Pesquisar este blog

domingo, 9 de fevereiro de 2014

AS FACES INQUIETAS DE FERNANDO PESSOA


Por Moisés Neto

HOMEM SEM FACE: Amamos sempre no que temos . O que não temos quando amamos. O barco pára, largo os remos E, um a outro, as mãos nos damos. A quem dou as mãos? À Outra. Teus beijos são de mel de boca, 
São os que sempre pensei dar, 
E agora e minha boca toca . A boca que eu sonhei beijar. De quem é a boca? Da Outra. Os remos já caíram na água, 
O barco faz o que a água quer. Meus braços vingam minha mágoa 
No abraço que enfim podem ter. Quem abraço? A Outra. Bem sei, és bela, és quem desejei... Não deixe a vida que eu deseje 
Mais que o que pode ser teu beijo 
E poder ser eu que te beije. Beijo, e em quem penso? Na Outra. Os remos vão perdidos já, 
O barco vai não sei para onde. Que fresco o teu sorriso está, 
Ah, meu amor, e o que ele esconde! Que é do sorriso Da Outra? Ah, talvez, mortos ambos nós, 
Num outro rio sem lugar 
Em outro barco outra vez sós 
Possamos nos recomeçar 
Que talvez sejas 
A Outra. Mas não, nem onde essa paisagem É sob eterna luz eterna 
Te acharei mais que alguém na viagem 
Que amei com ansiedade terna por ser parecida 
Com a Outra. Ah, por ora, idos remo e rumo, 
Dá-me as mãos, a boca, o ter ser. Façamos desta hora um resumo 
Do que não poderemos ter. Nesta hora, a única,
 Sê a Outra. 
(POEMA RETIRADO DO LIVRO  Cancioneiro)

FACE 1: Eu sou também  Fernando Pessoa e às vezes assino com meu próprio nome  e minha obra está reunida nos volumes Cancioneiro e Mensagem.
        O Cancioneiro é composto por poemas líricos, rimados e metrificados,
de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um dos poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que reflete sobre o fazer poético:
 
 
              "O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm."
 
 Eu parto de uma dor minha, real, integral, mas sinto uma dor e posso fingir outra que não sinto. Só quem tem personalidade pode ser ator. E eu posso ser vários poetas. Eu criei dezenas deles...Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares e seu Desassossego...
Como    Fernando eu tenho Mensagem (1934), o único livro em língua portuguesa publicado por mim.
Os poemas deste livro estão organizados de forma a compor uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal. Traçando a história do meu país, enveredo por um nacionalismo místico de caráter sebastianista.
        O livro está dividido em três partes: Brasão, Mar português e O Encoberto: a história das glórias portuguesas. as navegações e conquistas marítimas de Portugal.  e o mito sebastianista de retorno de Portugal às épocas de glória.
       Até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois Lisboa, é apresentado:
  "O mito é o nada que é tudo.
    O mesmo sol que abre os céus
    É um mito brilhante e mudo."
        A segunda parte, Mar português, apresenta as principais etapas da expansão ultramarina que levou Portugal a ocupar um lugar de destaque no mundo durante os séculos XV e XVI:
"E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português."
        Já a última parte, O Encoberto, apresenta o misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o mundo:
   "Grécia, Roma, Cristandade,
    Europa, os quatro se vão
    Para onde vai toda idade.
    Quem vem viver a verdade
    Que morreu dom Sebastião?"

Há tantos poetas em mim...Eu amo tudo o que foi
 
 
Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é.  A dor que já me não dói/ A antiga e errônea fé/ O ontem que dor deixou /O que deixou alegria Só porque foi/ e voou E hoje é já outro dia.
De tudo, ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando...
A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...
Portanto, devemos:
Fazer da interrupção, um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...


FACE 2: Eu sou Alberto Caeiro dos 49 poemas da série O Guardador de Rebanhos, escritos na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego, sem interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exatamente a minha completa  naturalidade.
 “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
   Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
   Mas porque a amo, e amo-a por isso,
   Porque quem ama nunca sabe o que ama
   Nem por que ama, nem o que é amar...”
        Tenho  linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Pratico o realismo sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações da poesia simbolista.
        Assim, constantemente oponho-me à metafísica pois tenho o desejo de não pensar. Faço da oposição à reflexão a matéria básica das minhas reflexões. Esse paradoxo aproxima-me da atitude zen-budista de pensar para não pensar, desejar não desejar.

“Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
   A de serem verdes e copadas e de terem ramos
   E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
   A nós, que não sabemos dar por elas.
   Mas que melhor metafísica que a delas,
   Que é a de não saber para que vivem
   Nem saber que o não sabem?”

