Pesquisar este blog

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Análises dos livros “O Mulato”, ”Memórias de um Sargento de Milícias”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “A Lenda dos Cem”, ”Muito Além do Corpo”, “Os Rios Turvos”, “Os Sertões”. Pelo professor Moisés Neto




“O Mulato”


Aluísio Azevedo (São Luís, MA, 1857-Buenos Aires, Argentina,1913),traz no seu texto uma aproximação com a sintaxe lusitana, e neste livro naturalista, aponta alguns vícios de linguagem do Nordeste brasileiro. Há em “O Mulato” uma forte crítica à hipocrisia da vida provinciana de São Luís, caricaturada aqui na forma de anticlericalismo(o padre, depois cônego Diogo é devasso, mentiroso e assassino), denuncia do preconceito racial (eixo da trama), foco no aspecto sexual (a paixão do protagonista, Raimundo, e Ana Rosa, sua prima, é “carnal”) mas, o golpe final é exibir ao leitor o triunfo da maldade e mostrar que o “mulato”, não era também tão inocente assim, afinal era preconceituoso e tinha lá suas “taras”. Mas o autor também o idealiza.
Raimundo tem olhos azuis, cabelos lustrosos, tez amulatada, mas fina, apesar da mãe dele ser “negra retinta” e o pai “branco”.
Aluísio, como sabemos é determinista e atribui ao meio, raça e ao momento, uma força irresistível.
A trama parece com as do Romantismo: uma história de amor que as tradições e o preconceito impedem de se realizar. A diferença está na “despreocupação” com a moralidade, na literatura “engajada”, na observação e análise da realidade, nos temas da patologia social(taras, vícios, problemas sociais/familiares, miséria, adultério, criminalidade, desequilíbrio psíquico, problemas ligados ao sexo).
Com a publicação de “O Mulato”(1881) teve início o Naturalismo no Brasil(vindo da França, Emile Zola). Aluísio também sofre influência de Eça de Queiroz.
Azevedo vivia do que escrevia(depois tornou-se diplomata) e escreveu tanto dramalhões quanto romances “engajados”.
O protagonista Raimundo ignora a própria cor e condição de filho de escrava(Domingas), não entende porque sofre o preconceito da sociedade de São Luís, ele, que era um doutor formado na Europa!
A família  de Ana Rosa o humilha. No final os namorados planejam fugir e ele é assassinado e Ana Rosa casa com um homem de “bem” (o caixeira Dias, assassino de Raimundo).
Há uma sátira aos maranhenses: o rico grosseiro, a beata mau-caráter, o padre depravado e conivente. O autor era contra a sociedade reacionária de sua cidade, que ao se identificar na trama que ele criou fica chocada.
A narração em 3ª pessoa (onisciente) exibe Domingas (ex-escrava de José Pedro, pai de Raimundo) como vítima dos ciúmes de Quitéria (mulher de José) que mandou queimar as “partes sexuais” da antiga escrava.
Pressionado pela mulher, José não vê outra saída a não ser entregar o filho bastardo para que Manuel Pescada, que “apadrinhou” o rapaz, o criasse.
Um dia José Pedro encontrou sua mulher mantendo relações sexuais  com o padre Diogo na sua cama. Matou a esposa.O padre viu e calou para escapar do escândalo. Mas o tal vigário trama a posterior morte do José. O tempo passa e Raimundo forma-se e pretende casar-se com Ana Rosa. O caixeiro Dias ajudado pelo (já) cônego Diogo, assassina,com um tiro pelas costas, o mulato Raimundo.
A família da moça (que estava grávida, do primo mas fez aborto), principalmente sua avó, fica mais tranqüila quando a menina faz o casamento de conveniências e gera “três filhinhos”.

“Memórias de um Sargento de Milícias”


Manuel Antônio de Almeida (médico, jornalista e funcionário público carioca, 1831-1861)

Aos 22 anos, o autor, sob pseudônimo de “um brasileiro”, publicou este romance picaresco em forma de folhetim. Isto não significa que se trate de um dramalhão.Pelo contrário, a história do malandro Leonardinho, que só quer se dar “de bem”, tem ginga e malícia, o “veneno da raça” brasileira, seu cheiro e tempero à maneira de personagens anti-heróicos, modalidades de pícaros.
Manuel Antônio, posteriormente, viu sua obra transformada em livro (1854-1855). É bom lembrar que o senhor Almeida ajudou um jovem iniciante nas Letras: Machado de Assis.
Este “Memórias de um Sargento de Milícias” é uma caricatura cheia de astúcia para exibir a decadência urbana da sociedade do Rio de Janeiro no início do século XIX.Tem enredo meio comédia pastelão, exagerada e popularesca, numa linguagem jornalística que buscava retratar o Rio da época de Dom João VI (o “rei”). São memórias, mas o narrador está em 3ª pessoa e não exprime uma visão de classe dominante. A linguagem busca o tom coloquial.
Leonardinho, cujo pai Leonardo Pataca fora traído pela mulher (Maria  das Hortaliças, mãe do protagonista), assistiu à sua mãe abandonar o lar. O menino é enjeitado pela mãe e depois pelo pai. Vai ser criado pelo padrinho e depois pela madrinha. O jovem transforma-se num conquistador barato e só quer saber da boa vida. Conhecemos com ele um Rio de Janeiro apimentado.
Um jogo social e amoroso surge: Leonardinho quer se casar com Luisinha, mas ela descobre que ele é amante de Vidinha, então... ela casa com José Manuel – partido mais seguro conforme pensara a tia de Luisinha.
Nem tudo estava perdido: Leonardinho foi preso pelo Major Vidigal (chefe de polícia). Por meio de algumas trapaças sai da cadeia, já como “praça”. É preso novamente. Novos “golpes” da sorte o transformam em “sargento de milícias” (tropas). Luisinha fica viúva e cai nos braços do (ex?) malandro. Vão casar-se.
O texto é ágil e faz-nos refletir sobre os tipos, crendices, ambientes e costumes daquela época.”Início” da malandragem carioca. Apesar disto, não é realista. Trata-se de um Realismo espontâneo, arcaico. Alguns críticos o apontam como um romance de “transição”. É um caso a se pensar.
Leonardinho é comparável a outro herói sem nenhum caráter: Macunaíma , do romance paulista de Mário de Andrade(1928-Modernismo).

Filho de um beliscão e de uma pisadela - Imigrantes, os pais dele se conheceram numa viagem de navio para o Brasil, e usaram um artifício em moda: ele pisou no pé dela e ela deu-lhe um beliscão nas costas da mão esquerda. Engravidou na viagem. Quase todos os personagens nesta narrativa são “trambiqueiros”. É o “jeitinho” brasileiro nos seus primórdios. Não há idealização dos personagens, que geralmente são de classe inferior: barbeiros, comadres, parteiras, meirinhos (oficiais), saloias (cariocas maliciosas, no que lembravam, as camponesas que viviam perto de Lisboa).
Há uma ruptura com o maniqueísmo bem/mal, herói/vilão, típico do Romantismo. (nivelamento)
Para driblar a miséria e se dar bem, os personagens fazem o que for possível. ”O espelhamento foi distorcido apenas pelo ângulo da comicidade”, disse o professor Alfredo Bosi. Predomina a imaginação e o improviso sobre a reconstituição histórica e as indicações documentárias são reduzidas, daí à denominação Romance de Costumes.
Manuel Antônio de Almeida é “o primeiro a fixar em literatura o caráter nacional brasileiro”, a criar um estilo “próprio da comicidade popularesca ou das manifestações de cunho arquetípico – o início do romance lembra a frase padrão dos contos infantis: “Era no tempo do Rei”. No mesmo campo, vemos as “fadas boas” (Padrinho e Madrinha) e o tipo agourento (a Vizinha), que vivia dizendo que o menino jamais chegaria a ser padre.
Vemos, no romance, categorias sociais típicas. Como exemplo da descrição dos costumes temos a Procissão dos Ourives (o retrato físico e moral de um povo); a Estralada, a festa animada de aniversário da cigana – mulher com quem o mestre de cerimônias foi pego em trajes menores (por Leonardinho); a capoeiragem – que exibe o traço físico e moral do capoeira; as festas religiosas, etc.
Podemos afirmar que o romance é social não por seu caráter documentário, mas por exibir “o ritmo geral da sociedade” e dos tipos que a formam.
Observar esquema:

       Leonardo                            Ma das Hortaliças
       Pataca      pisadela/beliscão            (mãe)
       (pai)
                  Leonardinho (desordem)        Soldado
                   (herói?)                      Sargento
Luisinha
Vidinha                  Major Vidigal (ordem) x Maria Regalada
                                       (ex-amante de Vidigal)

O autor morreu no auge da carreira num naufrágio. Era 2º oficial de negócios da Fazenda.Deixou um drama lírico (“Dois Amores”), algumas traduções e sua tese de Doutoramento.


“Memórias Póstumas de Brás Cubas”

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio 1839-1908) foi romântico, parnasiano e realista.É desta última fase o romance “Memórias Póstumas...” (1881), livro que serve de “marco inicial” desta escola no Brasil.

