dos anos 20 e início dos, um ambiente sociocultural
propício para um tipo de produção literária que pode servir de fonte de
informação fidedigna acerca do mundo social da realidade brasileira. Mas qual é
o real delineamento do campo intelectual que as posições da crítica literária e
da sociologia configuram quando o que está em jogo é o objeto-literatura,
especificamente a literatura do chamado romance social de 30? Qual elemento
dessa relação pode ser retido para que a especificidade contextual brasileira
ganhe sentido em função do material empírico selecionado?
Caetés
é também romance onde o real-naturalismo deixa pegadas, onde dostoeiviskianas
memórias são transcritas em forma de coisificação de um presente que o autor
não aceita como estático na província onde se encontra num Brasil sacudido pela
mudança política em meio ao totalitarismo que se espalhava pelo mundo. Parece-nos que o estudo dessas posições
relacionais entre si remetem ao romance que Graciliano lançará a seguir: São
Bernardo onde a sociologia mistura-se com a literatura para analisar o mundo
social, o sistema social que Graciliano recria no espaço simbólico, no qual o
sociólogo pode estudar os fenômenos sociais num tipo de exercício pedagógico e
de treinamento cientifico.
Agradeço
a oportunidade de estar aqui hoje com esses professores, alunos e demais
profissionais, grato pela atenção dispensada. Matematicamente, geograficamente,
literariamente, sociologicamente, pedagogicamente: a luta continua educação é
constatação e reinvenção, também. Viva este Seminário Interdisciplinar Palmeira
dos Índios em Graciliano Ramos! Viva a FLIPAL! Viva Graciliano Ramos!
Obrigado.
PARTE
2 (ACRESCENTAR / REVER!)
Em nota de 1952, Gilberto Freyre, autor do "Manifesto do Movimento de 1926" define o Regionalismo, como criação pura no que assumiu de complexo em suas combinações novas de idéias porventura velhas, sistematização brasileira, realizada por um grupo de homens do Recife, não só de novos critérios regionais de vida, de estudo e de arte como de vagas e dispersas tendências para-regionalistas já antigas no Brasil, mas quase sempre absorvidas pelo caipirismo ou deformadas em aventuras de pitorescos ou cor local, está, de modo geral, para a cultura brasileira, que libertou dos excessos de centralização, como o Federalismo está, em particular, para a vida política do país, descentralizada, embora sob alguns aspectos erradamente descentralizada pelo ideal da República.
Voltemos
ao mito da antropofagia (antes da proposta de Oswald, em 1928; eis um escritor
querendo definir o que era um canibal, no caso João Valério, do romance CAETÉS, de 1933):
“Entrei
no quarto, abri a janela que deita para a rua, tirei o manuscrito da gaveta. A
dificuldade era apanhar os portugueses que tinham escapado ao naufrágio,
amarrá-los, levá-los para a taba e preparar um banquete de carne humana.
Trabalhei danadamente, e o resultado foi medíocre. Sou incapaz de saber o que
se passa na alma de um antropófago. De indivíduos das minhas relações o que tem
parecença moral com antropófago é o Miranda, mas o Miranda é inteligente, não
serve para caeté. Conheço também Pedro Antônio e Balbino, índios. Moram aqui ao
pé da cidade, na Cafurna, onde houve aldeia deles. São dois pobres degenerados,
bebem como raposas e não comem gente. O que me convinha eram canibais
autênticos, e disso já não há. [...] eu disse que não sabia o que se passava na
alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha com algumas
diferenças." (RAMOS, Graciliano in CAETÉS)
Será
que no romance CAETÉS, podemos detectar uma crítica ao atraso da civilização
brasileira entre as mais desenvolvidas do mundo, e que o autor busca, talvez pela negatividade da paródia
moderna, trabalhar uma forma de representar nosso país em seu novo momento
histórico e estético? Em algo nos lembraria o autor do Realismo português Eça
de Queiroz?
Vejamos.
1928:
entre jornalistas, políticos,
padres, bacharéis, farmacêuticos, médicos, comerciantes, etc. de Palmeira dos
Índios, há um funcionário que tem alguma inserção na classe alta do meio onde
vive, mas que se sente inferiorizado e busca ascender socialmente. Conheça João
Valério. Ele quer ser escritor e está envolvido num caso de adultério com a
esposa do seu chefe. Porém, mais do que ser escritor ou do que sua paixão,
estaria sua intenção de ascensão social acima de tudo?
Que
“vozes” podem ser ouvidas no discurso de CAETÉS? Podemos realmente distinguir,
dentro do fenômeno estético que é a obra literária, a polifonia, no sentido
bakhtiniano do termo (ver a ligação deste teórico com os Formalistas russos,
focados em análise puramente linguístico-textuais? Como podemos avaliar, na
referida obra de Graciliano (agente da unidade tensamente ativa do todo
acabado, do todo da personagem e do todo da obra), a questão da ética em cotejo
com a estética?
