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domingo, 2 de agosto de 2015

Análise de dois romances do escritor pernambucano Gilvan Lemos pelo professor Moisés Monteiro de Melo Neto



Menos um grande homem entre os vivos em carne e osso; meu querido Gilvan Lemos está morto; ele me dizia que achava que quando morresse sua obra morreria com ele porque ele não tinha filhos... contou-me algumas das suas mágoas e alegrias, seus papos com Osman Lins...tanta coisa...

Os escritores pernambucanos Gilvan Lemos e Moisés Monteiro de Melo Neto


Análise de dois romances do escritor pernambucano Gilvan Lemos pelo professor Moisés Monteiro de Neto:

1.O ANJO do QUARTO DIA
O romance "O ANJO DO QUARTO DIA", do escritor pernambucano de São Bento do Una Gilvan Lemos (Editora Globo.Porto Alegre.l98l), é composto de humor,ironia,psicologia. A narrativa é o que poderia se chamar de "engajada", termo atualmente em desuso. Lemos é especialista em entreter o leitor com uma prosa que cativa por sua riqueza vocabular e sintaxe acadêmica, unindo tudo isso, paradoxalmente , à maneira simples que os habitantes do interior pernambucano têm no seu linguajar.

O romance passa-se no imaginário lugar Logrador (que engana, lugar de gado) ,onde seus habitantes vivem à mercê de uma família, os Rezendes. O patriarca chama-se Orico Gonçalves Rezende (Orico : trocadilho com "o rico" - riqueza)e tem três filhos de mães diferentes, nesta ordem : Josias, filho de Sara; Jesonias, filho de Nice e Jason, filho de Deolina. O último filho é o primeiro a ser tocado pelo anjo, na verdade o filho de uma artesã do povo, uma excluída : Ana, filha de pais ricos que por ter engravidado de um negro teve seu bebê morto e assim enlouqueceu. Diziam que Ana tinha parte com o "Demo". Ela vive em um lugar afastado da cidade e, numa noite de chuva, recebe a visita de um homem misterioso que a engravida. Nasce seu segundo filho, um menino "bem feitinho", louro, de olhos azuis. Este menino ela esconde da população. O menino morre jovem e se transforma numa espécie de "Anjo vingador".

O último filho de Orico é o primeiro a ser tocado pelo anjo. Quatro dias depois do "toque", Jason morre. Foi a primeira vítima da consciência ( o anjo é reflexo dos que têm contato com ele).
A falta de escrúpulos dos políticos e a hipocrisia parecem ser os alvos favoritos do narrador deste "Anjo do Quarto dia". Gilvan é impiedoso em expor o ridículo em suas diversas modalidades, como no exemplo da prostituta Piranha ( tinha este apelido dado por seu pai ,pois, quando era criança, ela comia tudo e não deixava nada para ninguém ) que tenta encarnar a Madalena-arrependida no caso que envolve "um santo " , o São Codó. A prostituta chega a dizer comicamente que a levassem aos "leões" ou à "fogueira" .A narrativa expõe a fragilidade do catolicismo e da igreja protestante diante da corrupção generalizada do poder político.

A narrativa expõe a fragilidade do catolicismo e da igreja protestante diante da corrupção generalizada do poder político.
Em Gilvan, há um quê de ceticismo e fascínio pela maneira com a qual o povo expõe sua fé : tanto no que se refere aos que vão à igreja protestante, cujo controle pertence a Orico.
Orico distribui comida, atraindo assim aquelas bocas famintas e miseráveis que estão literalmente morrendo de fome. Por outro lado, os que vão à igreja católica também estavam mergulhados na ignorância : um povo que só servia para ser massa de manobra , controlado por ladrões como Orico - que de limpador de fossa passou a chefe político influente por meios escusos, e quer que seus filhos e netos também controlem Logrador com mão de ferro, como ele faz, nem que para isso tenham que cometer assassinatos que recebem apoio da polícia, como foi o caso do assassinato do intelectual Amísio.

