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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Ozzy dá depoimento comovente no Facebook sobre morte do vocalista do Motorhead



"I lost one of my best friends, Lemmy, today. He will be sadly missed. He was a warrior and a legend. I will see you on the other side."

E postou esta foto:



Legal ter amigos assim, não?

COMETIMENTOS



 (poema de Moisés Monteiro de Melo Neto)


Ossatura do meu sonho: Castigat ridendo mores!
Dá-te ao desdém e trabalha, na paisagem humana,
Ciente do que te acabe...

sábado, 26 de dezembro de 2015

A CONFISSÃO DE LEONTINA


Adaptação teatral  da obra de 
LYGIA FAGUNDES TELLES
 Pelo dramaturgo recifense  Moisés Monteiro de Melo Neto

Cenário: cadeiras e um cabide de pé onde estão adereços para cada personagem: peça retangular com abertura no centro (padre), boina (marinheiro), buá de penas (Léo e Rubi), etc..

LEONTINA- Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar. Vou agora contar tudo especialmente pra senhora não sou mesmo assassina meus olhos já não têm lágrimas de tanto que tenho chorado... que confiança podia ter nessa justiça?... meu advogado já avisou que estou no mato sem cachorro e que o tal processo não está cheirando nada bem. me chamam de vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles obrigam a gente a fazer. Rubi vivia dizendo que eu devia voltar pra Olhos d’Água. Mas como eu podia voltar? E voltar pra fazer o quê? Se minha mãe ainda fosse viva e se tivesse o Pedro e minha irmãzinha então está visto que eu voltava correndo. Mas lá não tem mais nada; vivo me lembrando daquele tempo. Nossa casa ficava perto da vila e vivia caindo aos pedaços mas bem que era quentinha e alegre. Tinha eu e minha mãe e Pedro. Sem falar na minha irmãzinha Luzia que era meio tontinha. Pedro era meu primo. Era mais velho do que eu e não era mau mas a verdade é que a gente não podia contar com ele pra nada. Quase não falava. Voltava da escola e se metia no mato com os livros e só vinha pra comer e dormir; ia ser médico e importante   Minha mãe vivia lavando roupa na beira da lagoa. Ela lavava quase toda roupa da gente da vila mas não se queixava. Nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fico pensando onde ia buscar força pra trabalhar tanto. Não parava. Quando tinha aquela dor de cabeça de cegar estão amarrava na testa um laço com rodela de batata crua e fazia o chá que colhia no quintal. Assim que a dor passava ia com a trouxa de roupa pra lagoa. Tita, a cachorra da gente, latia e pulava comigo.   Eu fazia a comida e cuidava da casa. Minha irmãzinha Luzia bem que podia me ajudar que ela já tinha seis anos mas vivia sem entender direito o que a gente falava. Queria só ficar esgravatando o chão pra descobrir minhocas. Ficou assim desde do dia em que caiu do colo de Pedro e bateu com a cabeça no pé da mesa. Nesse tempo ela ainda engatinhava e Pedro quis fazer aquela brincadeira de upa cavalinho upa. Montou ela nas costas e saiu trotando upa upa sem lembrar que a pobrezinha não sabia se segurar direito. Até que o tombo não foi muito feio mas desde esse dia ela não parou de babar e fuçar a terra procurando as benditas minhocas que às vezes escondia debaixo do travesseiro. Até a lenha do fogo era eu que catava no mato. Perguntei um dia pra minha mãe por que Pedro não me ajudava ao menos nisso e ela respondeu que o Pedro precisava de estudar pra ser médico e cuidar então da gente. Já que o dinheiro não dava pra todos que ao menos um tinha que subir pra dar a mão pros outros. Mas prometi pra minha irmã na hora da morte que ia cuidar dele melhor do que de você. Estou cumprindo... se minha mãe soubesse que não faz dois anos que encontrei Pedro e que ele fingiu que nem me conhecia. foi na Santa Casa. foi demais isso da gente se ver depois de tanto tempo. estava alto e bonito com aquele avental. Abri a boca e quis chamar Pedro Pedro. Então baixei a cabeça e fingi que estava vendo a revista. Ele foi virando as costas e pegando no braço da doutora e saindo mais apavorado do que se tivesse visto o próprio diabo. Então me deu uma bruta vergonha daquela vida que a gente estava levando e que devia mesmo ser uma droga  de vida pra Pedro não ter coragem nem de me cumprimentar. Contei tudo pra ela.
  RUBI-  Esse teu primo é um grandessíssimo filho da puta. Acho você muito melhor do que ele. Cão! Ficou cheio de orgulho e fugiu da prima esculhambada mas o caso é que foi essa prima que durante anos e anos fez a comida dele. Leontina, se você tivesse  dinheiro ele não te desprezava assim ; dar pra pobre  como você dá. Nisso é que está o erro: estou podre de velha e você vai direitinho pro mesmo caminho.
LEONTINA- Minha mãe não me comprava sapato pra que ele pudesse ter livros. E agora ele fugia de mim como se eu tivesse a lepra! E a gente foi criado junto que nem irmão... Gosto dele apesar de tudo ...não se arranca o bem-querer do coração. E quem mandou eu ficar nessa vida? Mal sei escrever meu nome ... comigo tem sido duro demais! e se Pedro soubesse disso! Eu já estou presa faz três meses e até agora ele não deu sinal e decerto nem vai dar. Às vezes fecho os olhos pra ver melhor aquele tempo. Minha mãe...Luzia... Pedro... E eu tão contente cuidando da casa. Quando tinha flor no campo eu colhia as mais bonitas e botava dentro da garrafinha em cima da mesa porque sabia que Pedro gostava de flor. Lembro de um domingo que minha mãe ganhou uns ovos e fez um bolo. Era tão quente o cheiro daquele bolo e Pedro comeu com tanto gosto e fiquei tão alegre  que rodei de alegria quando ele agradou minha mãe e me chamou pra caçar vaga-lume.
RUBI- E teu pai?
