Adaptação teatral da obra de
LYGIA FAGUNDES TELLES
Cenário: cadeiras e um cabide de pé onde estão adereços para cada
personagem: peça retangular com abertura no centro (padre), boina (marinheiro),
buá de penas (Léo e Rubi), etc..
LEONTINA-
Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar. Vou agora
contar tudo especialmente pra senhora não sou mesmo assassina meus olhos já não têm lágrimas de tanto que
tenho chorado... que confiança
podia ter nessa justiça?... meu advogado já avisou que estou no mato sem
cachorro e que o tal processo não está cheirando nada bem. me chamam de
vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles
obrigam a gente a fazer. Rubi vivia dizendo que eu devia voltar pra Olhos
d’Água. Mas como eu podia voltar? E voltar pra fazer o quê? Se minha mãe ainda
fosse viva e se tivesse o Pedro e minha irmãzinha então está visto que eu
voltava correndo. Mas lá não tem mais nada; vivo me lembrando daquele tempo. Nossa casa ficava perto da vila e vivia
caindo aos pedaços mas bem que era quentinha e alegre. Tinha eu e minha mãe e
Pedro. Sem falar na minha irmãzinha Luzia que era meio tontinha. Pedro era meu
primo. Era mais velho do que eu e não era mau mas a verdade é que a gente não
podia contar com ele pra nada. Quase não falava. Voltava da escola e se metia
no mato com os livros e só vinha pra comer e dormir; ia ser médico e importante
Minha mãe vivia lavando roupa na beira da lagoa. Ela lavava quase toda roupa da
gente da vila mas não se queixava. Nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha
e tão magra que até hoje fico pensando onde ia buscar força pra trabalhar
tanto. Não parava. Quando tinha aquela dor de cabeça de cegar estão amarrava na
testa um laço com rodela de batata crua e fazia o chá que colhia no quintal.
Assim que a dor passava ia com a trouxa de roupa pra lagoa. Tita, a cachorra da
gente, latia e pulava comigo.
Eu fazia a comida e cuidava da casa. Minha irmãzinha Luzia bem que podia me
ajudar que ela já tinha seis anos mas vivia sem entender direito o que a gente
falava. Queria só ficar esgravatando o chão pra descobrir minhocas. Ficou assim
desde do dia em que caiu do colo de Pedro e bateu com a cabeça no pé da mesa.
Nesse tempo ela ainda engatinhava e Pedro quis fazer aquela brincadeira de upa
cavalinho upa. Montou ela nas costas e saiu trotando upa upa sem lembrar que a
pobrezinha não sabia se segurar direito. Até que o tombo não foi muito feio mas
desde esse dia ela não parou de babar e fuçar a terra procurando as benditas
minhocas que às vezes escondia debaixo do travesseiro. Até a lenha do fogo era eu que catava no
mato. Perguntei um dia pra minha mãe por que Pedro não me ajudava ao menos
nisso e ela respondeu que o Pedro precisava de estudar pra ser médico e cuidar
então da gente. Já que o dinheiro não dava pra todos que ao menos um tinha que
subir pra dar a mão pros outros. Mas prometi pra minha irmã na hora da morte
que ia cuidar dele melhor do que de você. Estou cumprindo... se minha mãe soubesse que não faz dois
anos que encontrei Pedro e que ele fingiu que nem me conhecia. foi na Santa
Casa. foi demais isso da gente se ver depois de tanto tempo. estava alto e
bonito com aquele avental. Abri a boca e quis chamar Pedro Pedro. Então baixei
a cabeça e fingi que estava vendo a revista. Ele foi virando as costas e
pegando no braço da doutora e saindo mais apavorado do que se tivesse visto o
próprio diabo. Então me deu uma bruta vergonha daquela vida que a gente estava
levando e que devia mesmo ser uma droga de vida pra Pedro não ter coragem
nem de me cumprimentar. Contei tudo pra ela.
RUBI-
Esse teu primo é um grandessíssimo filho da puta. Acho você muito melhor
do que ele. Cão! Ficou cheio de orgulho e fugiu da prima esculhambada mas o
caso é que foi essa prima que durante anos e anos fez a comida dele. Leontina,
se você tivesse dinheiro ele não te desprezava assim ; dar pra
pobre como você dá. Nisso é que está o erro: estou podre de velha e você
vai direitinho pro mesmo caminho.
LEONTINA- Minha mãe não me
comprava sapato pra que ele pudesse ter livros. E agora ele fugia de mim como
se eu tivesse a lepra! E a gente foi criado junto que nem irmão... Gosto dele
apesar de tudo ...não se arranca o bem-querer do coração. E quem mandou eu
ficar nessa vida? Mal sei escrever meu nome ... comigo tem sido duro demais! e
se Pedro soubesse disso! Eu já estou presa faz três meses e até agora ele não
deu sinal e decerto nem vai dar. Às vezes fecho os olhos pra ver melhor aquele tempo. Minha
mãe...Luzia... Pedro... E eu tão contente cuidando da casa. Quando tinha flor
no campo eu colhia as mais bonitas e botava dentro da garrafinha em cima da
mesa porque sabia que Pedro gostava de flor. Lembro de um domingo que minha mãe
ganhou uns ovos e fez um bolo. Era tão quente o cheiro daquele bolo e Pedro comeu
com tanto gosto e fiquei tão alegre que rodei de alegria quando ele
agradou minha mãe e me chamou pra caçar vaga-lume.
RUBI- E teu pai?
LEO- Meu pai morreu antes de
eu nascer minha mãe não queria falar nisso... fiquei até hoje sem saber como
ele era! Então imaginava que era lindo e bom No fim do ano tinha
festa na escola. Pedro era sempre o primeiro aluno e o diretor elogiava só ele;
uma vez Pedro inventou uma festa no teatrinho. Quando acabou corri pra dizer
que ele tinha representado melhor do que todos os colegas mas Pedro me evitou.
Eu estava mesmo com o vestido rasgado,achei que Pedro estava tão contente que
nem ia reparar no meu jeito. E me cheguei pra perto dele. Ele então fez aquela
cara e foi me dando as costas. Essa daí não é tua irmã? um menino perguntou.
Mas Pedro fez que não e foi saindo. Quando cheguei minha mãe estava com o pano
amarrado na cabeça e já ia saindo pra ir ao curandeiro. Antes de sair ficou sem
saber se ia ou não. Olhou pra mim. Olhou pra Luzia. Olhou comprido pro Pedro. Depois
olhou de novo a estrada franzindo a testa que nem a Titã, a cachorra da gente
que antes de morrer fez zigualzinho. Parecia mesmo com a Tita medindo o caminho
que ia fazer. Senti um aperto forte no coração. Não vai mãe eu quis dizer. Mas
ela já tinha pegado a estrada com seu passinho ligeiro. Corri pro Pedro com um
pressentimento. Ele estava lendo um livro. Deixa de ser burra que não vai
acontecer nada de ruim ele disse sem parar de ler. Vou ser médico pra cuidar
dela. Nunca mais vai sentir nenhuma dor ele prometeu. E a Luzia vai deixar de
mexer com minhoca e você vai se casar e vai ser feliz ele disse e me mandou
coar um café. Aconteceu tudo
ao contrário. Minha mãe caiu na estrada segurando a cabeça e Luzia se afogou
quando procurava minhoca e eu estou aqui jogada na cadeia. Fico pensando que
ele era mesmo diferente porque só com ele deu tudo certo e agora entendo por
que merecia um pedaço de carne maior do que o meu.
