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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

PARA LER DEPOIS DO SOL DAS ONZE, AQUI NA VARANDA DA ALMA, NESTE FERIADO CHEIO DE POSSIBILIDADES ENCANTADORAS E INTENSAS


DEPOIS DE SOL E MAR: É BOA LEITURA APRECIAR...(MOISESMONTEIRODEMELONETO)



Cesário Verde

O livro de Cesário Verde (1901)

O sentimento de um ocidental (4 partes)

I

AVE-MARIAS


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!


II

Noite Fechada

    Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de <>!

    E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

    A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

    Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

    Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

    Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

    E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

    Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

    Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

    E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

    E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III

             Ao gás

    E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.

    Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

    As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

    Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

    E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

    Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

    Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

    E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

    Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

    Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

    <>
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!



IV

Horas mortas

    O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

    Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

    E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

    Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

    Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

    Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

    Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

    E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

    Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

    E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

    E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

                                                  Cesário Verde

























Odes Modernas
Antero de Quental

Odes modernas, poesias de romantismo social, é o primeiro grande escrito público que rompe com o academismo e marca um período literário novo. É uma obra caracterizada pela ação social e pela irreverência, sendo a mais expressiva de toda a obra de Antero de Quental. É da fase realista propriamente dita da poesia anteriana, onde Antero adota um tom mais revolucionário. É a obra onde se manifesta a visão crítica do ultra-romantismo e de toda a sede de mudança do autor, causando, por conseqüência, uma grande agitação nas melancólicas e pouco inovadoras "hostes" ultra-românticas. 

Ao escrever as Odes Modernas, Antero de Quental pôs de parte os subjetivismos românticos e começou a olhar e palpar as realidades sociais que o cercavam. A obra oferece-nos uma interpretação evolutiva da história, faz considerações metafísicas acerca do homem e do Mundo, não ocultando uma aspiração de transformações sociais. É um conjunto de poesias que são precedidas de uma nota em prosa na qual escreveria: "A poesia moderna é a voz da revolução, é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século".

Na obra nota-se o engajamento de vertente político-filosófica influenciada pelos pensamentos de Platão e Proudhon, além da reflexão sobre o papel da poesia. Nela se encontra a visão do homem da modernidade, dilacerado entre fé e progresso, entre religião e socialismo, lançando uma perspectiva filosófica sobre a sociedade do Portugal do século XIX. Observe-se que o próprio título da obra parece indiciar a tônica da mesma: enquanto odes remete à orientação clássica, o adjetivo "modernas" aponta a perspectiva da modernização, uma das preocupações da Geração de 70, que tentara, com as Conferências do Cassino, reformar a mentalidade e a sociedade portuguesas.

A primeira edição das Odes Modernas, 1865 (prontas desde os anos de Coimbra de 1863), traz uma nota final Sobre a Missão Revolucionária da Poesia. Logo no primeiro parágrafo, a poesia é caracterizada como sendo "a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade", donde se infere que "a poesia moderna é a voz da Revolução - porque revolução é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século". Odes Modernas,  junto com Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras, de Teófilo Braga, é responsável por provocar a polêmica 
Questão Coimbrã.

Poema escolhido: Panteismo
I

Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida: e, deste modo,


Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Cm homem igualmente e astro e rosa!


A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da devesa,
Por certo entrevê Deus – seu olho baço


Foi feito para ver brilho e beleza...
E se ruge, é que a agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!


Sim, no rugido há vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente...


Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingénuo cantor que nos encanta...


Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto,
Quer se equilibre em paz no mudo hino


Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo,


Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade...


É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana...


É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!


Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!


Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!


Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!


Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo


Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o voo inacessível!


Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita
Onda, que vai e vem e nunca pára!


Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!


Essência tenebrosa e pura... casta
C todavia ardente... eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...
Choras na voz do mar... cantas ao vento...


II

Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através dos soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.


Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando...


Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o livra cm extensões tamanhas!


Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,


Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!


Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!


Quando as formas o orbe tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;


Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;


Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse...
Já dominava o espaço, omnipotente!


Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o germe misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.


III

Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,


O pó cresce em mim... engrossa... alteia...
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se ideia!


Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está... sendo tamanho!


Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!


Surgir! surgir! – é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!


Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito...





Camilo Pessanha


Floriram por engano as rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

                           Camilo Pessanha



Canção da partida

Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
        Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
        Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro um carta...
--- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves --- a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para o molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.


Crepuscular

Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, d'ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.

As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço,
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se espasmos, agonias d'ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
--- Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas d'anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
--- É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.

                         Camilo Pessanha



Estátua

Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, --- frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado...

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.