LEO- Meu pai morreu antes de eu nascer minha mãe não queria falar nisso... fiquei até hoje sem saber como ele era! Então imaginava que era lindo e bom   No fim do ano tinha festa na escola. Pedro era sempre o primeiro aluno e o diretor elogiava só ele; uma vez Pedro inventou uma festa no teatrinho. Quando acabou corri pra dizer que ele tinha representado melhor do que todos os colegas mas Pedro me evitou. Eu estava mesmo com o vestido rasgado,achei que Pedro estava tão contente que nem ia reparar no meu jeito. E me cheguei pra perto dele. Ele então fez aquela cara e foi me dando as costas. Essa daí não é tua irmã? um menino perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo. Quando cheguei minha mãe estava com o pano amarrado na cabeça e já ia saindo pra ir ao curandeiro. Antes de sair ficou sem saber se ia ou não. Olhou pra mim. Olhou pra Luzia. Olhou comprido pro Pedro. Depois olhou de novo a estrada franzindo a testa que nem a Titã, a cachorra da gente que antes de morrer fez zigualzinho. Parecia mesmo com a Tita medindo o caminho que ia fazer. Senti um aperto forte no coração. Não vai mãe eu quis dizer. Mas ela já tinha pegado a estrada com seu passinho ligeiro. Corri pro Pedro com um pressentimento. Ele estava lendo um livro. Deixa de ser burra que não vai acontecer nada de ruim ele disse sem parar de ler. Vou ser médico pra cuidar dela. Nunca mais vai sentir nenhuma dor ele prometeu. E a Luzia vai deixar de mexer com minhoca e você vai se casar e vai ser feliz ele disse e me mandou coar um café. Aconteceu tudo ao contrário. Minha mãe caiu na estrada segurando a cabeça e Luzia se afogou quando procurava minhoca e eu estou aqui jogada na cadeia. Fico pensando que ele era mesmo diferente porque só com ele deu tudo certo e agora entendo por que merecia um pedaço de carne maior do que o meu.
RUBI- Depois da morte da tua mãe tu ficasse trabalhando pro sujeitinho?
LEO-Pedro vendeu tudo que a gente tinha e foi embora depois que eu trabalhei pra ele concluir a escola; me vi completamente sozinha no mundo e isso foi muito duro pra mim, só tinha doze anos. Minha mãe enterrada. Me deitava tão cansada que nem tinha força de lavar a lama do pé; olhava em redor e via as pilhas de camisa pra passar e engomar e a panela queimando no fogo e minha irmãzinha tendo que ser trocada porque ela fazia tudo na roupa.  Na formatura do colégio ele não queria que a gente, eu e ela, Luzia, fosse lá...  ele se envergonhava da gente e com razão. Confesso que isso me doeu porque a Luzia estava tão lindinha com o cabelo louro todo encacheado caindo até o ombro e o vestidinho novo que fiz com um retalho de fazenda azul que um a freguesa me deu. Pensei em dizer que assim arrumada ninguém podia descobrir que ela não era muito certa da cabeça. Mas Pedro estava de tal jeito que achei melhor deixar a Luzia em casa e ir só com ele. Era  hora de Pedro começar o discurso lá na festa quando a Malvina apareceu me chamando ...aconteceu com minha irmãzinha ...Malvina começou a tremer dizendo que não tinha tido tempo de fazer nada. Fazer o quê? Perguntei tremendo também. Salvar a pobrezinha. Malvina ia indo pra casa quando viu aquele anjinho na beira da lagoa cavucando a lama. Fui chegando e de repente não sei como ela deu uma cambalhota e desapareceu. Gritei o quanto pude mas demorou até o Bentão entrar na água trazendo a pobrezinha pelo cabelo. Roxinha roxinha. Corri feito louca pra avisar a Pedro. Ele já ia entrar no palco. Pedro Pedro a Luzia se afogou fiquei repetindo sem chorar nem nada.. Ele me olhava mais branco do que a camisa. Agarrou meu braço. Vá na frente está me escutando? não conte pra ninguém escutou agora? Vi ele subir a escadinha que dava pro palco. mas tão furioso que pensei que fosse me bater. Saí zonza como se tivesse levado uma paulada. Da rua ouvi a voz de Pedro começando o discurso. Me lembro de uma palavra que escutei. Nunca tinha escutado antes e não sabia o que era. Fui voltando pra casa e repetindo Júbilo júbilo júbilo. Foi assim que perdi a minha irmãzinha que era linda como os anjos pintados no teto da igreja. Mais umas semanas e perdi Pedro. O diretor da escola arrumou  pra Pedro  um emprego na cidade num banco... ordenado pequeno serviço era só dar recado mas nos dias de folga vou trabalhar num hospital onde me deixam dormir. Estudo de noite Mas você não vai, ele disse. Demorou um pouco pra eu entender. Eu não vou Pedro?
PEDRO- Vou na frente e quando der jeito mando te chamar mas não fique triste porque você vai trabalhar na casa de uma mulher muito boa que o padre Adamastor conhece. Já falei com ele e assim que eu embarcar você vai pra lá. A gente vende esses trastes que preciso apurar algum dinheiro pra viagem. Um dia ainda te devolvo com juro...
LEONTINA- Me leva Pedro me leva!
PEDRO- Tenho que ficar sozinho se quiser fazer o que tenho que fazer ele disse. Mas logo você vai receber uma carta porque não quero te perder LEONTINA-   Vesti meu vestido cinzento e fui pra casa do padre Adamastor. Mal podia parar em pé de tanto desânimo. Uma tristeza no peito que chegava a doer. Minha mãe e Luzia e Pedro e a Titã, minha cachorrinha,  mais os filhinhos dela. Tinham sumido todos. O padre me levou na casa de uma velha.
RUBI-  você contou  que ela tinha um jeito de falar com gente feito urubu bicando a carniça e quis saber se você não tinha andado de brincadeiras com seu primo Pedro. Brincadeira de dar injeção naquele lugarzinho que e dizia que você era meio retardada como sua irmã que se afogou e que nem pra ir ao banheiro cê tinha sossego que ela ficava rondando a porta e resmungando que cê devia estar cagando prego pra demorar tanto assim.
LÉO- Ela era Zeladora do Sagrado Coração de Jesus e todo santo dia tinha que ir de tardinha na igreja o que era uma sorte. Tinha um filho. O pai era muito bom mas o menino tinha puxado a mãe. Uma peste que uma noite quis me ver pelada e como não deixei veio mijar na minha cara enquanto eu estava dormindo. Na procissão da Semana Santa ia vestido de Nosso Senhor dos Passos.
RUBI- o marido, quis deixar ela, mas ela, mas ela ameaçou se matar ele respondeu. Então foi ficando. Mandou você fugir, você veio pra cidade e foi trabalhar num cabaré
LEO-numa madrugada levantei antes dela e vesti meu vestido cinzento e corri pra estação, peguei o trem e quando ele começou a andar espiei pela janelinha e vi a vila amontoada lá embaixo não agüentei e caí no choro. Onde estava nossa casa? Onde estavam todos? Tive tanto medo que até me deu enjôo, mas de repente vi minha cara no vidro da janela. Eu tinha cara de lua cheia, pele era clarinha, boca muito bem-feita com todos os dentes, cabelo claro. No pretume do céu lá fora tinha um monte de estrelas. Me deu então uma bruta calma quando vi uma estrelinha verde brilhando lá longe. Imaginei que aquela bem que podia ser minha mãe. Então fechei os olhos e pedi que ela tomasse conta de Pedro. E que também olhasse um pouco por mim.
RUBI-apareceu um grandalhão que tinha um riso tão bom quando você chegou na estação e ficou parada sem saber pra onde ir. Então ele veio prosear e se ofereceu pra lhe ajudar. O tal marinheiro que morava no Rio mas estava agora de licença pra tratar de uma coisas que tinha que tratar aqui em São Paulo. Lhe levou numa confeitaria cheia de espelhos e luzes. Ele prometeu que no dia seguinte ia me comprar até enxoval.
