Pelo Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto
O Conto popular e o cordel: possíveis intersecções e entrelaçamentos em
suas origens
PROF. DR. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO
RESUMO:
Destrinchando certos aspectos no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica,
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche, buscaremos trabalhar que
elementos se refletem, coincidentemente ou não, na construção do
cordel Romance ou História do
Pavão Misterioso e que estratégias estão aí embutidas. Como são
representadas nestas obras, por exemplo, as mulheres. Como se dá o trânsito dos
personagens nestes mirabolantes enredos e que linhas ético-morais empolgam
estas histórias. Nosso cotejo busca a compreensão de como aí se dá o uso do
coloquial, dos localismos, da dimensão universal e como estão representados os
seres humanos em movimento. Como ambas as obras exemplificam que textos
literários nunca estão completos nem são estáveis? Como são tratadas aí as
questões de deslocamento e entrelugar, ou não-lugar, trânsito e das
manifestações sócio-culturais?
Palavras-chave: Cordel, Literatura árabe,
Orientalismo, Literatura de viagem
1. INTRODUÇÃO
Não
é de hoje que são percebidas intersecções entre a cultura árabe e algumas
manifestações da cultura do Nordeste do Brasil. Especificamente aqui destrincharemos
certos aspectos presentes no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica
(utilizamos para nossa análise a tradução feita diretamente do árabe por Mamede
Mustafá Jarouche, no Livro das Mil e Uma Noites, volume 4. São Paulo: Globo,
2012); buscaremos neste espaço também trabalhar que elementos se refletem,
coincidentemente ou não, na construção do cordel Romance ou História do
Pavão Misterioso (do paraibano José Camelo de Melo Rezende; em 2013, este
símbolo maior da literatura de cordel completou noventa anos de publicação) e
que estratégias estão aí embutidas, também de que modo os cordelistas
imaginavam o Oriente, geralmente com estereótipos sugeridos desde obras como As
mil e uma noites, amplamente difundidas pelo mundo através de várias
mídias.
2. ENCRUZILHADAS ENTRE O PAVÃO MISTERIOSO E ALA´UDDIN: FICÇÕES EM TRÂNSITO
Como
são representadas em alguns cordéis e na literatura árabe, por exemplo, outras
etnias e como se resolvem as questões de gênero? Vamos ao nosso recorte: No
Romance do Pavão Misterioso e no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica, tanto Creusa,
do Pavão, filha de um conde, quanto a filha do sultão, a jovem dama Badrulbudur,
de Ala´uddin, são idealizadas como nobres donzelas, cujos encantos atraem a
cobiça de dois jovens subitamente por elas enamorados, conhecendo-lhes apenas a
beleza física, e do mesmo modo: vistas de longe, numa foto, inicialmente pelo
viajante do Pavão, ou num cortejo, por Ala´uddin, que por este amor também
ficará em trânsito por universos outros. Colocando estas obras em cotejo e
analisando como se dá este trânsito dos personagens nos mirabolantes enredos
narrados tanto para o assim chamado “vulgo”, pessoas não ligadas aos meios
eruditos, quanto para os intelectuais, percebemos que no caso de Ala´uddin ainda
se torna mais complexa uma pergunta: que relações aí se estabelecem entre o divino
e o maligno? Ora, a tradução de Jarouche, enfatiza o poder da fé muçulmana apesar
da trama original contrapor a feitiçaria à magia, ambas distantes dos ditames
do Alcorão. Já no Pavão Misterioso, paradoxalmente, e escrito mais de mil anos
depois dos contos árabes, tem-se uma solução científica (máquina voadora etc.) para
a magia lírica se desenvolver com tanta propriedade, lembremo-nos que o pavão
simboliza fogo, beleza, transmutação, a paz, prosperidade, fertilidade,
imortalidade. Tanto uma obra quanto a outra narram histórias de viagens. Os
personagens estão em trânsito, entre África, Grécia, China, Japão e outros
lugares tidos por alguns como exóticos e aí é também interessante notar como
teria se dado o trabalho dos copistas através do tempo ao descrever tais
espaços. No caso de Zé Camelo e João Melquíades Ferreira da Silva (outro grande
poeta, mas tido por alguns como “plagiador” do Pavão) criou-se uma celeuma
terrível, levando o primeiro à depressão, mas o Pavão ainda inspirou muitas releituras,
do mesmo modo que o conto/novela Ala´uddin vem inspirando escritores.