       Coloca-me, portanto, como inimigo do misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas as coisas. Busco precisamente o contrário: ver as coisas como elas são, sem refletir sobre elas e sem atribuir a elas significados ou sentimentos humanos:
“Os poetas místicos são filósofos doentes,
  E os filósofos são homens doidos.
  Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
  E dizem que as pedras têm alma
  E que os rios têm êxtases ao luar.
  Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
  Eram gente;
  E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
  E se os rios tivessem êxtases ao luar,
  Os rios seriam homens doentes.”
       Os poetas simbolistas estavam impregnados de forte misticismo, herdado da poesia romântica, simbolistas carregavam seus poemas de religiosidade, eu, Alberto Caeiro procuro, de forma coerente e lógica, afastar-me da reflexão sobre Deus.
 “Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
   Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
   Por isso se nos não mostrou...”


FACE 3:Eu sou Ricardo Reis, nasci no Porto e fui educado em colégio de jesuítas, sou médico e vivi no Brasil desde 1919, pois expatriei-me espontaneamente por ser monárquico. Sou latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria, sou discípulo de Caeiro e retomo fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste nos clichês árcades do Locus Amoenus (local ameno) e do Carpe Diem (aproveitar o momento). Busco o equilíbrio, a "Aurea Mediocritas" ( equilíbrio de ouro) tão prezada pelos poetas do século XVIII. A busca da espontaneidade de Caeiro transforma-se em Reis, na procura do equilíbrio contido dos clássicos. Deixa de ser uma simplicidade natural e passa a ser estudada, forjada através do intelecto:
     “Para ser grande, sê inteiro: nada
    Teu exagera ou exclui.
                      Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
    No mínimo que fazes.
                      Assim como em cada lago a lua toda
    Brilha, porque alta vive.”
        Minha linguagem é clássica. Uso um vocabulário erudito e, muito apropriadamente, meus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada: são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis. Nelas, convida pastoras como Lídia, Neera ou Cloe para desfrutar de prazeres contemplativos e regrados:
   "Prazer, mas devagar,
    Lídia, que a sorte àqueles não é grata
    Que lhe das mãos arrancam.
    Furtivos, retiremos do horto mundo
    Os deprendandos pomos."
        Minhas odes recorrem sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo, de caráter erudito, afasta-me da convicção de Alberto Caeiro de que não se deve pensar em Deus. Para Ricardo Reis, os deuses estão acima de tudo e controlam  o destino dos homens:
  "Acima da verdade estão os deuses.
    Nossa ciência é uma falhada cópia
    Da certeza com que eles
    Sabem que há o Universo. 
 

FACE 4: Sou Álvaro de Campos, nasci em Tavira, tive uma educação vulgar de Liceu; depois fui mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fiz a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade."
        Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, apresento três fases distintas em minha poesia. De início é influenciado pelo decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escrevo poemas pessimistas e desiludidos.
        No poema Opiário, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifico e rimo. Escrevo quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico e já me apresenta amargurado e insatisfeito:
   "Eu fingi que estudei engenharia.
    Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
    Meu coração é uma avozinha que anda
    Pedindo esmolas às portas da alegria."

        Depois envereda pelo futurismo, adotando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade, do que resultam poemas como Ode Triunfal:
 "À dolorosa luz das lâmpadas elétricas da fábrica
   Tenho febre e escrevo.
   Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
   Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos."
        Desta fase são também a Ode Marítima e a Saudação a Walt Whitman. Homenageio o grande escritor norte-americano, além de me referir ao conhecido homossexualismo de Whitman, com o qual pareço comungar, revelo uma das mais fortes influências sobre o meu estilo:  Meus poemas são marcados pela oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa. Desprezo a rima ou métrica regular. Despejo meus versos em torrentes de incontrolável desabafo.
        Da minha última fase é o poema Tabacaria, onde me apresento um poeta amargurado, refletindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência:
 "Não sou nada.
   Nunca serei nada.
   Não posso querer ser nada.
   À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
        Assim como Ricardo Reis, eu também confesso-Me discípulo de Alberto Caeiro. Mas se Reis envereda pelo neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, eu me revelo inquieto e frustrado por não conseguir seguir os preceitos de Caeiro. No poema que se inicia pelo verso "Mestre, meu mestre querido", dialoga com Caeiro, revelando toda sua angústia:
 "Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
   Meu coração não aprendeu nada.
   (...)
   A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação."
 

Poema em linha reta  
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
que tenho sofrido enxovalhos e calado,
que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
que, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
arre, estou farto de semideuses! 
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. (Álvaro de Campos)

Sou Eu (Álvaro de Campos)


Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de ônibus,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa por mim na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Sou eu mesmo, que remédio! ...

FACE 5- Eu sou Bernardo Soares: Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar..Sofri em mim, comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse - de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. (...) Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja? Quem sabe o que é para si mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos, e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.

Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio nocturno à beira-mar.


Nenhum comentário:

Postar um comentário