publicado em seu livro URUPÊS, de 1918
(inicialmente, publicado avulso no jornal “O Estado de S.
Paulo”, em 1914)
VELHA PRAGA
Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados
com as proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não sobram olhos
para enxergar males caseiros.
Venha, pois, uma voz do sertão
dizer às gentes da cidade que se lá fora o fogo da guerra lavra implacável,
fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico.
Em agosto, por força do
excessivo prolongamento do inverno, “von Fogo” lambeu montes e vales, sem um
momento de tréguas, durante o mês inteiro.
Vieram em começos de setembro
chuvinhas de apagar poeira e, breve, novo “verão de sol” se estirou por outubro
a dentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de agosto.
A serra da Mantiqueira ardeu
como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e
acolá, de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas
salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.
À hora em que escrevemos, fins
de outubro, chove. Mas que chuva caínha! Que miséria d’água! Enquanto caem do
céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo, amortecido mas não
dominado, amoita-se insidioso nas piúcas[1], a
fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.
Preocupa à nossa gente
civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em francos e cêntimos,
um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte
advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de humus
destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio
abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralizado e
retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas
insetiformes; a alteração para piora do clima com a agravação crescente das
secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto ou depreciado pela falta de
pastos; as cento e uma particularidades que dizem respeito a esta ou aquela
zona e, dentro delas, a esta ou aquela “situação” agrícola.
Isto, bem somado, daria
algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar ninguém
soma...
É peculiar de agosto, e típica,
esta desastrosa queima de matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem
alcançou tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus, parece
aparentado de perto com o célebre ano 1000 de macabra memória. Tudo nele
culmina, vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram à
regra.
Razão sobeja para, desta feita,
encarnarmos a sério o problema. Do contrário a Mantiqueira será em pouco tempo
toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias – esses dois términos à
uberdade das terras montanhosas.
Qual a causa da renitente
calamidade?
E mister um rodeio para chegar
lá.
A nossa montanha é vítima de um
parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o “Argas” o é
aos galinheiros ou o “Sarcoptes mutans” à perna das aves domésticas.
Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do “Porrigo
decalvans”, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde
ele assiste[2]
se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude,
núa e descalvada. Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos
jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias – seu orgulho e grandeza,
para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da
vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro
– sua tortura e vergonha.
Este funesto parasita da terra é
o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas
que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o
progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da
propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a
picapau[3] e o
isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado
numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.
É de vê-lo surgir a um sítio
novo para nele armar a sua arapuca de “agregado; nômade por força de vago
atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu “agrega-se”, tal qual o
“sarcopte”, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito
o que, salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.
Vem de um sapezeiro para criar
outro. Coexistem em íntima simbiose: sapé e caboclo são vidas associadas. Este
inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca o sapé lhe cobre a choça e
lhe fornece fachos para queimar a colméia das pobres abelhas.
Chegam silenciosamente, ele e a
“sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete
anos à ourela da saia – este já de pitinho na boca e faca à cinta. Completam o
rancho um cachorro sarnento – Brinquinho, a foice, a enxada, a picapau, o
pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três galinhas pévas e
um galo índio. Com estes simpes ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua
a espécie e a obra de esterilização iniciada com os remotíssimos avós.
Acampam.
Em três dias uma choça, que por
eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os
esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das
paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra
local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza
– se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.
Barreada a casa, pendurado o
santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.
Começam as requisições. Com a
picapau o caboclo limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo
adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso da
vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando o palmito
escasseia, raream os tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se
o palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada a estação venatória.
Depois ataca a floresta. Roça e
derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa
beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um
mel-de-pau escondido num ôco.
Pronto o roçado, e chegado o
tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas aqui o “sarcopte” se faz
raposa. Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de dimensões
suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando
dest’arte a insigne preguiça e a velha malignidade.
Cisma o caboclo à porta da
cabana[4].
Cisma, de fato, não devaneios
líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a responsabilidade a salvo.
E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não esteve lá no dia
do fogo.
Onze horas.
O sol quase a pino queima como
chama. Um “sarcopte” anda por ali, ressabiado. Minutos após crepita a labareda
inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento; mas
logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge
fragorosa com infernal violência, devorando as tranqueiras, estorricando as
mais altas frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de
faíscas.
É o fogo-de-mato!
E como não o detém nenhum aceiro,
esse fogo invade a floresta e caminha por ela a dentro, ora frouxo, nas
capetingas[5] ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas
de taquaruçú; caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha,
insolente se o sol o ajuda.
E vai galgando montes em
arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo lento e traiçoeiro até que o
detenha a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega[6].
Barrado, inflete para os
flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para os lados – e
lá continua o abrasamento implacável. Amordaçado por uma chuva repentina,
alapa-se nas piúcas, quieto e invisível,
para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina
carbonizante.
Quem foi o incendiário? Donde
partiu o fogo?
Indaga-se, descobre-se o Nero: é
um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num litro[7] de terra
litigiosa.
E agora? Que fazer? Processá-lo?
Não há recurso legal contra ele.
A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é “tocá-lo”.
Curioso este preceito: “ao
caboclo, toca-se”.
Toca-se, como se toca um
cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito anda ele
a isso, que é comum ouví-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa o senhor não me
toca?”
Justiça sumária – que não pune,
entretanto, dado o nomadismo do paciente.
Enquanto a mata arde, o caboclo
regala-se.
-
Êta fogo bonito!
No vazio de sua vida
semi-selvagem, em que os incidentes são um jacú abatido, uma paca fisgada
n’água ou o filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo
regalo dos olhos e dos ouvidos.
Entrado setembro, começo das
“águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e
arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que para preparar
uma quarta de chão ele semeou.
O caboclo é uma quantidade
negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar
fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua
resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem
virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem; assim
fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua
no terreiro.
Quando
se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o
sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se
apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como
nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do
Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jéca Tatú ou outros sons ignaros, de
dolorosa memória para a natureza circunvizinha.
[1]
Tocos semi-carbonizados.
[2]
Reside; está estabelecida.
[3]
Espingarda de carregar pela boca.
[4]
Verso de Ricardo Gonçalves
[5]
Capins de mato dentro, sempre ralos, magrelas.
[6]
Grota fria onde não bate o sol.
[7] A
terra se mede pela quantidade de milho que nela pode ser plantada; daí, um
alqueire, uma quarta, um litro de terra.
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