Pesquisar este blog

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O Pavão Misterioso, Aladin e a Lâmpada Mágica


                                Pelo Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto 

O Conto popular e o cordel: possíveis intersecções e entrelaçamentos em suas origens
PROF. DR. MOISÉS MONTEIRO DE MELO NETO                                                                               
RESUMO
Destrinchando certos aspectos no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica, traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche, buscaremos trabalhar que elementos se refletem, coincidentemente ou não, na construção do cordel Romance ou História do Pavão Misterioso e que estratégias estão aí embutidas. Como são representadas nestas obras, por exemplo, as mulheres. Como se dá o trânsito dos personagens nestes mirabolantes enredos e que linhas ético-morais empolgam estas histórias. Nosso cotejo busca a compreensão de como aí se dá o uso do coloquial, dos localismos, da dimensão universal e como estão representados os seres humanos em movimento. Como ambas as obras exemplificam que textos literários nunca estão completos nem são estáveis? Como são tratadas aí as questões de deslocamento e entrelugar, ou não-lugar, trânsito e das manifestações sócio-culturais?

Palavras-chave: Cordel, Literatura árabe, Orientalismo, Literatura de viagem


1.      INTRODUÇÃO
Não é de hoje que são percebidas intersecções entre a cultura árabe e algumas manifestações da cultura do Nordeste do Brasil. Especificamente aqui destrincharemos certos aspectos presentes no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica (utilizamos para nossa análise a tradução feita diretamente do árabe por Mamede Mustafá Jarouche, no Livro das Mil e Uma Noites, volume 4. São Paulo: Globo, 2012); buscaremos neste espaço também trabalhar que elementos se refletem, coincidentemente ou não, na construção do cordel Romance ou História do Pavão Misterioso (do paraibano José Camelo de Melo Rezende; em 2013, este símbolo maior da literatura de cordel completou noventa anos de publicação) e que estratégias estão aí embutidas, também de que modo os cordelistas imaginavam o Oriente, geralmente com estereótipos sugeridos desde obras como As mil e uma noites, amplamente difundidas pelo mundo através de várias mídias. 