As viagens propostas por Sahrazad através dos
seus véus narrativos no
conto árabe trabalham com o deslocamento, na ruptura com a realidade
utilizando-se de recursos que tanto agradam a um espírito aventureiro quanto a
um moralismo familiar, caseiro. Os personagens
vão até onde as linhas ético-morais que empolgam estas histórias permitirem.
São jovens audaciosos que desnudam o recato de duas virgens ricas e bem
protegidas. O prazer sensual lateja à primeira vista neste nosso cotejo. Se
observarmos a estrutura vertical destas duas obras, numa amostragem
paradigmática, notamos que o motor, e moto contínuo delas é a realização de um
desejo juvenil de encontrar uma parceira, visto que em ambas fala mais alto o jovem
macho arrebatador, que chega para obter seu objeto de desejo: donzelas que
serão “ameaçadas” por um fogo muito especial, o fogo da atração carnal, mesmo
que “perfumada” de poesia e encantamento. Evangelista penetrando o quarto da
amada e Ala´uddin teletransportando para o seu quartinho pobre a garota rica
que ele deseja, numa quebra de hierarquia social e no caso do Pavão, o
intercurso se faz entre o capital e a nobreza.
Ao desconstruir os elementos embutidos e explícitos
tanto no cordel quanto no conto árabe, percebemos que o uso do da linguagem coloquial,
a oralidade latente nos textos e os localismos, não excluem uma dimensão
universal (naquele ponto em que lida com arquétipos humanos) e não é muito
difícil também perceber os toques que provocam o humor, através da ironia,
grotesco, patético e até do macabro, como na conclusão do conto Ala´uddin,
quando o gênio revela uma face mais demoníaca (ao ameaçar seu “amo”) e seu
poder de destruição torna-se perceptível. A representação destes dois heróis em
movimento, através da mágica de um gênio, ou do gênio de um cientista, faz tanto
de Evangelista quanto de Ala´uddin viajantes que adentram outras culturas e
comunidades de fala sem que isto sirva de empecilho às suas ambições. Pelo seu
poder de inspirar recriações, ambas as obras exemplificam que textos literários
nunca estão completos nem são estáveis, quando geram inquietações, revisões,
cópias com pequenas ou radicais mudanças. Neles as questões de deslocamento e entrelugar, ou não-lugar, trânsito e retrato das manifestações culturais variam de
acordo com as adaptações. Em Ala´uddin, nesta versão
que abordamos aqui, por exemplo, os judeus são representados enfaticamente como
desonestos e traidores da pior espécie, principalmente quando se trata de um
incauto muçulmano. Os judeus seriam “mais maliciosos que os demônios”,
trapaceiros. Já as mulheres teriam pouco juízo, seriam falsas, assassinas,
mentirosas. Nas duas obras são submissas
ao poder masculino.
Apesar
de vencer através da magia numa sociedade islâmica (“temente a Deus”, p. 98), Ala´uddin
é poupado de maiores questionamentos sobre seu modus operandi e o jogo entre o divino e o maligno (“louvado seja
Deus contra os demônios”) se dá de modo que
o que apontaríamos como legalidade
cotidiana, é preservada, embora as situações sejam absurdas, inclusive quando
se trata de locomoção. Em certo momento, o pavão metálico de Evangelista
esconde-se numa palmeira; já em Ala´uddin, cujas viagens se dão num passe de
mágica, um palácio com milhões de requintes surge do dia para noite sem que
haja um estranhamento maior, a não ser por parte do “vilão”, o vizir que quer
seu filho casado com a nobre que Ala´uddin corteja.
