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domingo, 6 de dezembro de 2015

ABISMOS DA POETICIDADE em Jomard Muniz de Britto: Do Escrevivendo aos Atentados poéticos


Ao receber de Carlos Santos  a incumbência de participar desta mesa, pensei no que eu poderia dizer diante de um mestre do quilate de Moisés Monteiro de Melo Neto, que é SOMENTE, professor,   doutor em  teoria literária, escritor, dramaturgo, ator, cantor, se quisesse, pois voz e afinação tem,  dissecando outro grande mestre da linguística, da poesia , revolucionário dos costumes  da literatura e da pedagogia no país, cineasta, pensador,  filósofo da atualidade, vanguardista, performer, agitador cultural. Vou falar sobre o livro de Moisés: ABISMOS DA POETICIDADE em Jomard Muniz de Britto: Do Escrevivendo aos Atentados poéticos. Publicação do SESC (PE).


Projeto visual: Cláudio Lira




Se se tratasse de um duelo, diria ser de Titãs , mas se trata , ao contrário, de um encontro, um feliz encontro da poesia com a literatura, com a história do país atravessada e vivida com muita intensidade por JMB e (re)percorrida  com maestria por Moisés nesta sua obra.
Muitas vezes, senti dificuldade em determinar, com nitidez, onde termina JMB e começa Moisés, e vice-versa.
            Moisés sabe do quê e sobre o quê e quem escreve Jomard Muniz de Britto, seja no cinema, na música, no teatro, nas artes plásticas...
Feliz, esse encontro, um presente para todos os  interessados nas artes em geral e, em especial, na história cultural recente do país.
Não teria nada a dizer a não ser dar o testemunho de quão  ilustrativa e instrutiva  foi, está sendo, para mim,  a leitura desta obra.
Diria, e espero não estar cometendo “heresia literária” que esta obra me soube a antologia ou enciclopédia à qual recorremos com frequência, tal a riqueza aqui contida. Não é só de Jomard que trata Moisés: a bibliografia trazida, os anexos, já são uma obra à parte. Difícil é terminar a leitura tala quantidade de vezes que vamos e voltamos, consultamos, dentro da própria obra.

Quando JMB despontou no cenário cultural do estado, eu ainda não  participava do que estivesse minimamente longe de meu entorno familiar, da escola religiosa e das leituras filtradas por meu pai, zeloso dos bons costumes e da moral. Portanto,  pouco  sabia do que acontecia até 68 quando aos 15 anos, já  embalada pelas chamadas “ musicas de protesto”  que meu pai ouvia e comentava – lembro dele interpretando para minha mãe o Morte e Vida Severina – das notícias que chegavam sobre movimentos em Paris, do espanto causado por “Alegria, Alegria”, da edição do AI-5,   comecei a perceber, pelos comentários domésticos, prenhes de preocupação com os  destinos do país e da liberdade, que algo estava acontecendo  no além dos muros familiares.
Foi um delicioso mergulho num passado em que eu, uma Carolina, tal qual a da música do Chico Buarque, surgida nos idos de 68, acho eu, também ficava à janela vendo o tempo passar, e o tempo passou e as Carolinas mal viram...

Moisés com esta obra vem , creio que não só para mim mas para os que, como eu,  à altura eram muito jovens para acompanhar e compreender as transformações daquela época,  vem, repito, suprir uma lacuna pois é de um pernambucano que trata, retornando num tempo, que também não foi por ele, autor,  vivido desde seu início, suponho. E é ele, segundo  o prefácio de Lucila Nogueira, quem considera  um trabalho muito prazeroso a leitura do acervo bibliográfico de JMB.

Escreve em tom poético, usando da linguagem técnica com muita parcimônia, o que faz com que a obra seja acessível também aos que não são iniciados nas sendas  acadêmicas da literatura.
Ele nos trouxe para perto uma personalidade rara. Homem das letras que, de cedo, encantou-se e assumiu as lições do mestre Paulo Freire e com elas viveu sua pedagogia , suas relações com a literatura, com a poesia e com sua cidadania, sempre preocupado com o novo, antenado com os movimentos mundiais de vanguarda, com os atentados às liberdades individuais, inovando na escrita, nas letras, na poesia quer no conteúdo quer na forma mesma, tentando difundir o pensar como arma pacífica de liberdade.

Em sua introdução, que já nos faz sentir o gostinho  do que temos em nossa frente, diz que JMB faz parte de uma neovanguarda surgida no Brasil nos anos de 1960.
Diz que seu diálogo com o pensamento jomardiano se dá  buscando “ o limite possível entre aproximação e distanciamento e escreve-se como contracanto, em interseção” Os recortes nos textos  estão nos comportamento, valores, ideias, desejos, a discussão cultural sob uma ótica inovadora a partir do objetivo do estudo. Surge esta reunião orgânica que se propõe a acrescentar algo à comunidade acadêmica, diz Moisés.