RUBI- Depois da morte da tua
mãe tu ficasse trabalhando pro sujeitinho?
LEO-Pedro vendeu tudo que a
gente tinha e foi embora depois que eu trabalhei pra ele concluir a escola; me
vi completamente sozinha no mundo e isso foi muito duro pra mim, só tinha doze
anos. Minha mãe enterrada. Me deitava tão cansada que nem tinha força de lavar
a lama do pé; olhava em redor e via as pilhas de camisa pra passar e engomar e
a panela queimando no fogo e minha irmãzinha tendo que ser trocada porque ela
fazia tudo na roupa. Na formatura do colégio ele não queria que a
gente, eu e ela, Luzia, fosse lá... ele se envergonhava da gente e com
razão. Confesso que isso me
doeu porque a Luzia estava tão lindinha com o cabelo louro todo encacheado
caindo até o ombro e o vestidinho novo que fiz com um retalho de fazenda azul
que um a freguesa me deu. Pensei em dizer que assim arrumada ninguém podia
descobrir que ela não era muito certa da cabeça. Mas Pedro estava de tal jeito
que achei melhor deixar a Luzia em casa e ir só com ele. Era hora de Pedro começar o discurso lá na festa quando a Malvina
apareceu me chamando ...aconteceu com minha irmãzinha ...Malvina começou a
tremer dizendo que não tinha tido tempo de fazer nada. Fazer o quê? Perguntei
tremendo também. Salvar a pobrezinha. Malvina ia indo pra casa quando viu
aquele anjinho na beira da lagoa cavucando a lama. Fui chegando e de repente
não sei como ela deu uma cambalhota e desapareceu. Gritei o quanto pude mas
demorou até o Bentão entrar na água trazendo a pobrezinha pelo cabelo. Roxinha
roxinha. Corri feito
louca pra avisar a Pedro. Ele já ia entrar no palco. Pedro Pedro a Luzia se
afogou fiquei repetindo sem chorar nem nada.. Ele me olhava mais branco do que
a camisa. Agarrou meu braço. Vá na frente está me escutando? não conte pra
ninguém escutou agora? Vi ele subir a escadinha que dava pro palco. mas tão furioso
que pensei que fosse me bater. Saí zonza como se tivesse levado uma paulada. Da
rua ouvi a voz de Pedro começando o discurso. Me lembro de uma palavra que
escutei. Nunca tinha escutado antes e não sabia o que era. Fui voltando pra
casa e repetindo Júbilo júbilo júbilo. Foi assim que perdi a minha irmãzinha que era linda como os
anjos pintados no teto da igreja. Mais umas semanas e perdi Pedro. O diretor da
escola arrumou pra Pedro um emprego na cidade num banco... ordenado
pequeno serviço era só dar recado mas nos dias de folga vou trabalhar num
hospital onde me deixam dormir. Estudo de noite Mas você não vai, ele disse.
Demorou um pouco pra eu entender. Eu não vou Pedro?
PEDRO- Vou na frente e quando
der jeito mando te chamar mas não fique triste porque você vai trabalhar na
casa de uma mulher muito boa que o padre Adamastor conhece. Já falei com ele e
assim que eu embarcar você vai pra lá. A gente vende esses trastes que preciso
apurar algum dinheiro pra viagem. Um dia ainda te devolvo com juro...
LEONTINA- Me leva Pedro me
leva!
PEDRO- Tenho que ficar
sozinho se quiser fazer o que tenho que fazer ele disse. Mas logo você vai
receber uma carta porque não quero te perder LEONTINA- Vesti meu
vestido cinzento e fui pra casa do padre Adamastor. Mal podia parar em pé de
tanto desânimo. Uma tristeza no peito que chegava a doer. Minha mãe e Luzia e
Pedro e a Titã, minha cachorrinha, mais
os filhinhos dela. Tinham sumido todos. O padre me levou na casa de uma velha.
RUBI- você contou
que ela tinha um jeito de falar com gente feito urubu bicando a carniça
e quis saber se você não tinha andado de brincadeiras
com seu primo Pedro. Brincadeira de dar injeção
naquele lugarzinho que e dizia que
você era meio retardada como sua irmã que se afogou e que nem pra ir ao
banheiro cê tinha sossego que ela ficava rondando a porta e resmungando que cê
devia estar cagando prego pra demorar tanto assim.
LÉO- Ela era Zeladora do Sagrado Coração de Jesus e todo santo
dia tinha que ir de tardinha na igreja o que era uma sorte. Tinha um filho. O
pai era muito bom mas o menino tinha puxado a mãe. Uma peste que uma noite quis
me ver pelada e como não deixei veio mijar na minha cara enquanto eu estava
dormindo. Na procissão da Semana Santa ia vestido de Nosso Senhor dos Passos.
RUBI- o marido, quis deixar
ela, mas ela, mas ela ameaçou se matar ele respondeu. Então foi ficando. Mandou
você fugir, você veio pra cidade e foi trabalhar num cabaré
LEO-numa madrugada levantei
antes dela e vesti meu vestido cinzento e corri pra estação, peguei o trem e
quando ele começou a andar espiei pela janelinha e vi a vila amontoada lá
embaixo não agüentei e caí no choro. Onde estava nossa casa? Onde estavam
todos? Tive tanto medo
que até me deu enjôo, mas de repente vi minha cara no vidro da janela. Eu tinha
cara de lua cheia, pele era clarinha, boca muito bem-feita com todos os dentes,
cabelo claro. No pretume do céu lá fora tinha um monte de estrelas. Me deu
então uma bruta calma quando vi uma estrelinha verde brilhando lá longe.
Imaginei que aquela bem que podia ser minha mãe. Então fechei os olhos e pedi
que ela tomasse conta de Pedro. E que também olhasse um pouco por mim.
RUBI-apareceu um grandalhão
que tinha um riso tão bom quando você chegou na estação e ficou parada sem
saber pra onde ir. Então ele veio prosear e se ofereceu pra lhe ajudar. O tal
marinheiro que morava no Rio mas estava agora de licença pra tratar de uma
coisas que tinha que tratar aqui em São Paulo. Lhe levou numa confeitaria cheia
de espelhos e luzes. Ele prometeu que no dia seguinte ia me comprar até
enxoval.
MARINHEIRO- Quer um enxoval
hein, Joana?
LEO- O meu nome não é Joana,
é Leontina. Leontina Pontes dos Santos.
MARINHEIRO- Não faz mal (ri)
Esse seu cabelo encacheado é igual ao cabelo do São João do Carneirinho e pra
mim você sempre será Joana.Garçom: café com leite,biscoito de polvilho pra ela e
cerveja ah! e prato de batata frita.
LEO- Tenho um primo faz
quatro anos que não vejo, o Pedro...e seu nome
MARINHEIRO- Rogério...
LEO- Não sei pra onde ir..
MARINHEIRO- Isto
aqui é grande demais pra você achar esse primo ele disse sacudindo a cabeça.