Entre o
mágico e o estranho seria desnecessário aqui questionarmos se a ambiguidade ou
o trânsito entre o real e o fictício estaria mais em tais narrativas ou no
leitor, mas podemos notar que as rasuras nas fronteiras entre as delicadas
relações do “real” com o puramente “imaginário” apontam para uma influência do Orientalismo na construção do Pavão, cuja
máquina equivale a um tapete voador. Os pontos em comum nos textos estão
presentes também nas linhas ético-morais que empolgam estas histórias. O real possível é amalgamado com o onírico, o
absurdo, o simbólico, e desorganiza-se a ordem através da ruptura com o
habitual/convencional contrapondo-a ao mundo do maravilhoso e fascinante, do
grotesco, do terrível, também, e do inconsciente, de modo surreal se
opondo a um falso “realismo” (que supõe que literatura pode ser completamente realista). Este jogo literário, mais do que afrontar o
senso da realidade, faz-nos ampliar nossa imaginação até o limite. São narrativas dubiamente não-racionalistas,
não-realistas, onde as situações
inusitadas misturam-se com o real cotidiano. O Pavão Misterioso é um artefato de invenção
fantástica, geradora de espanto, metamórfico bicho-máquina. Já a história das mil
e uma noites tem encantado leitores/ ouvintes aqui no Brasil e exemplifica
algumas técnicas e temas, como estas viagens “mágicas” do conto árabe.
3. OURO DE TOLO
Há
parcialmente uma eliminação de certos vernizes moralistas principalmente no
trato de imagens simbólicas e identidades fragmentárias, e o que percebemos
tanto no cordel quanto no referido conto árabe são encenações de fantasias em
intensidade muito maior do que qualquer tom de denúncia social, no caso da
posição da mulher na sociedade árabe, por exemplo, ou da doxa, o discurso da divisão de classes; favorece-se nos dois
textos, isto sim, o “inter” como o entrelugar onde o hibridismo se articula num
processo de tradução e negociação. O simbolismo do ouro, é de certo modo a
grande força motriz das duas narrativas, quer seja gerando possibilidade de locomoção
ou mesmo como símbolo de poder e triunfo, mesmo que aparentemente esteja mais
destacada a força do amor (atração física?) e do empreendedorismo. O aparelho
estatal do funcionalismo público representado pelo sultão e pelo vizir do conto
Ala’uddin e a lâmpada mágica faz-nos refletir que nesta obra cada um vale pelo
ouro que possui. É o caso, sutilmente oculto no Pavão Misterioso, de
Evangelista e seu irmão mais velho João Batista, filhos de próspero capitalista
turco. Mas parece que tal moeda de troca não passa de mias um dos recursos que Sahrazad,
a narradora de Ala´uddin, lança mão com
sua astúcia, criando um mundo fantástico que engrandece a si mesma aos olhos
dos seus interlocutores (e dos seus leitores) sedentos de curiosidade que ela
só excita com suas histórias entrecruzadas. Assim podemos abrir um leque de
possibilidades para interpretar tais textos, observando neste discurso sempre
uma camada de significação suplementar, o entrecruzamento de várias vozes, uma pluralidade, de outros discursos superpostos, que provoca o descentramento, usando dentre outros
recurso imagens oníricas. Lembremos que
no sonho o espírito afasta-se da sociedade, mas na realidade, a percepção vem
impregnada de lembranças e que o grande instrumento socializador da
memória é a linguagem. Amalgamando o
que ela extraiu da experiência dela ou (re)contando o que obteve por outros,
tal narradora torna tal experiência como sendo também, a partir dali, daqueles
que ouvem a sua história.
Já
a viagem fantástica proporcionada no eixo narrativo que impulsiona o amante do Romance
do pavão misterioso, dá-se em versos provocantes, permeados de um otimismo do mesmo
modo que a narrativa árabe, só que composto por sextilhas em redondilha maior.