Amísio era filho do juiz de Direito Anísio, que termina se suicidando de desgosto após seu filho Amísio ( o nome é uma mistura de Amélia, a mãe, e Anísio, o pai - coisa típica de Pernambuco: misturar dois nomes num só) ter sido morto a tiros dentro da própria casa a mando de Orico, o qual, para ter sua "inocência" comprovada, deu uma festa para os pais do intelectual enquanto seus jagunços executavam o "serviço". Amísio foi morto a mando de Orico porque ousou denunciá-lo em pasquins "subversivos". Aqui, Gilvan envereda na selva dos "anos de chumbo" brasileiros.
Amísio é o típico herói de esquerda , mas não escapa da crítica ferina que Gilvan imprime na sua visão de mundo.
Amísio utilizara- se dos escritos de um poeta e jornalista fracassado de 50 anos que vivia às custas de suas tias, o Codó, que, traumatizado com o fato de Amísio haver " surrupiado" seus escritos secretos que expunham os vexames e fofocas de Logrador, cai doente e morre na cadeia, virando assim estandarte de uma revolta popular logo abafada por Orico.

Além de tudo, o todo-poderoso Orico é alcoólatra é pedófilo, costuma violentarmenininhas de treze anos .A cidade é complacente com seu chefe.
Há um outro intelectual em Logrador, um personagem que não merece muito destaque na narrativa : Gonçalo Guerreiro, " a glória da cidade" , Amísio o detesta porque de poeta do povo, Gonçalo passou a compactuar com a família Rezende.
A última das esposas de Orico, é Deolina , aceita as vontades do velho Orico, que queria viver mais noventa anos pois seus filhos de tão fracos , parecem que foram "trocados no ninho" , pois não tinham sua força. O anjo também aparece para Jesonias, segundo filho de Orico que morre no quarto dia.
Preocupado, Orico manda prender todas as criancinhas louras com sete anos de idade. Não adianta, pois o anjo aparece para o próprio Orico e para o seu primogênito, Josias .
Orico morre e Josias termina de modo patético, temendo a maldição , a gritar no quarto dia: " se eu amanhecer vivo distribuo minha riqueza com os pobres (...) se alguém me salvar da morte, hoje, faço desse alguém o homem mais rico do mundo, me guardem, me garantam, não deixem que eu morra hoje, distribuo minha riqueza, não deixem que eu morra hoje, não deixem que..." .
Estas são as últimas palavras da narrativa de 168 páginas e dezenove capítulos.
2.OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO
Neste romance de Gilvan Lemos (Editora Guararapes.Recife, 1983) destacam-se os seguintes personagens :
FÁBIO MOREIRA - Escritor da fictícia cidade de Bentuna ( Na verdade o romance analisa São Bento do Una, cidade do interior de Pernambuco, onde Gilvan nasceu ). Tem seu romance editado e reconhecido nacionalmente , enquanto sua vida pessoal desmorona com a morte do pai, um casamento infeliz, e uma falta de perspectivas. O narrador insiste em dizer que as coisas do mundo são estúpidas, a exploração dos miseráveis feita pela minoria rica. Fábio funciona como eixo de uma narrativa perspicaz e audaciosa. Gilvan sugere um paralelo entre sua carreira e a do seu personagem. Além de perder a mãe e o pai, torna-se avô. Tem a sensação de ter "perdido" seu tempo. Apanhava do pai quando criança. Não conseguia se "ajustar". Admira o pai, acha-o com "cheiro de pai" ("muito macho")- (pág. 139).
REGINA - Esposa que Fábio preferiria morta, por não compreendê-lo. Acusa o marido de "ciúmes", e só permanece com ele até o casamento da filha dos dois, Leninha , com quem vai morar e ser "avó".
MAURO - Bancário comedido que está em Bentuna para descobrir mais coisas sobre seu pai , Lucas Prado, professor da Universidade Rural morto nos anos da Ditadura militar. Mauro pensa em , talvez, escrever um livro sobre o assunto, já que não se relacionava tão bem com a mãe. Esta relação pai-mãe-filhos-netos é um campo fértil nestes dois romances de Gilvan. Verdadeiro ninho de cobras.
LENINHA- É com este diminutivo que percorre toda a narrativa. O "gato de Leninha", o "casamento de Leninha". O pai não vê muita graça nela. A filha de Fábio e Regina, pronto.
RITA - Empregada atrevida de Fábio. As primeira e as últimas linhas do romance são citações aos seus perfumados lilases, que plantara, e que estavam desabrochando. Cheia de piadinhas, confira na página 91 a maneira como ela trata o patrão, como se ele fosse um fraco.
BENÍCIO VIANA - Um "caga-na-cueca" (atenção para a linguagem usada por Gilvan: isto acontece com Suassuna e com Raimundo Carrero , o uso de termos populares), fingiu-se estudante de Direito no Recife, morando numa pensão na rua da Imperatriz, cercado de prostitutas com as quais fazia farras demoradas. Desmascarado pelo pai enganado, apanhou na frente de todos. Preste atenção: Era Benício que molhava o xerém com álcool para embebedar e matar aqueles pássaros terríveis, símbolos da vilania , como eram os que trouxeram tais bichos para o Recife : são como símbolos dos "norte-americanos europeizados", como bem fica explícito na página 121.
TIÃO - Motorista de "Morcego", seu caminhão que suga dinheiro de tanto quebrar. É com este caminhão que Tião, junto com Edeson, filho de um tal Zacarias, saquearam Bentuna, tirando dinheiro dos corruptos e entregando para a população, incitando-a à revolta.
SEU-JOÃOZINHO- Fazendeiro que rouba incentivos fiscais. É assaltado por Tião e pelo cabo Edeson, num trecho cômico do romance. Está ligado a figuras da repressão militar. É ridicularizado na narrativa.
EDESON- Ex-cabo. Filho de um miserável trabalhador desamparado que, depois de ter trabalhado durante toda a vida, não tem direito a aposentadoria. Revoltado, Edeson saqueia e distribui o dinheiro com o povo, dinheiro que o pai não aceita.
O ESTILO GILVAN LEMOS :
Gilvan Lemos, autor de linguagem expressiva e vigorosa das mais possantes nos anos 60/80 do nosso insosso panorama intelectual brasileiro, é legítimo herdeiro da prosa Regionalista da geração de 30, revitalizando-a com a contemporaneidade de seu estilo .
Características:
  • Espontaneidade nos diálogos.