Vemos a ele: ruptura com a narrativa linear, metalinguagem, pessimismo, ironia/humor negro, citações a autores clássicos (Sthendal, por exemplo), psicologismo,estilo enxuto, desprezo pelas idéias românticas.
Brás Cubas é um homem comum; que não consegue escapar da mediocridade em vida: tudo tentou  e nada deixou: “Não alcancei a celebridade (...) não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento (...) coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto (...) ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo (...) não tive filhos, não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria”.
Estas são as palavras finais do livro, uma “autobiografia” de Brás,narrador-personagem, “defunto-autor” (não autor-defunto) onisciente! Senhor do tempo e do espaço, conta sua história de forma não linear, como dissemos.
Jovem, amou: a prostituta Marcela que quase arruinou o patrimônio da família dele, Eugênia, menina pobre e deficiente física, Loló (Eulália),que morreu e Virgília, que casou com Lobo Neves,tornando-se posteriormente amante do narrador (quando vivo). Virgília chega a ficar grávida de Brás. O filho morre antes de nascer.Há que se destacar o personagem dona Plácida, uma alcoviteira que cuidava da casinha da Gamboa.
Brás é um burguês entediado e sem um objetivo firme na vida.Um dos seus amigos,Quincas Borba, empobrecido torna-se filósofo (funda a doutrina do Humanistismo). Depois de enriquecer devolve um relógio que roubara do narrador e mergulha em peculiar loucura.
Cubas tenta produzir um “emplastro”, um remédio que levaria seu nome. Pegou uma pneumonia e veio a falecer antes disso. Narra seu velório enterro e fala dos pouquíssimos amigos que a ele compareceu.
Ao referir-se à própria infância diz que foi “incompleta” e “negativa”, a mãe foi “fraca, de pouco cérebro e muito coração”. E ele  foi um “menino diabo (...) dos mais malignos”, batia nos escravos. O pai era omisso  nessas horas. Há também a irmã, Sabina.
Machado deita e rola nas “inovações” narrativas. Há “capítulos- pílulas, outros só com reticências (cap. CXXXIX: “De como não fui Ministro d´Estado”)
Este romance foi publicado a primeira vez em folhetim (!) em 1880.O cinismo em jogar com a realidade, a fantasia, o desencanto de existir e a importância da experiência no jogo social, este baile de máscaras, empolgaram  os leitores de Machado, fascinados por suas técnicas narrativas, seus truques e seu perfeccionismo.
Há que destacar o capítulo CXVII - O Humanitismo: “sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas (...) só há uma desgraça: é não nascer (...) nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias (...) do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente estripado (...) a inveja não é senão admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos, são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude”.
O escritor mostra-se no auge de sua concepção materialista do universo. Com frieza, “sentimento amargo e áspero” e rabugens de pessimismo um defunto-autor conta a história de sua vida, da família e da sociedade da qual fez parte.
Desprovido de qualquer crença na sinceridade dos gestos humanos ou grandeza deles Brás Cubas exibe a podridão dos homens, o jogo de aparência (ser x parecer), o amor por interesse, as formas de ascensão social, mas só o faz porque está do outro lado da vida (não passa, portanto, de um covarde.).
O que chama nossa atenção é a desordem aparente do contar. Começa com O óbito do autor, vai para a origem da família Cubas, volta para a doença – O Delírio, vai para o dia em que nasceu (o dia em que brotou uma graciosa flor, o herói da casa), segue com um episódio de 1814, salta a parte da escola (um salto) que culmina em O primeiro beijo e na prostituta Marcela e segue na desordem que, na verdade, põe em relevo o comportamento humano. As lembranças surgem e são registradas de modo a exibir o homem não como ser supremo da criação, mas como o vil verme: “Trata-se de uma obra difusa na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne...”
Machado despreza as simetrias, o discurso pomposo. Investe na clareza, na sutileza da linguagem, na concisão do estilo. Seu leitor será tratado de várias formas: bobo, ignorante, esperto, “alma sensível” – ao dirigir-se ao leitor de vários modos deseja dialogar e convencer. Usa do humor, da ironia, fragmenta o texto lança mão da multidisciplinaridade de fatos, faz muitas paradas na história (digressões), usa um narrador que emite opiniões, julgamentos e torna tudo relativo (seu narrador é onisciente intruso – sabe tudo e antecipa para o leitor). “Nenhuma verdade é absoluta”, tudo depende do interesse de cada um. Tanto faz o narrador afirmar algo como destruir. Nada é absoluto, nem as filosofias da época ironicamente parodiada no capítulo HUMANITAS.
Outro aspecto importante no texto é o uso de intertextos: “’Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!’ Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco...” (p. 46); com a Eneida de Virgílio: “Arma virumque cano” (p. 48) (canto as armas e o varão, verso inicial da epopéia de Virgílio), com o texto bíblico ao usar referências a episódios bíblicos tais como: “Bem-aventurados os que não descem” (p. 54), “O caminho de Damasco”. “No caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (Act., IX, 7): Levanta-te, e entra na cidade” (p. 55). Brás Cubas faz referência ao episódio da conversão de São Paulo. A origem dessa voz tem como fim mostrar o que pensava Brás Cubas sobre Eugênia, a menina bela, porém coxa. Nele, misturam-se dois sentimentos terríveis: a piedade para com a coxa e o terror de vir a amá-la e desposá-la. Os intertextos são muitos: Pascal, Sterne, Swift, Camões, etc,. Entram sempre para revelar mais e mais o comportamento dos personagens.
Faz uso constante das repetições (de idéias, de imagens – a idéia do emplastro sempre retorna: “Descida o leitor entre o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplastro”). A idéia da morte, do tempo. Machado discute ainda a forma como vai construindo seu romance (Metalinguagem):
“Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à dirita e à esquerda, andam e param.”
Toda narrativa visa a confirmar que a índole de um homem é “efeito das relações sociais”, que a “boa ação dele” nada mais é do que a certeza de ver-se admirado por todos:
“(Cotrim) não era perfeito decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava (...) desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas...”(p. 124)
O mesmo acontece com Brás Cubas ao descobrir um remédio que iria curar a humanidade de todos os males O Emplastro Brás Cubas. Na verdade, o que ele queria era ver o seu nome estampado em todos os lugares.
O remorso é outro aspecto desconhecido pelos personagens a confirmar que precisamos observar as circunstâncias e os lugares em que se econtram, contemplar o gesto vil dos homens por partes. Lembremos o Brás Cubas no capítulo XXI – O Almocreve. O jumento em que estava empaca e Brás Cubas fustiga-o. Este saiu dando corcovos, jogou Brás Cubas fora da sela, deixando-o com o pé esquerdo preso. Disparou pela estrada a fora. Seria a morte certa se não fosse a ajuda de um condutor de bestas – o almocreve – que dominou o bruto. A primeira reação do narrador (o sangue agitado) foi dar ao condutor três moedas de ouro (das cinco que achara na praia). O sangue esfriou e ele pensou em “duas moedas de ouro. Talvez uma”. Olhou para o almocreve, um homem pobre, constatou-o. Chegou a tirar as moedas de ouro hesitou. Trocou por um cruzado, afastou-se com remorso, mas ao ver o almocreve grato, refrescou a alma, a consciência. Eis a Lei da Equivalência das janelas. Afastou-se mais e sentiu no bolso umas poucas moedas de cobre, achou que estas seriam suficientes, afinal que fizera aquele pobre homem a não ser reagir por instinto, “um impulso natural”. Brás Cubas vai diminuindo o mérito do rapaz até nenhum. Com esta reflexão, acaba-se o “remorso”: “Era preciso arejar a consciência.” p. (111) – a consciência sem remorso e o universo todo subordinado à ponta do nariz: equilíbrio das sociedades.
Não esqueçamos a abertura do livro “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias”. Machado abre o romance fazendo uso de um tom cáustico, sombrio indício de como será o seu romance e de como vê a humanidade: cada um por si, a mostrar sua superioridade veja o caso, por exemplo, do escravo alforriado Prudêncio que vergalha um negro na praça só para mostrar-se domínio. (Cap. LXVIII).
Filosofismo, ironia amarga, reflexão profunda em torno do trágico da condição humana, da ´sem –razão´ de tudo(...) apenas um indivíduo louco poderia passionalmente apegar-se à vida(...) antipositivismo(...) sátira(...) cosmovisão machadiana. Numa literatura carente de inquietação filosófica ou existencial, as memórias póstumas de Brás Cubas constituem exceção de superior quilate, a desafiar esfingicamente gerações de leitores e críticos”, disse Massaud Moisés.
Machado abraçou “como fado eterno  dos seres o convívio  entre os egoísmos(..)veio-lhe sempre do espírito atilado um ´não´ao convencional, um ´não´ que , o tempo foi sombreando de reservas, de ´mas´, de ´talvez´, embora permanecesse  até o fim como  espinha dorsal  de sua relação com a existência(...)linguagem da ambigüidade”, disse Alfredo Bosi.
Desde sua fase romântica ele combateu a apologia da paixão amorosa, contrapondo a isso um frio jogo de interesses e fala das máscaras que o homem afivela à consciência tão firmemente que acaba por identificar-se com elas”.
É Machado contra a pieguice,distanciando-se para melhor criticar e paradoxalmente entreter a sociedade, numa conversa meio informal com seu leitor.
Touché! É a comédia dos equívocos.Não há heróis.”Há apenas destinos sem grandezas”, observou  Bosi ao referir-se ao “bruxo da rua Cosme Velho, como Drummond chamou Machado no poema “A um bruxo, com amor”(do livro “ A vida  passada a limpo, de 1959).


“A Lenda dos Cem”

do pernambucano (São Bento do Una) Gilvan Lemos

Todos os capítulos iniciam-se com sueltos (pequenos tópicos) tirados de uma suposta publicação intitulada “O pernambucano” seção “Há um século”.As referentes a 1946,49,56,59,63,64 e 70, foram adaptadas de tópicos constantes no livro “Aos Trancos e Barrancos- Como o Brasil Deu no que Deu”, de Darcy Ribeiro. Os outros (1922, por exemplo) o autor “inventou”.
No 1ª capítulo vemos dois capangas de Meneses assassinando Joca Correia(na verdade João Panta, filho da índia Nacha e do comerciante protestante Mardônio(que era casado com Benvinda). O crime se dá na presença de Pedro Correia (Peto, que é salvo na ocasião pelo seu padrinho Brás, também assassino, capanga de Meneses, que vai encaminhar o menino para ser educado noutro lugar),filho da vítima e neto do cacique Olímpio Picha,avô de Nacha, da fictícia tribo dos Xacuris.Os dois capatazes são homossexuais.Assim como o é também o mandante do crime, Meneses,chefe oligárquico do interior de Pernambuco.
O tópico que abre o livro já fala de norte-americanos que seqüestram crianças brasileiras para usá-las como cobaias em experiências científicas em Nova York. Uma característica de Gilvan: ele é crítico feroz do imperialismo ianque, representado neste livro por Mr. Rodber (que é gay) e sua gangue.
O autor não se curva aos que cultuam somente a forma nem faz concessão aos que preferem o enredo.Se ele emociona e empolga em “A Lenda dos Cem” (ed. Civilização Brasileira. 285 páginas. SP 1995) e nos faz pensar num filme de faroeste caboclo nordestino “antropológico delirante” que narra  a saga de 3 gerações de uma tribo de índios pernambucanos, é porque expõe a violência, os crimes, o heroísmo  e a impunidade que grassam neste estado do Nordeste há tanto tempo, quer seja no interior ou em Recife.
A aculturação indígena, a guerrilha, a luta pelo poder, o delírio, a dramaticidade, a miséria, vão rodopiando num torvelinho bem urdido que é a escrita do mestre Gilvan.
A narrativa é não-linear a saga dos Xacuris é narrada desde 1922 (cem anos de “independência”) até os anos 70, com a tribo esfacelada.
A “lenda dos cem” a que se refere o título quem conta é Olímpio, o cacique decadente: num tempo antigo os brancos vieram  e selecionaram os cem jovens mais fortes e sadios dos Xacuris. Mataram o resto da tribo. Amarraram os cem,como se fossem contas de um estranho rosário. Um escapou misteriosamente. Os índios foram suprir a mão de obra escrava que escasseou. Este que fugiu era protegido de Tupã. Voltou encantado e libertou os irmãos, reconduzindo-os ao lugar onde existira a tribo: arrasado e deserto. Num passe de mágica faz aparecer mulheres Xacuris e uma plantação. Assim a tribo se recompõe. E é em nome desse Moquê que Olímpio lidera o que restou da tribo muito tempo depois e tenta enfrentar os americanos e o pessoal de Meneses que queriam as terras para seus negócios pessoais(minas e fábricas). As metralhadoras dos brancos vencem os Xacuris. Só escaparam Nacha, Antônio Panta (com quem ela se “casa”,já grávida de Mardônio), Pichá (que se junta ao bando de Lampião e Corisco e, já velho nos anos 60/70 vai participar de guerrilhas, onde morrerão Rodber e Meneses).
Gilvan separa os Xacuris em dois blocos: os que se embriagam e prostituem na cidade de Santana da Serra e os que ficam na aldeia: “Nacha se deslumbrara com as bolhas mutantes da gasosa, com receio até de desmancha-las, embora sabendo que as ingerindo mais se deslumbraria” (p.18).
A narrativa constantemente utiliza-se do discurso indireto livre sem pudores em relação a palavrões ou vícios de linguagem: “punhetinha”, “cacunda”, “inda,“sustança”, “muito olhuda, boca sangrosa”. Há também neologismos  como “somiticaria”(p.46) e “desvisível” (p.49)
Nacha é descrita como “casmurra” e tendo “olhos oblíquos”.
O autor é materialista, anticlerical e não perde um efeito cômico, mesmo quando o assunto é massacre indígena, ato sexual, desintegração da família, moralidade.Tudo explode em êxtase verbal crítico e recheado de humor negro que se misturam a “buchada” e carne de sol, casinhas de taipa,bodoque, juá, bacurau. Gilvan é classe média politizada: horroriza-se com o “jeitinho brasileiro” e o descreve com raiva e um certo cinismo. Clama por vingança e justiça.Os Xacuris viviam no vale do Iurubá,banhavam-se no rio Añun (“maternalmente acolhedor,o líquido adaptável ao corpo, morno na superfície, friinho nas profundezas, um frio morno, misturado 2-p.42). Viviam em casinhas simples, uma igreja(padre depravado e ladrão, que aparecia raramente), uma escola que não funcionava. Consideravam-se “pobres”.A única cerimônia que os unia aos antepassados era o Torém (ritual). “O coco se aparentava às danças dos antigos Xacuris” (p. 43). A maioria era analfabeta e não tinham registro da terra que o imperador demarcara (p.39).Estranhavam a ambição dos brancos(p.44).
Cita tribos do sertão/agreste de Pernambuco: Pankararus (de Tacaratu); Tukás (Cabrobó); Kambiwás (Inajá); Xucurus (de Cimbres); Atikuns (de Floresta); Fulni-ôs (de Águas Belas). Espoliados, descaracterizados, roubados vergonhosamente(p.50).Eis a crítica.
Joça Correia (João Panta, que fugiu da mãe, Nacha, e do pai indígena,Antônio- na verdade era filho de branco,Mardônio) vai ser criminoso  e termina  como Édipo: assassina o próprio pai sem saber. Meneses manda matar Mardônio,já velho, porque ele queria investigar o massacre dos Xacuris). A vítima teve seu pênis (imenso) cortado e enfiado na boca.
Ao se relacionar com uma prostituta gerou Peto, o que no início viu este pai ser morto a pauladas como um cachorro e que se vinga matando Meneses no final da trama.
A vida de Peto: Brás o deixa com um casal que o repassa para um professor (Nobre,por cuja filha, Lurdinha, Peto vai nutrir uma paixão não correspondida) que tem uma escola decadente no Recife. Peto passa num concurso público para ser funcionário da Previdência Social, depois de enfrentar a miséria no centro do Recife. Presencia o golpe militar de 64 e testemunha as barbáries dos anos de chumbo. Volta a Santana da Serra para vingar a morte do pai. Encontra Nacha, (quando é seqüestrado por Pichá, que, velho, se transformou em guerrilheiro/assaltante).A velha índia vê no rosto de Peto algo de Mardônio, e algo do próprio filho (o louro JOCA, João Panta/Correia, sobrenome que, ela não sabe, ele adotou ao olhar tal objeto na casa de Meneses).
Inocentado do crime por artimanha de Pichá, Peto volta ao Recife como herói, que se  livrou do seqüestro, e casa-se com Geni, que ele não sabe, é sua prima,filha de Pichá.


LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA

UMA APAIXONADA PELAS LETRAS

 

 

A UPE escolheu a leitura de “Muito além do corpo” (87) e “Rios turvos” (94), romances da pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, como pré-requisito para seu exame de vestibular 2003. Decisão acertada.