Vamos aos pontos em comum na sua trama com a história de Ala’uddin. Por
exemplo: a maneira como o jovem se introduz no quarto da amada, o susto dela,
comparam-se ao artifício usado n’ As mil e uma noites. Já a maneira como se
tece história dos irmãos João Batista e Evangelista, filhos de um capitalista
turco (Batista viaja para o Japão e Grécia), assemelha-se ao artifício do
enredo de Ala’uddin (que se teletransporta para o Norte da África). Ao ver uma
moça proibida, que saía raramente e ninguém poderia sequer falar com ela, filha de um poderoso tirano. Batista consegue uma
foto de Creusa e entrega ao irmão, Evangelista (na Turquia) e este se apaixona
pela figura da dama, vai até a Grécia para tentar conquistá-la a qualquer
custo. Lá, ele entrega sua fortuna a um engenheiro e obtém sua máquina
fantástica um Pavão de Alumínio capaz de voar ao quarto da amada, no alto do palácio
do Conde, pai dela. O fantástico se desenvolve a partir daí numa história que
poderia integrar As mil e uma noites. O aeroplano misterioso tem, através do
zoomorfismo, participação fundamental na trama rocambolesca (que não dispensa
rendas, sedas, olhares fascinantes e um lenço com poderoso narcótico). Se o
suspense sherazadiano mantém o leitor preso pela oralidade do texto como num
torpor, isso aqui também acontece com a história de Evangelista e seu pavão, o
“monstro de alumínio”. Depois de muita peleja a moça confessa (“descobriu-se”
subitamente assim) que é reprimida pelo pai e se entrega ao amor de Evangelista
que, raptando-a, leva-a a Turquia e com a morte do pai dela, a sogra dele
posteriormente, abençoa a união.
É
claro que quanto à narrativa e seu estofo fantástico, temos, no caso do Pavão,
vários artifícios tipicamente ligados à literatura do Nordeste do Brasil em
forma de Cordel (como o intrincado problema a ser
resolvido pela astúcia do herói fiel ao seu amor em meio a confusões, mas com
relações sociais bem hierarquizadas, num universo que lembra o da nobreza europeia dos condes, duques, castelos
etc.), mas há também a reafirmação da mulher como objeto de beleza e
quase como mercadoria a ser adquirida, levada para casa, do pai para a do seu
novo senhor: o marido. O mesmo tipo
de garota, os mesmos problemas, quase o mesmo tipo de pai, o patriarcado se
entrelaçando ao sutil jogo social machista. Com o real subjugado pelo onírico
em cenário de Oriente árabe, dá-se o rapto da nobre donzela. Estes textos, ao
sugerir a impossibilidade de uma verdade única, instalam-se como um meio de
acesso a uma nova visão cultural, mesmo que de forma fantástica. Rompem com as
relações solitárias de sujeito com a verdade
imposta, poetizando a experiência do
viajante, enlaçando contradições e “coincidências”, abalando “certezas”
universais e/ ou transcendentais, autorizando as diferenças, negociando entre
os polos, em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo
social. Catalisando misteriosos detalhes secretos sabendo que tais detalhes da
vida só adquirem existência quando encontram palavras e gestos com que
expressar (numa determinação literária poética) os anseios, desejos, sofrimentos
e gozos. Dirigem-se ao sujeito/ leitor a partir de um outro lugar, diferente do lugar-comum dos discursos de
autoridade e oferecem-se como experiência cultural em trânsito, em fusão,
compartilhada de forte interpenetração
imaginária, ao mesmo tempo em que interpela diretamente o indivíduo leitor em
seu isolamento, instaurando-se como ruptura, apóstrofe, apelo aos sujeitos
sugerindo universos paralelos.
O
coletivo e a invenção individual vão sendo re-elaborados continuamente num
sistema de oposições e correlações que quer ser espelho de uma situação em que
muitas representações e processos, encontrem seu lugar. E nestas vivências de
diversidade e de ruptura e outras tendências, tanto o citado cordel quanto o
conto árabe articulam o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de
informações que lhe chegam através de outros textos e desta rede de interlocuções provém uma escrita que
interroga a falência dos enunciados de verdade, que faz do Outro um reflexo, ou
uma construção incapaz de oferecer qualquer garantia. Descentraliza a verdade
reconstruindo sua significação, questionando, usando a linguagem contra a
tirania do Um, sem ocupar um lugar de autoridade e buscando a interlocução,
transformando poesia em tática, busca legitimação simbólica sem a pretensão a
fundar uma exceção perversa.