2.      ENCRUZILHADAS ENTRE O PAVÃO MISTERIOSO E ALA´UDDIN: FICÇÕES EM TRÂNSITO
Como são representadas em alguns cordéis e na literatura árabe, por exemplo, outras etnias e como se resolvem as questões de gênero? Vamos ao nosso recorte: No Romance do Pavão Misterioso e no conto Ala´uddin e a Lâmpada Mágica, tanto Creusa, do Pavão, filha de um conde, quanto a filha do sultão, a jovem dama Badrulbudur, de Ala´uddin, são idealizadas como nobres donzelas, cujos encantos atraem a cobiça de dois jovens subitamente por elas enamorados, conhecendo-lhes apenas a beleza física, e do mesmo modo: vistas de longe, numa foto, inicialmente pelo viajante do Pavão, ou num cortejo, por Ala´uddin, que por este amor também ficará em trânsito por universos outros. Colocando estas obras em cotejo e analisando como se dá este trânsito dos personagens nos mirabolantes enredos narrados tanto para o assim chamado “vulgo”, pessoas não ligadas aos meios eruditos, quanto para os intelectuais, percebemos que no caso de Ala´uddin ainda se torna mais complexa uma pergunta: que relações aí se estabelecem entre o divino e o maligno? Ora, a tradução de Jarouche, enfatiza o poder da fé muçulmana apesar da trama original contrapor a feitiçaria à magia, ambas distantes dos ditames do Alcorão. Já no Pavão Misterioso, paradoxalmente, e escrito mais de mil anos depois dos contos árabes, tem-se uma solução científica (máquina voadora etc.) para a magia lírica se desenvolver com tanta propriedade, lembremo-nos que o pavão simboliza fogo, beleza, transmutação, a paz, prosperidade, fertilidade, imortalidade. Tanto uma obra quanto a outra narram histórias de viagens. Os personagens estão em trânsito, entre África, Grécia, China, Japão e outros lugares tidos por alguns como exóticos e aí é também interessante notar como teria se dado o trabalho dos copistas através do tempo ao descrever tais espaços. No caso de Zé Camelo e João Melquíades Ferreira da Silva (outro grande poeta, mas tido por alguns como “plagiador” do Pavão) criou-se uma celeuma terrível, levando o primeiro à depressão, mas o Pavão ainda inspirou muitas releituras, do mesmo modo que o conto/novela Ala´uddin vem inspirando escritores.
As viagens propostas por Sahrazad através dos seus véus narrativos no conto árabe trabalham com o deslocamento, na ruptura com a realidade utilizando-se de recursos que tanto agradam a um espírito aventureiro quanto a um moralismo familiar, caseiro.  Os personagens vão até onde as linhas ético-morais que empolgam estas histórias permitirem. São jovens audaciosos que desnudam o recato de duas virgens ricas e bem protegidas. O prazer sensual lateja à primeira vista neste nosso cotejo. Se observarmos a estrutura vertical destas duas obras, numa amostragem paradigmática, notamos que o motor, e moto contínuo delas é a realização de um desejo juvenil de encontrar uma parceira, visto que em ambas fala mais alto o jovem macho arrebatador, que chega para obter seu objeto de desejo: donzelas que serão “ameaçadas” por um fogo muito especial, o fogo da atração carnal, mesmo que “perfumada” de poesia e encantamento. Evangelista penetrando o quarto da amada e Ala´uddin teletransportando para o seu quartinho pobre a garota rica que ele deseja, numa quebra de hierarquia social e no caso do Pavão, o intercurso se faz entre o capital e a nobreza.