A autora vem lutando pela divulgação das letras femininas, com um afã invejável, dirige inclusive um núcleo de estudos com esta temática na UFPE, onde leciona.
Este ano Luzilá vai, ao que tudo indica, concorrer a uma vaga na Academia Pernambucana de Letras. Ela é autora de mais dois romances: “A garça mal ferida” (93) e “Voltar a Palermo”, este último, lançado em 2002, tem como eixo narrativo a história de Maria, uma brasileira cinqüentona, que volta à Argentina, onde havia morado na época da ditadura militar. Na cabeça “recuerdos” sobre um motorista de táxi (Nino, sobre quem sabia quase nada fora uma relação-relâmpago).
Luzilá explica que se inspirou levemente no filho de outro taxista, seu freguês. Que por um dia substituiu o pai, lá em Buenos Aires onde ela morava. E também cavou em si própria e daí retirou a personagem professora, que, metamorfoseada numa pessoa sedenta de amor e movidades que busca saciar-se através de uma velha fantasia amorosa.
O texto de Luzilá, como sempre é extremamente poético. Ela tem uma intimidade total com a criação literária e uma visão particular sobre o “feitiço” das letras.
Do mesmo modo que em “Muito além do corpo”, romance que ganhou o prêmio Nestlé em 88, temos uma personagem que ao questionar-se, reencontra-se numa nova forma de amar, que faz com que ela reflita sobre os intrincados caminhos da paixão.
Se em “Rios Turvos” ela revirou a vida de Bento Teixeira, cristão-novo (autor de “Prosopopéia”, poema que marcou o início do Barroco na literatura nacional) e de sua mulher (um caso que terminou em tragédia), e em “Humana, demasiado humana” ela destrinchou/forjou a alma de Lou Andréas-Salomé (que foi amante de Rilke e Nietzsche) em “Voltar a Palermo” ela mostra uma fêmea em busca de si mesma e de um tempo que talvez seja reencontrado.
Há passagens que  nos lembram Mauro Mota: “Abri a janela e de súbito Buenos Aires inteira foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me penetraram, como nos penetra o cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores vários, gasolina e óleo queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de flor, beleza a se esparramar ao longo da nueve de julho, que nome tinham aquelas árvores? Um dia eu soubera, quando ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma extensão do meu corpo”.


LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA: MUITO ALÉM DO CORPO”



Muito além do corpo”, Romance da Pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira (prêmio Nestlé de Literatura Brasileira – 3º lugar, 1988, 79 páginas, editora: Scipione) é repleto de inventividade, dando menos valor ao ambiente e aos costumes, a autora aprofunda-se na dimensão existencial das personagens, no caráter psicológico e social. O livro se divide em quatro partes: Tu, Eu, Ele e Tu (Ele).
Há que se considerar também a poeticidade enxuta, uma “interferência lírica”, como ressaltou o mestre Adonias Filho, que “assegura por sua vez o acabamento ficcional em todas as suas exigências literárias”.
Luzilá vai “muito além do corpo”, até os limites da imaginação, do intimismo, buscar o reconhecimento do ser humano, como o francês Proust, em outra perspectiva, tentou no seu “Em busca do tempo perdido”.
É o horror e a surpresa refrescante de uma intelectual vendo chegar, o analisado previamente (idealizado), amor.
O romance começa com a narradora (1ª pessoa) descobrindo a ação do tempo no corpo do seu amado, “um pouco de ventre que me comoveu (...) o vinco na testa (...) então me fazia pequena e redonda, e o frio e a tristeza se dissolviam (...) a respiração dele me aquecia a nuca e o coração (...) eu amo este corpo, eu amo este homem (...) havia algo além daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tu mesmo ignoravas. E eu: apenas pressentia”.
Quem é esse “tu”, a que a narradora se refere? (p. 8) trata-se de uma referência a um terceiro, que pouco a pouco vai se revelando.
“Algo mais para que o contato com o corpo de um homem provocasse em mim aquela deliciosa desordem de vísceras e alma, e cada vez que tentara amar só de corpo, sempre restara o vazio no após (...) à sensação de solidão se mesclava uma leve náusea: que fazia junto de mim aquele corpo insuficiente?” (p. 8) “contigo nunca fora assim” (novamente a narradora aponta para um terceiro vértice).
“Homem e mulher, e cada um se espelhava no outro semelhante, cada corpo remetendo ao outro, companheiro”. (p. 9). “Um tácito acordo de espírito (...) macaíba em flor (...) terra molhada”.
No Capítulo II, a narradora apresenta sutilmente, e de modo sempre “enxuto”, seu amante, evitando uma noção demasiado romântica da vida. E temendo a felicidade como algo “pequeno-burguês”. Luzilá parece querer agradar ao júri que lhe deu o 3º lugar no concurso (Adonias Filho, Eduardo Portela, José J. Vieira, J. Garbublio e Álvaro Gomes), mas ela se supera na arte de escrever e resolve “começar do começo cronológico” (p. 13).
A narradora usa sempre o “tu”, em vez de você e salpica o texto com frases como “amar é sempre uma tomada de posição contra” (p. 15) ou “aquela parte de mim que por ti ardia” e “éramos seres de exceção” (p. 16). E finalmente o nome do amado: “Mário (...) não estou sabendo resolver tua ausência dentro de mim”. Um pouco intelectual não? E um toque de Clarice Lispector também permeia todo o texto como uma sombra: “tudo era pesado e misterioso (...) então não mais eras Tu e sim um Ele escorregadio” (p. 22).
Há um individualismo pressionando o relato amoroso: “Preciso me encontrar a sós comigo mesmo”, e o discurso do outro: “que tua figura não se interponha entre mim e o que posso viver às vezes”.
Então a narradora fala da paralisia do seu amado.
A 2ª parte do livro (“EU”) dialoga com Cecília Meireles: “também não sei em que espelho ficou perdida minha outra face (...) quem é essa que assim me fita?”, a narradora atribui ao astigmatismo não ter se visto assim antes (humor). “A gente deveria possuir vários nomes”, nova referência a poetas: Fernando Pessoa, Mário de Andrade: “Eu sou trezentos”. Há também existencialismo: “sou tantas (...) neste corpo que carrego há mais de quarenta anos”. E o toque feminino: “Mulher é coisa complexa (...) bicho monogâmico (...) agora seu maridinho chegou, meu amor” (p. 29). E retoma: “Quarenta anos foram precisos para chegar a isto, e, toneladas de alimento e amor e tanta literatura”, aqui uma nota autobiográfica: a menina-moça Luzilá funde-se com a quarentona narradora na paixão pelos livros: “a fala silenciosa dos que haviam partido tantos anos antes” (p. 31). E trabalha a metalinguagem, questionando-se sobre “o fazer” do livro. (p. 31).
Outro poeta é citado nesta 2ª parte: Drummond (p. 32): “Amor é privilégio dos maduros” e Romain Roland: “o cúmulo da dor confina com a libertação” (p.33)
Luzilá é poética. A narradora rememora a infância: episódio da declaração de guerra (Brasil x Alemanha) e medo do mundo acabar: “sentada na escuridão, eu chorei pelos lírios que nunca floresceriam (...) naquela noite eu aprendi a primeira lição sobre o limitado poder do amor” (p. 37)
Há também um toque de James Joyce, num discurso direto/indireto onde o fluxo de consciência transcorre como “as frutas que boiavam na água, caindo ploc ploc ploc” (p. 38)
E veio o episódio do bodinho (nome: em flor, enflor), que a narradora ganhou quando criança, e que a machucou quando cresceu, “amor às vezes maltrata” e que foi vendido para abate. “Todo o mundo vai ter que morrer um dia. E de repente o mundo todo virou uma coisa triste, uma prisão e ninguém podia sair de dentro dele” (p. 40)
Há uma certa confusão sobre “usina” (p. 40) e “engenho” (p. 43) na narrativa que mergulha de repente nas histórias paralelas ao núcleo central do romance. “Causos” da juventude da narradora nos típicos lugares do interior de Pernambuco.
Chegamos na última parte do livro: “Ele”, que começa assim: “Dia de São João”, íamos nos encontrar à noite (...) olharíamos balões no céu: (...) copinhos de canjica (...) ramos de ingá (...) lembrava uma paisagem de Post, e o céu estava azul. Fizeram fogueira”. (p. 53)
Há metáforas como “um silêncio equívoco esticava os fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, que a narradora usa para introduzir o tema da separação do amado, naquela mesma noite de São João em que fora ao cinema e conhecera o outro: “em silêncio nos amamos por séculos (...) estranha foi a volta para ti, depois daquele encontro com ele” (p. 57) e a narradora conta ao amado como é bonito seu novo amor: “deve ser, teu rosto resplende”, responde ele (p. 59)
Vem a ruptura, que Luzilá trata poeticamente.
“O corpo é metáfora de nós, sinal evidente de algo mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno” (p. 60)
E a narradora também é brega: “Te amei como ninguém te amou querida, de ti o menor gestor adorei” (citando “perfídia”) ao descrever o choque da separação e o bilhete, “não me procura, por favor, teu”, que o outro deixara. E vem um texto muito bonito sobre os amantes verdadeiros que se separam: “partiste e ficou em mim aquela parte de ti que só a mim pertencia e que está colada em mim, como uma segunda pele. Como fiquei em ti, e disso o sabias: que te indo, eu te acompanharia, menina acocorada e quietinha em algum lugar de ti, a te espiar, a te amar de longe, a te dar a certeza da impossível solidão, eu em ti, eu do teu corpo” (p. 61)
Luzilá repete as mesmas metáforas (p. 29 e 62): “transmudados em sombras esfumaçadas...”
A narradora se entrega a um jovem vinte anos mais jovem e ele diz: “amo suas rugas e seu cansaço”. E ela pensava: “envergonhava-me quase, de não poder lhe ofertar a pele de pêssego (...) seus dedos refaziam o caminho que o tempo abrira no canto dos meus olhos, no vinco da testa, ao lado dos meus lábios, as marcas de tanto sorriso, tanta dor, tanta vida” (p. 64)
Há um “deslumbramento”  subjacente: “eu voltava aos quinze anos e ele era o meu primeiro amor (...) o nosso amor era o perfume do amor”.
Luzilá é sereia e nos encanta com sua poesia.
Há também um toque daqueles romances típicos dos anos 70: um caleidoscópio psicodélico que numa página junta Freud (“machista”), Woody Allen (“genial”), Bethânia (um “sarro”), uma calabreza e mais dois chopinhos (p. 68)
Sobre o seu “segundo homem” no livro, a narradora compara: “Ele quase com a duração de um relâmpago, passou em minha vida, deixando-me encandeada” (p. 69), ou: “amor meteoro” (p. 70)
E o corpo termina só, “a inenarrável solidão dos seres sobre a terra” (p. 71). E “tu sob a terra, onde já não chegam cores, nem perfumes nem sons (p. 72)
O “tu” parece ser tanto o amante, quando o leitor de Luzilá: “Eu te amo, tu do outro lado” (p. 73)
“Tua mão buscou a minha. Aproximei minha face de ti,
– Queria teu perdão, falaste.
– Te amo, respondi” (p. 79).
Luzilá não precisa turvar águas para parecer profunda. Ela tem autenticidade verbal. Seu romance é como a ponta de um iceberg: faz-nos supor o que não se escreveu. O familiar nela torna-se fonte de estranhamento. Joga com o leitor, surpreende-o com pequenas armadilhas, busca sua cumplicidade ao mesmo tempo oferece fruição estética. Com ela mergulhamos num universo feminino poético essencial fascinante, insinuante, compacto, sugestivo.
Em “Muito além do corpo”, ela tece e destece, qual Penélope, as tramas de dois amores entrecruzados, às vezes meio neobarroca, na sua paixão por Bach, nas comparações entre as fontes da vida e a morte (p. 60) , no êxtase.
Criou um romance (novela?) moderno, cheio de impulso vital. Tentativa de conjurar passado e presente num texto sintético e denso, imagem a imagem, balançando entre o corpo e o espírito.
Luzilá, pernambucana que soube buscar no silêncio da palavra a força da linguagem.
A UPE (antiga FESP) está de parabéns ao escolher esta autora como básica para seu exame de admissão 2003.


Os Rios Turvos

“Do amor não vi senão breves enganos...” formadores dos Rios Turvos da minha vida.