MARINHEIRO- Quer um enxoval hein, Joana?
LEO- O meu nome não é Joana, é Leontina. Leontina Pontes dos Santos.
MARINHEIRO- Não faz mal (ri) Esse seu cabelo encacheado é igual ao cabelo do São João do Carneirinho e pra mim você sempre será Joana.Garçom: café com leite,biscoito de polvilho  pra ela e  cerveja ah! e prato de batata frita.
LEO- Tenho um primo faz quatro anos que não vejo, o Pedro...e seu nome
MARINHEIRO- Rogério...
LEO- Não sei pra onde ir..
MARINHEIRO-   Isto aqui é grande demais pra você achar esse primo ele disse sacudindo a cabeça. Neste puta bolo a gente não encontra nem com a mãe. E é melhor mesmo não contar com ninguém Conte só com você que  todo mundo já está até as orelhas de tanto problema e não quer nem ouvir falar no problema do outro. Eu gosto de você. A gente podia ir morar junto lá no hotelzinho mas eu não vou prometer nada. Nunca enganei nenhuma mulher. Sou livre mas não vá ficar alegre com isso porque casar não caso mesmo. Meu compromisso é outro. Nunca esquento o rabo em parte. Chega uma hora me mando pro mar e adeus. Está bem assim?
   LEO-  Eu nunca vi o mar.
MARINHEIRO(Rogério)- Num desses domingos a gente vai comer uma peixada em Santos ...o mar é tanta água tanta que no fim ele parecia se juntar com o céu. Mas se a gente chega até lá tinha ainda pela frente um chão de mar que não acabava nunca. Às vezes esse mar fica arreliando e espumava feito louco varrido puxando pro fundo tudo que encontrava. E sem ninguém saber por que a água se punha mansa e embalava os navios como berços.
RUBI- E você foi morar com ele...
LEO- O hotel ficava numa ruinha estreita cheirando a café porque tinha na esquina um armazém de café. Chamava Hotel Las Vegas. Subimos a escada de caracol e entramos no quarto.
(Cena do hotel: ela sentada. Ele ri e segura o queixo dela)
LEO- Ele me ensinou a tomar banho direito, me um sabonete verde
MARTINHEIRO- Você tem que tomar banho todo dia e lavar bem as partes.
LEO- expliquei que em casa a gente só tomava banho de bacia em dia de festa porque nas outras vezes só lavava o pé. E na casa da minha patroa ela não gostava que eu me lavasse pra não gastar água quente.
LEO- me deu vergonha e fui me esconder na cama debaixo do lençol. Ele riu e se deitou do meu lado.
MARINHEIRO-Você está com medo?
LEO-Sim
MARINHEIO- Não tenha medo. È como beber um copo d’água. Enquanto você estiver tremendo a gente não faz nada está bem assim? Te ensino depois como evitar filho e outras coisas.
LEO-Fechou a luz e ficou fumando e eu fiquei encolhida e olhando pro teto. Não gostava do cheiro da fumaça, mas era bom o cheiro do sabonete e até hoje não sei por que pensei no meu pai quando ele passou o braço debaixo da minha cabeça e me chamou.
MARINHEIRO- Vem Joana.
LEO- foi um tempo feliz. Rogério era muito paciente e alegre. Como ele era alegre. Sempre me trazia um presentinho da rua e quando tinha dinheiro me levava pra comer no restaurante. Também me fez arrumar as unhas Se estava duro dizia Estou duro e daí a gente comia sanduíche num bar por perto onde o dono era amigo dele..No sábado tinha cinema e depois a gente ia dançar que ele tinha paixão por musica. Tão alegre o Rogério. E tão bom.
MARINHEIRO- A gente não deve se aporrinhar ...
LEO-Era o que ele repetia quando eu me queixava de alguma coisa, ele dizia
MARINHEIRO- Não tem problema Joana. Não tem problema.
LEO- Aprendi também a fazer amor e a fumar. Até hoje não consegui gostar de fumar. Comprava cigarro e ficava fumando porque todo mundo a nossa volta fumava e ficava esquisito eu não fumar...fazia amor tudo direitinho pra deixar ele contente mas sempre com uma tristeza que não sei explicar... eu inventava de fechar a torneira que deixai aberta ou ver se não tinha perdido minha carteira de dinheiro.
MARINHEIRO-Vem logo Joana que já estou quase dormindo
LEO- então eu suspirava e ia com a cara de boi indo pro matadouro. Me sentia melhor se tomava um bom copo de vinho. Um dia achei o Rogério diferente. Comeu pouco. Falou pouco. Perguntei a que era
MARINHEIRO- nada.
LEO-foi me dando um sentimento muito grande.
MARINHEIRO-Não tem problema Joana disse Rogério passando o braço na minha cintura. Você é uma pequena muito direita e ainda vai encontrar um sujeito bem melhor do que eu. Eu te quero Joana ele disse. Mas sou um tipo que não pode andar com mulher e panelas sempre atrás. Se te largasse até que fazia um favor porque você precisa casar e não perder seu tempo com um camarada assim maluco (ele começa a fazer cócegas e brincar com ela) MARINHEIRO- suas sobrancelhas parecem  asas de gaivotas. Você (ri) no domingo que vem a gente vai pra Santos e lá você vai ver como elas tem asas que nem suas sobrancelhas.
LEO-Nessa noite ele foi muito carinhoso e me fez tanto agrado que cheguei a perguntar por que a gente não casava duma vez e tinha filho e tudo. (Ele fica sério. Acende um cigarro
MARINHEIRO-Agora durma.
LEO- Quando acordei na manhã seguinte Rogério não estava. Desceu mais cedo pra tomar café pensei. Então dei com a pulseira de pedrinhas de todas as cores em cima da mesa. Debaixo da pulseira estava o bilhete. E o dinheiro. Escreveu naquela letra bem redonda pra que eu entendesse mas a verdade é que nem precisei pré saber o que estava escrito. As lágrimas misturavam tanto as letras que eu não sabia se elas estavam no papel ou nos meus olhos. O bilhete dizia que ele tinha que seguir viagem porque tinha sido chamado e essa era uma viagem comprida. Achava melhor então se despedir de mim. Que eu ficasse com aquele dinheiro pra alguma necessidade porque o hotel estava pago até o fim do mês. Sem Rogério eu não podia achar mais nenhuma graça na vida. E agora lembro que só depois que ele foi embora pra sempre é que vi como eu gostava dele e como a gente tinha sido feliz naquele quartinho da rua com cheiro de café. Chorei até ficar com o olho que nem podia abrir de tão inchado. Nessa noite me deu vontade de me matar. Mas quando fui passando pelo bar da esquina me deu uma fome desgraçada. Pedi um cachorro-quente. Foi então que encontrei o Arnaldo Arnaldo não era bonito que nem o Rogério e não tinha dinheiro nem pro cigarro. Ficou mais de uma semana aboletado comigo no hotel e quando gastei minha última nota ele fez a pista com aquela mesma cara contente que tinha quando me encontrou no bar. Foi então que procurei o Milani que me arrumou um emprego de garçonete no Bar Real. Fomos morar numa pensão cheia de artista de circo e foi nessa pensão que conheci a Rubi. Ela me apresentou pro seu Armando caso eu quisesse trabalhar no salão. Perdi todos os presentes que Rogério me deu. Milani estava perdido de tanta maconha. E você, Rubi, ficou minha amiga, com os caras eu me dei mal...