Ao desconstruir os elementos embutidos e explícitos tanto no cordel quanto no conto árabe, percebemos que o uso do da linguagem coloquial, a oralidade latente nos textos e os localismos, não excluem uma dimensão universal (naquele ponto em que lida com arquétipos humanos) e não é muito difícil também perceber os toques que provocam o humor, através da ironia, grotesco, patético e até do macabro, como na conclusão do conto Ala´uddin, quando o gênio revela uma face mais demoníaca (ao ameaçar seu “amo”) e seu poder de destruição torna-se perceptível. A representação destes dois heróis em movimento, através da mágica de um gênio, ou do gênio de um cientista, faz tanto de Evangelista quanto de Ala´uddin viajantes que adentram outras culturas e comunidades de fala sem que isto sirva de empecilho às suas ambições. Pelo seu poder de inspirar recriações, ambas as obras exemplificam que textos literários nunca estão completos nem são estáveis, quando geram inquietações, revisões, cópias com pequenas ou radicais mudanças. Neles as questões de deslocamento e entrelugar, ou não-lugar, trânsito e retrato das manifestações culturais variam de acordo com as adaptações. Em Ala´uddin, nesta versão que abordamos aqui, por exemplo, os judeus são representados enfaticamente como desonestos e traidores da pior espécie, principalmente quando se trata de um incauto muçulmano. Os judeus seriam “mais maliciosos que os demônios”, trapaceiros. Já as mulheres teriam pouco juízo, seriam falsas, assassinas, mentirosas.  Nas duas obras são submissas ao poder masculino.
Apesar de vencer através da magia numa sociedade islâmica (“temente a Deus”, p. 98), Ala´uddin é poupado de maiores questionamentos sobre seu modus operandi e o jogo entre o divino e o maligno (“louvado seja Deus contra os demônios”) se dá de modo que o que apontaríamos como legalidade cotidiana, é preservada, embora as situações sejam absurdas, inclusive quando se trata de locomoção. Em certo momento, o pavão metálico de Evangelista esconde-se numa palmeira; já em Ala´uddin, cujas viagens se dão num passe de mágica, um palácio com milhões de requintes surge do dia para noite sem que haja um estranhamento maior, a não ser por parte do “vilão”, o vizir que quer seu filho casado com a nobre que Ala´uddin corteja.
Entre o mágico e o estranho seria desnecessário aqui questionarmos se a ambiguidade ou o trânsito entre o real e o fictício estaria mais em tais narrativas ou no leitor, mas podemos notar que as rasuras nas fronteiras entre as delicadas relações do “real” com o puramente “imaginário” apontam para uma influência do Orientalismo na construção do Pavão, cuja máquina equivale a um tapete voador. Os pontos em comum nos textos estão presentes também nas linhas ético-morais que empolgam estas histórias.  O real possível é amalgamado com o onírico, o absurdo, o simbólico, e desorganiza-se a ordem através da ruptura com o habitual/convencional contrapondo-a ao mundo do maravilhoso e fascinante, do grotesco, do terrível, também, e do inconsciente, de modo surreal  se opondo a um falso “realismo” (que supõe que literatura pode ser completamente realista).  Este jogo literário, mais do que afrontar o senso da realidade, faz-nos ampliar nossa imaginação até o limite. São narrativas dubiamente não-racionalistas, não-realistas, onde as situações inusitadas misturam-se com o real cotidiano. O Pavão Misterioso é um artefato de invenção fantástica, geradora de espanto, metamórfico bicho-máquina. Já a história das mil e uma noites tem encantado leitores/ ouvintes aqui no Brasil e exemplifica algumas técnicas e temas, como estas viagens “mágicas” do conto árabe.