“Um único amor amara ... vinte anos, dos trinta e sete de sua vida e só preocupações, invejas, sobressaltos. Um ciúme tão grande que melhor seria se não tivesse amado, mas viver sem amor ninguém pode, “é doce o mal que nos causa uma mulher.”
O romance Os Rios Turvos, narrado em 3a pessoa, lembra a função documental que teve a arte. Trata-se da vida do autor do poema épico Prosopopéia: O português Bento Teixeira, portanto uma biografia (do nosso primeiro poeta) que se mistura à ficção. O tema da obra nada mais é do que a trajetória amorosa do português Bento Teixeira com a brasileira natural do Espírito Santo Filipa Raposa, a grande paixão de sua vida e a responsável por seu destino trágico: a própria mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício acusando-o de judeu e mau cristão e ainda instiga outras pessoas a fazerem. Vai trair o marido por vária vezes, obrigando-o a morar em lugares diferentes da Paranambuco (Pernambuco) do início da colonização.
O apetite sexual da esposa era sabido de todos. Desde adolescente tinha uma malícia natural: Seduzia – com seus olhos belos e verdes até os padres nos confessionários. Bento via-se obrigado a constantes mudanças: Olinda, Igarassu, nas terras de João Paes no Cabo, freguesia de Santo Antônio. Neste último lugar, havia pouquíssimos homens, mas Filipa consegue trair o marido com o frei Duarte Pereira, vigário da freguesia de Santo Agostinho e único homem do lugar.
Ao chegar ao engenho de João Paes no Cabo, pensou que ia controlar a mulher, mas esta era mais esperta e dormira com o padre Duarte muitas vezes (mesmo já mãe de dois filhos) sem que o marido desconfiasse.
Uma das situações mais humilhantes para Bento foi quando a esposa o traiu com um mulato, crime repugnante na época.
Bento Teixeira era filho de pais humildes e cristãos-novos. Seria, portanto, um dos filhos desgarrados de David cuja família abandonou Portugal por conta da perseguição a judeus. Apesar da pobreza dos pais, Bento ao chegar ao Brasil, na Vila de Salvador na Bahia, foi ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras que lhe ensinou latim e o iniciou nas artes. Leu os gregos tais como Ovídio, Aristóteles. Conseguiu estudar no colégio da Companhia de Jesus e fazer algumas amizades que lhe foram úteis mais tarde como testemunhas contra as pressões da Santa Inquisição.
Sem pensar que era um gesto herético Bento traduziu, a pedido do sobrinho Antônio Teixeira, do latim para o português o livro DEUTERONÔMIO, livro da Torá, que Javeh ditara a Moisés – conforme afirmava sua mãe cristã-nova. Porém esta missão caberia apenas à Igreja. Leu livros que figuravam no Index e acabou, pelos colegas, sendo denunciado ao visitador, mas não foi logo preso. Tornou-se alvo predileto da Inquisição e de alguns padres por ele criticado.
Bento esteve um período no mosteiro de São Bento, para onde chega com carta de recomendação.
Ensina latim, aritmética e poesia para sobreviver. Revela-se fiel aos princípios da igreja para livrar-se da Inquisição, mas não deixa de criticá-la: “(...) almeja escravos para a lavoura.” p. 49 este seria o propósito da Igreja, pensava Bento.
Embora não fosse exímio escritor (às vezes criticado pela própria Filipa), Bento fazia sonetos e trovas. Escreveu um poema épico – PROSOPOPÉIA – à semelhança de Camões homenageando o governador da capitania de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque. Seus escritos, no entanto, não tinham a espontaneidade dos versos de Filipa.
A esposa gostava de ler à noite. Ficava com o marido. Liam Gil Vicente, Salomão, Camões, Ovídio, Catulo. Para a esposa, Bento mostrara seus escritos e a ela dizia de sua dificuldade para escrever, fato que não ocorria com Filipa. Às vezes a dificuldade de Bento era usada por Filipa para xingá-lo, outras vezes ela o ajudava.
Apesar de tudo que fizera Filipa Raposa (as traições constantes que levou Bento a assassiná-la) Bento – após a morte da esposa – sentia falta dela, afinal “era uma parte dele que morria. Ele que não soubera o que era amor. Não amou o pai – homem rude, astero, exigente; a mãe que o obrigou a ser judeu; nem mesmo aos dois filhos, cópias de Filipa, “a raposa atenuada em felinos.” Tudo seria diferente se ele não fosse um Pinto, um cristão-novo e ela não fosse uma Raposa, uma cristã-velha? Quem saberia dizer?
Quando matou Filipa, Bento confiou seus filhos a João Paes – dono das terras onde morou em Santo Agostinho. Escreve-lhe e lhe explica sobre tudo que fizera por causa da esposa. Foge para Olinda – o mosteiro de São Bento, onde ficaria (até que a Inquisição o pegasse) escondido.
Antes de morrer, ainda agonizando ao receber o golpe de faca de Bento, Filipa pediu que o marido pegasse em uma gaveta do quarto um maço de cartas – poemas que ela escrevera (ou os amantes escreveram para ela?). Durante a fuga para Olinda Bento os perde. Lê apenas alguns poemas, quase nada.
No mosteiro de São Bento, o poeta ganhou a inimizade de Frei Damião por desafiar o religioso nos seus argumentos espirituais e por denunciá-lo aos outros padres dizendo que o referido frei freqüentava a casa de mulheres casadas como Isabel Raposa e Ana Lins. Por tal feito compra um inimigo declarado.
Em 12 de agosto de 1595, recebeu ordem de prisão. Começam os julgamentos e Bento prepara documentos para sua defesa.
Em 22 de outubro de 1595, é mandado a Lisboa como acusado do Santo Ofício por praticar heresias, ter o sangue daqueles que mataram a Cristo.
Ao redigir os documentos, para se defender das acusações, exibe seu conhecimento. Usa citações eruditas, textos latinos. Quando interrogado pelos inquisidores, sempre se diz inocente, mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece sua culpa. Renega e abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não vem e Lisboa torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600 morre e um ano depois a Santa Inquisição concedeu licença para que se publicasse, em Lisboa, a primeira edição de Prosopopéia.
Bento morreu pensando na sua Filipa de olhos verdes e cabelo de fogo. A Filipa adolescente que lia com ele Ovídio, Gil Vicente, os poemas de amor de Salomão:
“Beije-me ele com os beijos de sua boca porque é melhor o seu amor do que a própria vida. Vive sem amor! se um deus me falasse assim, eu recusaria, tanto é doce o mal que nos causa uma mulher.” – Razão da sua vida e da sua morte. – E morre sorrindo como um pequeno judeu após ter feito sua oração. Morreu pensando no que poderia ter sido e não foi.
Observamos na obra Os Rios Turvos os intertextos que enfatizam sobretudo a temática do amor: Ovídio aparece tantas vezes como epígrafes dos capítulos, o Ovídio degustado por Bento e Filipa em seus serões; Camões de Sôbolos Rios, o Camões dos breves enganos: “Do amor não vi senão breves enganos”; o intertexto bíblico, na história dos judeus, na comparação de Bento a Jonas ‘a caminho de Nínive, o grande mar’ (p. 195), nas citações latinas; nos poemas encomiásticos (escritos por Bento) onde confessava o mistério de um Pai, um Filho e um Espírito Santo e por fim na Prosopopéia aquele longo poema que escrevera em Paranambuco, Pernambuco e os versos à maneira de Camões que lhe vinham sempre à mente:
“Cantem, poetas, o Poder Romano
Submetendo Nações ao jogo duro...” (p. 209)
Filipa Raposa, cristã-velha e Bento Teixeira, cristão-novo dois seres tão diferentes, unidos pelas águas dos Rios Turvos do amor, um amor que nem eles conseguiram perceber na sua inteireza ou até mesmo nas suas contradições.
Destacamos ainda nas brigas de Filipa com o marido (quando ela ao ler os textos dele percebia versos inteiros de outros poetas) uma preocupação com o fazer literário, os caminhos complicados da criação poética percebidos pelos protagonistas. Bento chega a discutir sobre a habilidade de Gil Vicente para compor os versos de Auto da Alma:
“Alma humana, formada / de nenhuma cousa feita.” (p. 23) “Eu e tu, Filipa para dizermos estas cousas, utilizamos todas estas frases (...) Gil Vicente o diz em sete vocábulos.” (p. 23)
Um relato dramático para falar da vida, do amor, do desejo, da inveja, das contradições, do poder da igreja, da morte, enfim, coisas da vida de um cristão-novo do século XVI brasileiro e sua mulher uma cristã-velha. Uma recriação que não esconde o aspecto social do primeiro século da formação do nosso país.


Os Sertões

de EUCLIDES DA CUNHA em 2002: CENTENÁRIO DA OBRA. 25 MIL BRASILEIROS MORTOS: quando? Por quê? Onde? Como foi dito?


Canudos como a mais sangrenta guerra civil do país, que então tinha como chefe o Prudente de Morais. As crianças brancas foram vendidas para bordéis baianos, depois que todas foram violentadas pelos soldados como prêmio.
Enquanto conselheiro cearense fundava canudos em 1893 o rio assistia Sarah Bernhardt, a atriz francesa veio com a “Tosca”, outros, que davam as caras, eram os cangaceiros (que atuariam até 1940).
A maldição de conselheiro começava: Euclides começou a ter visões com “mulheres de branco”. O ministro da Guerra e comandante da 4ª missão foi assassinado (assim como Euclides e seus 2 filhos). E o terreno onde fora Canudos, seria coberto por um  açude,em 1966 (pelo DROCS).
Seria ridículo o monarquismo de Conselheiro vencer a república? Corta essa, Brasil.
4 de Agosto Euclides  chega a Salvador e segue para Canudos onde fica até 3 de outubro de 1897. Lá só ficou 3 semanas (em Canudos) antevéspera da vitória do “Exército Republicano”. Dia 22 de setembro morreu, aos 69 anos, Antônio  Conselheiro mais uma vez a moda francesa de cortar cabeças. A de Conselheiro foi levada para o Rio de Janeiro.
“Divergências estéticas, ideológicas e literárias”, porém Euclides encontrou Canudos intacta, e com maestria  reconstruiu-a de modo exemplar aos nossos olhos para sempre. Para isso o ajudou a polícia popular, os manuscritos (inclusive do conselheiro) e pinçados nas ruínas. E travestiu Canudos em centro nervoso da cultura nosso povo para horror dos urbanóides cariocas e paulistas que resolveram estender até Canudos o seu campo de batatas machadiano (Ao vencedor as batatas!)
Outros jornalistas foram a Canudos. Mas Euclides era o homem certo. Intelectualmente o mais preparado. Pensarmos que anos depois ele retornaria suas rotas para produzir o colossal “Os Sertões”, enquanto trabalhava no projeto de uma ponte, faz-nos levar um murro no rosto criando o quadro do terror e da glória num cenário detalhista. Provocando sensações literárias arrepiantes. Empolgando com sua oratória de Ateu. Que um crítico chamou “linguagem-sucuri” por comprimir tão bem a realidade.
“Cocorobó” é o ridículo nome da represa do DNOCS sobre Canudos,que foi um clã hierárquico segundo alguns, despótico – 5.200 casas. 25.000 mortos. Hoje mais de 100 anos depois o sertão de Canudos continua abandonado, ali onde a imagem da virgem santíssima, segundo a lenda, chorou sangue. Esse açude é bebido, lava e rega.
Conselheiro foi contra o casamento civil que veio com o advento  da República do Brasil (quando a Igreja separou-se do Estado). Mas também não propôs “reforma agrária violenta”. Simplesmente ele tirava da mão de obra barata, o “vigor do negro e a virtude do branco” e dos mestiços.
O povo de Canudos era grandioso, nobre, heróico, mesmo que a metrópole o desdenhasse numa época (fim do século XIX) que o Brasil vivesse 85% no campo, a modernidade no Brasil sempre foi autoritária.
Os Sertões”,publicado em 1902,foi a grande aventura literária de Euclides da Cunha.
 O Escritor Peruano Mário Vargas Llosa escreveu também a história de Canudos em “A guerra do fim do mundo” (1981) onde reafirmou que os jagunços não tinham outra cultura além da religiosa e regional.


