por Amanda Spacca
Raul
Taborda Damonte, ou Copi, nasceu na Argentina em 1939, exilou-se com a família
para o Uruguai durante o regime peronista, e mudou-se, em 1962, para a França.
Fez questão de nunca esconder sua condição de homossexual e portador do vírus
HIV. Autor de várias peças, ator, cartunista, romancista e subversivo. Consigo
compará-lo, certa forma, a Jean Genet.
Sua
peça Eva Perón, possui uma estética um tanto surreal – porém não surrealista.
Diálogos por vezes incoerentes e contraditórios, aparentemente non sense, porém extremamente lúcidos,
nos contam uma versão da “Santa Evita Perón” sob o olhar trans-gressor e
recheado de ironia do trans-autor. Os personagens são caricaturais, mas fortes
(e talvez a própria caricaturização que confira essa força). A narrativa é ágil
e ácida, de forma que, ao lermos a peça, imprimimos um ritmo acelerado.
Copi
brinca ironicamente com o “mito” que se instaurou ao redor de Eva Perón,
deslegitimando seu peronismo,
inundando a cena com vestidos e jóias. A peça evolui em torno de Evita e do seu
poder político e aquisitivo. As ações que se desdobram, mesmo quando ela não
está em cena, voltam-se para a sua figura, satirizada pelo autor, mostrando a
riqueza como única preocupação da protagonista.
A
glamorização desta personagem parece ter a ver com seus desejos de antes de tornar-se
primeira-dama: ela queria (e chegou a ser) atriz de cinema. Única filha não
registrada pelo pai (continuandofilha bastarda), queria ser alguém na vida. E conseguiu
o que queria.Copi nos mostra, fantasiosamente – ou não –, o lado ambicioso de
Eva Perón, que se assumiu como a personagem Evita na vida real.
Na
trama, os personagens estão presos – aparentemente há dias – na mansão dos
Perón, apenas ouvindo as notícias de fora por um rádio (que fala constantemente
sobre o estado de saúde de Evita), atendendo aos desejos mimados da
protagonista, sem poder sair (à exceção da personagem Ibiza) e sendo
constantemente “torturados” pela inconstância e caprichos de Evita. Esse fato
causa uma sensação de “suspensão” e parece uma “pausa” no tempo. Como se o
tempo não passasse ou, pelo menos, não fosse um tempo “normal”. Como se
estivessem acorrentados e só se movessem dentro de um território específico.
O
general Perón é um personagem que, de início, aparece calado. Quanto mais se aproxima
a morte de sua esposa, mais linhas vai ganhando, até que ele faz o anúncio do
falecimento – ápice de sua aparição no texto. Nunca fala na presença de sua
mulher, só ganhando destaque depois de sua morte, como se fosse uma espécie de
consciência oculta, que aparece na medida em que a realidade vem à tona. Perón
aparece quase como um fantasma, que entra e sai, só se comunica com a Mãe e
apenas observa Evita, esperando e se preparando para a sua hora chegar (dele ou
da sua mulher?).
Essas
características da peça levaram-me a pensar sobre a sanidade de Evita,
retratada na peça em seu estado terminal, tendo trocado morfina por água, e
estando em plena atividade física e mental. Opa. Como seria possível? Será que
as notícias do rádio são mais reais do que aquilo que esta sendo mostrado como
realidade? Estaria Evita, na verdade, dentro de um delírio? Presa na sua mente
e imaginação?Ao fim da peça, no lugar de morrer, a protagonista assassina o que
poderia representar seu algoz, a enfermeira, e foge, enganando uma população
inteira apenas para “se libertar”.
Ibiza
parece ser um lampejo de lucidez dentro dessa trama quase absurda, como única
personagem a entrar e sair da “casa” pra ver o “mundo real” – ou seria da cabeça
de Copi? Por esta particularidade, Ibiza parece funcionar como um botão de liga
e desliga, como se transitasse entre mundos presentes na peça (real x irreal,
fatos x ficção, câncer x AIDS).
Escrita
perto da morte do autor, quanto dessa agonização da protagonista não representa
sua própria dor, esperando, assim como Evita, o dia de sua inevitável morte
precoce? Toda a escrita de Copi é permeada pelo próprio Copi – que, mais que um
pseudônimo, é um personagem, assim como “Evita” o foi –, que empresta seu mundo
interior e exterior às personagens, a partir do seu olhar trans-viado. Será que
ele, marginal que era, se pôs no lugar de uma figura de adoração pública para
fantasiar sua morte? Estaria ele se libertando através de sua escrita, tentando
matar sua doença (enfermeira) ou cantando a morte como libertação? Seria Eva
Perón sua trans-posição e os outros personagens, projeções? Mas a morte é real.
Foi real para os dois. Estaria Copificcionalizando Raul Damonte?
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