3.      OURO DE TOLO
Há parcialmente uma eliminação de certos vernizes moralistas principalmente no trato de imagens simbólicas e identidades fragmentárias, e o que percebemos tanto no cordel quanto no referido conto árabe são encenações de fantasias em intensidade muito maior do que qualquer tom de denúncia social, no caso da posição da mulher na sociedade árabe, por exemplo, ou da doxa, o discurso da divisão de classes; favorece-se nos dois textos, isto sim, o “inter” como o entrelugar onde o hibridismo se articula num processo de tradução e negociação. O simbolismo do ouro, é de certo modo a grande força motriz das duas narrativas, quer seja gerando possibilidade de locomoção ou mesmo como símbolo de poder e triunfo, mesmo que aparentemente esteja mais destacada a força do amor (atração física?) e do empreendedorismo. O aparelho estatal do funcionalismo público representado pelo sultão e pelo vizir do conto Ala’uddin e a lâmpada mágica faz-nos refletir que nesta obra cada um vale pelo ouro que possui. É o caso, sutilmente oculto no Pavão Misterioso, de Evangelista e seu irmão mais velho João Batista, filhos de próspero capitalista turco. Mas parece que tal moeda de troca não passa de mias um dos recursos que Sahrazad, a narradora de Ala´uddin, lança mão com sua astúcia, criando um mundo fantástico que engrandece a si mesma aos olhos dos seus interlocutores (e dos seus leitores) sedentos de curiosidade que ela só excita com suas histórias entrecruzadas. Assim podemos abrir um leque de possibilidades para interpretar tais textos, observando neste discurso sempre uma camada de significação suplementar, o entrecruzamento de várias vozes, uma pluralidade, de outros discursos superpostos, que provoca o descentramento, usando dentre outros recurso imagens oníricas. Lembremos que no sonho o espírito afasta-se da sociedade, mas na realidade, a percepção vem impregnada de lembranças e que o grande instrumento socializador da memória é a linguagem. Amalgamando o que ela extraiu da experiência dela ou (re)contando o que obteve por outros, tal narradora torna tal experiência como sendo também, a partir dali, daqueles que ouvem a sua história.
Já a viagem fantástica proporcionada no eixo narrativo que impulsiona o amante do Romance do pavão misterioso, dá-se em versos provocantes, permeados de um otimismo do mesmo modo que a narrativa árabe, só que composto por sextilhas em redondilha maior. Vamos aos pontos em comum na sua trama com a história de Ala’uddin. Por exemplo: a maneira como o jovem se introduz no quarto da amada, o susto dela, comparam-se ao artifício usado n’ As mil e uma noites. Já a maneira como se tece história dos irmãos João Batista e Evangelista, filhos de um capitalista turco (Batista viaja para o Japão e Grécia), assemelha-se ao artifício do enredo de Ala’uddin (que se teletransporta para o Norte da África). Ao ver uma moça proibida, que saía raramente e ninguém poderia sequer falar com ela, filha de um poderoso tirano. Batista consegue uma foto de Creusa e entrega ao irmão, Evangelista (na Turquia) e este se apaixona pela figura da dama, vai até a Grécia para tentar conquistá-la a qualquer custo. Lá, ele entrega sua fortuna a um engenheiro e obtém sua máquina fantástica um Pavão de Alumínio capaz de voar ao quarto da amada, no alto do palácio do Conde, pai dela. O fantástico se desenvolve a partir daí numa história que poderia integrar As mil e uma noites. O aeroplano misterioso tem, através do zoomorfismo, participação fundamental na trama rocambolesca (que não dispensa rendas, sedas, olhares fascinantes e um lenço com poderoso narcótico). Se o suspense sherazadiano mantém o leitor preso pela oralidade do texto como num torpor, isso aqui também acontece com a história de Evangelista e seu pavão, o “monstro de alumínio”. Depois de muita peleja a moça confessa (“descobriu-se” subitamente assim) que é reprimida pelo pai e se entrega ao amor de Evangelista que, raptando-a, leva-a a Turquia e com a morte do pai dela, a sogra dele posteriormente, abençoa a união.
É claro que quanto à narrativa e seu estofo fantástico, temos, no caso do Pavão, vários artifícios tipicamente ligados à literatura do Nordeste do Brasil em forma de Cordel (como o intrincado problema a ser resolvido pela astúcia do herói fiel ao seu amor em meio a confusões, mas com relações sociais bem hierarquizadas, num universo que lembra o da nobreza europeia dos condes, duques, castelos etc.), mas há também a reafirmação da mulher como objeto de beleza e quase como mercadoria a ser adquirida, levada para casa, do pai para a do seu novo senhor: o marido. O mesmo tipo de garota, os mesmos problemas, quase o mesmo tipo de pai, o patriarcado se entrelaçando ao sutil jogo social machista. Com o real subjugado pelo onírico em cenário de Oriente árabe, dá-se o rapto da nobre donzela. Estes textos, ao sugerir a impossibilidade de uma verdade única, instalam-se como um meio de acesso a uma nova visão cultural, mesmo que de forma fantástica. Rompem com as relações solitárias de sujeito com a verdade imposta, poetizando a experiência do viajante, enlaçando contradições e “coincidências”, abalando “certezas” universais e/ ou transcendentais, autorizando as diferenças, negociando entre os polos, em contraposição às conveniências e aparências que regem o jogo social. Catalisando misteriosos detalhes secretos sabendo que tais detalhes da vida só adquirem existência quando encontram palavras e gestos com que expressar (numa determinação literária poética) os anseios, desejos, sofrimentos e gozos. Dirigem-se ao sujeito/ leitor a partir de um outro lugar, diferente do lugar-comum dos discursos de autoridade e oferecem-se como experiência cultural em trânsito, em fusão, compartilhada de forte interpenetração imaginária, ao mesmo tempo em que interpela diretamente o indivíduo leitor em seu isolamento, instaurando-se como ruptura, apóstrofe, apelo aos sujeitos sugerindo universos paralelos.
O coletivo e a invenção individual vão sendo re-elaborados continuamente num sistema de oposições e correlações que quer ser espelho de uma situação em que muitas representações e processos, encontrem seu lugar. E nestas vivências de diversidade e de ruptura e outras tendências, tanto o citado cordel quanto o conto árabe articulam o seu caminho por entre as frágeis malhas da rede de informações que lhe chegam através de outros textos e desta rede de interlocuções provém uma escrita que interroga a falência dos enunciados de verdade, que faz do Outro um reflexo, ou uma construção incapaz de oferecer qualquer garantia. Descentraliza a verdade reconstruindo sua significação, questionando, usando a linguagem contra a tirania do Um, sem ocupar um lugar de autoridade e buscando a interlocução, transformando poesia em tática, busca legitimação simbólica sem a pretensão a fundar uma exceção perversa.
Há em Alau´ddin ideias que compõem o orientalismo, a cada página reforçado. O politicamente incorreto passa por sedução de menor, cárcere privado, corrupção generalizada, mesclados ao sobrenatural e ao fantástico. O texto árabe utiliza a narradora apenas como exercício para o salto, atira-se num vaivém estonteante entre piedade e perversidade ao tratar da história de Alau´ddin, (que em árabe significa: “elevação da fé”, “enfeitiçado”), filho de um alfaiate pobre na China, rota árabe, garoto sustentado pela mãe, pícaro apaixonado por rica donzela, anti-herói que assumirá caráter principesco através do sobrenatural, introduzido ao fantástico pelo personagem do feiticeiro Magrebe (do Norte da África) que se passou pelo seu tio e seduziu-o para conseguir a lâmpada mágica. Temos da quingentésima décima quarta noite (514ª) à sexentésima vigésima quarta (624ª) noite árabe um jogo de vale tudo, com direito a teletransporte, palácios, árvores, frutos etc. feitos em ouro e pedras preciosas, exércitos e haréns tirados do nada só para o deleite do jovem Ala´uddin e dos seus, a isso se mistura o alcorão (JAROUCHE, 2012, p.23) tudo em tom coloquial. A jovem dama Badrulbudur, filha do sultão e que poderia ser matriz da personagem Creusa, do Romance do Pavão misterioso; surge num clima fantástico reforçado por comparações hiperbólicas: “erguem o véu, seu rosto cintilou como se fosse sol brilhante ou pérola resplandecente”, “mágica no olhar”, “flores nas bochechas” etc. (JAROUCHE, 2012, p.48). O clima fantástico inclui o teletransporte. Não há um tapete voador nem pavão metálico, mas um colchão é usado com tal função (JAROUCHE, 2012, p.63) e é sobre ele que a virgem será entregue a Ala´uddin, intacta, mesmo já casada com o filho do (“invejoso”) Vizir.
4.      CONCLUSÃO
Todas as incoerências das duas tramas são abafadas por um clima da mais completa naturalidade. Dezenas de pessoas bem vestidas saindo subitamente do casebre de Ala´uddin e sua mãe, onde mal cabiam duas pessoas, “corcéis que não existem no mundo”, eunucos, “criados e criadas cuja beleza deixaria pasmado qualquer vivente” (JAROUCHE, 2012, p.79) não espantam a população, muito menos o leitor/ouvinte, já preso aristotelicamente por uma coerência interna habilmente traçada. Ambas as obras apresentam noites que nem Alexandre, o grande, viveu iguais em “melhores tempos” tudo na força da magia e da técnica. No final, a corte e o povo adoram Alau´ddin, que é conhecido pela imensa generosidade e nobreza (antes era malandro): “Deus no céu e Ala’uddin na terra” (JAROUCHE, 2012, p. 90). Ele é um autêntico muçulmano que, dentre outras características, para no rio para “abluir-se”, fazer “prece matinal” etc. (JAROUCHE, 2012, p. 99), mesmo tendo feito um pacto com seu gênio e estar pronto a cometer crimes. O final do texto envolve o leitor ainda mais no clima fantástico: um pássaro chamado roque, capaz de carregar “camelos e elefantes entre as unhas, e voa com eles graças ao seu tamanho” (JAROUCHE, 2012, p.111) seria invocado por capricho do casal real (Ala´uddin e a sua esposa), por malícia do irmão do feiticeiro que Ala´uddin assassinou e que busca mais poder e vingança, só que tal ave era algoz dos gênios, mas tudo se resolve a contento e a narradora diz “isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se eu viver” (JAROUCHE, 2012, p.115).  Ao interseccionar várias realidades, ela vai lembrando e contando, fugindo do esvaziamento e da desvalorização nesse processo. Esta narradora tem seu lócus instalado numa espécie de vórtice do tempo, em meio a lutas pela sobrevivência e o desejo de inebriar os que prestam atenção à sua narrativa num tom coloquial / sensual dá sabor ao texto e o faz fluir.  Já na trama do Pavão Misterioso, Evangelista depois de mirabolantes reviravoltas traz sua amada ao seu país, a Turquia, raptando-a, o pai dela morre, do mesmo modo que o pai da noiva árabe termina aceitando com naturalidade a riqueza do genro. São os casamentos entre ricos de berço, novos ricos e nobres. Resta aos leitores além do deleite com as obras, a riqueza da reflexão transtemporal, do gênio que sai obediente da lâmpada à viagem no pavão misterioso: ficções em trânsito, não importando tanto se o leitor é conduzido num colchão voador árabe ou nas asas de um pavão criado na Paraíba. O enigma da linguagem é um dos mais excitantes da humanidade. O local da diferença é também lócus para desenvolver projeções de amor e ódio fazendo o apreciador de uma obra artística deslizar constantemente de uma posição a outra, provocando o colapso da certeza. Ala´uddin e o Pavão Misterioso são textos que tentam (re)construir narrativas do imaginário social de dois povos, o árabe e o do nordeste do Brasil. Nada que seja estático é do povo, pois este é instável, inclusive na sua significação cultural; se a história é pedagogia a cultura do povo é antes de tudo performática, moldada no momento em que se expressa. Tal urgência exige muita (re)negociação de tempo, termos e tradições.


Referências Bibliográficas
CAMELO DE MELO, José. História do Pavão Misterioso, 3ª edição. Campina Grande: Memorial do Cordel, 2003.

JAROUCHE, Mamede Mustafá.  Livro das Mil e Uma Noites, volume 4. São Paulo: Globo, 2012.

APÊNDICE

Não há originais árabes com a história de Ala´uddin  anteriores ao século XVIII. O primeiro a editar as Mil e Uma Noites, teria sido Antoine Galland, francês que copiou o que o contador de histórias Hanna Diab, maronita de Alepo, cristão sírio, lhe narrou, em 1709. Só no século XVIII a narrativa passou a constar no texto árabe das Mil e Uma Noites. Talvez o conto tenha origem na segunda metade do século XI, já as narrativas das  Mil e Uma Noites  foram compiladas em árabe a partir do século XIII, mas há quem diga  que sua origem estaria no Egito e vindo à luz no século VII, após a conquista árabe do Egito, já,outros apontam elementos europeus na narrativa.
Everardo Ramos escreveu sobre José Camelo de Melo Resende: ele nasceu em 20 de abril de 1885, em Pilõezinhos, na época distrito de Guarabira (PB). Vai à escola e, jovem, parece aspirar a grandes voos, mas as precárias condições de seu meio frustram seus sonhos, fazendo-o simples marceneiro e carpinteiro. A poesia torna-se, então, válvula de escape para sua inteligência e extraordinária imaginação. Começa a escrever folhetos no início dos anos 1920, versejando numa língua perfeita, com precisão da métrica e da rima que o distingue da maioria dos poetas populares. o mesmo tempo, faz-se cantador, compensando seu pouco talento para improvisar com uma astúcia: decora romances que ele mesmo compõe, criando tramas ou adaptando-as das histórias que correm de boca em boca. No fim dos anos 1920, mete-se em complicações e foge para Rio Grande do Norte, onde se esconde por uns tempos. É nessa época que João Melquíades Ferre Pavão misterioso. É nessa época que João Melquíades Ferreira da Silva publica na Paraíba, em seu nome, o romance Pavão misterioso, obra criada por José Camelo. Este denuncia o golpe, mas o romance continuaria a ser atribuído a João Melquíades (N.E.: até hoje se discute a verdadeira autoria desse romance). Seja como for, a história de Pavão misterioso torna-se um dos maiores sucessos da literatura de cordel, sendo reeditada inúmeras vezes, além de inspirar peças de teatro, canção, novela de televisão e filme de animação. Outros romances de José Camelo também têm enorme repercussão, como As grandes aventuras de Armando e Rosa conhecidos por Coco Verde e Melancia; Entre o amor e a espada; História de Joãozinho e Mariquinha; O monstro do Rio Negro e Pedrinho e Julinha, todos editados por João Martins de Ataíde, no Recife, e reeditados por José Bernar Martins de Ataíde, no Recife, e reeditados por José Bernardo da Silva e seus herdeiros, em Juazeiro do Norte. No fim da vida, porém, quase octogenário, o poeta se deixa ganhar pela frustração e amargura, destruindo - segundo seus contemporâneos – umas cinquenta obras de sua autoria. Morre em Rio Tinto (PB), em 28 de outubro de 1964, passando à posteridade como um dos maiores autores da literatura de cordel brasileira.
Referências bibliográficas: ALMEIDA, Átila de; ALVES SOBRINHO, José. Poetas populares paraibanos. Campina Grande: UFPB, 1984, p. 227-237 [mimeografado].
Roberto Benjamin nos ensina: João Melquíades Ferreira da Silva nasceu em Bananeiras, no brejo da Paraíba, em 7 de julho de 1869, e faleceu em João Pessoa em 10 de dezembro de 1933. Foi cantador e poeta de bancada, segundo Francisco das Chagas Batista, seu amigo e principal editor. É considerado um dos grandes poetas da primeira geração da literatura de cordel. Sentou praça no Exército. Participou das campanhas de Canudos em 1897 e do Acre em 1903. Em 1904, já promovido a sargento, deu baixa do Exército, fixando residência na capital do Estado da Paraíba, onde se casou e teve quatro filhos. Manteve vínculo com a região rural de sua origem e escreveu diversos poemas com descrições da Paraíba, especialmente da Serra da Borborema. Adotou o título de cantor da Borborema. É dele o folheto A besta de sete cabeças, em que usa, em epígrafe, textos do Apocalipse como profecia relativa à Primeira Guerra Mundial. Escreve u, também, A guerra de Canudos (identificado por José Calasans). Utiliza material religioso da Igreja Católica da época em folhetos como As quatro moças do céu – fé, esperança, caridade e formosura e A rosa branca da castidade(versificação de um exemplo típico da literatura catequética), além de vários poemas contra o protestantismo (dentre eles, a Quinta peleja dos protestantes com João Melchíades). A ele é atribuída a autoria de 36 folhetos. Átila Almeida afirma que a titularidade de autoria de Melchíades no folheto Pavão misterioso foi plágio de um original de José Camelo de Melo Resende. A opinião não é partilhada por outros estudiosos, considerando que os dois poetas tinham o tal romance como parte do repertório comum de suas cantorias. Ruth Terra destaca que Melchíades é dos poucos que não louva como valentes apenas pobres vaqueiros e, sim, homens de riqueza, como é o caso de Cazuza Sátiro, Belmiro Costa e Zé Garcia.
Referências bibliográficas
▪ ALMEIDA, Átila Augusto F. de; ALVES SOBRINHO, José.Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada, 2 vols. João Pessoa: Editora Universitária-UFPB / Campina Grande: Centro de Ciências e Tecnologia-UFPB, 1978.
▪ BATISTA, Francisco das Chagas. Cantadores e poetas populares, 2ª ed., João Pessoa: UFPB, 1997. 233p.
▪ CALASANS, José. A guerra de Canudos. Revista brasileira de folclore. Rio de Janeiro: CDFB, n. 14, jan-abr 1966, p. 53-64.
▪ FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Literatura popular em verso – catálogo. Tomo I. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1961, 399p.
▪ TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de lutas: a literatura de folhetos do Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983. 190p. il.




Nenhum comentário:

Postar um comentário