SOBRE EUCLIDES DA CUNHA ,O CARIOCA



Euclides tinha 31 anos em 1897,quando foi para Canudos cobrir a guerra,como jornalista.
Fora criado por tias (e órfão de mãe) No Rio estuda no Colégio Anglo-Americano. Vai para (Escola Militar) quer ser Engenheiro Civil, mas sofre influencia de seu primo e influenciado pela posição social que os  militares gozavam no período pós “guerra” do Paraguai vai estudar Engenharia Militar e arvora-se a escritor abolicionista e republicano. Publicando poemas e críticas(um dos seus alvos é a “deplorável infecundidade” dos críticos literários da época). Atrevendo-se a criticar o ministro da Guerra (ele partiu a espada na frente  do Ministro e foi expulso do exército).
Junta-se a Júlio Mesquita (dono de um  Jornal) e quando é proclamada a República do Brasil, ele volta ao exército, faz curso de artilharia, já é segundo tenente. Casa com Ana, filha do homem que entregou a ordem de despejo da família imperial.A esposa no futuro será causa da sua desgraça:para vingar o adultério ele morre em duelo, do mesmo modo seu filho assim sucumbirá.
Euclides é bacharel em matemática, ciências físicas e naturais. É um positivista/naturalista. Um funcionário público (com as implicações que isto traz) e chega a ser capitão (os jagunços de Conselheiro que o aguardem). A ânsia de participar ativamente da realidade leva-o a publicar dois artigos no estado baiano de fim de século.
Se compararmos o fato que Euclides sofria dispepsia (dificuldade para digerir) com a negação que Euclides faz de si mesmo ao criticar os mestiços, com fato dele ser traído pela mulher e interessar-se por problemas públicos, e com o poeta lacrimogêneo,que foi, fisgaremos deste emaranhado o Euclides que olhava para a incultura esmagada pela fé de Antônio Conselheiro (chefe religioso/político de Canudos). Vemos Euclides como um Homero. (Prosador). Seu painel é menos rico, é certo, mas com “magnificência dramática” e “riqueza” de reconhecimentos espirituais”, como enfatizou Stefan Zweig.E lá no fundo:frustrado,traído.
Como Euclides, Antônio Conselheiro viajava muito, também foi traído pela mulher e exerceu diversas profissões. Nosso autor biografa o beato como decadente e “infeliz” em penitência “demorada e rude”, “fantástico e mal-assombrado” capaz de emudecer “vielas festivas” no sertão (onde a “sociedade primitiva” compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres). Seu temperamento delirante, “desvairado”, “insano,monstruoso e autômato”, fez de Conselheiro um “agente-passivo”, no interior de Pernambuco onde passou muito tempo arrastando-se com seus escritos. Um asceta (só pedia o necessário para sobreviver, em esmolas) solitário, dormindo no chão ou em “tábua nua”. Euclides diz que  os primeiros discípulos eram gente avessa ao trabalho, vencida da vida, “rapina”. E Conselheiro uma “múmia”, inteligente, mas “sem cultura... imerso no sonho de onde não mais despertaria”.
Foram 15 anos de penitência e angústias recalcadas. A pele seca cobria a carne morta anestesiada pela dor. “Um estóico” bufão a dizer que a igreja romana obedece a Satanás. O amor em canudos era livre (quase extinção do casamento), mas cons. casava e batizava (o cristianismo voltando ao seu berço judaico?) o povo segue o “rabino” e deixa os padres de boca aberta e igreja vazia.
Conselheiro como dominador incondicional de Canudos, incitou o povo a não pagar impostos .
Canudos tem esse nome por causa de um vegetal que crescia à beira do rio e o povo usava para fazer estranhos cachimbos. Conselheiro muda o lugar em 1893, transformando-a na “Tróia de Taipa” (lembrem-se de  Homero). “A urbs” monstruosa de barro, a civitas sinistra do enfoque surgiu “já feito ruínas”. Feita por um povo que largou de qualquer jeito tudo que tinha para seguir Conselheiro. “Como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente uma noite, por uma multidão de loucos” ,traduzindo a “decrepitude da raça” expressa até em “Santos africanizados e Maria Santíssimas feias como negras”.
O Clã de Conselheiro vivendo sob “a preocupação doentia da outra vida não cogitava instituições garantidoras de um destino na terra. Canudos era o cosmos.”
Comunidade absoluta de terra. Amor livre  entre os matutos “crédulos e iludidos” (?).Sinistros heróis da faca. A cadeia em Canudos era guardada por assassinos que vigiavam os presos, em sua maior parte gente que não que não  rezou direito  ou tomou aguardente:
Na igreja (“Monstruosa”), de um “gótico rude”, prostitutas e donzelas nivelavam-se, negro e branco, ex-rico com miserável em comunhão num Ângelus incrível de Kyries e genuflexões: “Galvanizados por um doido”. Enquanto o resto do Brasil entrava polidamente na civilização republicana. (1894)
Os rudes poetas de Canudos rimavam “desvarios em quadras incolores” (sempre segundo Euclides da Cunha) excomungando a República Demoníaca. Os mortos eram como que “desertores do martírio”.
O Brasil malsinado de indisciplinados heróis, disciplinou o (louvar o cangaço é louvar a máfia). É esta mais ou menos a visão do leitor euclidiano que ao mesmo tempo é como atraído pelo potencial bélico do nosso oprimido povo. Mas o braço dos ricos sobrepõe-se altaneiro, à esquerda e à direita.
Para os matutos a tática da fuga “estonteadora”. Só os dividindo o exército venceu quilombos e revoltas. Enquanto isso o sertanejo qual “titã bronzeado fez vacilar a marcha do exército. E Euclides sai negando a produtividade de Canudos e enfeitando sua narrativa com comparações esdrúxulas” e excessos de adjetivos para louvar os canhões do exército republicano em repentino deflagrar de tiros.
Os soldados (que bebiam qualquer água imunda). Morriam matando os ditos sanhudos, bárbaros ardilosos” que caíam qual “Dédalos rasgados”. Euclides esbanja o termo “psicologia”  em sua narrativa.
Na segunda expedição os soldados carregaram bomba artesiana para aproveitar lençóis líquidos.
Conselheiro: evangelista “humílimo e formidável”. Um feiticeiro na natureza imóvel, no “fastígio da montanha sem uma flor” enfrentaria as tropas do governo descrito por Euclides com humor detalhista, ou horror.
 Quatro expedições foram necessárias para arrasar Canudos “o último espantalho monárquico” um dos batalhões tinha o nome de “Frei Caneca” (!).
Euclides comparando Conselheiro chama Padre Cícero (que tentou ajudar Conselheiro) de “Heresiárca  sinistro”.Os soldados, fujões ou dedicados são reversos desta medalha, títeres do poder que salva, deitavam-se na “mais niveladora promiscuidade” enquanto voavam milhões de balas.
“E assim iam-se os dias, nesse intermitir de refregas furiosas e rápidas, e longas reticências de calma, pontilhadas balas”. (4ª expedição).
O Arraial era inatingível (aquela tapera babilônica (para o exército: raiz de umbu, rapadura, eram “iguarias santuárias”, um cigarro “um ideal de epicurista”).
Descia a noite, Canudos (“O inimigo traiçoeiro”) se  acendia e pelos descampados ecoava o toque da Ave-Maria sobre a seca que já dava sinais em julho;
[Soldados arrasariam Canudos com canhões]
Um litro de farinha para sete “praças” e um boi para um batalhão.
Lá estava Dantas Barreto frente ao sertanejo que defendia o lar invadido.
10 de agosto de 1897: 2049 soldados mortos.
Soldados: “essas máquinas de músculos e nervos feitas para agirem mecanicamente” ,sob a “ pressa inflexível das leis”
Os espinhos inchavam os pés.
Se o sertão tem 377 páginas, Euclides só entra em cena na 277.
“Soldados são heróis”.
A figura de Conselheiro desaparece por mais de 100 páginas [o judaísmo é usado como comparação]. O perfil judaico .
Cirurgiões, jornalistas e estudantes chegam a Canudos.
Setembro de 1897: derrubadas, as duas torres da igreja nova, Canudos já parecia uma “necrópole antiga”.
Do lado dos militares os estudantes riam e contavam anedotas (“férias forçadas”) – a vida normatizara-se naquela anormalidade”, toda agente já se adaptara à situação” .
22 de agosto: morrera o Conselheiro, vítima de um estilhaço de granada. Morreu de “bruços, afronte colada à terra, dentro do templo em ruínas”. (“Aconchegando ao peito uma cruz de prata”).
Dizem que ele teve ataque de disenteria.Isso o teria matado.
Seguem-se degolas estripamentos do povo de canudos.
Um raro negro puro de Canudos (“Espigado e seco”) cabeça lanzuda, cara exígua, nariz chato sobre lábios grossos, dentes oblíquos e saltados” parecia um “orango valetudinário”. Euclides é racista:“Era um animal, não valia a pena interrogá-lo (naturalismo exacerbado, formação positivista atuando).
Uma mameluca,quando interrogado respondia “sei não”, ou, “e eu sei?”(Tal “bruxa” foi degolada)
Aquilo não era campanha, era vingança(contra velhinhos e crianças).A base comum a opressor e oprimidos:os instintos inferiores e maus.
Os prisioneiros eram obrigados a cavar o próprio túmulo.
1º de outubro últimos tiros, “o último trecho de Canudos arrebentava todo”.
A cidadela não se rendeu.
Exumaram Conselheiro.Cortaram sua cabeça e levaram para o litoral.
As reportagens de Euclides foram publicadas em livro em 1902.
Estranho centenário.Notável Canudos, dos Sertões de Euclides.


O ESTILO GILVAN LEMOS

Gilvan Lemos, autor de linguagem expressiva e vigorosa das mais possantes nos anos 60/80 do nosso insosso panorama intelectual brasileiro, é legítimo herdeiro da prosa Regionalista da geração de 30, revitalizando-a com a contemporaneidade de seu estilo.

Características:
•   Espontaneidade nos diálogos.
•   Segurança ao fixar ambientes e tipos.
•   Cria climas densos, dramáticos, misteriosos.
•   Critica a passividade do povo do interior diante da opressão.
•   Não se preocupa muito com a chamada “cor local” , isto é descrição de paisagens, o que só é feito para integrá-las ao lado da construção psicológica das personagens.
•   Zomba de “estrangeirismos”, e mesmo dos intelectuais do “sul”
•   Critica a esquerda e a direita num ceticismo que atinge até o anticlericalismo.

Livros Publicados:
NOTURNO SEM MÚSICA - Romance , Ed. Nordeste, Recife/l956 . Prêmio Secretaria de Educação de Pernambuco.2ª edição pela Ed. Bagaço, Recife 1996.
JUTAÍ MENINO - romance, Edições O Cruzeiro, Rio/1968. Prêmio Orlando Dantas, Diário de Notícias , Rio . Prêmio Olívio Montenegro UBE -PE. 2ª edição pela Ed. Bagaço , Recife/1995.
EMISSÁRIOS DO DIABO - romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/1968). Prêmio APL. 2ª edição, Editora 3, São Paulo/1974, incluído na coleção Literatura Brasileira Contemporânea. 3ª edição - Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre /1987.
O DEFUNTO AVENTUREIRO - Contos, Ed. Universitária, Recife/1974. Menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego, da Ed. José Olympio, Rio.
A NOITE DOS ABRAÇADOS - novelas, Ed. Globo, Porto Alegre/1975.
OS OLHOS DA TREVA - romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/1975. Menção honrosa do Prêmio José Condé, Recife. 2ª edição - Círculo do Livro, São Paulo/1983.
OS QUE SE FORAM LUTANDO - Contos, Artenova, Rio/1976.
O ANJO DO QUARTO DIA - romance, Ed. Globo, Porto Alegre/1976. Prêmio Érico Veríssimo. 2ª edição - Ed Globo, São Paulo/1981).
OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO - Romance, Ed. Guararapes, Recife/1983.
MORTE AO INVASOR - contos. Ed. Francisco Alves, Rio/1984.
A INOCENTE FACE DA VINGANÇA - Contos, Ed. Estação Liberdade, São Paulo/1991.
O MAR EXISTE - Novelas (incluídas no livro acima).
ESPAÇO TERRESTRE - Romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio 1993.
ENQUANTO O RIO DORME - novela, Ed . Bagaço , Recife/1993. (Uma das novelas de “A noite Dos Abraçados”).
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES - romance, Ed. Bagaço, Recife/1994. 2ª edição, pela mesma editora, em 1998.
NEBLINAS E SERENOS - novelas, Ed. Bagaço, Recife 1994. (duas novelas de “A Noite dos Abraçados”). 2ª edição 1995.
A LENDA DOS CEM - romance, Ed Civilização Brasileira, Rio/1995.
MORCEGO CEGO - romance, Ed. Record, Rio/1998.


ARIANO SUASSUNA: O criativo e polêmico mestre das Letras no Nordeste.

“Eu vi a Morte, a moça Caetana,/ com o manto negro, rubro e amarelo./ Vi o inocente olhar, puro e perverso,/ e os dentes de Coral da desumana / Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel(...) Ela virá, a Mulher aflando as asas,/ com os dentes de cristal, feitos de brasas (...) só assim verei a coroa da Chama e Deus, meu Rei, / assentado em seu trono do Sertão”.

Ariano Suassuna (Sonetos: “A Moça Caetana” e “A Morte”)
Uma análise da obra teatral de Ariano Suassuna nos faz mergulhar nas nossas origens culturais. Num recuo positivo em direção às sucessivas fontes que nos fizeram quem somos hoje: misto de regional e universal.
Os primeiros colonizadores trouxeram para cá a cultura européia, transmitida oralmente. Assimilada pelos nordestinos, desenvolveram-se as influências ibéricas e mediterrâneas.
Uma das influências que Ariano sofreu foi a dos escritores Gil Vicente, português, e do espanhol Calderón, ambos homens de teatro na época das grandes descobertas. Suassuna pratica o entrecruzamento de textos, adaptando várias obras populares (do cordel ao teatro europeu) ao seu modo. Conserva a língua popular, mas, com grafia e correção gramatical eruditas. Prepara o espectador para uma moral conforme o cristianismo. É muito comum em suas peças a cena de um “juízo final”(juiz-acusador-defensor-réu).
Além de usar textos alheios, recriando-os, Ariano pratica a intertextualidade, refazendo cenas de suas peças(exemplo: “O auto da Compadecida”) e enxertando-os em outras (em “A pena e a lei”).
Suas fontes vão de Shakespeare até a Bíblia. A intertextualidade (“comunicação entre textos”) era prática comum desde a Idade Média. Ariano a mantém, utilizando o cordel, o bumba-meu-boi, o mamulengo e também mistura o popular ao erudito (Cervantes, Moliére), fazendo tudo às claras, muito bem explicado em prefácios, palestras e aulas.

