Ao receber de Carlos Santos a incumbência de participar desta mesa, pensei
no que eu poderia dizer diante de um mestre do quilate de Moisés Monteiro de
Melo Neto, que é SOMENTE, professor,
doutor em teoria literária,
escritor, dramaturgo, ator, cantor, se quisesse, pois voz e afinação tem, dissecando outro grande mestre da
linguística, da poesia , revolucionário dos costumes da literatura e da pedagogia no país, cineasta,
pensador, filósofo da atualidade,
vanguardista, performer, agitador cultural. Vou falar sobre o livro de Moisés: ABISMOS DA POETICIDADE em Jomard Muniz de
Britto: Do Escrevivendo aos Atentados poéticos. Publicação do SESC (PE).
Projeto visual: Cláudio Lira
Se se tratasse de um duelo, diria ser de
Titãs , mas se trata , ao contrário, de um encontro, um feliz encontro da
poesia com a literatura, com a história do país atravessada e vivida com muita
intensidade por JMB e (re)percorrida com
maestria por Moisés nesta sua obra.
Muitas vezes,
senti dificuldade em determinar, com nitidez, onde termina JMB e começa Moisés,
e vice-versa.
Moisés sabe do quê e sobre o quê e
quem escreve Jomard Muniz de Britto, seja no cinema, na música, no teatro, nas
artes plásticas...
Feliz, esse encontro, um presente para
todos os interessados nas artes em geral
e, em especial, na história cultural recente do país.
Não teria nada a dizer a não ser dar o
testemunho de quão ilustrativa e
instrutiva foi, está sendo, para mim, a leitura desta obra.
Diria, e espero não estar cometendo
“heresia literária” que esta obra me soube a antologia ou enciclopédia à qual
recorremos com frequência, tal a riqueza aqui contida. Não é só de Jomard que
trata Moisés: a bibliografia trazida, os anexos, já são uma obra à parte.
Difícil é terminar a leitura tala quantidade de vezes que vamos e voltamos,
consultamos, dentro da própria obra.
Quando JMB despontou no cenário cultural
do estado, eu ainda não participava do
que estivesse minimamente longe de meu entorno familiar, da escola religiosa e
das leituras filtradas por meu pai, zeloso dos bons costumes e da moral.
Portanto, pouco sabia do que acontecia até 68 quando aos 15
anos, já embalada pelas chamadas “
musicas de protesto” que meu pai ouvia e
comentava – lembro dele interpretando para minha mãe o Morte e Vida Severina –
das notícias que chegavam sobre movimentos em Paris, do espanto causado por
“Alegria, Alegria”, da edição do AI-5, comecei a perceber, pelos comentários
domésticos, prenhes de preocupação com os destinos do país e da liberdade, que algo
estava acontecendo no além dos muros
familiares.
Foi um delicioso mergulho num passado em que
eu, uma Carolina, tal qual a da música do Chico Buarque, surgida nos idos de
68, acho eu, também ficava à janela vendo o tempo passar, e o tempo passou e as
Carolinas mal viram...
Moisés com esta obra vem , creio que não
só para mim mas para os que, como eu, à
altura eram muito jovens para acompanhar e compreender as transformações
daquela época, vem, repito, suprir uma lacuna
pois é de um pernambucano que trata, retornando num tempo, que também não foi
por ele, autor, vivido desde seu início,
suponho. E é ele, segundo o prefácio de
Lucila Nogueira, quem considera um
trabalho muito prazeroso a leitura do acervo bibliográfico de JMB.
Escreve em tom poético, usando da
linguagem técnica com muita parcimônia, o que faz com que a obra seja acessível
também aos que não são iniciados nas sendas acadêmicas da literatura.
Ele nos trouxe para perto uma
personalidade rara. Homem das letras que, de cedo, encantou-se e assumiu as
lições do mestre Paulo Freire e com elas viveu sua pedagogia , suas relações
com a literatura, com a poesia e com sua cidadania, sempre preocupado com o
novo, antenado com os movimentos mundiais de vanguarda, com os atentados às
liberdades individuais, inovando na escrita, nas letras, na poesia quer no
conteúdo quer na forma mesma, tentando difundir o pensar como arma pacífica de
liberdade.
Em sua introdução, que já nos faz sentir
o gostinho do que temos em nossa frente,
diz que JMB faz parte de uma neovanguarda surgida no Brasil nos anos de 1960.
Diz
que seu diálogo com o pensamento jomardiano
se dá buscando “ o limite possível entre
aproximação e distanciamento e escreve-se como contracanto, em interseção” Os
recortes nos textos estão nos
comportamento, valores, ideias, desejos, a discussão cultural sob uma ótica
inovadora a partir do objetivo do estudo. Surge esta reunião orgânica que se
propõe a acrescentar algo à comunidade acadêmica, diz Moisés.