Há
em Alau´ddin ideias que compõem o orientalismo, a cada página reforçado. O politicamente incorreto passa por
sedução de menor, cárcere privado, corrupção generalizada, mesclados ao
sobrenatural e ao fantástico. O texto árabe utiliza a narradora apenas como
exercício para o salto, atira-se num vaivém estonteante entre piedade e
perversidade ao tratar da história de Alau´ddin, (que em árabe significa: “elevação
da fé”, “enfeitiçado”), filho de um
alfaiate pobre na China, rota árabe, garoto sustentado pela mãe, pícaro
apaixonado por rica donzela, anti-herói que assumirá caráter principesco
através do sobrenatural, introduzido ao fantástico pelo personagem do
feiticeiro Magrebe (do Norte da África) que se passou pelo seu tio e seduziu-o
para conseguir a lâmpada mágica. Temos da quingentésima décima quarta noite
(514ª) à sexentésima vigésima quarta (624ª) noite árabe um jogo de vale tudo,
com direito a teletransporte, palácios, árvores, frutos etc. feitos em ouro e
pedras preciosas, exércitos e haréns tirados do nada só para o deleite do jovem
Ala´uddin e dos seus, a isso se mistura o alcorão (JAROUCHE, 2012, p.23) tudo
em tom coloquial. A jovem dama Badrulbudur, filha do sultão e que poderia ser
matriz da personagem Creusa, do Romance do Pavão misterioso; surge num clima
fantástico reforçado por comparações hiperbólicas: “erguem o véu, seu rosto
cintilou como se fosse sol brilhante ou pérola resplandecente”, “mágica no
olhar”, “flores nas bochechas” etc. (JAROUCHE, 2012, p.48). O clima fantástico
inclui o teletransporte. Não há um tapete voador nem pavão metálico, mas um colchão
é usado com tal função (JAROUCHE, 2012, p.63) e é sobre ele que a virgem será
entregue a Ala´uddin, intacta, mesmo já casada com o filho do (“invejoso”)
Vizir.
4.
CONCLUSÃO
Todas
as incoerências das duas tramas são abafadas por um clima da mais completa
naturalidade. Dezenas de pessoas bem vestidas saindo subitamente do casebre de Ala´uddin
e sua mãe, onde mal cabiam duas pessoas, “corcéis que não existem no mundo”,
eunucos, “criados e criadas cuja beleza deixaria pasmado qualquer vivente” (JAROUCHE,
2012, p.79) não espantam a população, muito menos o leitor/ouvinte, já preso
aristotelicamente por uma coerência interna habilmente traçada. Ambas as obras
apresentam noites que nem Alexandre, o grande, viveu iguais em “melhores
tempos” tudo na força da magia e da técnica. No final, a corte e o povo adoram Alau´ddin, que é conhecido pela
imensa generosidade e nobreza (antes era malandro):
“Deus no céu e Ala’uddin na terra” (JAROUCHE, 2012, p. 90). Ele é um autêntico muçulmano que, dentre outras
características, para no rio para “abluir-se”, fazer “prece matinal” etc. (JAROUCHE,
2012, p. 99), mesmo tendo feito um pacto com seu gênio e estar pronto a cometer
crimes. O final do texto envolve o leitor ainda mais no clima fantástico: um
pássaro chamado roque, capaz de
carregar “camelos e elefantes entre as unhas, e voa com eles graças ao seu
tamanho” (JAROUCHE, 2012, p.111) seria invocado por capricho do casal real (Ala´uddin
e a sua esposa), por malícia do irmão do feiticeiro que Ala´uddin assassinou e
que busca mais poder e vingança, só que tal ave era algoz dos gênios, mas tudo
se resolve a contento e a narradora diz “isso não é nada comparado ao que irei
contar na próxima noite, se eu viver” (JAROUCHE, 2012, p.115). Ao interseccionar várias realidades, ela vai
lembrando e contando, fugindo do esvaziamento e da desvalorização nesse
processo. Esta narradora tem seu lócus instalado numa espécie de vórtice do
tempo, em meio a lutas pela sobrevivência e o desejo de inebriar os que prestam
atenção à sua narrativa num tom coloquial / sensual dá sabor ao texto e o faz fluir. Já na trama do Pavão Misterioso, Evangelista depois de
mirabolantes reviravoltas traz sua amada ao seu país, a Turquia, raptando-a, o
pai dela morre, do mesmo modo que o pai da noiva árabe termina aceitando com
naturalidade a riqueza do genro. São os casamentos entre ricos de berço, novos
ricos e nobres. Resta aos leitores além do deleite com as obras, a riqueza da