Neste puta bolo a gente não encontra nem com a mãe. E é melhor mesmo não contar
com ninguém Conte só com você que todo mundo já está até as orelhas de
tanto problema e não quer nem ouvir falar no problema do outro. Eu gosto de
você. A gente podia ir morar junto lá no hotelzinho mas eu não vou prometer
nada. Nunca enganei nenhuma mulher. Sou livre mas não vá ficar alegre com isso
porque casar não caso mesmo. Meu compromisso é outro. Nunca esquento o rabo em
parte. Chega uma hora me mando pro mar e adeus. Está bem assim?
LEO- Eu nunca vi o mar.
MARINHEIRO(Rogério)- Num
desses domingos a gente vai comer uma peixada em Santos ...o mar é tanta água
tanta que no fim ele parecia se juntar com o céu. Mas se a gente chega até lá
tinha ainda pela frente um chão de mar que não acabava nunca. Às vezes esse mar
fica arreliando e espumava feito louco varrido puxando pro fundo tudo que
encontrava. E sem ninguém saber por que a água se punha mansa e embalava os
navios como berços.
RUBI- E você foi morar com
ele...
LEO- O hotel ficava numa
ruinha estreita cheirando a café porque tinha na esquina um armazém de café.
Chamava Hotel Las Vegas. Subimos a escada de caracol e entramos no quarto.
(Cena do hotel:
ela sentada. Ele ri e segura o queixo dela)
LEO- Ele me ensinou a tomar
banho direito, me um sabonete verde
MARTINHEIRO- Você tem que
tomar banho todo dia e lavar bem as partes.
LEO- expliquei que em casa a
gente só tomava banho de bacia em dia de festa porque nas outras vezes só
lavava o pé. E na casa da minha patroa ela não gostava que eu me lavasse pra
não gastar água quente.
LEO- me deu vergonha e fui me
esconder na cama debaixo do lençol. Ele riu e se deitou do meu lado.
MARINHEIRO-Você está com
medo?
LEO-Sim
MARINHEIO- Não tenha medo. È
como beber um copo d’água. Enquanto você estiver tremendo a gente não faz nada
está bem assim? Te ensino depois como evitar filho e outras coisas.
LEO-Fechou a luz e ficou
fumando e eu fiquei encolhida e olhando pro teto. Não gostava do cheiro da
fumaça, mas era bom o cheiro do sabonete e até hoje não sei por que pensei no
meu pai quando ele passou o braço debaixo da minha cabeça e me chamou.
MARINHEIRO- Vem Joana.
LEO- foi um tempo feliz.
Rogério era muito paciente e alegre. Como ele era alegre. Sempre me trazia um
presentinho da rua e quando tinha dinheiro me levava pra comer no restaurante.
Também me fez arrumar as unhas Se estava duro dizia Estou duro e daí a gente
comia sanduíche num bar por perto onde o dono era amigo dele..No sábado tinha
cinema e depois a gente ia dançar que ele tinha paixão por musica. Tão alegre o
Rogério. E tão bom.
MARINHEIRO- A gente não deve
se aporrinhar ...
LEO-Era o que ele repetia
quando eu me queixava de alguma coisa, ele dizia
MARINHEIRO- Não tem problema
Joana. Não tem problema.
LEO- Aprendi também a fazer
amor e a fumar. Até hoje não consegui gostar de fumar. Comprava cigarro e
ficava fumando porque todo mundo a nossa volta fumava e ficava esquisito eu não
fumar...fazia amor tudo direitinho pra deixar ele contente mas sempre com uma
tristeza que não sei explicar... eu inventava de fechar a torneira que deixai
aberta ou ver se não tinha perdido minha carteira de dinheiro.
MARINHEIRO-Vem logo Joana que
já estou quase dormindo
LEO- então eu suspirava e ia
com a cara de boi indo pro matadouro. Me sentia melhor se tomava um bom copo de
vinho. Um dia achei o Rogério diferente. Comeu pouco. Falou pouco. Perguntei a
que era
MARINHEIRO- nada.
LEO-foi me dando um sentimento
muito grande.
MARINHEIRO-Não tem problema
Joana disse Rogério passando o braço na minha cintura. Você é uma pequena muito
direita e ainda vai encontrar um sujeito bem melhor do que eu. Eu te quero
Joana ele disse. Mas sou um tipo que não pode andar com mulher e panelas sempre
atrás. Se te largasse até que fazia um favor porque você precisa casar e não
perder seu tempo com um camarada assim maluco (ele começa a fazer cócegas e
brincar com ela) MARINHEIRO- suas sobrancelhas parecem asas de gaivotas. Você (ri) no domingo que
vem a gente vai pra Santos e lá você vai ver como elas tem asas que nem suas
sobrancelhas.
LEO-Nessa noite ele foi muito
carinhoso e me fez tanto agrado que cheguei a perguntar por que a gente não
casava duma vez e tinha filho e tudo. (Ele fica sério. Acende um cigarro
MARINHEIRO-Agora durma.
LEO- Quando acordei na manhã
seguinte Rogério não estava. Desceu mais cedo pra tomar café pensei. Então dei
com a pulseira de pedrinhas de todas as cores em cima da mesa. Debaixo da
pulseira estava o bilhete. E o dinheiro. Escreveu naquela letra bem redonda pra
que eu entendesse mas a verdade é que nem precisei pré saber o que estava
escrito. As lágrimas misturavam tanto as letras que eu não sabia se elas
estavam no papel ou nos meus olhos. O bilhete dizia que ele tinha que seguir
viagem porque tinha sido chamado e essa era uma viagem comprida. Achava melhor
então se despedir de mim. Que eu ficasse com aquele dinheiro pra alguma
necessidade porque o hotel estava pago até o fim do mês. Sem Rogério eu não
podia achar mais nenhuma graça na vida. E agora lembro que só depois que ele
foi embora pra sempre é que vi como eu gostava dele e como a gente tinha sido
feliz naquele quartinho da rua com cheiro de café. Chorei até ficar com o olho
que nem podia abrir de tão inchado. Nessa noite me deu vontade de me matar. Mas
quando fui passando pelo bar da esquina me deu uma fome desgraçada. Pedi um
cachorro-quente. Foi então que encontrei o Arnaldo Arnaldo não era bonito que
nem o Rogério e não tinha dinheiro nem pro cigarro. Ficou mais de uma semana
aboletado comigo no hotel e quando gastei minha última nota ele fez a pista com
aquela mesma cara contente que tinha quando me encontrou no bar. Foi então que
procurei o Milani que me arrumou um emprego de garçonete no Bar Real. Fomos
morar numa pensão cheia de artista de circo e foi nessa pensão que conheci a
Rubi. Ela me apresentou pro seu Armando caso eu quisesse trabalhar no salão. Perdi todos os presentes que
Rogério me deu. Milani estava perdido de tanta maconha. E você, Rubi, ficou
minha amiga, com os caras eu me dei mal...
RUBI- Os homens são uns
safados...tenho 35 anos e já estou escangalhada porque comecei com quinze e não
é brincadeira essa vida de dar murros de dia e de noite ainda ter que fazer um
extra com perigo de pegar filho e doença como já peguei.
LEO- Então a gente alugou um
quarto perto do salão onde ela dançava. O almoço era de sanduíche e café que a
gente fazia escondido no fogareiro que a dona proibia com medo de incêndio. A
desforra vinha no jantar se por sorte aparecia algum convite. Só então reparei como a cidade era grande.