RUBI- Os homens são uns safados...tenho 35 anos e já estou escangalhada porque comecei com quinze e não é brincadeira essa vida de dar murros de dia e de noite ainda ter que fazer um extra com perigo de pegar filho e doença como já peguei.
LEO- Então a gente alugou um quarto perto do salão onde ela dançava. O almoço era de sanduíche e café que a gente fazia escondido no fogareiro que a dona proibia com medo de incêndio. A desforra vinha no jantar se por sorte aparecia algum convite. Só então reparei como a cidade era grande. O meu miolo era mesmo mole e que quando eu fosse um caco é que ia me lembrar de dar valor ao dinheiro. Agora vem esse tira dizer que matei o velho pra roubar e acabei fugindo de medo. Você (para a platéia) minha senhora! Não acredite porque isso é uma mentira. É uma grande mentira e a Rubi, aqui do meu lado, está de prova. A gente tinha que dançar com um montão de caras que compravam os tíquetes e escolhiam as pequenas.
RUBI-(fala isso fumando e fazendo buraco com o cigarro numa folha de papel) Uns lobisomens de medonhos! (ri). Até que de vez em quando apareceu um homem bonito mas...
LEO-    No começo pensei que ia morrer de tanta canseira. Dançava com os fregueses das dez às quatro da manhã sem parar. E quando me esticava na cama era horrível porque se a cabeça dormia o pé continuava dançando. No fundo do coração cheguei a esperar que de repente aparecesse alguém que gostasse de mim de verdade e me levasse embora com ele. Podia até ser alguém que me falasse em casamento. E em toda a minha vida nunca quis outra coisa.
RUBI- Eu disse que tirasse o cavalo da chuva porque nenhum homem quer casar com uma mulher que fica atracada a noite inteira com tudo quanto é cristão que aparece. Os tipos que transavam pela zona eram todos sem futuro. Agradeça a Deus se algum deles não se lembrar de te jogar pela janela ou te enfiar uma faca na barriga. E esse negócio de abóbora virar carruagem está ficando cada vez mais difícil.
LEO- Sempre sonhei com um lugar sossegado e longe de toda essa confusão. Mas vou ficar aqui apodrecendo nesta cadeia
RUBI-e eu vou continuar pulando e me encharcando de bebida até o dia em que botar o pulmão pela boca. Tinha que ser.
 LEO- Aqui faz muito frio. Frio igual só senti uma vez em que meu primo Pedro me empurrou pra dentro da lagoa. Pra me esconder dos amigos dele, com vergonha de mim   Lembrei muito dessa tarde na noite que fez um frio de danar aqui na prisão.
AMIGA- Puxa Leo ...por que você matou o velho?
LEO- minha Nossa Senhora (enquanto ela vai passando a mão no cabelo) Por que justo eu que era tão boazinha fui fazer uma besteira dessas?!
 AMIGA - É o que perguntam. Também não sei responder.
LEO- (Leo aperta a cabeça e fica gritando)Deus é testemunha que até de ver matar galinha me doía o coração. Fugia pra dentro de casa quando torciam o pescoço delas como se fosse um pedaço de pano. Deus é testemunha. E agora vem o advogado e vem o tira me perguntar tanta coisa. Mas eu já disse tudo o que aconteceu e não sei mesmo o que essa gente quer que eu diga.
RUBI – Me conta, menina. Como foi?
LEO- Foi na tarde que inventei de comprar sapato porque o meu estava esbagaçado e quando chovia meu pé ficava nadando na água. Não comprei porque o dinheiro não deu e então como não tinha o que fazer fui olhar as vitrinas. Foi quando dei com o vestido marrom.
RUBI- Amaldiçoada hora essa. Amaldiçoada hora que enveredei por aquela rua e parei naquela vitrina. O vestido estava numa boneca e tinha o meu corpo. E pensei que decerto ia servir pra mim e que era o vestido mais lindo do mundo. Foi quando ouvi uma voz perguntando bem baixinho (entra o velho)
VELHO- Você quer aquele vestido?
LEO-No vidro que parecia um espelho estava a cara do velho. Era gordão e mole que nem geléia. Juro que tive vontade de rir.Juro que quis continuar meu caminho mas lá estava o vestido com aquela rosa de vidrilho vermelho no ombro.
RUBI – Era bonito? O tal vestido que você queria?
VELHO- Você quer aquele vestido?
LEO- Muito. Se o senhor quisesse me dar o vestido eu aceitaria sim com muito gosto.
RUBI- O que ele fez?
LEO-Uma vendedora ruiva veio toda contente cumprimentar o velho. Os dois já se conheciam. Esta menina quer aquele vestido da vitrina ele disse. O vestido me assentou feito uma luva e a vendedora então me aconselhou que fosse com ele no corpo porque estava uma beleza. Fiquei zonza. É que nunca tinha visto um vestido assim caro e quando me olhava no espelho e passava a mão na rosa de vidrilho minha vontade era sair rodopiando de alegria. O caso é que agora tinha que aturar o velho. Mas já tinha aturado tantos...um a mais ou um a menos não ia fazer diferença. Saímos.
VELHO- Você gostou do vestido?Pensa que vai fugir fácil assim?
LEO- Eu não estava querendo fugir coisa nenhuma  e entrei no automóvel de rico dele um carrão.
RUBI- Ele era bonito?(Leo e o velho estão em duas cadeiras e Rubi em pé vai dialogando com Leo como um fantasma, ou o velho parece um fantasma)
LEO- parecia um peru de bico mole molhado de cuspe. O rádio tocava baixinho umas músicas tão delicadas mas o velho não parava de falar e fazer perguntas. O nariz era bem-feito e os olhos azuis pareciam duas continhas. O que eu não agüentava era aquela boca inchada e roxa como se tivesse levado um murro. Mas não quis pensar nisso. Tinha um vestido novo como nunca tive igual e estava num carro e minhas colegas iam ficar verdes de inveja se me vissem. E o automóvel corria agora por uma estrada.
VELHO-Aqui a gente pode conversar melhor
LEO- Ele foi logo agarrando na minha coxa e me puxando pra mais perto. Quando senti aquela boca molhada me lamber o pescoço me deu tamanho nojo mas disfarcei e fiquei firme quando a boca veio subindo e grudou na minha. Vi que ele queria me desabotoar mas não achava o botão e até que facilitei mas mesmo assim
VELHO Que é? Não está gostando (fulo de raiva) que se eu quer bancar a cachorrinha lhe largo aqui mesmo.
RUBI-  Homem nenhum diz bom dia de graça.
LEO- Eu ia pagar sim mas quando escutei aquela conversa de descer e voltar a pé fiquei feliz da vida porque está visto que eu não queria outra coisa. Mesmo que a cidade estivesse longe ia ser uma maravilha andar sozinha por aquelas bandas e ainda por cima respirando o cheirinho do mato que fazia tempo que eu não respirava. E quando veio aquela mãozona me apertando de novo e me levantando o vestido endureci o corpo e fechei a boca bem na hora em que me beijou.(o velho quer beijá-la ela o empurra com nojo)