PEÇAS PRINCIPAIS:
O AUTO DA COMPADECIDA (1955): Como sabemos, um “AUTO” é o teatro medieval de alegorias(pecado, virtude, etc.). Personagens como santos, demônios. É um teatro de construção simples ,ingenuidade na linguagem, caracterização exacerbada e intenção moralizante, podendo conter o cômico. Para escrever esta peça, Suassuna baseou-se em folhetos populares - primeiro e segundo atos baseiam-se em, respectivamente, “ O Enterro do Cachorro” e “A História do Cavalo que defecava dinheiro “, textos de Leandro Gomes. O terceiro ato é uma mistura de “O castigo da sabedoria”, de Anselmo Vieira e “A peleja da alma”, de Silvino Pirauá Lima. A invocação de João Grilo à Maria e o nome “Compadecida” também são inspirados em textos populares. João Grilo é o herói picaresco, passou fome e mente para ganhar o que quer, seu amigo Chicó também é mentiroso. A infidelidade da mulher do padeiro, a mesquinhez deste, o anticlericalismo e o cangaço são analisados por Suassuna num julgamento presidido por Maria, Jesus (negro) e atiçado por uma figura diabólica. No final, João Grilo volta à vida depois de morto.
A FARSA DA BOA PREGUIÇA (1955): Escrita em versos livres, tem trechos cantados. Cita a Bíblia e Camões, poeta da Renascença portuguesa. Cada ato tem uma certa independência um do outro (“O peru do cão coxo”, “A cabra do cão caolho” e “O rico avarento”). A inspiração de Suassuna desta vez recai sobre a arte do mamulengo, teatro de bonecos do Nordeste, com suas pancadarias e mestres, sua trama simples, como por exemplo, o patrão sempre é culpado. A história do diabo que quer levar uma mulher e um homem para o inferno. A exploração do homem pelo homem. A falta de caridade , a preguiça, a prova imposta à mulher, a vitória, seres celestiais disfarçados de pedintes e seres infernais oferecendo o pecado são temas que mais uma vez nos remetem à referida simplicidade medieval que apontamos no início deste estudo.
O CASAMENTO SUSPEITOSO (1957): É uma comédia de costumes. Trata do tema casamento por dinheiro. A ação se passa na casa da matriarca de uma família, dona Guida. Travestimentos, cenas de pancadaria e sátira aos membros da igreja e da justiça compõem esta peça. Cancão (figura tomada emprestada do bumba-meu-boi) é o empregado esperto e também faz lembrar alguns personagens das comédias de Molière (autor de comédias, francês).
O SANTO E A PORCA (1957), o casamento da filha de um avarento. O “santo “ em questão é Santo Antônio e a “porca” é um cofrinho, símbolo do acúmulo de dinheiro (tão protetor quanto o santo).
A PENA E A LEI (1959): Aqui Suassuna reaproveitou cenas de seus textos “Torturas de um Coração” e da “Compadecida”, numa encenação que vai do boneco irresponsável ao ser humano pleno diante de Deus (Benedito, Mateus, Cheiroso e Cheirosa intensificam o cômico). A peça diverte mas também analisa as questões sociais: trabalho na usina, reivindicações dos trabalhadores, companhias estrangeiras, fome, prostituição em cenas curtas e de muita movimentação. A preocupação com a moral está sempre presente e o trágico é diluído pelo cômico . São personagens estereotipados. Suassuna também se utiliza das cantorias nordestinas.

RESUMINDO: a comédia da antigüidade, o teatro religioso, a arte popular do Nordeste e seus folguedos são as salutares influências deste mestre das letras que é o paraibano Ariano Suassuna, Ex-aluno do Colégio Americano Batista do Recife (dos 10 aos 15 anos, uma fase de sua vida que sempre recorda com saudade), professor de Filosofia, foi secretário de cultura do governo Arraes e que também é autor de três romances: “Fernando e Isaura” (sobre um amor impossível”,), “Romance d´A pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e Volta” .(Ed. José Olympio. RJ. 1970), sobre um poeta que na década de 30 sonha em escrever um épico nordestino e acaba preso como comunista e “História d´O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao sol da onça Caetana”, suas lembranças de infância e do pai, mescladas num sertão mítico.

Ariano é fundador do MOVIMENTO ARMORIAL , reafirmando no nordeste a influência ibérica, africana e indígena.
A musicalidade dos textos de Ariano é agreste. Sua poesia rebrilha à luz ardente do Nordeste.
“Não faço distinção entre a cultura popular e a erudita. A cultura brasileira, a cultura popular brasileira, não está ameaçada . Ela é resistente. Estão tentando matá-la, mas não conseguirão”, diz Ariano e nos convida ao deleite com pérolas do cancioneiro ibérico, a arquitetura africana, as cores da África, textos de José de Alencar, de Aluízio Azevedo. E é no Romanceiro popular que Ariano mais se inspira. Nas novelas de cavalaria, nos amores incríveis, nos heróis picarescos (zombeteiros) que permeiam as histórias que o povo conhece. Ele chega a usar um mesmo texto várias vezes como base para sua recriação. “A novela da Renascença é picaresca. O personagem principal é a Fome”. Emigra para o Brasil o herói pícaro ibérico, o astucioso que difere do opressor que é o lado ruim. Ao comentar o Brasil antes de Cabral, Ariano reafirma nossa cultura milenar: “Existia teatro indígena antes da chegada dos jesuítas. É absurdo centralizar a origem do teatro. O teatro japonês não nasceu na Grécia. Tem outra origem. O teatro indígena é um teatro de máscaras e excelentes figurinos e enredos fascinantes que envolvem sua religiosidade. Eu queria que um cineasta brasileiro fizesse com este tipo de teatro brasileiro o que o cineasta japonês Kurosawa fez com o antigo teatro japonês, o teatro Nô e com o Kabuki. Injustiça social não é base para a arte popular. Ela também não é primitiva. Os violeiros vêem televisão, os artistas populares transformam as informações universais em linguagem com temática local. Temos que fortalecer nossa cultura”. Para isso, Ariano usa seus conhecimentos de Filosofia, História e Literatura, trabalhando o belo de forma dialética, unindo-o ao cômico misturando o espírito intelectual com a esperança no homem, fundindo nossa herança barroca com um espírito neoclássico.

Análise do “Romance d´A Pedra do Reino” (1970): Ariano recheia seu livro “Romance d´ A Pedra do Reino” com humor malicioso e exibe sua perícia na selva das palavras. Mistura nobres e pobres num processo criativo ímpar. Os colonizadores do Brasil aparecem como bravos que tiveram coragem de matar para estabelecer novos rumos. Ariano traz para a narrativa suas experiências com o teatro e a poesia, brinca com a metalinguagem, expõe os “mistérios” da criação. O tema central do romance são as artimanhas de Quaderna e a trágica história dos seus antepassados na cidade de São José do Belmonte, interior de Pernambuco. Ariano, através da narração em primeira pessoa (Quaderna), descreve paisagens e situações alucinantes, reinventa a cronologia, adapta fatos históricos à sua ficção (a magia das grandes navegações, as cruzadas, os romances de cavalaria, as revoluções. Se Alencar foi exuberante mas não ousou exibir um herói picaresco, Ariano, com seu Regionalismo natural, busca as interseções entre o popular e o erudito, misturando a poética aristotélica com Romantismo e buscando o êxtase criativo num realismo que alguns intelectuais rotulam de mágico, fantástico. O encatatório, o mítico, o exótico vão delineando o espaço criativo que traça o painel do sonho de uma monarquia de esquerda, sonho que Ariano alimentou durante algum tempo. Obcecado em criar uma epopéia nordestina, o narrador torna-se cômico e o recurso Deus ex machina (sobrenatural) surge para resolver as inquietações da alma que perturbam a raça humana. Outro mito recorrente é o sebastianismo.
Podemos até arriscar em julgar o discurso de Ariano como um discurso maniqueísta que recusa a polifonia. Mestre na arte literária, ele criou um herói bufão numa espécie de circo fantasioso e hedonista em busca de um sentido, de dignidade, num emaranhado de “causos” alinhados por uma escrita competente que se utiliza do pictórico (xilogravuras) para reforçar seu discurso que, no fundo, transforma o interior de Pernambuco numa espécie de Camelot da caatinga, onde humor e malícia unem-se ao ingênuo, à lenda do cavaleiro que enfrenta as instituições (representadas no texto pelo Corregedor) e o imaginário supera o racional na reinvenção do passado histórico, através da alquimia verbal típica de Suassuna que rompe a linearidade, enxertando a todo instante várias tramas secundárias à narrativa central, numa colagem que redimensiona a obra em pequenos contos. O julgamento de Quaderna é a espinha dorsal do texto que vai buscar nos poetas populares (cordel e emboladores) suas referências. Depois de trair seus amigos covardes, Quaderna busca a imortalidade através da Literatura, quer ser fidalgo. Quer louvar sua estirpe. Tenta reiventar Homero, a sua Odisséia é através do Atlântico nordestino e sua Ilíada tem como palco o sertão, ali está a Onça Caetana (a morte, a vida, o amor, a nacionalidade). Seres fantásticos pululam ao lado de personagens estilizados numa narrativa explosiva recheada de situações absurdas.


Três Romances de Raimundo Carrero
DADOS BIOGRÁFICOS: Nascido em 20 de dezembro de 1947.É jornalista, ficcionista, bastante supersticioso e temente a Deus. Começou a escrever ainda como aluno interno no colégio Salesiano do Recife. Em seus escritos objetiva aprofundar temas eternos como “liberdade, igualdade e justiça”.

1. SOMBRA SEVERA:
Publicado em 1986( Editora José Olympio), o romance traz o estilo de Carrero, este pernambucano da cidade de Salgueiro, estampado por todas as páginas:
• A ANGÚSTIA DIANTE DA INCOMUNICABILIDADE
• O ESTRANHAMENTO DIANTE DO QUE É SIMPLES E COMUM
• IMPOSSIBILIDADE DE AMAR COMPLETAMENTE
• ÓDIO POR NÃO SER COMPREENDIDO
• A QUESTÃO DA FÉ
• AS ARBITRARIEDADES DO PODER
• ABORDAGEM PSICOLÓGICA
• O HOMEM DO CAMPO
• A CIDADE PROBLEMATIZADA
• CRÍTICA À INJUSTIÇA SOCIAL

Num dos seus livros encontramos a seguinte epígrafe: “Intuitivamente eu me agarro ao abismo” (Murilo Mendes). Existe um certo fascínio na obra de Carrero em retratar a decadência humana em sua busca de esperança. A desgraça psíquica afeta os personagens movidos por seus fantasmas interiores, agindo como irracionais.
Três personagens dominam a narrativa em terceira pessoa de “Sombra Severa”:
JUDAS - Irmão mais moço de Abel. Prepara um caixão e pede que o irmão se finja de morto enquanto ele” despista” seus perseguidores. Na verdade, Judas odeia o irmão e vai terminar por esfaqueá-lo, dizer que ele morreu num acidente, casar com a mulher que o irmão raptara (Dina).
ABEL - É perseguido pelos irmãos da mulher que ama. Aceita fingir-se de morto no caixão. Enquanto isso, Judas aproveita para violentar sua mulher dentro da capela, na fazenda JATI, de propriedade de ambos.
DINA - Filha de Sara e Adão, irmã de Jordão (Carrero adora nomes bíblicos). Depois de casada com Judas, assume a identidade do seu amado assassinado, Abel, criando inclusive um clima de incesto.
Resumo: A inveja e o fratricídio permeiam esta versão da história de Caim e Abel. Judas é obscurecido pela sombra do irmão , Abel, o “bom”, que não o deixará em paz nem depois de morto, já que reaparece na figura de Dina travestida. Merece destaque a fúria exposta pelo narrador quando descreve a morte do carneiro que Abel ganhara do padrinho e que Judas, morrendo de inveja, esfaqueia e queima o bicho.
Há algo de mórbido em Raimundo Carrero. Algo de “casmurro” em vários de seus personagens. Quase não há diálogo, o discurso indireto apossa-se da trama conduzindo a juízos sobre:
DEUS - (página ll4) “...era um ser incrível cercado de solidão- a solidão dos abandonados da sorte, dos miseráveis que estendem latas vazias pelas ruas, das mulheres que, enlouquecidas andam sujas pelas estradas. A solidão do esquecimento completo e absoluto”.
AMOR - “ O amor é a inveja do outro: ama-se para roubar do outro a parte que lhe falta” (P- 56).
CONCLUSÃO: No final, como numa imensa alegoria, um bando de cães famintos invadem a casa de Dina e Judas, ela os afasta. A seguir, vem a metamorfose definitiva de Dina em Abel, de quem ela assume os trajes, o corte de cabelo e ... a identidade. Judas tranca-se no quarto e Dina (Abel?) encara a luz do sol.