O meu miolo era mesmo mole e que quando eu fosse um caco é que ia me lembrar de
dar valor ao dinheiro. Agora vem esse
tira dizer que matei o velho pra roubar e acabei fugindo de medo. Você (para a
platéia) minha senhora! Não acredite porque isso é uma mentira. É uma grande
mentira e a Rubi, aqui do meu lado, está de prova. A gente tinha que dançar com
um montão de caras que compravam os tíquetes e escolhiam as pequenas.
RUBI-(fala isso fumando e
fazendo buraco com o cigarro numa folha de papel) Uns lobisomens de medonhos!
(ri). Até que de vez em quando apareceu um homem bonito mas...
LEO- No começo
pensei que ia morrer de tanta canseira. Dançava com os fregueses das dez às
quatro da manhã sem parar. E quando me esticava na cama era horrível porque se
a cabeça dormia o pé continuava dançando. No fundo do coração cheguei a esperar
que de repente aparecesse alguém que gostasse de mim de verdade e me levasse
embora com ele. Podia até ser alguém que me falasse em casamento. E em toda a
minha vida nunca quis outra coisa.
RUBI- Eu disse que tirasse o
cavalo da chuva porque nenhum homem quer casar com uma mulher que fica atracada
a noite inteira com tudo quanto é cristão que aparece. Os tipos que transavam
pela zona eram todos sem futuro. Agradeça a Deus se algum deles não se lembrar
de te jogar pela janela ou te enfiar uma faca na barriga. E esse negócio de
abóbora virar carruagem está ficando cada vez mais difícil.
LEO- Sempre sonhei com um
lugar sossegado e longe de toda essa confusão. Mas vou ficar aqui apodrecendo
nesta cadeia
RUBI-e eu vou continuar
pulando e me encharcando de bebida até o dia em que botar o pulmão pela boca.
Tinha que ser.
LEO- Aqui faz muito frio. Frio igual só senti
uma vez em que meu primo Pedro me empurrou pra dentro da lagoa. Pra me esconder
dos amigos dele, com vergonha de mim Lembrei muito dessa tarde na
noite que fez um frio de danar aqui na prisão.
AMIGA- Puxa Leo ...por que
você matou o velho?
LEO- minha Nossa Senhora
(enquanto ela vai passando a mão no cabelo) Por que justo eu que era tão
boazinha fui fazer uma besteira dessas?!
AMIGA - É o que
perguntam. Também não sei responder.
LEO- (Leo aperta a cabeça e
fica gritando)Deus é testemunha que até de ver matar galinha me doía o coração.
Fugia pra dentro de casa quando torciam o pescoço delas como se fosse um pedaço
de pano. Deus é testemunha. E agora vem o advogado e vem o tira me perguntar
tanta coisa. Mas eu já disse tudo o que aconteceu e não sei mesmo o que essa
gente quer que eu diga.
RUBI – Me conta, menina. Como
foi?
LEO- Foi na tarde que
inventei de comprar sapato porque o meu estava esbagaçado e quando chovia meu
pé ficava nadando na água. Não comprei porque o dinheiro não deu e então como
não tinha o que fazer fui olhar as vitrinas. Foi quando dei com o vestido
marrom.
RUBI- Amaldiçoada hora essa.
Amaldiçoada hora que enveredei por aquela rua e parei naquela vitrina. O
vestido estava numa boneca e tinha o meu corpo. E pensei que decerto ia servir
pra mim e que era o vestido mais lindo do mundo. Foi quando ouvi uma voz
perguntando bem baixinho (entra o velho)
VELHO- Você quer aquele
vestido?
LEO-No vidro que parecia um
espelho estava a cara do velho. Era gordão e mole que nem geléia. Juro que tive
vontade de rir.Juro que quis continuar meu caminho mas lá estava o vestido com
aquela rosa de vidrilho vermelho no ombro.
RUBI – Era bonito? O tal
vestido que você queria?
VELHO- Você quer aquele
vestido?
LEO- Muito. Se o senhor
quisesse me dar o vestido eu aceitaria sim com muito gosto.
RUBI- O que ele fez?
LEO-Uma vendedora ruiva veio
toda contente cumprimentar o velho. Os dois já se conheciam. Esta menina quer
aquele vestido da vitrina ele disse. O vestido me assentou feito uma luva e a vendedora
então me aconselhou que fosse com ele no corpo porque estava uma beleza. Fiquei
zonza. É que nunca tinha visto um vestido assim caro e quando me olhava no
espelho e passava a mão na rosa de vidrilho minha vontade era sair rodopiando
de alegria. O caso é que agora tinha que aturar o velho. Mas já tinha aturado
tantos...um a mais ou um a menos não ia fazer diferença. Saímos.
VELHO- Você gostou do
vestido?Pensa que vai fugir fácil assim?
LEO- Eu não estava querendo
fugir coisa nenhuma e entrei no automóvel
de rico dele um carrão.
RUBI- Ele era bonito?(Leo e o
velho estão em duas cadeiras e Rubi em pé vai dialogando com Leo como um
fantasma, ou o velho parece um fantasma)
LEO- parecia um peru de bico
mole molhado de cuspe. O rádio tocava baixinho umas músicas tão delicadas mas o
velho não parava de falar e fazer perguntas. O nariz era bem-feito e os olhos
azuis pareciam duas continhas. O que eu não agüentava era aquela boca inchada e
roxa como se tivesse levado um murro. Mas não quis pensar nisso. Tinha um
vestido novo como nunca tive igual e estava num carro e minhas colegas iam
ficar verdes de inveja se me vissem. E o automóvel corria agora por uma
estrada.
VELHO-Aqui a gente pode conversar melhor
LEO- Ele foi logo agarrando
na minha coxa e me puxando pra mais perto. Quando senti aquela boca molhada me
lamber o pescoço me deu tamanho nojo mas disfarcei e fiquei firme quando a boca
veio subindo e grudou na minha. Vi que ele queria me desabotoar mas não achava
o botão e até que facilitei mas mesmo assim
VELHO Que é? Não está
gostando (fulo de raiva) que se eu quer bancar a cachorrinha lhe largo aqui
mesmo.
RUBI- Homem nenhum diz bom dia de graça.
LEO- Eu ia pagar sim mas
quando escutei aquela conversa de descer e voltar a pé fiquei feliz da vida
porque está visto que eu não queria outra coisa. Mesmo que a cidade estivesse
longe ia ser uma maravilha andar sozinha por aquelas bandas e ainda por cima
respirando o cheirinho do mato que fazia tempo que eu não respirava. E quando
veio aquela mãozona me apertando de
novo e me levantando o vestido endureci o corpo e fechei a boca bem na hora em
que me beijou.(o velho quer beijá-la ela o empurra com nojo)
VELHO- Saia já daqui sua
putinha! (grita) Sai já. Mas deixe o
vestido!
LEO – E eu vou nua, é?
VELHO- Eu paguei o vestido.
LEO- (desesperada começa)
podem me prender se me vissem assim pelada. ...uma indecência dessas...eu estou
disposta a pagar o presente. Não tem problema. vou ser boazinha e fazer tudo o
que o senhor quiser... desculpa se ofendi em alguma coisa. Essa malcriação sem intenção.
VELHO- Puta safada!(ele está
com mais raiva e começa a espumar feito um touro)
LEO- Não me ofenda!
VELHO- Nojenta! Vadia. Filha
de uma puta!