VELHO- Saia já daqui sua putinha!  (grita) Sai já. Mas deixe o vestido!
LEO – E eu vou nua, é?
VELHO- Eu paguei o vestido.
LEO- (desesperada começa) podem me prender se me vissem assim pelada. ...uma indecência dessas...eu estou disposta a pagar o presente. Não tem problema. vou ser boazinha e fazer tudo o que o senhor quiser... desculpa se ofendi em alguma coisa. Essa malcriação sem intenção.
VELHO- Puta safada!(ele está com mais raiva e começa a espumar feito um touro)
LEO- Não me ofenda!
VELHO- Nojenta! Vadia. Filha de uma puta!
LEO- Minha mãe foi uma mulher que só parou de trabalhar pra deitar a cabeça no chão e morrer. Isto não estava certo porque nela que estava morta ninguém tinha que buli.(O velho dá-lhe um bofetão nessa hora e quase me fez cair da cadeira. O ouvido zumbiu e a cara ardeu que nem fogo. Ela chora e ele dá outro bofetão que a fez bater com a cabeça na porta e a cabeça rachou feito um coco)
VELHO- Você vai ver só uma coisa!
LEO- Eu estava apanhando que nem a pior das vagabundas e disse pra ele: Me deixa ir embora pelo amor de Deus me deixa ir embora (abaixa-se pra pegar a bolsa). Foi então que num relâmpago o punho do velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba. Meu miolo estalou de dor e não vi mais nada. De repente me deu um estremecimento porque uma coisa me disse que o velho ia acabar se matando. Meu cabelo ficou em pé. Ah meu pai ah meu pai comecei a chamar. (Ela fugir e dei com as costas na porta com toda força mas ela estava bem fechada. Vai escorregando no banco. E já ia cair ajoelhada quando ele a agarra de novo e lhe sacoleja tão forte que ela fica de quatro no chão). Nessa hora achei uma coisa fria e dura no chão. (pega o ferro. ) e pensei depressa nas brigas que tinha visto no Bar Real e nos homens que levavam cadeiradas e caíam desmaiados mas logo se levantavam como se não tivesse acontecido nada. (Num salto se levanta ele a puxa de novo pelo cabelo e lhe sacode. Ela assenta o ferro na cabeça dele com raiva, com vontade e só pára de bater quando o corpo do velho fica vergado pra frente e a cabeça cai bem em cima da direção.)  A buzina começou a tocar. Tive um susto danado porque pensei que ele estivesse chamando alguém. Mas ele parecia dormir de tão quieto.
RUBI- Menina! Que horror!
LEO- Fique agora aí beijando a buzina seu besta. Fique aí eu repeti e ele nem se mexeu. Me abaixei pra ver a cara dele e dei com aquela boca aberta como se quisesse me morder. O olho arregalado. Comecei a suar frio. A buzina que não parava e aquele sangue gosmento e morno que não sei como pingou na minha mão. Fiquei maluca. Limpei depressa o dedo na almofada e catei minha bolsa. Fuja Leo eu disse pra mim mesma. Fuja fuja. Levei um susto quando me vi disparando pela estrada com um sapato em cada mão e com aquela buzina correndo atrás e eu querendo correr mais depressa até que aquele onnnnnnnnnnnnnn foi ficando mais fraco. Mais fraco. Parei pra respirar esfregando o pé na terra como fazia quando era criança. A brecha na cabeça já tinha fechado mas a boca doía pra danar porque o lábio partiu no murro. Cuspi o sangue da boca. Um automóvel que passou na toda me assustou e fui então andando bem achegadinha ao barranco pra me esconder dos carros. Tive um medo danado no meio da escuridão que era uma escuridão diferente das estradas de Olhos d’Água. Minha Nossa Senhora o que significa isso. O que significa isso fui repetindo enquanto ia chorando como só chorei quando o Rogério me largou. É que me lembrei da minha mãe. De Pedro. Da minha irmãzinha. Justo naquela hora é que Pedro saía comigo pra catar vaga-lume. A sopa na panela. A coisa melhor do mundo era tomar aquela sopa quente. E minha mãe com sua carinha conformada e Pedro pensando sempre nos seus livros  e minha irmãzinha pensando nas suas minhocas. Agora tinha acontecido tanta encrenca junta, mas tanta! Fui andando mais depressa e pensando como a vida era ruim ainda mais agora com essa trapalhada do velho. Acordei no meu quartinho com aquela buzina forte bem debaixo do travesseiro. Pelos buracos da veneziana vi que já era dia. Foi um sonho ruim pensei. E de repente dei com a rosa de vidrilho brilhando no escuro. Olhei minha mão onde tinha pingado o sangue da cor da rosa. Passei a língua no lábio inchado. Tive vontade de me enterrar no colchão; saltei da cama. Abri a janela e o sol entrou no quarto. O despertador marcava duas horas. Então fiquei animada porque o dia estava uma maravilhosa e eu estava com uma fome louca. Comi um resto do bolo. Me pintei com cuidado pra disfarçar a boca inchada e passei a escova no cabelo. Você não pode fazer idéia como eu estava contente. Botei o tal vestido mais bacana ela disse e fui indo e gostando de ver como o sol fazia brilhar minha rosa de vidrilho. Apostava que o velho tava por aí... e acabei não sei como defronte daquela vitrina. A mesma boneca vestia agora um vestido de seda azul. Já que estou aqui, aproveito e peço meu vestido branco que esqueci na cadeira eu pensei. Amaldiçoada essa hora. Minha Nossa Senhora o que é que eu tinha de pedir aquele vestido de volta? Se eu não tivesse aparecido lá nunca ninguém no mundo ia saber que era eu. Ninguém me conhecia. E nem eu mesma ficava sabendo do crime porque não leio jornal.
RUBI- Miolo mole! Por que tinha que voltar lá? Por quê? O velho gostava de meninas e andava com um monte delas. Nem arrependida você ia ficar nem isso sua tonta. Pó que voltou?
LEO- Foi como se uma coisa tivesse me arrastado e agora eu estava parada na porta e procurando ver lá dentro a vendedora ruiva. Peço meu vestido que esqueci e se ela pergunta pelo velho digo que não sei. Melhor entrar pra pedir meu vestido porque se fujo vai ser pior.Eu tive um pressentimento. Meu cabelo arrepiou. Fuja Leo. Fuja depressa depressa. Pelo amor de Deus fuja agora sem olhar pra trás fuja fuja. Quando dei o primeiro passo pra correr a vendedora ruiva me viu. Ela estava proseando com um homem no balcão. Assim que me viu ficou de boca aberta olhando. Depois me apontou com o dedo.
   O homem dobrou o jornal e veio vindo devagar pro meu lado. Fiquei pregada no chão. Ele veio vindo veio vindo com um risinho na boca e com um jeito de quem não está querendo nada. Botou a mão no meu ombro. Belezinha do vestido marrom venha comigo mas bico calado. E me trouxe pra cá.                            
  



