Todo artista convive com a morte, ela, ao lado do amor, são os dois grandes temas que nos absorvem, os dois maiores enigmas e tudo gira em torno desse dois polos.
Viva o povo brasileiro, Sargento Getúlio, O sorriso do lagarto, A casa dos Budas ditosos e outras obras de João estão aí, vou revê-las em breve.
Até logo, guerreiro, seu humor e força estão conosco, bem sei; o que escreveste, como diria Clarice Lispector, continua...
Segue meu estudo sobre um livro dele que admiro:
João Ubaldo Ribeiro na Casa dos Budas Ditosos
por Moisés Neto.
Estudo do professor Moisés de Melo Neto sobre uma obra de João Ubaldo Ribeiro
O baiano João Ubaldo Ribeiro nasceu em Itaparica no dia 23 de janeiro de 1941.Passou a infância em Sergipe e em Salvador formou-se em Direito.Na Califórnia graduou-se em Administração pública.É jornalista e na literatura estreou com o livro de contos “Reunião”,em 1961,junto com outros autores baianos.Seu primeiro romance foi “Setembro não tem sentido”,em1968.Vieram:”Sargento Getúlio”(71), “Vencecavalo e o Outro Povo”(contos-74) , “Vila Real”(romance-79), “Livro de Histórias” (81),”viva o povo brasileiro” (84),”O Sorriso do Lagarto” (94), “Política” (ensaios-83),”Vida e Paixão de Padonar,o Cruel” (narrativa juvenil-83). Foi considerado autor de um tipo de Regionalismo inaugurado por Guimarães Rosa.Mas,difere dos regionalistas de 30 ,como José Lins do Rego ou Rachel de Queiroz,por mostrar um tom menos exótico,como podemos comprovar no romance“Sargento Getúlio”:
“A ênfase plástica no cenário natural e no folclore cede lugar a uma visão quase fotográfica da paisagem nordestina. Daí resulta a sondagem no interior das protagonistas,lançando mão da narrativa em primeira pessoa, para melhor se tornar verossímil. O sargento é um matuto que vai refletindo em torno da (sua) condição humana à medida que conduz um preso para Aracaju,como se ele próprio se encaminhasse seu destino final ou para o desvendamento da sua real identidade. Nenhuma transcendência mítica emoldura o episódio banal que serve de núcleo ao romance(...) Um regionalismo engajado,crítico.Narrativa sincopada,ágil.Linguagem que parece brotar diretamente da fala do protagonista,sem intervenção do narrador,não esconde sua oralidade,nem se esmera na inovação de palavras ou de nexos sintáticos”,afirmou o mestre Massaud Moisés. O pernambucano Fernando Monteiro,autor do romance “A Múmia do Rosto Dourado (editora Globo) disse (Jornal do Commercio 10.06.01) que os autores inquietos e rebeldes merecem ser lidos.Mas,também disse que a literatura não é uma mina para produzir Ubaldos folclóricos e Bahias temáticas de Disney e que “o Brasil precisa perder esta mania de se considerar curioso,folclórico e colorido com o intuito de ser aceito pelos turistas da literatura” e ao mesmo tempo seduzir o leitor conciliando qualidade e vendagem “até em redutos nordestinos de bom gosto” que apreciem um “produto refinado da cultura universal como Chico Science”. É uma declaração polêmica e que nos faz refletir sobre “A Casa dos Budas Ditosos” (Editora Objetiva,RJ.1999.Coleção Plenos Pecados: Luxúria)romance erótico lançado por Ubaldo. Não se trata absolutamente do que Monteiro chamou“curioso,folclórico,colorido,Disney” ,mas toca outra chaga nacional: sexo. Vamos aos Budas: “Tudo no mundo é secreto” eis a epígrafe e o autor na introdução vai logo dizendo que os originais são de autora baiana de 68 anos, que mora no Rio de Janeiro, e foi transposto a partir de “fitas gravadas”. O título faz referência a um objeto: dois budazinhos que a narradora comprou em Banguecoque- “um macho e um fêmea” fazendo sexo ,essas coisas milenares de chinês.Havia um templo com imagens iguais a essas,chamado a Casa dos Budas Ditosos (da sorte) ,aonde os noivos iam para passar as mãos nos órgãos genitais delas.Era uma espécie de aprendizado ou familiarização,uma introdução ao casamento “bom de cama”. Em Roma antiga acariciava-se a glande de Príapo(que foi substituído por São Gonçalo,no nosso politeísmo católico). Desde o início a narradora faz suspense dizendo que tem “essa doença que vai lhe matar”. Mas, afirma que “a perspectiva de ser enforcado amanhã de manhã opera maravilhas para a concentração”.O que a impulsiona neste depoimento“sociohistoricoliteropornô” (uma palavra só) para esse povo que nunca leu Chardelos de Laclos. Memórias de uma libertina, poderia ser um subtítulo adequado a este romance. Ela é neta de “um nazista de nascença como todo alemão”. Ela transa de todas maneiras com machos e fêmeas.Seus “casos” formam o conteúdo do livro. A narradora também vai logo avisando que não gosta “de velho metido a alegre”. Sexo oral,anal,manual,incestuoso,grupal e de várias outras maneiras vão quebrando um por um,ou muitos de uma vez, os tabus puritanos que tanto afligem o mundo ocidental. “Só fazíamos ,depois ele ia embora”, é por exemplo o que ela declara sobre um dos seus amantes. A época da juventude(anos 50/60) dela foi de repressão, por isso pensou até em fazer operação que recuperasse sua “condição virginal”: “Tudo começou com um “meter de língua nas orelhas(...)apalpar,pinicar”, resume. Algumas páginas são pretas com as letras em branco.Outras trazem ilustrações eróticas.Mas,o texto supera tudo isso: “sou contra essa teoria segundo a qual, os brasileiros têm belas bundas, e alimentam uma fixação patológica por bundas somente por causa dos africanos”. Querendo justificar sua prática ela diz que Noé,da Bíblia, também teria cometido incesto. Ela quer ser “livre!Moderna”.É estéril e repete o que Nelson Rodrigues disse: `Se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo,ninguém se dava com ninguém' . Ela ensina como ser penetrada por trás, sem dor, e diz que odeia essas pessoas que se acham “povo”. “Ninguém neste mundo presta,muito menos eu (...) é bom que haja mistérios em nossas biografias” .Ela queria que a dela fosse como ela mesma era: “um maremoto de tesão latejante (...) como a Luxúria e seu chamado à devassidão,à dissipação e à entrega de todos os gozos de todos os matizes até chegar à morte lasciva (...) em um espírito imisericordioso e invencível (...) um sadismo light”. Sobre o tio casado ela declara: “Cansei de ficar nua com ele correndo atrás de mim no quarto e eu fazendo pose de sílfide e falando parnasianamente, arcadicamente, romanticamente (...) sempre tive boas coxas e sei usá-las como órgão sexual”. Sobre a escrita oficial, ela também não quer purezas: “Como se se pudesse pedir a um chinês para ele falar como se escreve(...) certas palavras nunca adquiriram passaporte para a escrita e, quando conseguem são condenadas à clandestinidade como fazem com gente (...) eu quero escrever um livro louco- libertar todas as palavras”. Como disse o saudoso ator italiano Vittorio Gassman certa vez, a vida deveria ser duas; uma para ensaiar outra para viver a sério. Parece que nossa protagonista quer consertar esta falha divina .Em tudo ela quer exagero. Pênis para ela tem de ser grande.Em outro momento fala que nenhuma mulher sadia tem nojo de esperma e que o incesto é natural e que no início,quando não sabia que era estéril,já não queria ter filhos por não ter saco para crianças e ainda mais sem saber nem quem era o pai,pois fazia sexo demais. Reafirma a teoria de que baiano só protege baiano. A também exercita o expediente metalinguístico da “conversa com o leitor”: “Largue este texto e não perca seu tempo (...) quero que quem me ler fique com vontade de fazer sacanagem...”. A doença dela,vai logo dizendo,não é câncer,doença do reprimido,da libido encarcerada,da falsidade extrema em relação à própria natureza: “As células traídas e frustradas então se rebelam,mandam emissários subversivos para todas as partes do corpo e geralmente vencem e destroem o organismo”. São frases bombásticas: a vida é uma mentira,nem Cristo soube explicar o que era a verdade diante do Império Romano,ou, “pode-se estar apaixonado por duas ou mais pessoas ao mesmo tempo” e “Eu sou a voz de Deus (...) Satanás odeia a Luxúria,não é invenção dele,assim como a bondade.Ele só as usa para seus fins maléficos (...) Não quero reencarnar,acho essa obrigação um saco!”. No final ela não se redime,ao contrário acelera o processo de catarse através de uma narrativa sacolejada : "Minha doença é um aneurisma no meio do cérebro,inoperável (...) já deixei instruções para doarem o que poder ser doado e tocarem fogo no resto (...) dormindo ou acordada,minha cabeça pode explodir em sangue”. Não se considera uma pecadora católica: “Quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer(...)Deus me terá em Sua Glória e sei que Ele agora está rindo”. É uma narrativa de fôlego, convulsiva e sem diálogos. João Ubaldo atreveu-se a mergulhar na Luxúria e saiu de lá com um estranho sorriso nos lábios. E os seus leitores? |
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