LEO- Minha mãe foi uma mulher
que só parou de trabalhar pra deitar a cabeça no chão e morrer. Isto não estava
certo porque nela que estava morta ninguém tinha que buli.(O velho dá-lhe um
bofetão nessa hora e quase me fez cair da cadeira. O ouvido zumbiu e a cara
ardeu que nem fogo. Ela chora e ele dá outro bofetão que a fez bater com a
cabeça na porta e a cabeça rachou feito um coco)
VELHO- Você vai ver só uma
coisa!
LEO- Eu estava apanhando que
nem a pior das vagabundas e disse pra ele: Me deixa ir embora pelo amor de Deus
me deixa ir embora (abaixa-se pra pegar a bolsa). Foi então que num relâmpago o
punho do velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba. Meu miolo
estalou de dor e não vi mais nada. De repente me deu um estremecimento porque
uma coisa me disse que o velho ia acabar se matando. Meu cabelo ficou em pé. Ah
meu pai ah meu pai comecei a chamar. (Ela fugir e dei com as costas na porta
com toda força mas ela estava bem fechada. Vai escorregando no banco. E já ia
cair ajoelhada quando ele a agarra de novo e lhe sacoleja tão forte que ela
fica de quatro no chão). Nessa hora achei uma coisa fria e dura no chão. (pega
o ferro. ) e pensei depressa nas brigas que tinha visto no Bar Real e nos
homens que levavam cadeiradas e caíam desmaiados mas logo se levantavam como se
não tivesse acontecido nada. (Num salto se levanta ele a puxa de novo pelo
cabelo e lhe sacode. Ela assenta o ferro na cabeça dele com raiva, com vontade
e só pára de bater quando o corpo do velho fica vergado pra frente e a cabeça
cai bem em cima da direção.) A buzina
começou a tocar. Tive um susto danado porque pensei que ele estivesse chamando
alguém. Mas ele parecia dormir de tão quieto.
RUBI- Menina! Que horror!
LEO- Fique agora aí beijando
a buzina seu besta. Fique aí eu repeti e ele nem se mexeu. Me abaixei pra ver a
cara dele e dei com aquela boca aberta como se quisesse me morder. O olho
arregalado. Comecei a suar frio. A buzina que não parava e aquele sangue
gosmento e morno que não sei como pingou na minha mão. Fiquei maluca. Limpei
depressa o dedo na almofada e catei minha bolsa. Fuja Leo eu disse pra mim
mesma. Fuja fuja. Levei um susto quando me vi disparando pela estrada com um
sapato em cada mão e com aquela buzina correndo atrás e eu querendo correr mais
depressa até que aquele onnnnnnnnnnnnnn foi ficando mais fraco. Mais fraco.
Parei pra respirar esfregando o pé na terra como fazia quando era criança. A
brecha na cabeça já tinha fechado mas a boca doía pra danar porque o lábio
partiu no murro. Cuspi o sangue da boca. Um automóvel que passou na toda me
assustou e fui então andando bem achegadinha ao barranco pra me esconder dos
carros. Tive um medo danado no meio da escuridão que era uma escuridão
diferente das estradas de Olhos d’Água. Minha Nossa Senhora o que significa
isso. O que significa isso fui repetindo enquanto ia chorando como só chorei
quando o Rogério me largou. É que me lembrei da minha mãe. De Pedro. Da minha
irmãzinha. Justo naquela hora é que Pedro saía comigo pra catar vaga-lume. A
sopa na panela. A coisa melhor do mundo era tomar aquela sopa quente. E minha
mãe com sua carinha conformada e Pedro pensando sempre nos seus livros e
minha irmãzinha pensando nas suas minhocas. Agora tinha acontecido tanta
encrenca junta, mas tanta! Fui andando mais depressa e pensando como a vida era ruim
ainda mais agora com essa trapalhada do velho. Acordei no meu quartinho com aquela buzina forte bem debaixo
do travesseiro. Pelos buracos da veneziana vi que já era dia. Foi um sonho ruim
pensei. E de repente dei com a rosa de vidrilho brilhando no escuro. Olhei
minha mão onde tinha pingado o sangue da cor da rosa. Passei a língua no lábio
inchado. Tive vontade de me enterrar no colchão; saltei da cama. Abri a janela
e o sol entrou no quarto. O despertador marcava duas horas. Então fiquei
animada porque o dia estava uma maravilhosa e eu estava com uma fome louca.
Comi um resto do bolo. Me pintei com cuidado pra disfarçar a boca inchada e
passei a escova no cabelo. Você não pode fazer idéia como eu estava contente.
Botei o tal vestido mais bacana ela disse e fui indo e gostando de ver como o
sol fazia brilhar minha rosa de vidrilho. Apostava que o velho tava por aí... e
acabei não sei como defronte daquela vitrina. A mesma boneca vestia agora um
vestido de seda azul. Já que estou
aqui, aproveito e peço meu vestido branco que esqueci na cadeira eu pensei.
Amaldiçoada essa hora. Minha Nossa Senhora o que é que eu tinha de pedir aquele
vestido de volta? Se eu não tivesse aparecido lá nunca ninguém no mundo ia
saber que era eu. Ninguém me conhecia. E nem eu mesma ficava sabendo do crime
porque não leio jornal.
RUBI- Miolo mole! Por que
tinha que voltar lá? Por quê? O velho gostava de meninas e andava com um monte
delas. Nem arrependida você ia ficar nem isso sua tonta. Pó que voltou?
LEO- Foi como se uma coisa
tivesse me arrastado e agora eu estava parada na porta e procurando ver lá
dentro a vendedora ruiva. Peço meu vestido que esqueci e se ela pergunta pelo
velho digo que não sei. Melhor entrar pra pedir meu vestido porque se fujo vai
ser pior.Eu tive um pressentimento. Meu cabelo arrepiou. Fuja Leo. Fuja
depressa depressa. Pelo amor de Deus fuja agora sem olhar pra trás fuja fuja.
Quando dei o primeiro passo pra correr a vendedora ruiva me viu. Ela estava
proseando com um homem no balcão. Assim que me viu ficou de boca aberta
olhando. Depois me apontou com o dedo.
O homem dobrou o jornal e veio vindo devagar pro meu
lado. Fiquei pregada no chão. Ele veio vindo veio vindo com um risinho na boca
e com um jeito de quem não está querendo nada. Botou a mão no meu ombro.
Belezinha do vestido marrom venha comigo mas bico calado. E me trouxe pra
cá.
LYGIA FAGUNDES TELLES: A ESTRUTURA DA BOLHA DE SABÃO
Pelo professor e, pesquisador e escritor Moisés Monteiro de Melo Neto
Pelo professor e, pesquisador e escritor Moisés Monteiro de Melo Neto
Lygia é cheia de pequenas delicadezas
nas suas entrelinhas movem-se céus e terras. Nasceu em São Paulo, seu pai era
promotor público morou em vários lugares. Desde pequena gostava de ouvir / ler
histórias, algumas, desde pequena, ela anotava nos seus cadernos. Gostava de
recontá-las ao seu modo. Mesmo as que as assombrava, ela confessa: ao transmiti-las
me livrava das inquietações que elas lhe causavam. Cursou direito e educação
física em São Paulo. Quando jovem apreciava Casimiro de Abreu e Olavo Bilac.