                       Camilo Pessanha

José Saramago & Fernando Pessoa: o Modernismo Português em prosa e verso

Saramago
 Nasceu em Portugal, em 1922. Foi laureado com o Prêmio Nobel da Literatura 1998.Ele gosta de escrever por parábolas e seus textos são um misto de amor e ironia. Atingiu a celebridade aos 60 anos. Vive hoje (2007) nas ilhas Canárias.
"Manual de Pintura e Caligrafia é um romance publicado em 1977. O livro parece uma autobiografia mas, na sua intensidade, encerra também o tema do amor, assuntos de natureza ética, impressões de viagens e reflexões sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. A libertação alcançada com a queda do regime salazarista transforma-se numa imagem final que nos fala de abertura."Memorial do Convento", de 1982, é romance de texto multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo, uma perspectiva histórica, social e individual, permeada de riqueza de imaginação ."O Ano da Morte de Ricardo Reis", publicado em 1984: A ação passa-se em Lisboa no ano de 1936, em plena ditadura, mas possui um ambiente de irrealidade superiormente evocado. Este ambiente de irrealidade é acentuado pelas repetidas visitas do falecido poeta Fernando Pessoa a casa da personagem principal (que é extraída da produção pessoana) e das suas conversas sobre a existência do homem. Juntos deixam o Mundo após o seu último encontro. É Fernando Pessoa encontrando-se com um dos seus heterônimos."A Jangada de Pedra", publicada em 1986, o escritor recorre a um estratagema típico. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vagar no Atlântico, inicialmente em direção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-lhe muitas oportunidades para, no seu estilo muito pessoal (ele tem uma noção muito particular sobre parágrafos, vírgulas, pontos e como escrever diálogos) e gosta de fazer comentários sobre as coisas da vida, ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os atores dos jogos de poder na alta política. O texto de Saramago está ao serviço da literatura  engajada."História do Cerco de Lisboa", de 1989, um romance sobre um romance. A história nasce da obstinação de um revisor ao acrescentar um não, um estratagema que dá ao acontecimento histórico um percurso diferente e, ao mesmo tempo, oferece ao autor um campo livre à sua grande imaginação e alegria narrativa, sem o impedir de ir ao fundo das questões."O Evangelho segundo Jesus Cristo", de 1991, romance sobre a vida de Jesus encerra, na sua franqueza, reflexões merecedoras de atenção sobre grandes questões. Deus e o Diabo negociam sobre o Mal. Jesus contesta o seu papel e desafia Deus.Destaque para o uso personalíssimo da sintaxe em Saramago! "Ensaio sobre a Cegueira": publicado em 1995 e leva-nos numa horrenda viagem através das percepções do ser humano através das camadas espirituais da civilização. A riqueza efabulatória, excentricidades e agudeza de espírito encontram a sua expressão máxima, de uma forma absurda. "Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.". Começa com um homem ficando cego e depois todos da cidade ficam cegos. Poderia ser uma metáfora da próprias condição humana.Os personagens não tem nomes."Todos os Nomes", uma história sobre um pequeno funcionário público da Conservatória dos Registros Centrais de dimensões quase metafísicas. Ele fica obcecado por um dos nomes e segue a sua pista até ao seu trágico final. As Intermitências da Morte:  tem três partes. A primeira é uma visão dos fatos a partir do dia 1º de janeiro, quando ninguém mais morreu naquele lugar. Na ausência da morte surgem conflitos, discussões e soluções para o problema dos que não morrem nem podem voltar a viver, os moribundos.No sétimo capítulo há uma carta mandada pela morte a uma emissora de televisão, para que seja levada a público a notícia de seu retorno. “Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela.” O conto da ilha desconhecida: Um livro com 62 páginas, das quais 16 são aquarelas de Arthur Luiz Piza. O texto é apresentado em partes, não respeitando paragrafação e pontuação, obriga o leitor a se manter preso às mãos do narrador e seguir com ele navegando para dentro de si mesmo, questionando as suas próprias vergonhas. Saramago conta a história de um homem que bate à porta do rei para pedir-lhe um barco a fim de navegar em busca da ilha desconhecida. “...mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver”. (p.40)“Se não sais de ti, não chegas a saber quem és”.


  FERNANDO PESSOA E SEUS OUTROS EUS
Fresta (Fernando Pessoa): Em meus momentos escuros/ Em que em mim não há ninguém,/E tudo é névoas e muros/ Quanto a vida dá ou tem,/ Se, um instante, erguendo a fronte/ De onde em mim sou aterrado,/ Vejo o longínquo horizonte/ Cheio de sol posto ou nado
// Revivo, existo, conheço,/ E, ainda que seja ilusão/ O exterior em que me esqueço,/ Nada mais quero nem peço./ Entrego-lhe o coração.

Não Sei Quantas Almas Tenho (Fernando Pessoa): Não sei quantas almas tenho./ Cada momento mudei./ Continuamente me estranho./ Nunca me vi nem acabei./ De tanto ser, só tenho alma./ Quem tem alma não a tem calma./ Torno-me eles e não eu./ Cada meu sonho ou desejo/ É do que nasce e não meu./ Sou minha própria paisagem;/Assisto à minha passagem,/ Diverso, móbil e só,/ Não sei sentir-me onde estou.

 Mensagem, Mar Portuguez:  Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! /Por te cruzarmos, quantas mães choraram, /Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!// Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.
TABACARIA:  Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo./ Janelas do meu quarto,/ Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),/ Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, /Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,/ Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,/ Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
(...) Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.



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