Nudez:
para além de Eros e de Tânatos
por Moisés Neto*[i]
Que
fazemos nós desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível
teatro?
A ficção
para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos...
Nelson Rodrigues
Herculano,
Patrício, Serginho, as tias, o libidinoso ladrão boliviano... todos estão de
volta. Escutamos a voz de Geni: Aqui quem
te fala é uma morta... e tudo recomeça; são eles que voltam, somos nós
mesmos a ouvir Nelson Rodrigues (cem anos sem solidão: o autor está vivo!) com
regência de Antunes Filho, que retorna ao texto por ele trabalhado em 1981.
Lares e lupanares acendem-se intensamente qual origami se desdobrando, qual
flor da obsessão desabrochando em plena noite paulistana.
Em
Nelson, é a partir da tragicidade e
do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação
intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada
para livrar os personagens do sentimento de culpa. O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um
material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca
essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto quanto cínica
e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o
registro aqui vai além dos clichês freudo-marxistas e os põe em xeque. O choque
de ricos / granfinos com pobres é também transgressão. Há que se estilhaçar
esse painel rodriguiano e reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de
cômico, em Nelson, afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição
realista. Para Antunes montar Nelson Rodrigues é algo similar a um desafio cósmico: desdobrar a totalidade
da existência, observar o todo desdobrado em si e sua relação com a
“realidade”. Ele talvez queira oferece-nos mais uma vez sua catalisação num espetáculo
onde cada parte, no contexto do todo, se coloca em superposição. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em
simultaneidade (tão presente na vida), em ritmo frenético. Fazer nossos
sentidos ficarem ligados em várias coisas, simultaneamente. Fazer o tempo
comprimir-se ao ponto de explodir.
No
barroquismo do texto o sentido dialético é levado ao extremo e a verdade
dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobram a disposição
de análises sociológicas ou psicológicas, o castigo pela nudez é também imagem
caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla
percepção e estabelecendo insólitas relações. “Quando com dificuldade não
conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou
num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo
os vazios”, sentencia Antunes Filho. Desde sua última versão para A Falecida, ele vem aprimorando seu método com vieses bem peculiares, como
sempre. Propondo cenas articuladas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos
plásticos e sonoros, tudo calcado, neste caso, no sugestivo texto rodriguiano,
incitando a percepção aguda, que não quer se alienar e que se mantém longe do
convencional, em linguagem própria e dinâmica onde o ator é um servidor do
poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. É bom não esquecer que Nelson é
também essa expressão brasileira, não através de filtros intelectuais ou
conceitos generalizantes, mas de um farto material humano que é oferecido para a criação do ator.
Moisés Neto e Antunes Filho
E você? Nunca pisou num rendez-vous? É um habitué? Conhece o método do nosso regisseur? Leu os registros anteriores? Sabe onde está se metendo? Tem conhecimento de causa? Acredita em anjo pornográfico? Antunes desenha, pinta, arquiteta meticulosamente: nem santa nem dominatrix, Geni é claro enigma do bordel à sala da família: noiva, esposa, morta rediviva, muito além de Eros e Tânatos. Da cornucópia verbal do autor estão intactos o sarcasmo e o humor nas montagens de Antunes. Nelson escrevia escutando ópera, seu método abarca tudo, suas dezessete peças ecoam tragédias para rir, são textos escandalosamente líricos e Antunes extrai de maneira primorosa o implacável senso crítico do autor na sua crítica ao cretino fundamental, aos imbecis que o arruinavam. Há dentro da mente oceânica de Nelson, um Pierrô de antigos carnavais cheio de fúria, frustração, insatisfação ao constatar sempre que todos nós somos cruéis e ferimos, que o brasileiro é um cafajeste em seu complexo de vira-lata, no seu empate pior do que a derrota. Os personagens de Toda Nudez... detonam frases como “o ser humano é louco” (o maquiavélico Patrício), “eu mesma não me entendo”, “vou me entregar a qualquer um, na primeira esquina”, “beije meus sapatos, como eu beijei os teus”, “não quero nada senão um prato de comida e um canto para dormir” (a suicida Geni), “pederasta, eu matava”, “o menino serviu de mulher [...] o guarda viu, mas não fez nada” (a tia solteirona), “o sujeito mais degradado tem a salvação dentro de si, lá dentro” (o médico). Em seu folhetinesco mundanismo vermelho-sangue dito reacionário Nelson explora os limites da virtude e do maniqueísmo em ritmo frenético, compulsivo, desconstruindo o senso comum. O câncer no seio que matou a falecida esposa de Herculano é o mesmo da praga rogada pela mãe de Geni à filha.
Para
salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao
seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito
malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom
teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos, afinal o homem só se salva se reconhecer sua
própria hediondez, não é? O teatro é também uma
espécie de expurgo, acerto de contas do ser humano com sua história, com todos
os homens, com a vida e Nelson o faz de modo cético, sombrio e até...
romântico. Sábato Magaldi
enquadrou Toda nudez... como uma
tragédia carioca, mas o que temos
aqui, com essa montagem do CPT, é a voz
de todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares.
Pausa.
Grito.
Rompe-se o limite entre lua de
mel e separação final dos amantes.
Como anda sua nudez? Você pensa que sabe de tudo? Você
não sabe de nada!
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