LYGIA FAGUNDES TELLES: A ESTRUTURA DA BOLHA DE SABÃO

Pelo professor e, pesquisador e escritor Moisés Monteiro de Melo Neto





Lygia é cheia de pequenas delicadezas nas suas entrelinhas movem-se céus e terras. Nasceu em São Paulo, seu pai era promotor público morou em vários lugares. Desde pequena gostava de ouvir / ler histórias, algumas, desde pequena, ela anotava nos seus cadernos. Gostava de recontá-las ao seu modo. Mesmo as que as assombrava, ela confessa: ao transmiti-las me livrava das inquietações que elas lhe causavam. Cursou direito e educação física em São Paulo. Quando jovem apreciava Casimiro de Abreu e Olavo Bilac. Escreveu para os jornais da Faculdade e depois em órgãos da imprensa. Formou-se na época da ditadura Vargas. E isso respinga em sua literatura como no Conto “O Espartilho” (a avó “nazista” e a neta problematicamente judia numa sociedade hipócrita/preconceituosa). Em 1944 teve seu 1º livro de contos publicado: “Praia Viva” e em 1949, o 2º: “O cacto vermelho”. Alguns destes contos, retrabalhados, estão em “A estrutura da bolha de sabão”, inicialmente publicado em 1978. Ganhou prêmios no Brasil e na França. Em 58 publica “Histórias do Desencontro” (Contos). Em 1954 o 1º romance: “Ciranda de Pedra” e em 73 “As meninas” romance com o qual busca detectar o perfil do jovem daquela época. Um dos contos de “a estrutura...”, “Missa do Galo – variações sobre o mesmo tema”,  recontando Machado de Assis, é reescritura para um livro organizado pelo pernambucano Osman Lins: a conversa entre Conceição e seu hóspede, uma intertextualidade com o toque de Lygia. Quando a perguntaram sobre a função do escritor ela respondeu: “Escrever por aqueles que esperam ouvir de nossa boca a palavra que gostariam de dizer”.

Na literatura dela memória e invenção se confundem, se misturam. Ela se protege com a “idéia”. Boa parte dos seus contos está em 1ª pessoa e cheiram a autobiografia, como se lêssemos sobre ela. Ela adora mergulhar nos detalhes e incógnitas/enigmas/charadas, como no 1º conto da “bolha” (“a medalha”, que a protagonista amarra no gato).
Com óbvias influencias de Clarice Lispector e Hilda Hilst, ela traz o cósmico e o erótico equilibrado em textos como “a confissão de Leontina” e “a fuga”. Pululam as reflexões sobre fidelidade, Deus, a morte e o sonho.
Ela poderia então estar enquadrada na Geração 45. A pesquisa lingüística e as inquietações temáticas.

Aborda sobretudo o universo feminino e suas diversas facetas: percepções e desejos próprios da mulher. Não que sua visão seja unilateral.
Educação castradora (“o espartilho”), mau ambiente familiar ou relacionamento insatisfatório (“a Estrutura da bolha de sabão”) produzem o ser humano mutilado e infeliz, pessoas/personagens conflituosas, desencontradas de si ou do mundo, como Leontina, nem as crianças são poupadas: Luzia, irmã de Leontina sofre lesão cerebral e morre afogada por causa do primo Pedro, que também arruína a vida da protagonista deste conto. São personagens que buscam respostas que dêem sentido à vida. Como interagir da melhor forma com o mundo externo (como Clarice Lispector buscava), buscando interagir, querendo reconhecimento nos outros, presas ao passado dentro do presente, prisioneiras de um tempo esgarçado. Lygia prende o leitor guardando as chaves que esclarecem os dramas dos personagens. Entrega-as em uma espécie de ritual, onde ontem e hoje se confundem.
Seu enfoque é urbano e intimista, psicológica. Cheiros, lugares, objetos, roupas, sensações importam apenas como acesso ao mundo interior.
Trafega bem na burguesia, mas vai até os menos favorecidos como Leontina.
É um panorama da nossa sociedade: desestruturação do grupo familiar, dissolução dos costumes, conflito de pais e filhos, luta pela maturidade, desajuste social, miséria, desamparo, prostituição, resumindo: o relacionamento pesonagem/mundo. São romances de personagens e tem “ação” lenta. Sugerem mais que descrevem. Constantemente lança mão do discurso indireto livre. O que os personagens dizem não corresponde a uma forma convencional de ver o mundo e sim com seu estado psicológico, isso sem usar palavras difíceis nem frases que soem artificiais,  pelo contrário: um texto que busca a oralidade. Quando é narrador em 1ª pessoa ele se interrompe e faz perguntas, sugerem ao leitor sem gestos e expressões, amalgamando forme e conteúdo.

II

Os contos do livro “A estrutura da bolha de sabão:
A Medalha: Em 3ª pessoa o narrador. Trama insólita em torno de uma jovem na época da revolução sexual, anos 60/70 racismo: há um negro com quem a protagonista deve se casar ele é tolo, e um branco, com quem ela acabou de fazer sexo. Por trás da banalidade Lygia sonda a alma humana.
Adriana, eis o nome da moça, chega da farra de manhã. A mãe, burguesa, chama de “Cadela”, tem cabelos oxigenados de louro diz que é branca, mas tem “sangue podre” e assunta a mãe dizendo que os netos vão nascer morenos.
A mãe diz que a filha puxou ao pai: cara de anão, pescoço curto, jeito mole, balofo. Adriana não está nem aí, vai se casar com o que for conveniente e levar a vida que quiser. A mãe ainda tenta ser tradicional e dá à filha uma medalha que estava na família há três gerações. Adriana pega. Vai para o quarto. Amarra a medalha no pescoço de um gato e o empurra porta a dentro do quanto da mãe. São apenas duas personagens, os outros são citados.

No 2º conto, “A Testemunha”, dois amigos passeiam pela cidade em um dia de inverno. Rolf e o “esquecido” do Miguel (na casa dos 50 anos) que quer a todo custo fazer o outro lembrar do que aconteceu: “preciso saber até que ponto eu cheguei”. Ao que Rolf responde: “Somos todos normalmente loucos”. Este conto também só tem 2 personagens e um guarda no final. Eles parecem duas metades de um só homem em busca de si (ou querendo se esquecer?). Há aqui a sombra da mãe.
Vão por uma rua escura, “quase deserta, no fim da rua, a ponte, curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia densa”. Rolf é a ponte que liga Miguel ao ontem, ele não se lembra bem do que aconteceu. Miguel perdeu seu cão, o Rex. Miguel pede o último cigarro e subitamente joga o amigo da ponte: “as águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado”, se engasgando” (Rolf não sabia nadar). Miguel amassa o pacote do cigarro e foge no rio aparece um policial e reclama: “é proibido atirar coisas no rio (...) é a lei”. Miguel se desculpa e some no nevoeiro. Livrou-se de parte do seu passado. De si mesmo?