Estaria
o autor distanciado da voz do narrador (João Valério, que tem pretensões
estéticas “sei metrificar”)? Podemos
encontrar o plurilinguismo neste ,
o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a
expressão das intenções do autor (no dizer de Bakhtin)? A palavra desse discurso é uma palavra
bivocal especial e serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo
tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a
intenção refrangida do autor?
Podemos
encontrar elementos paródicos na composição deste romance?
PERSONAGENS:
João Valério (de contador a sócio da firma), Adrião Teixeira, Luísa, Marta
Varejão, os Mendonça, Evaristo Barroca, Isidoro, Padre Atanásio
O
que parece é que para Valério: Literatura e propriedade são incompatíveis.
Atingida uma posição social mais proeminente, Valério já não precisa mais da
literatura.
Observar
diferenças entre Graciliano e João Valério, por exemplo, quando este afirma
que: leu “na escola primária, uns carapetões [mentiras] interessantes no
Gonçalves Dias e no Alencar [os dois maiores autores do Romantismo brasileiro],
mas já esqueci tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança de poder transformar
esse material arcaico numa brochura de cem a duzentas páginas, cheia de lorotas
em bom estilo, editada no Ramalho” (crítica IRÔNICA-PARODÍSTICA ao NACIONALISMO
UFANISTA, como neste outro trecho: “De repente imaginei o morubixaba pregando
dois beijos na filha do pajé. Mas, refletindo, compreendi que era tolice. Um
selvagem, no meu caso, não teria beijado Luísa, tê-la-ia provavelmente jogado
para cima do piano, com dentadas e coices, se ela se fizesse arisca.
Infelizmente não sou selvagem. E ali estava, mudando a roupa com desânimo,
civilizado, triste, de cuecas “).Ao fim do romance, o narrador diz “caetés
somos nós”, isto é, o Brasil foi construído graças à barbárie, à exploração, ao
extermínio de índios (e o trabalho forçado dos escravos).
E a
questão da METALINGUAGEM [“Caciques. Que entendia eu de caciques? Melhor seria
compor uma novela em que arrumasse Padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau
Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia. Mas como achar enredo, dispor as personagens,
dar-lhes vida? Decididamente não tinha habilidade para a empresa: por mais que
me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e amorfa.”] ? O
capítulo 7, todo ele destinado ao romance de Valério: “O guarda-livros começa,
então, a narrar sua empreitada em descrever um “cemitério indígena, que havia
imaginado no escritório, enquanto Vitorino folheava o caixa [...] O meu fito
era empregar uma palavra de grande efeito: tibicoara. Se alguém me lesse,
pensaria talvez que entendo de tupi, e isto me seria agradável. Continuei.
Suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracás, igaçabas, penas de araras,
cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei pedaços de
AdriãoTeixeira ao pajé: o beiço caído, a perna claudicante, os olhos embaçados;
para completá-lo, emprestei-lhe as orelhas de Padre Atanásio. Fiz do morubixaba
um bicho feroz, pintei-lhe o corpo e enfeitei-o. Mas aqui surgiu uma dúvida:
fiquei sem saber se devia amarrar-lhe na cintura o enduape ou o canitar.
Vacilei alguns minutos e afinal me resolvi a pôr-lhe o enduape na cabeça e o
canitar entre parênteses.” (notem o humor sarcástico). O narrador acha que
dominar a língua, o que poderia lhe render distinção social. Valério também diz
ter escrito (percebam os traços cômicos e grotescos) “dez tiras salpicadas de
maracás, igaçabas, penas de araras, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças,
arcos e tacapes” e, em seguida, descreve os procedimentos por meio dos quais
compôs a figura de um índio (de forma cômica): feito de pedaços de outras
pessoas: Adrião Teixeira e Padre Atanásio;
No
contexto histórico em que Graciliano produz, os anos 1930, já não há mais as
convenções literárias e sociais que permitissem um romance histórico nos moldes
do indianismo. A década de 1930 já está marcada pelo que o crítico Antônio
Candido chamava de “consciência catastrófica do atraso”, e Graça, num gesto
quase paródico zomba: tentando elaborar uma cena ritualística de antropofagia,
apela a D. Maria José, sua locatária, para saber como “se prepara uma buchada”.
Ao passo que ela vai dando a receita, Valério elabora a cena e faz observações,
como “Exatamente, numa gamela, já ouvi dizer. E viram-se as tripas pelo avesso,
também já ouvi dizer. Mas os caetés não tinham higiene.”; “vou preparar o
Sardinha pela receita e misturo com pirão de farinha de mandioca. Fica uma
porcaria”. Percebendo que a hora já se ia adiantada, se admira do tempo gasto
em sua tarefa: “Será possível? Ora veja. A arte é coisa admirável. Com a
preocupação de arranjar os jantares dos índios, esqueci o meu jantar.” E se
decide a mais uma vez abandonar sua empreitada literária: “Pois eles que
esperem, não comem hoje. E traga-me o conhaque. Deus lhe pague D. Maria. A
senhora acaba de prestar um grande serviço à pátria.”
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