Rachel de Queiroz: “ Memorial de Maria Moura”

Rachel é polêmica a partir da grafia do seu nome. Muitos autores preferem “Raquel de Queirós”, erroneamente.
Em 1992, a imortal lançou seu declarado último romance, o calhamaço “Memorial de Maria Moura” (482 páginas 11ª edição. Editora Siciliano, São Paulo,1998). Uma narrativa ágil. Uma trama cheia de aventuras folhetinescas. Rachel sempre flertou com o romance popular.
Inicialmente, o romance tem três núcleos de ação: O de Maria Moura, dos primos inimigos dela e o do Padre José Maria (Beato Romão). Posteriormente surge o sub- núcleo Marialva e Valentim (com seus parentes mãe, pai e tio , no “circo”). Os últimos capítulos são narrados por Moura e pelo Beato que se joga numa aventura suicida com ela.
Maria Moura mostra-se arisca desde os primeiros momentos em que aparece. Manda assassinar o padrasto que a assediava desde os tempos que a mãe dela era viva (a mãe se enforcou no armador de rede: “Sonho com aquela cara de enforcada, a face roxa, os olhos estatelados, a ponta da língua saindo da boca” diz a sinhazinha, assim chamam Maria, cuja história se passa na época da escravidão no Brasil). A seguir, Maria trama a morte do assassino que ela mesma tinha seduzido para matar o padrasto. Enfrenta a ganância dos primos Irineu, Tonho e sua mulher Firma, já que a prima Marialva está mais interessada em fugir com um artista de circo de olhos verdes iguais aos dela. Maria incendeia sua casa no sítio Limoeiro, que fica próximo da Vila Vargem da Cruz. Foge com um bando de homens, que lembram em tudo cangaceiros. Rachel diz que se inspirou em Elisabeth I, Rainha da Inglaterra (1533-1603) para compor Maria.
Após a fuga do Limoeiro, Maria e seu bando vagam pelas brenhas do sertão ao relento, sem tomar banho e comendo o que aparecesse e aparecia muito pouco. Tudo com muito respeito e dignidade: Maria é a “chefe” do bando e a maior parte dos jagunços são jovens, sem ambição e querendo “aventura”, como ela mesma sugere enquanto ia se enchendo do ouro que roubava, numa espécie de farra inconseqüente, até a metade do livro. Tudo para ela vai dando certo. Arranchados com escravos fugidos, Maria se estabelece por algum tempo junto à Lagoa do Socorro. Ela e seu bando roubam e levam para lá.
Junta-se ao bando o ex-padre José Maria, que recebe o nome de Beato Romão para fugir da culpa de um crime que cometeu em sua última paróquia: matou o marido de sua amante, Isabel. Rejeitada pelo marido e desejando um filho, ofereceu-se ao sacerdote, que resistiu um pouco mas terminou engravidando-a. O marido volta, esfaqueia-a e mata o bebê de seis meses no ventre da mãe. O padre, ao ver Isabel estraçalhada e o marido atacando-o com a mesma faca, quebra-lhe um banco na cabeça, matando-o.
Como vemos na primeira parte da trama do livro, a autora não dá sinal de cansaço. Tudo é estimulante e vigoroso. Ao ódio que cerca Maria, seus primos e o padre sobrepõe- se o romance de Marialva (a prima de Maria) e Valentim (o artista de circo com quem ela fugiu e casou).
Voltemos até o primeiro livro de Rachel, “O Quinze”, escrito por uma jovem mal saída da adolescência e que foi publicado em 1930, sobre a seca de 1915, da qual Rachel também foi “retirante” (foi primeiro para o Rio de Janeiro e depois para Belém, só regressando ao Ceará em 1919), tinha então nove anos. Rachel nasceu em Fortaleza e lá ,em 1925 , concluiu o Curso Normal. Atua como jornalista de esquerda, porém em 64 Rachel apoiou o golpe militar desfechado pela direita elitista contra a esquerda radical.
Em “O Quinze”, alguns personagens (Chico Bento, Dona Inácia e outros, como o afilhado de Conceição, heroína da trama, moça um tanto quanto romântica que tem um namoro frustrado com seu primo Vicente), têm como cenário o flagelo da seca, a miséria absoluta de um povo sofrido e conformado. Empolgada com a literatura popular , Rachel é vigorosa narradora, recheando seus romances com o modo de viver nordestino. A vida é a coisa mais valiosa e o ouro, teoricamente, é objeto de perdição. Injustiça é resolvida na faca ou por Nosso Senhor, assim é em Maria Moura. “A linguagem direta, límpida, fluente e desafetada que, realizando o ideal dos homens de 22 , apontava um manejo seguro e adulto do idioma”, escreveu Massaud Moisés. O instrumental lingüístico que Rachel utiliza em suas narrativas culmina com o “Memorial...”. De volta ao sertão, a velha dama realiza uma obra onde resplandece todo o seu talento.
Em “Memorial de Maria Moura”(92), a autora utiliza- se do discurso polifônico (várias vozes). São vários narradores, porém o que se pressente é que por trás deles esconde-se o pulso vigoroso da cearense e que os diversos narradores, dentre os quais Maria (cada capítulo carrega o nome de um deles) são como títeres da força reivindicativa de Rachel. Dentre os narradores estão: o Padre José Maria, Irineu e Tonho (primos da Moura, o primeiro solteiro; o segundo, casado com uma megera chamada Firma) e Marialva (prima de Maria que fugiu e casou com um artista de circo, Valentim) . A participação dos diversos narradores propõe uma certa ruptura com a linearidade.
Outros personagens vão ganhando destaque na trama: Duarte, meio irmão dos primos de Maria e filho da ex- escrava Rubina, ajudou Marialva a fugir; os capangas de Maria: João Rufo, antigo e fiel empregado do Limoeiro e “padrinho” da heroína, Zé Vicente, Juco e outros.
No início, Maria confessou ao Padre José Maria que ia mandar assassinar seu padrasto por ter abusado dela. Após os crimes, Maria arrancha-se com Amaro e Libânia, na Lagoa do Socorro. A miséria era absoluta. Maria assaltou umas pessoas e as coisas foram melhorando. Comida e equipamentos vão fortalecendo Maria e seu bando. Com o estilo folhetinesco nos são apresentados os colonizadores do sertão nordestino. Os que resistem agem de maneira brusca , lembrando muitas vezes um comportamento instintivo, atávico, onde o meio dita as regras. A Moura é o eixo, o ponto de convergência, símbolo do poder e da ambição. No final do livro, apenas ela e o Beato Romano narram. A narrativa em primeira pessoa vai impregnando o romance de subjetividade. Maria desafia o poder masculino.
O Neo- Realismo aplicado nas narrativas de “O Quinze” e “João Miguel” (ambientados no Ceará) exibe parágrafos curtos na transcrição de atos e acontecimentos, o que também é corrente em “Maria Moura”, assim como o Regionalismo que está presente nas suas peças de teatro “Lampião” e em “A Beata Maria do Egito”. No romance “Caminho de Pedras” (1936), Rachel polemiza o Integralismo em oposição ao Comunismo: a narrativa em terceira pessoa vai desnudando a vida de um casal de esquerda. Outro destaque da carreira literária de Rachel são suas crônicas.
Passada a ditadura Vargas, Rachel assume espírito conservador “identificando-se com a defesa passional das raízes do status quo; roteiro que a aproxima de Gilberto Freyre, cuja presença na cultura nordestina ultrapassou de longe, a área do ensaísmo sociológico e incindiu diretamente na valorização das tradições, dos estilos de viver e pensar herdados à sociedade patriarcal. De onde a nostalgia dos bom tempo antigo que até recebeu o batismo de ciência: É a Lusotropicologia, ensina-nos Alfredo Bosi. Além dos romances citados Rachel escreveu: “As Três Marias” (1939), “Dôra Doralina” (1975) e “Galo de Ouro” (1986). Além do Regionalismo, outro clichê sobre Rachel é a “narrativa de cunho psicológico e/ou social”.
Voltemos Ao “Memorial”: “Não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha mão”. O que era mais importante para Maria, naquele ponto em que ela falou do sangue, era o ouro. Maria se acha superior aos índios e escravos, como vemos por exemplo na página 178: “... aquela negrinha ... bem que eu gostaria de ter uma bichinha daquelas para mim ... e até que poderia ter pegado ela junto com as jóias”. O livro tem passagens curiosas, como por exemplo, quando o padre José Maria fala sobre as lembranças:O homem feliz é o que não tem passado. O pior dos castigos, para o qual só há pior no inferno, é a gente recordar. O passado te persegue como um cão perverso nos teus calcanhares. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro que resista aos assaltos da lembranças”.
Já Maria busca construir seu mito de mulher forte, decidida, fria e calculista, que no final vai desafiar o perigo por não dar valor à vida (tudo que conquista , deixará para Alexandre, filho de Marialva e Valentim): “Minha idéia era meter na cabeça dos cabras e do povo em geral que ninguém pode avaliar do que Maria Moura é capaz”.
Logo, Duarte, primo bastardo de Maria, junta-se ao bando com sua mãe, a ex-escrava Rubina (eles moravam com Irineu, Tonho e Firma). Maria começa a fabricar pólvora com a ajuda de Duarte, que também se torna seu amante. Chega então Cirino, cujo pai paga para que ele se esconda nas terras de Maria, a fim de fugir da perseguição por causa de um crime. Cirino é louro e conquistador. “Rouba” Maria de Duarte e depois a trai por ambição, ao que Maria vai responder mandando Valentim esfaqueá-lo no coração.
Maria, quando jovem, leu “A Vida do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares da França”, (um dos livros que Ariano Suassuna usa na composição do Romance d’A Pedra do Reino. Aliás, ao buscar inspiração em Elisabeth I , Rachel aproxima- se mais ainda do mestre paraibano e de sua visão mítica da história antiga européia). Maria Moura refere-se a sua Casa Forte como se fosse um castelo.
Ao saber que o Beato Romano (Padre José Maria) está evangelizando seus capangas, Maria fica preocupada: ”O senhor quando me procurou, não sabia qual era o nosso meio de vida? Não vá longe demais. Se minha cabocrina se converter? Virar tudo penitente e sair tocando matraca- o que é que eu faço?” Maria acha que o “Não matarás“ dos mandamentos sagrados é uma coisa relativa.(p-369).
Sozinha no seu quarto, Maria chora quando está longe de Cirino: “Te aquieta Maria Moura. Você não é mulher de chorar, nem mesmo escondida (...) cadê o cabecel desses homens todos, que comanda de garrucha na mão e punhal no cinto?” . Pensa, porém, em entregar tudo que tem para o amado. Observar que não mata ninguém, ela manda matar, durante todo o romance.
Ao descobrir que Cirino traiu a casa forte, Maria chora com tanta fúria que chega a rasgar o lençol com os dentes (p-404). Cirino traiu Maria porque “era ruim”, por dinheiro de Judas. Rachel intensifica o código de honra proposto pelo Romantismo: “O meu mal era aquela grande fraqueza por ele que eu sentia. Eu gostava de comigo chamar aquilo de amor. Mas não era amor, era pior .Não era cio (...)E eu me imaginando tão forte, tão braba. Era afronta - Era para acabar comigo (...) aquele coisinha ruim (...) solapar os alicerces do meu castelo! (...) por amor dos trinta dinheiro de Judas! E eu adorar um desgraçado desses, abri para ele o meu quarto, a minha cama, o meu corpo. Foi humilhação demais. Se ainda soubesse rezar, rezava, tão desesperada me sentia. (...) Como é que vou acabar com o Cirino, sem acabar comigo? (...) Como posso arrancar o coração para fora? Ninguém pode fazer isso e continuar vivo. E se me matasse com ele? (...) Não. Eu quero morrer na minha grandeza, lamenta-se Maria que, resgatando Cirino da cadeia, diz: “Quem segura os presos ricos na cadeia (Cirino era rico) é o medo de serem mortos pelos inimigos, mal ponham um pé fora”.
Maria estava tão acostumada com a vida rude que aprendeu a comer e dormir enquanto cavalgava.
Levando Cirino para o cubico (cômodo escondido na Casa Forte, cofre e esconderijo), depois de dias fazem amor: Foi um amor desesperado , furioso, que doía, machucava; amor de dois inimigos, se mordendo e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse em morte (...) Quanto tempo durou?-nos separamos exaustos (...) entendia que no meio daquele desadoro, que eu tinha mesmo que matar Cirino . Entre nós dois não podia mais haver solução. Se ele escapasse vinha atrás de mim para me pegar. Não ia nunca me perdoar tinha que se vingar desta hora de humilhação. Era impossível ele esquecer. Agora era ele ou eu” (Maria obrigava-o a ficar trancado num cubículo e ameaçava-o com uma arma). “Fiquei atirada na cama, sem poder chorar, cega, surda, vazia por dentro (...) não era dor propriamente que eu sentia, era mais um estupor que me deixava dormente, numa espécie de meia morte (...) eu pensava às vezes que estava a bem dizer igual à situação de Marialva, quando servia de alvo ao marido” (Valentim era atirador de facas, treinava, no circo) “Só que o atirador de faca acertava sempre em mim, mas sem me ferir mortalmente, só me pegando pela pele me pregando na tábua, por toda a volta do meu corpo. Escorchada e sangrando , eu ficava morrendo de dor, sem contudo morrer nunca, lamenta-se após mandar executar seu amado.
Ouro, pedras preciosas, propriedades, sim, mas dinheiro de papel Maria não gosta. Quando aparece Francelino para negociar gado - o sul do país em guerra precisava da charque nordestina para alimentar soldados, Maria pretendia assaltar os negociantes - e lhe mostra uma cédula impressa em letras pretas Maria recorda: ”Era muito feio. Fiquei desapontada. Pensava que dinheiro em papel era de cor, com a cara do rei, assim como a figura de santo (...) eu virei na mão a tal cédula. É. Não tinha graça nenhuma. Ainda vai levar muito tempo para aquilo ser considerado. O mais certo é que não vá pegar nunca. Quem troca ouro ou prata ou até mesmo cobre por um pedaço de papel? Você quer é sentir a moeda pesando na tua mão” .
Para o último assalto, que Rachel deixa em suspenso e o leitor não saberá o que aconteceu com Maria, seu bando e o Beato Romano, na sua mais arriscada investida, quase como um suicídio coletivo- Maria não distribui riqueza com seus cabras (“O povo é engraçado, cada pessoa acredita no que quer e passa adiante o que entende”), guardou tudo para si, deixando para Alexandre, filho de Marialva, sua prima carnal, tudo em testamento. “Já tinha arma ali que dava para fazer uma guerra (...) nos nossos entreveros, em caso de muita pressa, eu preferia antes deixar o dinheiro que as armas (...) arma de fogo não se compra em mão de mascate nem em barraca de feira”, diz a Moura.
Duarte vacila, falando da superioridade do inimigo, ao que Maria retruca: “Se eles correm a gente atira nas pernas dos cavalos, os homens rolam no chão. E quando baterem em terra, já atordoados, já se está em cima deles. Eu calculei tudo na minha cabeça. Fecho os olhos e vejo tudo como é que vai se passar”. E quando o ex- amante pergunta sobre o risco de vida, ela responde:E eu estou me importando em salvar esta desgraça de vida, Duarte? (...) Desça Deus do céu e me peça, que eu falto e faço que disse. Já os cabras, pressentindo algo de estranho naquela última batalha, pedem que o Beato Romano vá junto na campanha:” Morrer não é nada, mas sempre se morria mais satisfeito tendo ele junto para abençoar. Pra dizer ‘ Jesus seja contigo’ “, diz Zé Soldado, um dos principais jagunços de Maria. O padre e Maria concordam.
Na partida da tropa, Duarte diz. “Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá. Vai ser uma luta muito dura, com esses homens traquejados para matar. Não é briga para mulher. E se lhe matam?“. Maria responde olho no olho: “Se tiver de morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais”.
E, nas duas últimas linhas da narrativa (do romance), Maria arremata:”Saí na frente, num trote largo. Só mais adiante segurei as rédeas, diminuí o passo do cavalo, para os homens poderem me acompanhar”.
E Rachel de Queiroz localiza o tempo em que concluiu, com maestria, seu último romance, este “Memorial de Maria Moura”: Rio 22 de fevereiro de 1992- onze da manhã.