No 3º conto “O Espartilho” parece que toda a estrutura familiar é posta em xeque. Narrativa em 1ª pessoa (Ana Luíza, órfã de um clã conservador, sua mãe era judia, o que sua avó, mãe do seu pai, faz questão de mostrar como herança genética maldita). Tricô, bíblia, álbum, chaves, cheiro de altar, seda, tesourinha, rendas, eis o campo semântico para lances abruptos: a “tia Ofélia tomou veneno um mês depois do casamento”, a família que tinha “Olhos verde-água. Ana Luíza é reprimida e vê sensualidade na empregada negra que foge com um homem. Percebe a hipocrisia do jogo social burguês. Conhece Rodrigo e faz sexo com ele, tudo parece acontecer nos anos 40, “a guerra”, Hitler (a avó até que o admira); a avó dá um cheque e Rodrigo troca a neta por uma viagem. O total espartilho é metáfora da contenção emocional e do preconceito burguês. Ana fica só no final e a velha, com o espartilho, vai dormir: “os mortos já haviam sido devorados, agora era a vez dos retratos”. Aquela família estava cheia de “podres”: tio Maximiliano engravidou uma negra e foi mandado às pressas para a Europa. “Por que eu que começara tão bem, tinha que me transformar naquela mosca morta?” Se pergunta a protagonista. Na noite de natal os parentes se amavam e se detestavam com igual intensidade: “Sentei-me para comer sossegada minha fatia de peru”. “Você parece com sua avó”, disse Rodrigo: “Uma burguesinha empoeirada”.
“O que perdi em ilusão, ganhei em segurança”, reflete a narradora Ana Luíza.
“Quer que eu tire seu espartilho?, perguntei quando meus dedos tocaram a rigidez das barbatanas.
– Não minha filha. Eu me sentiria pior sem ele. Já estou bem, vá, querida. Vá dormir.
Antes de sair, abri a janela. A Via-Láctea palpitava de estrelas. Respirei o hálito da noite: logo iríamos amanhecer”.

O 4º conto, Fuga, parece o mais estranho: em 3ª pessoa o foco narrativo nos exibe Rafael, inseguro passou da idade e ainda mora com os pais e depende economicamente (e psicologicamente) deles. Sofre de uma doença que não ousa nem dizer o nome. Não, ele resfolega, não é asma. Está envolvido por uma misteriosa “névoa” que o absorve no meio de um parque, árvores que querem agarrá-lo. Ele quer dar de presente argolinhas de ouro para uma italiana virgem que tem joelhos que parecem “anjinhos barrocos”. Lygia usa o discurso indireto livre e joga com metáforas inusitadas, símbolos. O filho preso na teia familiar não consegue fugir: “Você sabe que não pode correr”. O conto finda com o rapaz retornando a casa e encontrando seu próprio caixão: ele estava lá dentro.

“A CONFISSÃO DE LEONTINA” é o quinto conto do livro “A Estrutura da Bolha de Sabão”: A narradora é uma mulher pobre e de pouco verniz cultural que reclama por não confiar em ninguém da cidade grande, nasceu na pequena Olhos D’Água e mal sabe ler e escrever, além de não ter ninguém por ela no mundo. Lembra do primo Pedro que ao derrubar a pequena Luzia, irmã da narradora, atingiu o cérebro da menina, criada desde ali como um vegetal.
A mãe de Luzia e dela, Leontina, era uma lavadeira que criara o filho da irmã, Pedro, os poucos centavos, a melhor comida, a escola, tudo só dava a ele, em quem  depositava falsas esperanças. Quando ela morreu, Leontina foi ser lavadeira. E também na formatura de Pedro, Luzia afogou-se. Pedro não a quisera no colégio, mal podia aturar a miséria da nossa narradora. Forma-se, pega o que pode e vai para São Paulo estudar medicina e fazer o possível para vencer e esquecer Leontina e todo aquele horrível passado de pobre. Obrigou-a a vender tudo que tinha e entregou-a aos cuidados de um padre que a empregou na casa de uma perversa mulher mãe de um filho que quis abusar de Leontina.
Nossa heroína vai à luta na cidade grande fugindo do interior. Dançarina de aluguel, prostituta e... assassina?
Com tantos elementos assim Lygia entrega ao leitor sua visão confortável de todo o nosso desconforto. É como perguntaria Machado de Assis sobre Dona Plácida, de Brás Cubas: para que existir deste modo?
A narradora dirige-se a alguém que mal conseguimos distinguir. Há um tom de tragicômico, desespero. A morte da mãe e da cachorra Titã no mesmo parágrafo revela que o mundo é dos fortes: Pedro venceu, mesmo quando nega conhecer Leo como sua prima. O primeiro “amor” da vida dela, já dançarina de aluguel: um marinheiro; seu primeiro vestido: aquele que vestiria na mãe para enterrá-la e que lhe foi deixado como herança.
“Minha mãe vivia lavando roupa na beira da lagoa (...) nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fica pensando onde ia buscar forças para trabalhar tanto não parava (...) Pedro precisava estudar para ser médico”. Prometera a irmã e todos passavam necessidades em nome dele. E ele as renega.
Não podemos aqui falar em felicidade. Leontina é uma Macabéia (de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector – 1977) que foi à luta e acabou na prisão, Lygia vai tecendo a trama desta pequena novela. Onde está a narradora? O que aconteceu com ela para estar assim? Com quem fala?
A ruptura com o tempo cronológico faz o leitor viajar na mente tortuosa e ao mesmo tempo simplista da personagem. “Essa daí não é a tua irmã? Um menino perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo. Fiquei sozinha no palco com um sentimento muito grande”, diz diante da 1ª negativa de Pedro.
“Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer respondia minha mãe sempre que eu perguntava”. A narrativa é fragmentada e trabalha o discurso indireto livre imprimindo ao texto um ritmo ágil: “Meu pai feito um Deus desaparecendo atrás da montanha com sua capa de nuvem num carro de ouro”. É um pai mítico e a menina o cria com elementos do seu universo particular: As nuvens montanhas, quando se deitava na beira da lagoa e escolhia a cara que o pai devia ter.
“Me vi completamente sozinha no mundo e isso foi muito duro pra mim (...) só tinha doze anos” Pedro fora trabalhar num banco da capital.
A velha Gertrude (e o filho João Carlos), sua primeira “patroa”, a tratara como um animal: “Nem pra ir ao banheiro eu tinha sossego que ela ficava rodando a porta e resmungando que eu devia estar cagando prego pra demorar tanto assim”. Pontuação e estilo de Lygia, um caso à parte.
Na fuga de trem ela vê uma “estrelinha verde brilhando lá longe” que a acalma e também nos transmite o grau poético da cena.
Rogério era o nome do marinheiro com quem ela “se perdeu”. Um quartinho de hotel/ pensão barato. Ele a chamara de Joana e não de Leontina: “Seu cabelo encacheado é igual ao de São João do carneirinho”. 2ª referência à bíblia, Pedro a 1ª: “Conte só com você que todo mundo já está até as orelhas de tanto problema e não quer nem ouvir falar do problema do outro”. Sentencia Rogério ao prometer levá-la para conhecer o mar, comer uma peixada em Santos: “Aprendi a tomar banho com Rogério. Você tem que tomar banho todo dia e lavar as partes (...) em casa a gente só tomava banho de bacia em dia de festa, mas outras vezes só lavava o pé. E na casa da patroa ela não gostava que eu me lavasse pra não gastar água quente”.
Às vezes o verde da tal estrelinha ou do sabonete do marinheiro esbarram com nossa frieza de leitor: “Não sei por que pensei no meu pai quando Rogério passou o braço por baixo da minha cabeça e me chamou, Vem Joana”. Depois da vírgula o “v” maiúsculo do “vem”. Uma felicidade clandestina e efêmera de fazer amor e fumar. Dava tristeza “fazer amor” com Rogério: ia “com cara de boi indo pro matadouro”. Ele dizia que minhas sobrancelhas eram como as asas das gaivotas.”
Ele se foi. Ela decai e numa pensão, cheia de artistas de circo, conhece Rubi, quem levou Leontina para lá foi o Milani, colega de Rogério. Personagem secundário mas Lygia os tece com carinho de mãe.
Leontina trabalha em inferninhos rodeada da escória típica destes locais: “Nunca dizia não pro freguês”.
A 2ª vez que encontra Pedro e ele fingiu não conhecê-la foi na enfermaria da santa casa. Aqui a narradora faz a inevitável comparação com Jesus. Leontina é tentada.
Ao apreciar um vestido marrom com Rosa de vidrilho vermelho no ombro ela é assediada por um velho rico dono de jornais “e mais isso e mais aquilo”: “Amaldiçoada para que enveredei por aquela rua e parei naquela vitrina. O vestido estava numa boneca e tinha o meu corpo”.
O duplo está estabelecido: o jogo completamente armado. O ritual do sacrifício se encaminha para um desfecho dramático: ela deixa na loja o vestido branco. O velho a proíbe de voltar. Ele lhe comprara o vestido que ela queria. A estrada, o repúdio, o carrão, a estrada: “Era rico e feio com aquele jeito de peru do bico mole molhado de cuspe (...) boca inchada e roxa como se tivesse levado um murro”.
“O bofetão veio nessa hora e foi tão forte que me fez cair no banco (...) o punho do velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba (...) achei uma coisa pura e fria no chão. Era o ferro...”.
Depois de tudo ela volta à loja para buscar o vestido branco a polícia está lá. A vendedora dera a reconhecer.