Escreveu para os jornais da Faculdade e depois em órgãos da imprensa. Formou-se
na época da ditadura Vargas. E isso respinga em sua literatura como no Conto “O
Espartilho” (a avó “nazista” e a neta problematicamente judia numa sociedade
hipócrita/preconceituosa). Em 1944 teve seu 1º livro de contos publicado:
“Praia Viva” e em 1949, o 2º: “O cacto vermelho”. Alguns destes contos,
retrabalhados, estão em “A estrutura da bolha de sabão”, inicialmente publicado
em 1978. Ganhou prêmios no Brasil e na França. Em 58 publica “Histórias do
Desencontro” (Contos). Em 1954 o 1º romance: “Ciranda de Pedra” e em 73 “As
meninas” romance com o qual busca detectar o perfil do jovem daquela época. Um
dos contos de “a estrutura...”, “Missa do Galo – variações sobre o mesmo
tema”, recontando Machado de Assis, é reescritura para um livro organizado
pelo pernambucano Osman Lins: a conversa entre Conceição e seu hóspede, uma
intertextualidade com o toque de Lygia. Quando a perguntaram sobre a função do
escritor ela respondeu: “Escrever por aqueles que esperam ouvir de nossa boca a
palavra que gostariam de dizer”.
Na literatura dela memória e invenção se
confundem, se misturam. Ela se protege com a “idéia”. Boa parte dos seus contos
está em 1ª pessoa e cheiram a autobiografia, como se lêssemos sobre ela. Ela
adora mergulhar nos detalhes e incógnitas/enigmas/charadas, como no 1º conto da
“bolha” (“a medalha”, que a protagonista amarra no gato).
Com óbvias influencias de Clarice
Lispector e Hilda Hilst, ela traz o cósmico e o erótico equilibrado em textos
como “a confissão de Leontina” e “a fuga”. Pululam as reflexões sobre fidelidade,
Deus, a morte e o sonho.
Ela poderia então estar enquadrada na
Geração 45. A pesquisa lingüística e as inquietações temáticas.
Aborda sobretudo o universo feminino e
suas diversas facetas: percepções e desejos próprios da mulher. Não que sua
visão seja unilateral.
Educação castradora (“o espartilho”),
mau ambiente familiar ou relacionamento insatisfatório (“a Estrutura da bolha
de sabão”) produzem o ser humano mutilado e infeliz, pessoas/personagens
conflituosas, desencontradas de si ou do mundo, como Leontina, nem as crianças
são poupadas: Luzia, irmã de Leontina sofre lesão cerebral e morre afogada por
causa do primo Pedro, que também arruína a vida da protagonista deste conto.
São personagens que buscam respostas que dêem sentido à vida. Como interagir da
melhor forma com o mundo externo (como Clarice Lispector buscava), buscando
interagir, querendo reconhecimento nos outros, presas ao passado dentro do
presente, prisioneiras de um tempo esgarçado. Lygia prende o leitor guardando
as chaves que esclarecem os dramas dos personagens. Entrega-as em uma espécie
de ritual, onde ontem e hoje se confundem.
Seu enfoque é urbano e intimista,
psicológica. Cheiros, lugares, objetos, roupas, sensações importam apenas como
acesso ao mundo interior.
Trafega bem na burguesia, mas vai até os
menos favorecidos como Leontina.
É um panorama da nossa sociedade:
desestruturação do grupo familiar, dissolução dos costumes, conflito de pais e
filhos, luta pela maturidade, desajuste social, miséria, desamparo,
prostituição, resumindo: o relacionamento pesonagem/mundo. São romances de
personagens e tem “ação” lenta. Sugerem mais que descrevem. Constantemente
lança mão do discurso indireto livre. O que os personagens dizem não
corresponde a uma forma convencional de ver o mundo e sim com seu estado
psicológico, isso sem usar palavras difíceis nem frases que soem
artificiais, pelo contrário: um texto
que busca a oralidade. Quando é narrador em 1ª pessoa ele se interrompe e faz
perguntas, sugerem ao leitor sem gestos e expressões, amalgamando forme e
conteúdo.
II
Os contos do livro “A estrutura da bolha
de sabão:
1º A Medalha: Em 3ª pessoa
o narrador. Trama insólita em torno de uma jovem na época da revolução sexual,
anos 60/70 racismo: há um negro com quem a protagonista deve se casar ele é
tolo, e um branco, com quem ela acabou de fazer sexo. Por trás da banalidade
Lygia sonda a alma humana.
Adriana, eis o nome da moça, chega da
farra de manhã. A mãe, burguesa, chama de “Cadela”, tem cabelos oxigenados de
louro diz que é branca, mas tem “sangue podre” e assunta a mãe dizendo que os
netos vão nascer morenos.
A mãe diz que a filha puxou ao pai: cara
de anão, pescoço curto, jeito mole, balofo. Adriana não está nem aí, vai se
casar com o que for conveniente e levar a vida que quiser. A mãe ainda tenta
ser tradicional e dá à filha uma medalha que estava na família há três
gerações. Adriana pega. Vai para o quarto. Amarra a medalha no pescoço de um
gato e o empurra porta a dentro do quanto da mãe. São apenas duas personagens,
os outros são citados.
No 2º conto, “A Testemunha”,
dois amigos passeiam pela cidade em um dia de inverno. Rolf e o “esquecido” do
Miguel (na casa dos 50 anos) que quer a todo custo fazer o outro lembrar do que
aconteceu: “preciso saber até que ponto eu cheguei”. Ao que Rolf responde:
“Somos todos normalmente loucos”. Este conto também só tem 2 personagens e um
guarda no final. Eles parecem duas metades de um só homem em busca de si (ou
querendo se esquecer?). Há aqui a sombra da mãe.
Vão por uma rua escura, “quase deserta,
no fim da rua, a ponte, curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa
subia densa”. Rolf é a ponte que liga Miguel ao ontem, ele não se lembra bem do
que aconteceu. Miguel perdeu seu cão, o Rex. Miguel pede o último cigarro e
subitamente joga o amigo da ponte: “as águas se abriram e se fecharam sobre o
grito afogado”, se engasgando” (Rolf não sabia nadar). Miguel amassa o pacote
do cigarro e foge no rio aparece um policial e reclama: “é proibido atirar
coisas no rio (...) é a lei”. Miguel se desculpa e some no nevoeiro. Livrou-se
de parte do seu passado. De si mesmo?
No 3º conto “O Espartilho”
parece que toda a estrutura familiar é posta em xeque. Narrativa em 1ª pessoa
(Ana Luíza, órfã de um clã conservador, sua mãe era judia, o que sua avó, mãe
do seu pai, faz questão de mostrar como herança genética maldita). Tricô,
bíblia, álbum, chaves, cheiro de altar, seda, tesourinha, rendas, eis o campo
semântico para lances abruptos: a “tia Ofélia tomou veneno um mês depois do
casamento”, a família que tinha “Olhos verde-água. Ana Luíza é reprimida e vê
sensualidade na empregada negra que foge com um homem. Percebe a hipocrisia do
jogo social burguês. Conhece Rodrigo e faz sexo com ele, tudo parece acontecer
nos anos 40, “a guerra”, Hitler (a avó até que o admira); a avó dá um cheque e
Rodrigo troca a neta por uma viagem. O total espartilho é metáfora da contenção
emocional e do preconceito burguês. Ana fica só no final e a velha, com o
espartilho, vai dormir: “os mortos já haviam sido devorados, agora era a vez
dos retratos”. Aquela família estava cheia de “podres”: tio Maximiliano
engravidou uma negra e foi mandado às pressas para a Europa. “Por que eu que
começara tão bem, tinha que me transformar naquela mosca morta?” Se pergunta a
protagonista. Na noite de natal os parentes se amavam e se detestavam com igual
intensidade: “Sentei-me para comer sossegada minha fatia de peru”. “Você parece
com sua avó”, disse Rodrigo: “Uma burguesinha empoeirada”.