E acho que cumpriu muito bem o papel ao
qual se determinou e foi muito além da comunidade acadêmica quando, como agora
fazemos, estamos reunidos em torno de ambos, nos deleitando com suas escrituras
A leitura é leve, porém recheada de lições de ambos os
mestres, um panorama não só do Brasil entre os anos 1970 e 2002 ,a partir do
ESCREVIVENDO até a publicação de seus ATENTADOS
POÉTICOS, mas também, dos grandes e marcantes acontecimentos do mundo das
artes, da política da revolução dos
costumes.
Se não quiséssemos nos iniciar ou
relembrar ou reviver ou nos reinserir ou
não mais acompanhar a trajetória de JMB mas pousássemos os olhos distraídos que
fôssemos, na obra de Moisés, em qualquer de seus capítulos, seriamos presas
fáceis tal qual Afrodite e Ares o
foram pela rede mágica tramada por
Héfestos, sem chances de escapar e nos renderíamos e nos deixaríamos
aprisionar, só que por um motivo nobre: a visão de dois mestres das letras e
das artes, a de revivermos a história
cultural recente de Pernambuco e não só....
Moisés consegue fazer miríades de
sínteses sobre JMB e sua obra e, sua própria escrita, elegante, didática,
poética na qual fica evidente a admiração devotada ao seu objeto de estudo,
vida e obra, dissecando-os, interpretando-os, compreendendo-os, provoca em nós uma aproximação tal que nos sentimos íntimos dos três: autor,
biografado e sua obra
A
conjunção Moisés/Jomard, nos encanta,
deleita instrui, educa.
Jomard, de logo, ultrapassou as
fronteiras do estado foi inspirador da Tropicália, admirado por Gilberto Gil e
Caetano Velloso. Soube criar, inovar e traduzir os movimentos culturais
políticos e artísticos com humor, ironia, e, principalmente, fazendo pensar e repensar
o velho, introduzindo o novo, transfigurando e transformando o velho e
reinventando o novo. E sempre atento ao que se passava “ lá fora” comentando,
perguntando, instigando, ironizando, sem
usar do sarcasmo, jamais...
E quem é JOMARD, segundo Moisés?
O autor,(in)-definindo-o diz que vários
são seus aspectos: “ a dureza otimista, a indignação diante da covardia, o
compromisso total, o ato, aprender-se sem intermediários, pensador que não
aceita rótulos” e muito mais poderíamos dizer dessa figura impar no ser, no
aparecer, no aparentar, no agir, no produzir.
Homem
perseguido pela ditadura, aposentado aos 27 anos pelo governo militar, com a anistia em 1980
retornou às universidades federais da Paraíba e de Pernambuco. Entre prosa e
poesia, sua poeticidade, editou os seguintes livros: Inventário de um
feudalismo cultural (1979), em parceria com o artista plástico Sérgio
Lemos; Terceira aquarela do Brasil ( 1982) com programação visual de
Anacleto Elói; Bordel brasilírico bordel (1992) com ilustrações de Bernardo
Dimenstein; Arrecife do Desejo (1994) e Outros
Orf’eus (1995), com projeto gráfico e ilustrações de João Denys Araújo
Leite; Pop filosofia – o que é isto? (1997), um livro em CD com
textos declamados e musicados; Atentados poéticos (2002), a convite
das edições Bagaço, uma coletânea de textos e bricolagens, com capa e
arte-final de João Denys.
Da sua poética, Moisés nos fala da preocupação de Jomar desde o início com a má educação e de olhos abertos na
difusão das ideias de Paulo Freire, lastra
seu fazer poético nas suas convicções inabaláveis, na justiça social como ação
transformadora, democrática e necessária para que o povo entenda conceitos de natureza e cultura ( aqui, uma quase transcrição).
Nos faz ver que sua
poesia está permeada de uma “
rebeldia amorosa” de sentido de unidade na diversidade e de autonomia dos
sujeitos:
-
a conscientização do assujeitado e alienado de sua condição;
-
o despertar para a reação à pirâmide social ressaltando a neutralidade como
opção diária e permanente.
Ainda: que seu texto vem carregado de inversões,
neologismos, trocadilhos fazendo surgir o real enquanto controvérsia parecendo querer tirar o homem de seu estado
de automação, despertando no sujeito o prazer e a “ desrepressão” por meio da
literatura, levando seu leitor a enfrentar as relações com o poder, as
ideologias num exercício de função
social de transformação de si e do mundo , sendo a prática o pressuposto da
teoria.
E de mais nos fala o autor: de uma ética
holística, um sistema totalizante que descarta o simplório, da procura
incessante pela “ verdade” acompanhado de angústia, humor interno, abismos
próprios ladeados por um “ otimismo prático” que vem a ser o agir conforme a
situação se apresente, sem lamúrias...
E muito mais foi dito e muito mais teria
a dizer, mas deixo para meus colegas de mesa continuar a falar dessas duas
criaturas-criadoras...
Quero dizer, ao final, que foi com muita
honra e muito prazer que tive o privilégio de hoje sentar aqui, nesta mesa,
ladeada por pessoas de tanta coragem, tanto valor intelectual e humano.
Muito grata.
05
de dezembro de 2015,
Ângela
Carolina Cysneiros
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