reflexão transtemporal, do gênio que
sai obediente da lâmpada à viagem no pavão misterioso: ficções em trânsito, não
importando tanto se o leitor é conduzido num colchão voador árabe ou nas asas
de um pavão criado na Paraíba. O enigma da linguagem é um dos
mais excitantes da humanidade. O local da diferença é também lócus para
desenvolver projeções de amor e ódio fazendo o apreciador de uma obra artística
deslizar constantemente de uma posição a outra, provocando o colapso da
certeza. Ala´uddin e o Pavão Misterioso são textos que tentam (re)construir
narrativas do imaginário social de dois povos, o árabe e o do nordeste do
Brasil. Nada que seja estático é do povo, pois este é instável, inclusive na
sua significação cultural; se a história é pedagogia a cultura do povo é antes
de tudo performática, moldada no momento em que se expressa. Tal urgência exige
muita (re)negociação de tempo, termos e tradições.
Referências Bibliográficas
CAMELO
DE MELO, José. História do Pavão
Misterioso, 3ª edição. Campina Grande: Memorial do Cordel, 2003.
JAROUCHE,
Mamede Mustafá. Livro das Mil e Uma Noites, volume 4. São Paulo: Globo, 2012.
APÊNDICE
Não há originais árabes
com a história de Ala´uddin anteriores
ao século XVIII. O primeiro a editar as Mil
e Uma Noites, teria sido Antoine Galland,
francês que copiou o que o contador de histórias Hanna Diab, maronita de
Alepo, cristão sírio, lhe narrou, em 1709. Só no século XVIII a narrativa
passou a constar no texto árabe das Mil
e Uma Noites. Talvez o conto tenha origem na segunda metade do século XI,
já as narrativas das Mil e
Uma Noites foram compiladas
em árabe a partir do século XIII, mas há quem diga que sua origem estaria no Egito e
vindo à luz no século VII, após a conquista árabe do Egito, já,outros apontam
elementos europeus na narrativa.
Everardo
Ramos escreveu sobre José Camelo de Melo
Resende: ele nasceu
em 20 de abril de 1885, em Pilõezinhos, na época distrito de Guarabira (PB).
Vai à escola e, jovem, parece aspirar a grandes voos, mas as precárias
condições de seu meio frustram seus sonhos, fazendo-o simples marceneiro e
carpinteiro. A poesia torna-se, então, válvula de escape para sua inteligência
e extraordinária imaginação. Começa a escrever folhetos no início dos anos
1920, versejando numa língua perfeita, com precisão da métrica e da rima que o
distingue da maioria dos poetas populares. o mesmo tempo, faz-se cantador,
compensando seu pouco talento para improvisar com uma astúcia: decora romances
que ele mesmo compõe, criando tramas ou adaptando-as das histórias que correm
de boca em boca. No fim dos anos 1920, mete-se em complicações e foge para Rio
Grande do Norte, onde se esconde por uns tempos. É nessa época que João
Melquíades Ferre Pavão misterioso. É nessa época que João Melquíades Ferreira da Silva publica na
Paraíba, em seu nome, o romance Pavão
misterioso, obra criada por José Camelo. Este denuncia o golpe, mas o
romance continuaria a ser atribuído a João Melquíades (N.E.: até hoje se
discute a verdadeira autoria desse romance). Seja como for, a história de Pavão misterioso torna-se um dos maiores sucessos da
literatura de cordel, sendo reeditada inúmeras vezes, além de inspirar peças de
teatro, canção, novela de televisão e filme de animação. Outros romances de
José Camelo também têm enorme repercussão, como As grandes aventuras de Armando e
Rosa conhecidos por Coco Verde e Melancia; Entre o amor e a espada; História de Joãozinho e
Mariquinha; O monstro do
Rio Negro e Pedrinho e Julinha, todos
editados por João Martins de Ataíde, no Recife, e reeditados por José Bernar
Martins de Ataíde, no Recife, e reeditados por José Bernardo da Silva e seus
herdeiros, em Juazeiro do Norte. No fim da vida, porém, quase octogenário, o
poeta se deixa ganhar pela frustração e amargura, destruindo - segundo seus
contemporâneos – umas cinquenta obras de sua autoria. Morre em Rio Tinto (PB),
em 28 de outubro de 1964, passando à posteridade como um dos maiores autores da
literatura de cordel brasileira.