“O que perdi em ilusão, ganhei em
segurança”, reflete a narradora Ana Luíza.
“Quer que eu tire seu espartilho?,
perguntei quando meus dedos tocaram a rigidez das barbatanas.
– Não minha filha. Eu me sentiria pior
sem ele. Já estou bem, vá, querida. Vá dormir.
Antes de sair, abri a janela. A
Via-Láctea palpitava de estrelas. Respirei o hálito da noite: logo iríamos
amanhecer”.
O 4º conto, Fuga, parece o mais
estranho: em 3ª pessoa o foco narrativo nos exibe Rafael, inseguro passou da
idade e ainda mora com os pais e depende economicamente (e psicologicamente)
deles. Sofre de uma doença que não ousa nem dizer o nome. Não, ele resfolega,
não é asma. Está envolvido por uma misteriosa “névoa” que o absorve no meio de
um parque, árvores que querem agarrá-lo. Ele quer dar de presente argolinhas de
ouro para uma italiana virgem que tem joelhos que parecem “anjinhos barrocos”.
Lygia usa o discurso indireto livre e joga com metáforas inusitadas, símbolos.
O filho preso na teia familiar não consegue fugir: “Você sabe que não pode
correr”. O conto finda com o rapaz retornando a casa e encontrando seu próprio
caixão: ele estava lá dentro.
“A
CONFISSÃO DE LEONTINA” é o quinto conto do livro “A Estrutura
da Bolha de Sabão”: A narradora é
uma mulher pobre e de pouco verniz cultural que reclama por não confiar em
ninguém da cidade grande, nasceu na pequena Olhos D’Água e mal sabe ler e
escrever, além de não ter ninguém por ela no mundo. Lembra do primo Pedro que
ao derrubar a pequena Luzia, irmã da narradora, atingiu o cérebro da menina,
criada desde ali como um vegetal.
A mãe de Luzia e dela, Leontina, era uma
lavadeira que criara o filho da irmã, Pedro, os poucos centavos, a melhor
comida, a escola, tudo só dava a ele, em quem
depositava falsas esperanças. Quando ela morreu, Leontina foi ser
lavadeira. E também na formatura de Pedro, Luzia afogou-se. Pedro não a quisera
no colégio, mal podia aturar a miséria da nossa narradora. Forma-se, pega o que
pode e vai para São Paulo estudar medicina e fazer o possível para vencer e
esquecer Leontina e todo aquele horrível passado de pobre. Obrigou-a a vender
tudo que tinha e entregou-a aos cuidados de um padre que a empregou na casa de
uma perversa mulher mãe de um filho que quis abusar de Leontina.
Nossa heroína vai à luta na cidade
grande fugindo do interior. Dançarina de aluguel, prostituta e... assassina?
Com tantos elementos assim Lygia entrega
ao leitor sua visão confortável de todo o nosso desconforto. É como perguntaria
Machado de Assis sobre Dona Plácida, de Brás
Cubas: para que existir deste modo?
A narradora dirige-se a alguém que mal
conseguimos distinguir. Há um tom de tragicômico, desespero. A morte da mãe e
da cachorra Titã no mesmo parágrafo revela que o mundo é dos fortes: Pedro
venceu, mesmo quando nega conhecer Leo como sua prima. O primeiro “amor” da
vida dela, já dançarina de aluguel: um marinheiro; seu primeiro vestido: aquele
que vestiria na mãe para enterrá-la e que lhe foi deixado como herança.
“Minha mãe vivia lavando roupa na beira
da lagoa (...) nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha e tão magra que até
hoje fica pensando onde ia buscar forças para trabalhar tanto não parava (...)
Pedro precisava estudar para ser médico”. Prometera a irmã e todos passavam
necessidades em nome dele. E ele as renega.
Não podemos aqui falar em felicidade.
Leontina é uma Macabéia (de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector –
1977) que foi à luta e acabou na prisão, Lygia vai tecendo a trama desta
pequena novela. Onde está a narradora? O que aconteceu com ela para estar
assim? Com quem fala?
A ruptura com o tempo cronológico faz o
leitor viajar na mente tortuosa e ao mesmo tempo simplista da personagem. “Essa
daí não é a tua irmã? Um menino perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo.
Fiquei sozinha no palco com um sentimento muito grande”, diz diante da 1ª
negativa de Pedro.
“Não conheci meu pai. Morreu antes de
você nascer respondia minha mãe sempre que eu perguntava”. A narrativa é
fragmentada e trabalha o discurso indireto livre imprimindo ao texto um ritmo
ágil: “Meu pai feito um Deus desaparecendo atrás da montanha com sua capa de
nuvem num carro de ouro”. É um pai mítico e a menina o cria com elementos do
seu universo particular: As nuvens montanhas, quando se deitava na beira da
lagoa e escolhia a cara que o pai devia ter.
“Me vi completamente sozinha no mundo e
isso foi muito duro pra mim (...) só tinha doze anos” Pedro fora trabalhar num
banco da capital.
A velha Gertrude (e o filho João
Carlos), sua primeira “patroa”, a tratara como um animal: “Nem pra ir ao
banheiro eu tinha sossego que ela ficava rodando a porta e resmungando que eu
devia estar cagando prego pra demorar tanto assim”. Pontuação e estilo de
Lygia, um caso à parte.
Na fuga de trem ela vê uma “estrelinha
verde brilhando lá longe” que a acalma e também nos transmite o grau poético da
cena.
Rogério era o nome do marinheiro com
quem ela “se perdeu”. Um quartinho de hotel/ pensão barato. Ele a chamara de
Joana e não de Leontina: “Seu cabelo encacheado é igual ao de São João do
carneirinho”. 2ª referência à bíblia, Pedro a 1ª: “Conte só com você que todo mundo
já está até as orelhas de tanto problema e não quer nem ouvir falar do problema
do outro”. Sentencia Rogério ao prometer levá-la para conhecer o mar, comer uma
peixada em Santos: “Aprendi a tomar banho com Rogério. Você tem que tomar banho
todo dia e lavar as partes (...) em casa a gente só tomava banho de bacia em
dia de festa, mas outras vezes só lavava o pé. E na casa da patroa ela não
gostava que eu me lavasse pra não gastar água quente”.
Às vezes o verde da tal estrelinha ou do
sabonete do marinheiro esbarram com nossa frieza de leitor: “Não sei por que
pensei no meu pai quando Rogério passou o braço por baixo da minha cabeça e me
chamou, Vem Joana”. Depois da vírgula o “v” maiúsculo do “vem”. Uma felicidade
clandestina e efêmera de fazer amor e fumar. Dava tristeza “fazer amor” com
Rogério: ia “com cara de boi indo pro matadouro”. Ele dizia que minhas
sobrancelhas eram como as asas das gaivotas.”
Ele se foi. Ela decai e numa pensão,
cheia de artistas de circo, conhece Rubi, quem levou Leontina para lá foi o
Milani, colega de Rogério. Personagem secundário mas Lygia os tece com carinho
de mãe.