E acho que cumpriu muito bem o papel ao qual se determinou e foi muito além da comunidade acadêmica quando, como agora fazemos, estamos reunidos em torno de ambos, nos deleitando com suas escrituras

A  leitura é  leve, porém recheada de lições de ambos os mestres, um panorama não só do Brasil entre os anos 1970 e 2002 ,a partir do ESCREVIVENDO até a  publicação de seus ATENTADOS POÉTICOS, mas também, dos grandes e marcantes acontecimentos do mundo das artes, da política  da revolução dos costumes.

Se não quiséssemos nos iniciar ou relembrar ou reviver ou nos reinserir  ou não mais acompanhar a trajetória de JMB mas pousássemos os olhos distraídos que fôssemos, na obra de Moisés, em qualquer de seus capítulos, seriamos presas fáceis  tal qual Afrodite e Ares o foram  pela rede mágica tramada por Héfestos, sem chances de escapar e nos renderíamos e nos deixaríamos aprisionar, só que por um motivo nobre: a visão de dois mestres das letras e das artes,  a de revivermos a história cultural recente de Pernambuco e não só....

Moisés consegue fazer miríades de sínteses sobre JMB e sua  obra e,  sua própria escrita, elegante, didática, poética na qual fica evidente a admiração devotada ao seu objeto de estudo, vida e obra, dissecando-os, interpretando-os, compreendendo-os,  provoca em nós  uma aproximação tal  que nos sentimos íntimos dos três: autor, biografado e sua obra

 A conjunção Moisés/Jomard,  nos encanta, deleita  instrui, educa.

Jomard, de logo, ultrapassou as fronteiras do estado foi inspirador da Tropicália, admirado por Gilberto Gil e Caetano Velloso. Soube criar, inovar e traduzir os movimentos culturais políticos e artísticos com humor, ironia, e, principalmente, fazendo pensar e repensar o velho, introduzindo o novo, transfigurando e transformando o velho e reinventando o novo. E sempre atento ao que se passava “ lá fora” comentando, perguntando, instigando, ironizando,  sem usar do sarcasmo, jamais...


E quem é JOMARD, segundo Moisés?
O autor,(in)-definindo-o diz que vários são seus aspectos: “ a dureza otimista, a indignação diante da covardia, o compromisso total, o ato, aprender-se sem intermediários, pensador que não aceita rótulos” e muito mais poderíamos dizer dessa figura impar no ser, no aparecer, no aparentar, no agir, no produzir.
Homem perseguido pela ditadura, aposentado aos 27 anos  pelo governo militar, com a anistia em 1980 retornou às universidades federais da Paraíba e de Pernambuco. Entre prosa e poesia, sua poeticidade, editou os seguintes livros: Inventário de um feudalismo cultural (1979), em parceria com o artista plástico Sérgio Lemos; Terceira aquarela do Brasil ( 1982) com programação visual de Anacleto Elói; Bordel brasilírico bordel (1992) com ilustrações de Bernardo Dimenstein; Arrecife do Desejo (1994) e Outros Orf’eus (1995), com projeto gráfico e ilustrações de João Denys Araújo Leite; Pop filosofia – o que é isto? (1997), um livro em CD com textos declamados e musicados; Atentados poéticos (2002), a convite das edições Bagaço, uma coletânea de textos e bricolagens, com capa e arte-final de João Denys. 

Da sua poética, Moisés nos fala  da preocupação de Jomar desde o início  com a má educação e de olhos abertos na difusão das ideias de Paulo  Freire, lastra seu fazer poético nas  suas convicções   inabaláveis, na justiça social como ação transformadora, democrática e necessária para que o povo entenda  conceitos de natureza  e cultura ( aqui, uma quase transcrição).
Nos faz ver  que sua  poesia está permeada  de uma “ rebeldia amorosa” de sentido de unidade na diversidade e de autonomia dos sujeitos:
- a conscientização do assujeitado e alienado de sua condição;
- o despertar para a reação à pirâmide social ressaltando a neutralidade como opção diária e permanente.
Ainda:  que seu texto vem carregado de inversões, neologismos, trocadilhos fazendo surgir o real enquanto controvérsia  parecendo querer tirar o homem de seu estado de automação, despertando no sujeito o prazer e a “ desrepressão” por meio da literatura, levando seu leitor a enfrentar as relações com o poder, as ideologias  num exercício de função social de transformação de si e do mundo , sendo a prática o pressuposto da teoria.
E de mais nos fala o autor: de uma ética holística, um sistema totalizante que descarta o simplório, da procura incessante pela “ verdade” acompanhado de angústia, humor interno, abismos próprios ladeados por um “ otimismo prático” que vem a ser o agir conforme a situação se apresente, sem lamúrias...
E muito mais foi dito e muito mais teria a dizer, mas deixo para meus colegas de mesa continuar a falar dessas duas criaturas-criadoras...

Quero dizer, ao final, que foi com muita honra e muito prazer que tive o privilégio de hoje sentar aqui, nesta mesa, ladeada por pessoas de tanta coragem, tanto  valor intelectual  e humano.
Muito grata.

05 de dezembro de 2015,

Ângela Carolina Cysneiros

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