Referências bibliográficas: ALMEIDA, Átila de; ALVES SOBRINHO,
José. Poetas populares
paraibanos. Campina Grande: UFPB, 1984, p. 227-237
[mimeografado].
Roberto Benjamin nos ensina: João Melquíades
Ferreira da Silva nasceu em Bananeiras, no brejo da Paraíba, em 7 de
julho de 1869, e faleceu em João Pessoa em 10 de dezembro de 1933. Foi cantador
e poeta de bancada, segundo Francisco das Chagas Batista, seu amigo e principal
editor. É considerado um dos grandes poetas da primeira geração da literatura
de cordel. Sentou praça no Exército. Participou das campanhas de Canudos em
1897 e do Acre em 1903. Em 1904, já promovido a sargento, deu baixa do
Exército, fixando residência na capital do Estado da Paraíba, onde se casou e
teve quatro filhos. Manteve vínculo com a região rural de sua origem e escreveu
diversos poemas com descrições da Paraíba, especialmente da Serra da Borborema.
Adotou o título de cantor da Borborema. É dele o folheto A besta de
sete cabeças, em que usa, em epígrafe, textos do Apocalipse como profecia
relativa à Primeira Guerra Mundial. Escreve u, também, A guerra de Canudos (identificado por José Calasans).
Utiliza material religioso da Igreja Católica da época em folhetos como As quatro moças do céu – fé,
esperança, caridade e formosura e A rosa branca da castidade(versificação
de um exemplo típico da literatura catequética), além de vários poemas contra o
protestantismo (dentre eles, a Quinta
peleja dos protestantes com João Melchíades). A ele é atribuída a autoria
de 36 folhetos. Átila Almeida afirma que a titularidade de autoria de
Melchíades no folheto Pavão
misterioso foi plágio de um
original de José Camelo de Melo Resende. A opinião não é partilhada por outros
estudiosos, considerando que os dois poetas tinham o tal romance como parte do
repertório comum de suas cantorias. Ruth Terra destaca que Melchíades é dos
poucos que não louva como valentes apenas pobres vaqueiros e, sim, homens de riqueza,
como é o caso de Cazuza Sátiro, Belmiro Costa e Zé Garcia.
Referências bibliográficas
▪
ALMEIDA, Átila Augusto F. de; ALVES SOBRINHO, José.Dicionário
bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada, 2 vols. João
Pessoa: Editora Universitária-UFPB / Campina Grande: Centro de Ciências e
Tecnologia-UFPB, 1978.
▪
BATISTA, Francisco das Chagas. Cantadores e poetas
populares, 2ª ed., João Pessoa: UFPB, 1997. 233p.
▪
CALASANS, José. A guerra de Canudos. Revista
brasileira de folclore. Rio de Janeiro: CDFB, n. 14, jan-abr 1966, p.
53-64.
▪
FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Literatura
popular em verso – catálogo. Tomo I. Rio de Janeiro: Casa de Rui
Barbosa, 1961, 399p.
▪
TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória
de lutas: a literatura
de folhetos do Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983. 190p. il.
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