Em “Missa do Galo”, Lygia disseca a intertextualidade com o conto de Machado de Assis, no qual nos é apresentada uma mulher da segunda metade do século XIX: Conceição, casada, vítima de um marido adúltero, que a deixa praticamente numa noite de Natal. Esta senhora mantém um insinuante diálogo com um hóspede adolescente, o Nogueira (que é leitor, tal qual a senhora, de romances românticos, como Os três mosqueteiros, ou os do senhor Joaquim Manuel de Macedo). Ele faz hora esperando um amigo para juntos irem à tal missa do galo.
Ela “deixou travesseiro e quarto numa “disponibilidade sem espartilho, livre o corpo” e Lygia cria um narrador que vai invadindo o espaço do não dito, nas entrelinhas, de Machado, coloca até na alcova do adúltero com uma certa “mulata”.
A relação do jovem Nogueira com Conceição também é, digamos assim, intensificada nesta recriação. Lygia apimenta-a, vasculha-a como um psicanalista provocador.
O insólito é observado: “Durante o dia Conceição parece tão objetiva, eficiente. E agora esta inconsistência”. Seu narrador observa pelas vidraças da casa, ele está na rua da “noite antiguíssima”. Sente desejo de entrar e vive um tempo anacrônico como a interferência de uma lembrança de algo escrito em um caminhão (!): “Matérias perecíveis”. Mas “aquela casa”, o narrador contrapõe, e “imperecível”, no ”bojo de tempo”. A obra de Machado.
Conceição: “Bruxa” ou “belíssima”? Quer gritar, é hora de calar: “vocês sabem que dentro de alguns minutos será nunca mais?”, pergunta-nos. O menino de 17 anos estará na igreja e ela no quarto.
Parece Clarice Lispector, amiga de Lygia: “Faça alguma coisa”, pede o narrador insistentemente com o coração pesado diante desses dois indefesos no tempo.
 Metalinguagem e intertextualidade aqui se confundem quando o amigo do rapaz chega, ele vai para a missa, Conceição volta para o quarto e o narrador conclui: “Quando volta ao quarto, pisa na tábua do corredor, aquela que range. Rangeu, paciência! Agora está desinteressada da mãe e da tábua.
No canapé, a almofadinha das guirlandas um pouco amassada.
Apago o lampião.”

No conto “Gaby”, o penúltimo, somos apresentados ao protagonista de apelido Andrógino, na verdade o mesmo do arcanjo, Gabriel. Ele está no bar com o garçom, Fredi, chegam entrar clientes. Espelhos, mármore (balcão), ventiladores, calor. É pintor de “natureza morta”. Na infância a mãe o protegia. Tem uma amante velha pela qual do dinheiro dela sente repulsa, mas precisa do dinheiro dele. Ama uma jovem que não o suporta mais (Mariana). Vive com tédio a situação limite em que chegou sua vida. É um indefinido a contemplar a vida. O pai doente está se acabando numa pensão pobre, sozinho. O garçom também é um insatisfeito.
Mariana tinha um primo deputado da oposição: “subversivo”. Este conto fica datado nos anos 60/70. “Gabriel por que você não acaba o que começa?”. O pai dizia que o apelido “Gaby” era afeminado, nome de esmalte, creme, de mulher”.
Há uma “mosca” ao redor de Gaby durante quase todo o conto. A lembrança da velha com bochechas murchas, pintadas, com a peruca meio ridícula. A lembrança de ter denunciado ao pai que a mãe, que tanto o protegia, tinha um amante com um carro vermelho. Gaby fora reprovado duas vezes na escola. Na segunda parte do conto, Gaby  recebe a carta de despedida de Mariana. Chora. Amadureceria um dia? Querer fugir dos beijos da velha, da dentadura dela. É um gigolô com problemas psicológicos, meio cafajeste inocente (?), traumatizado. A mãe desaparecera, “Como milhares desaparecem”. Está pintando uma maçã. Tudo é o vazio que se abate sobre tanta gente. Pensa de novo em matar a velha, que, ao perceber que ele estava um pouco febril, prepara-lhe um chá. Ele morde a maçã.

No conto “A estrutura da bolha de sabão” Lygia. Cria um narrador em primeira pessoa: uma mulher que encontra o ex-marido com a atual esposa num bar. Sente ciúme e testa a incomunicabilidade entre os seres, a aprendizagem dos sentimentos: uma delicada teia de relacionamentos. Ele é físico e estuda a estrutura da bolha de sabão (sólida/líquida/gasosa): híbrida. Ele, ela percebe aos poucos, está com uma doença terminal. Ela pensa na própria infância, revê sua vida em labirinto: “No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo”. Lygia é dona de uma sintaxe especial, particular. Pratica o intimismo com maestria. Sua poesia, narrativa, é uma espécie de ritual sem sangue, sem grito: “Amor de transparência e lembranças condenado à ruptura”.
Em relação à outra mulher, a narradora mostra-se superior: “Como ele podia amar uma mulher assim?”. São frases insólitas como: “Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo”. Ela tem ciúmes, e, ao saber da doença do ex-marido vai à casa dele. É recebida pela fulana que agora ocupa o “seu” lugar. Quando a “outra” sai ela se aproxima do homem que já foi seu. Ela não tem nome no conto. Ela flui. Ele usa um roupão verde, mãos “branquíssimas”, está quase lívido. Ela começa a sentir uma falta e não sabia do que era. Descobre: “ô! Deus – agora eu sabia que ele ia morrer”.
Este final vago e brusco nos conduz ao amor interrompido, petrificado em narrativa de prosa lírica, urbana, metafísica? Tecida com mãos de carinho e confiança, em ternura pressentida por Lygia dentro de nós, seus enigmáticos leitores.