  • Segurança ao fixar ambientes e tipos.

  • Cria climas densos, dramáticos, misteriosos.

  • Critica a passividade do povo do interior diante da opressão.

  • Não se preocupa muito com a chamada "cor local" , isto é descrição de paisagens, o que só é feito para integrá-las ao lado da construção psicológica das personagens.
  • Zomba de "estrangeirismos", e mesmo dos intelectuais do "sul"

  • Critica a esquerda e a direita num ceticismo que atinge até oanticlericalismo.

Livros Publicados :
NOTURNO SEM MÚSICA - Romance , Ed. Nordeste, Recife /l956 . Prêmio Secretaria de Educação de Pernambuco.2ª edição pela Ed. Bagaço, Recife 1996.
JUTAÍ MENINO - romance, Edições O Cruzeiro, Rio/ 1968. Prêmio Orlando Dantas, Diário de Notícias , Rio . Prêmio Olívio Montenegro UBE -PE . 2ª edição pela Ed. Bagaço , Recife / 1995.
EMISSÁRIOS DO DIABO - romance, Ed. Civilização Brasileira , Rio/1968).Prêmio APL . 2ª edição, Editora 3, São Paulo / 1974 , incluído na coleção Literatura Brasileira Contemporânea. 3ª edição- Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre /1987.
O DEFUNTO AVENTUREIRO - Contos, Ed. Universitária, Recife/ 1974. Menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego , da Ed. José Olympio, Rio.
A NOITE DOS ABRAÇADOS - novelas , Ed. Globo , Porto Alegre/ 1975.
OS OLHOS DA TREVA - romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/ 1975.. Menção honrosa do Prêmio José Condé , Recife. 2ª edição - Círculo do Livro, São Paulo /1983.
OS QUE SE FORAM LUTANDO - contos , Artenova , Rio/ 1976.
O ANJO DO QUARTO DIA - romance, Ed. Globo, Porto Alegre/ 1976. Prêmio Érico Veríssimo. 2ª edição - Ed Globo, São Paulo/ 1981).
OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO - romance , Ed. Guararapes , Recife/ 1983.
MORTE AO INVASOR- contos . Ed. Francisco Alves, Rio/1984.
A INOCENTE FACE DA VINGANÇA- contos , Ed. Estação Liberdade, São Paulo/ 1991.
O MAR EXISTE- novelas ( incluídas no livro acima).
ESPAÇO TERRESTRE- romance, Ed. Civilização Brasileira , Rio 1993.
ENQUANTO O RIO DORME- novela, Ed . Bagaço , Recife/ 1993. (Uma das novelas de "A noite Dos Abraçados" ).
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES - romance, Ed. Bagaço, Recife/1994. 2ª edição, pela mesma editora, em 1998.
NEBLINAS E SERENOS- novelas , Ed. Bagaço, Recife 1994. ( duas novelas de "A Noite dos Abraçados"). 2ª edição 1995.
A LENDA DOS CEM- romance, Ed Civilização Brasileira, Rio/ 1995.
MORCEGO CEGO- romance, Ed. Record, Rio/1998. 