Leontina trabalha em inferninhos rodeada
da escória típica destes locais: “Nunca dizia não pro freguês”.
A 2ª vez que encontra Pedro e ele fingiu
não conhecê-la foi na enfermaria da santa casa. Aqui a narradora faz a
inevitável comparação com Jesus. Leontina é tentada.
Ao apreciar um vestido marrom com Rosa
de vidrilho vermelho no ombro ela é assediada por um velho rico dono de jornais
“e mais isso e mais aquilo”: “Amaldiçoada para que enveredei por aquela rua e
parei naquela vitrina. O vestido estava numa boneca e tinha o meu corpo”.
O duplo está estabelecido: o jogo
completamente armado. O ritual do sacrifício se encaminha para um desfecho
dramático: ela deixa na loja o vestido branco. O velho a proíbe de voltar. Ele
lhe comprara o vestido que ela queria. A estrada, o repúdio, o carrão, a
estrada: “Era rico e feio com aquele jeito de peru do bico mole molhado de
cuspe (...) boca inchada e roxa como se tivesse levado um murro”.
“O bofetão veio nessa hora e foi tão
forte que me fez cair no banco (...) o punho do velho desceu fechado na minha
cara. Foi como uma bomba (...) achei uma coisa pura e fria no chão. Era o
ferro...”.
Depois de tudo ela volta à loja para buscar
o vestido branco a polícia está lá. A vendedora dera a reconhecer.
Em
“Missa do Galo”, Lygia disseca a intertextualidade com o conto de
Machado de Assis, no qual nos é apresentada uma mulher da segunda metade do
século XIX: Conceição, casada, vítima de um marido adúltero, que a deixa
praticamente só numa noite de Natal.
Esta senhora mantém um insinuante
diálogo com um hóspede adolescente, o Nogueira (que é leitor, tal qual a
senhora, de romances românticos, como Os três mosqueteiros, ou os do senhor Joaquim
Manuel de Macedo). Ele faz hora esperando um amigo para juntos irem à tal missa do galo.
Ela “deixou travesseiro e quarto numa
“disponibilidade sem espartilho, livre o corpo” e Lygia cria um narrador que
vai invadindo o espaço do não dito, nas entrelinhas, de Machado, coloca até na
alcova do adúltero com uma certa “mulata”.
A relação do jovem Nogueira com
Conceição também é, digamos assim, intensificada
nesta recriação. Lygia apimenta-a,
vasculha-a como um psicanalista provocador.
O insólito é observado: “Durante o dia
Conceição parece tão objetiva, eficiente. E agora esta inconsistência”. Seu
narrador observa pelas vidraças da casa, ele está na rua da “noite
antiguíssima”. Sente desejo de entrar e vive
um tempo anacrônico como a interferência de uma lembrança de algo escrito em um
caminhão (!): “Matérias perecíveis”. Mas “aquela casa”, o narrador contrapõe, e
“imperecível”, no ”bojo de tempo”. A obra de Machado.
Conceição: “Bruxa” ou “belíssima”? Quer
gritar, é hora de calar: “vocês sabem que dentro de alguns minutos será nunca
mais?”, pergunta-nos. O menino de 17 anos estará na igreja e ela no quarto.
Parece Clarice Lispector, amiga de
Lygia: “Faça alguma coisa”, pede o narrador insistentemente com o coração
pesado diante desses dois indefesos no tempo.
Metalinguagem e intertextualidade aqui se
confundem quando o amigo do rapaz chega, ele vai para a missa, Conceição volta
para o quarto e o narrador conclui: “Quando volta ao quarto, pisa na tábua do
corredor, aquela que range. Rangeu, paciência! Agora está desinteressada da mãe
e da tábua.
No canapé, a almofadinha das guirlandas
um pouco amassada.
Apago o lampião.”
No conto “Gaby”, o penúltimo, somos apresentados ao protagonista de
apelido Andrógino, na verdade o mesmo do arcanjo, Gabriel. Ele está no bar com
o garçom, Fredi, chegam entrar clientes. Espelhos, mármore (balcão),
ventiladores, calor. É pintor de “natureza morta”. Na infância a mãe o
protegia. Tem uma amante velha pela qual do dinheiro dela sente repulsa, mas
precisa do dinheiro dele. Ama uma jovem que não o suporta mais (Mariana). Vive
com tédio a situação limite em que chegou sua vida. É um indefinido a
contemplar a vida. O pai doente está se acabando numa pensão pobre, sozinho. O
garçom também é um insatisfeito.
Mariana tinha um primo deputado da
oposição: “subversivo”. Este conto fica datado nos anos 60/70. “Gabriel por que
você não acaba o que começa?”. O pai dizia que o apelido “Gaby” era afeminado,
nome de esmalte, creme, de mulher”.
Há uma “mosca” ao redor de Gaby durante
quase todo o conto. A lembrança da velha com bochechas murchas, pintadas, com a
peruca meio ridícula. A lembrança de ter denunciado ao pai que a mãe, que tanto
o protegia, tinha um amante com um carro vermelho. Gaby fora reprovado duas
vezes na escola. Na segunda parte do conto, Gaby recebe a carta de despedida de Mariana.
Chora. Amadureceria um dia? Querer fugir dos beijos da velha, da dentadura
dela. É um gigolô com problemas psicológicos, meio cafajeste inocente (?),
traumatizado. A mãe desaparecera, “Como milhares desaparecem”. Está pintando
uma maçã. Tudo é o vazio que se abate sobre tanta gente. Pensa de novo em matar
a velha, que, ao perceber que ele estava um pouco febril, prepara-lhe um chá.
Ele morde a maçã.
No conto “A estrutura da bolha de sabão” Lygia. Cria um narrador em
primeira pessoa: uma mulher que encontra o ex-marido com a atual esposa num
bar. Sente ciúme e testa a incomunicabilidade entre os seres, a aprendizagem
dos sentimentos: uma delicada teia de relacionamentos. Ele é físico e estuda a
estrutura da bolha de sabão (sólida/líquida/gasosa): híbrida. Ele, ela percebe
aos poucos, está com uma doença terminal. Ela pensa na própria infância, revê
sua vida em labirinto: “No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima
meu corpo”. Lygia é dona de uma sintaxe especial, particular. Pratica o
intimismo com maestria. Sua poesia, narrativa, é uma espécie de ritual sem
sangue, sem grito: “Amor de transparência e lembranças condenado à ruptura”.
Em relação à outra mulher, a narradora
mostra-se superior: “Como ele podia amar uma mulher assim?”. São frases
insólitas como: “Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo”.
Ela tem ciúmes, e, ao saber da doença do ex-marido vai à casa dele. É recebida
pela fulana que agora ocupa o “seu” lugar. Quando a “outra” sai ela se aproxima
do homem que já foi seu. Ela não tem nome no conto. Ela flui. Ele usa um roupão
verde, mãos “branquíssimas”, está quase lívido. Ela começa a sentir uma falta e
não sabia do que era. Descobre: “ô! Deus – agora eu sabia que ele ia morrer”.
Este final vago e brusco nos conduz ao
amor interrompido, petrificado em narrativa de prosa lírica, urbana,
metafísica? Tecida com mãos de carinho e confiança, em ternura pressentida por
Lygia dentro de nós, seus enigmáticos leitores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário