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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Antunes Filho: Toda Nudez será castigada!

Nudez: para além de Eros e de Tânatos
                      por Moisés Neto*[i]

Que fazemos nós desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro?
A ficção para ser purificadora tem que ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos...             
                                                   Nelson Rodrigues

Herculano, Patrício, Serginho, as tias, o libidinoso ladrão boliviano... todos estão de volta. Escutamos a voz de Geni: Aqui quem te fala é uma morta... e tudo recomeça; são eles que voltam, somos nós mesmos a ouvir Nelson Rodrigues (cem anos sem solidão: o autor está vivo!) com regência de Antunes Filho, que retorna ao texto por ele trabalhado em 1981. Lares e lupanares acendem-se intensamente qual origami se desdobrando, qual flor da obsessão desabrochando em plena noite paulistana.
Em Nelson, é a partir da tragicidade e do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real, simbólico e imaginário (ou o poético). A linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa. O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade, nele todos os humanos são iguais. Nelson busca essa raiz comum, dentre outras coisas e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão. Está atento ao perigo do homem se ligar ao papel (persona) e se esquecer de si. Mas o registro aqui vai além dos clichês freudo-marxistas e os põe em xeque. O choque de ricos / granfinos com pobres é também transgressão. Há que se estilhaçar esse painel rodriguiano e reorganizá-lo acentuando o que há de comédia, não de cômico, em Nelson, afastando-se do naturalismo, mas partindo da constituição realista. Para Antunes montar Nelson Rodrigues é algo similar a um desafio cósmico: desdobrar a totalidade da existência, observar o todo desdobrado em si e sua relação com a “realidade”. Ele talvez queira oferece-nos mais uma vez sua catalisação num espetáculo onde cada parte, no contexto do todo, se coloca em superposição. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em simultaneidade (tão presente na vida), em ritmo frenético. Fazer nossos sentidos ficarem ligados em várias coisas, simultaneamente. Fazer o tempo comprimir-se ao ponto de explodir.
No barroquismo do texto o sentido dialético é levado ao extremo e a verdade dramática, as formas estéticas, tempo, espaço e ação não se dobram a disposição de análises sociológicas ou psicológicas, o castigo pela nudez é também imagem caleidoscópica sempre aberta a um novo giro, novo desenho, oferecendo múltipla percepção e estabelecendo insólitas relações. “Quando com dificuldade não conseguimos entender ou ver claramente um acontecimento, seja em lugar público ou num espetáculo teatral, a nossa imaginação vem sempre nos socorrer preenchendo os vazios”, sentencia Antunes Filho. Desde sua última versão para A Falecida, ele vem aprimorando seu método com vieses bem peculiares, como sempre. Propondo cenas articuladas de tal modo, que gestos e olhares, efeitos plásticos e sonoros, tudo calcado, neste caso, no sugestivo texto rodriguiano, incitando a percepção aguda, que não quer se alienar e que se mantém longe do convencional, em linguagem própria e dinâmica onde o ator é um servidor do poeta, sendo ele mesmo um poeta, um criador. É bom não esquecer que Nelson é também essa expressão brasileira, não através de filtros intelectuais ou conceitos generalizantes, mas de um farto material humano que é oferecido para a criação do ator.





Moisés Neto e Antunes Filho




E você? Nunca pisou num rendez-vous? É um habitué? Conhece o método do nosso regisseur?  Leu os registros anteriores? Sabe onde está se metendo? Tem conhecimento de causa? Acredita em anjo pornográfico? Antunes desenha, pinta, arquiteta meticulosamente: nem santa nem dominatrix, Geni é claro enigma do bordel à sala da família: noiva, esposa, morta rediviva, muito além de Eros e Tânatos. Da cornucópia verbal do autor estão intactos o sarcasmo e o humor nas montagens de Antunes. Nelson escrevia escutando ópera, seu método abarca tudo, suas dezessete peças ecoam tragédias para rir, são textos escandalosamente líricos e Antunes extrai de maneira primorosa o implacável senso crítico do autor na sua crítica ao cretino fundamental, aos imbecis que o arruinavam. Há dentro da mente oceânica de Nelson, um Pierrô de antigos carnavais cheio de fúria, frustração, insatisfação ao constatar sempre que todos nós somos cruéis e ferimos, que o brasileiro é um cafajeste em seu complexo de vira-lata, no seu empate pior do que a derrota.  Os personagens de Toda Nudez... detonam frases como “o ser humano é louco” (o maquiavélico Patrício), “eu mesma não me entendo”, “vou me entregar a qualquer um, na primeira esquina”, “beije meus sapatos, como eu beijei os teus”, “não quero nada senão um prato de comida e um canto para dormir” (a suicida Geni), “pederasta, eu matava”, “o menino serviu de mulher [...] o guarda viu, mas não fez nada” (a tia solteirona), “o sujeito mais degradado tem a salvação dentro de si, lá dentro” (o médico). Em seu folhetinesco mundanismo vermelho-sangue dito reacionário Nelson explora os limites da virtude e do maniqueísmo em ritmo frenético, compulsivo, desconstruindo o senso comum. O câncer no seio que matou a falecida esposa de Herculano é o mesmo da praga rogada pela mãe de Geni à filha.
Para salvar a plateia, Rodrigues encheu o palco com seus “monstros”, quis forçar ao seu público um “pavoroso fluxo de consciência”. Suas frases curtas, o jeito malcriado de escrever, seu conhecimento das condições do gênero teatral. O bom teatro sacode o público, não teme o grotesco e questiona conceitos, afinal o homem só se salva se reconhecer sua própria hediondez, não é? O teatro é também uma espécie de expurgo, acerto de contas do ser humano com sua história, com todos os homens, com a vida e Nelson o faz de modo cético, sombrio e até... romântico.  Sábato Magaldi enquadrou Toda nudez... como uma tragédia carioca, mas o que temos aqui, com essa montagem do CPT, é a voz de todos os homens e mulheres de todos os tempos e lugares.
Pausa.
Grito.
Rompe-se o limite entre lua de mel e separação final dos amantes.
Como anda sua nudez? Você pensa que sabe de tudo? Você não sabe de nada!


[i][i]Moisés Neto é Mestre e Doutor em Letras pela UFPE, dramaturgo recifense.








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