Resumo do romance "Os Pardais Estão Voltando" :
A ação de "Os pardais..." transcorre nos "Anos de chumbo" (O Estado golpista brasileiro pós-64). O narrador critica a mediocridade da cidade interiorana de Bentuna. Com seus típicos cidadãos conservadores e ignorantes,mesquinhos em seus hábitos e costumes:Época do presidente Castelo Branco - "abaixo Deus, ele", diz um dos moradores. ( P -34).
O povo é acostumado : " Não há quem lhes arranque da goela seca uma palavra de revolta" (P- 35).
A narrativa não-linear em sua pulsação irônica , marca o tédio crescente de Fábio ,suas indecisões e conflitos como escritor e como povo. O comunismo surge como pano de fundo ( A famigerada Lei de Segurança Nacional ) , e os brasileiros, " no maior dos apertos vem com gracinhas fazendo chacotas da própria desgraça" (P-86). "Quem neste país não se ilude com carnaval, futebol e piadas, já arribou ou está preso" (P-87). Em Gilvan, a revolta está acima de "esquerdas" ou " direitas" .
É cômico ao falar da palidez de um gato. É irônico ao referir-se ao povo de Bentuna: "tudo buona família" (P-93), "não se sentia tanto a morte de uma batizada, com o céu garantido, situava-se bem melhor do que na Terra , neste vale de lágrimas contaminado" (P-94). Traça paralelos entre Bentuna e o Recife(P-95) : "esta mania de descobrir parecenças...".
São muitas as tramas ao redor de Fábio , o que aproxima "Os pardais..." de uma novela, com seus múltiplos personagens. O Realismo Fantástico (ou Mágico), espécie de literatura do absurdo, recurso muito utilizado pelo colombiano Gabriel Garcia Marquez, é criticado por Gilvan ferozmente como modismo (P -124).
Uma das passagens mais pitorescas do romance talvez seja o ritual que precede a primeira relação sexual de Fábio: o pai examina-o em um banho de açude e decide encaminhá-lo a uma prostituta (P-140).
Outro trecho de destaque é o que diz respeito ao PADRE ALBERTO, chamado pelo povo de "homossexual comunista" por defender a justiça social e questionar determinados valores. O padre é agredido com duas pancadas na cabeça, drogado com éter e colocado , nu, na cama de uma prostituta. Com a fé abalada, o padre desiste de Bentuna.
No capítulo 16, o primeiro parágrafo trata da mudança na paisagem depois de uma "chuva boa". Fábio é "um homem perdido no meio das incertezas, incapaz de encontrar novo rumo" (P-l65) . "Hoje que me embaraço para realizar um romance, voar mais alto em sua realização(...),tenho saudade do tempo em que desejava sefr um grande homem para escrever belos romances" (P-l67).
Nas últimas linhas do romance (capítulo l7) , o discurso de Fábio confunde-se com o do narrador: "Quando os lilases plantados por Rita perfumaram agressivamente a primeira noite do seu desabrochar ..."(Rita, sua empregada. É também assim que começao romance). "Puxou do cigarro uma longa tragada. Olhou o que tinha escrito. Botaria uma vírgula depois de ´lilases‘, outra depois de ´Rita‘? Aquele ´desabrochar‘ também estava chato, muito chato. Riscou-o " .

Assim encerra-se a narrativa : numa espécie de recomeço.

Entrevista com Gilvan Lemos (feita por Moisés Neto para a revista Le Mangue):

 https://www.youtube.com/watch?v=x33Tuc3uCnA



escutem trecho de uma entrevista que Moisés fez com Gilvan Lemos.

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