Machado de Assis - Contos

A vida de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) sempre é contada a partir do seu nascimento no Morro do Livramento. Descendente de escravos por parte de pai, diz-se que ele sempre procurou disfarçar sua mestiçagem da melhor maneira possível. Infância pobre, órfão de pai e mãe aos doze anos. Publicou seu primeiro poema “Ela” aos dezessete. Trabalhou na Tipografia e Livraria Paula Brito, onde conheceu vários intelectuais (1858-tinha dezenove anos). O ingresso no funcionalismo público em 1867 e o casamento com Carolina, em 1869, que seria a revisora dos seus textos. Em 1897 é eleito o primeiro Presidente da Academia Brasileira de Letras.
Muito já foi dito sobre o grande mestre das letras nacionais: Que ele procurou ir além das aparências e revelar ao leitor os “motivos secretos” das ações humanas, fazendo assim a análise do mundo interior de suas personagens, investigando as causas profundas do comportamento humano e, fazendo isso, mostrou que o homem é um ser volúvel, mesquinho, interesseiro, que pensa apenas em si próprio e no seu bem estar.
Desde seu primeiro romance, “Ressurreição”, publicado em 1872, até o último, “Memorial de Aires”, 1908, Machado denunciou como poucos as armadilhas da vaidade, do egoísmo e da violência.
Seu humor, pessimismo, ironia “amarga e cruel” vão tecendo enredos onde ação e tempo perdem a importância, ao mostrar a luta pela vida na qual o homem vai destruindo seus irmãos de forma implacável para conseguir o que quer e no final deparar-se com o vazio. A trama só interessa enquanto parte da análise feroz empreendida por um narrador inteligente e perspicaz que busca a todo momento a cumplicidade do leitor (metalinguagem).
Foram nove romances. Os da fase romântica são: “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876), “Iaiá Garcia” (1878). Os da fase realista: “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881),”Quincas Borba” (1891), “Dom Casmurro” (1899), “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908).
Machado foi um hábil cronista e um sofrível autor teatral.

Contos foram mais de duzentos. Analisaremos alguns deles:

1. “A Desejada das gentes”:
Um conto sem narrador e com parágrafos enormes. Lê-lo é como passear com Machado pelas ruas do Rio de Janeiro na Segunda metade do século XIX. A narrativa ironiza a fé, o dinheiro e a alma humana em geral. Machado é um homem materialista. É uma narrativa de reminiscências (como nos romances “Memórias Póstumas...” e “Dom Casmurro”).
A “Divina Quintília” é evocada por um “Conselheiro”(titulo honorífico do Império, sempre citado por Machado) que fala a um interlocutor, também sem nome.
O tio da “Divina” proibira-lhe o namoro, há muitos anos atrás, com o conselheiro, que o chama de “velha alma aleijada “, pois este usa Quintilha como “muleta”. É um exemplo do humor ferino de Machado .
“O que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna?”, pergunta o conselheiro. Machado adora aforismos (citações).
Ao descrever a Divina, Machado zomba dos românticos: “Olhos noturnos, mas sem mistérios nem abismos. Voz brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso”.

A época é 1855-1859
Os Conselheiro cita o caso de um companheiro de escritório que também quase se apaixonou pela rica e bela Divina: os bens da moça “eram um dos feitiços dela”. Não “vamos divinizar o dinheiro nem bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma coisa e até muita coisa”. O amigo levado pela tristeza e uma nomeação foi ser juiz no sertão da Bahia, onde definhou e morreu.
O Conselheiro queria casar com Quintilha. Ela olhou-o “espantada , como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas (...), pediu que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco, uma página de uma história acabada”.
Se antes a impedira o tio, quando o velho morre ela diz que tinha trinta e três anos e estava velha e que seria melhor continuarem amigos e jurou-lhe: “Não casarei nunca”.
Machado desvenda os recantos da alma feminina em Quintilha: “largamente e intimamente “.
Os ambientes são os mesmos de outras narrativas machadianas. As mesmas ruas e bairros do Rio. Perpassam todo o texto citações ao Romantismo. Quer seja o “Werther” de Goethe (romance sobre um jovem que se mata por um amor não correspondido. Livro que deu origem ao movimento romântico) ou mesmo frase melodramáticas: “Muitas vezes quis dizer- lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração (...), escrevi cartas sobre cartas”, lamenta-se o Conselheiro.
A amada, como todos os outros personagens no conto, além do Conselheiro e seu interlocutor sem personalidade própria, não tem voz.
“A amizade que o Conselheiro sentia por Quintília era a sentinela do amor. Não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse “.
É amor platônico. Ela adoece, uma “moléstia na espinha”. Ele cuida dela. No leito de morte, ela permite o casamento. Diz o Conselheiro: “Não me relembre esta triste cerimônia; ou antes deixe-me relembrá- la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a a última vez, feita cadáver (“A desejada”?). Tudo isso é muito esquisito. Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino”.

2. Uns Braços
São três personagens: Inácio, Severina e Borges. O primeiro é escrevente empregado no escritório de Borges, que é casado com Severina, a dona dos braços que dão título ao conto. Braços que “fechavam um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida” que Inácio levava.
Num jogo de sedução e malícia armado por Machado, é narrada uma história que se passa na Rua da Lapa, em 1870, Rio de Janeiro.
No início do conto vemos Borges em sua residência quando “abarrotava-se de alface e vaca” durante o jantar e detratava o pobre Inácio de quinze anos que vivia entediado por executar tarefas tão estúpidas e corriqueiras e preferia apreciar os dotes da esposa do patrão que, desconfiada, arma situações que comprometam o rapaz, por quem sente até certa atração.
Severina, a esposa de Borges, tem vinte e sete anos “floridos e sólidos”. Num jogo metonímico (a parte pelo todo), a narrativa joga com o real e o insólito: “Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole, alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários, ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um São Pedro e um São João”. Uma contraposição cômica diante de um quase adultério.
Borges a reclamar que “trabalhava como um negro” enquanto a noite caíra de todo; e a esposa ouve o “tlic” do lampião de gás da rua., que acabavam de acender. O “fedelho” sonhava em possuir a esposa do patrão e ela a devanear sobre aquele “amor adolescente e virgem”. Está criado o “clima”.
“Dona Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria”.
Num domingo foi ao quarto dele, que depois de observar o mar e as gaivotas, adormeceu na rede a ler um folhetim barato. Ele sonhava com ela.
Dona Severina não resiste. Vai até a rede e beija o rapaz na boca.
O rapaz pensou que era um sonho. Dias depois Borges despediu-o: “Inácio saiu sem entender nada”. Até os braços de dona Severina, que ele tanto admirava, mantinham- se agora sempre cobertos com um xale.
“Estava tão bem! Falava-lhe com tanta amizade! Como é que de repente... tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera. Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais afetivos e longos, nenhuma sensação achou igual à daquele Domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos “.
Percebemos neste conto o refinado humor do nosso Machado. Desmascara os personagens do lar (marido e esposa), simplesmente introduzindo um terceiro elemento: um jovem adolescente. Tece-se assim a teia que envolveria sua descrença na fidelidade conjugal. Na família. Característica que permeia boa parte de sua ficção.

3. Mariana
Neste conto-evocação, o narrador faz uma análise de um relacionamento amoroso que tem como eixo uma senhora um tanto quanto misteriosa: a personagem-título.
Após dezoito anos na Europa, Evaristo volta e procura antiga “namorada”. O ano é 1890.Ele estivera em Paris. Um repórter lá, havia perguntado sobre a “revolução no Rio de Janeiro”. Como sabemos, Machado era funcionário do Império e vai continuar assim na República, portanto seus comentários são sempre cheios de sutilezas.
O conto divide-se em três capítulos. O segundo é um delírio onde Evaristo, já na sala da sua antiga amada, imagina tê-la outra vez entre os braços, a dizer que ainda o ama muito (por causa dela ele “fugira “ do Brasil, para não sofrer quando ela casou com outro) .
Na verdade, ela o trata friamente no terceiro capítulo. Mesmo depois da morte do marido, ela não quer saber dele, o que o deixa contrariado . Sendo assim, ele prefere voltar a Paris, onde alguns amigos que na sua saída iriam estrear uma peça, amargam o fim de uma temporada de retumbante fracasso.
Machado faz uma reflexão engraçada: “Coisas de teatro. Há peças que caem(não têm bom êxito). Há outras que ficam no repertório.”
Uma sutil crítica aos sentimentais, aos românticos. Com direito ao ridículo das lágrimas e arroubos de paixão.

4. “A Cartomante
Amigo de infância de Vilela, Camilo vai recebê-lo no porto quando o companheiro volta ao Rio de Janeiro, casado, para abrir banca de advogado. Rita é bela e logo inicia um caso de amor com Camilo.
Ela freqüenta uma cartomante. O narrador diz que Camilo, como o próprio Machado, é incrédulo e faz pouco caso das superstições de Rita.
Camilo é o próprio burguês, dependente da mãe, que tudo fez para vê-lo um homem de respeito. Com a morte desta intensifica-se a sua dependência em relação a Rita. Porém, cartas anônimas começam a minar a confiança do rapaz.
Estaria Vilela a par de tudo?
As relações adúlteras davam-se na casa de uma comprovinciana de Rita.
Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”. Machado cita Shakespeare. As cartas se sucedem. Camilo suspende as visitas. Vilela estranha. Camilo dá uma desculpa boba.
Um bilhete na hora do almoço atrai Camilo à casa de Vilela. No meio do caminho um acidente obriga-o, por coincidência, a para na frente da casa da cartomante de Rita. Hesita, mas termina entrando e, após uma consulta cheia de revelações sobre ele e sua amante, ele, que não acreditava em nada, sai confiante, quando escuta a vidente acertar coisas sobre a vida dele e dizer que tudo continuaria bem, que o marido de Rita não desconfiava de nada. Ao chegar na casa de Vilela este o espera com uma pistola na mão: matara a esposa adúltera e então, atira em Camilo. O leitor fica sem saber quem escrevera as cartas anônimas.
Novamente percebemos Machado a analisar as relações humanas num mundo marcado pelo egoísmo , pelo cinismo.

5. A Igreja do Diabo
“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja” (comparando-a a uma “hospedaria barata”). Assim começa um dos mais ferinos contos de Machado: “A Igreja do Diabo” (composto por quatro capítulos) seria o meio mais eficaz de combater as outras religiões (Maomé, Lutero) e destruí-las de uma vez. Lá não haveria obrigações e sim vinho e pão à farta.
No “infinito céu azul”, o “Senhor” quer saber qual o propósito do Diabo: “Negócios mais altos”, responde ele.
“Tudo que dizes e redizes está dito e redito pelos moralistas do mundo”, insiste Deus.
“Nego tudo”, respondeu o Diabo. E voltou à terra. Na sua igreja, soberba, luxúria, preguiça, avareza, hipocrisia, ira, inveja (que supre o talento), tudo isso seria incentivado. Toda as formas de respeito seriam condenadas. Quanto ao “amor ao próximo”, isso seria “simples invenção de parasitas. Não se devia dar ao próximo senão indiferença”. E o Diabo citava Galiani, padre napolitano:” Leve a breca o próximo! Não existe o próximo!”. Só se a próxima for a mulher dos outros. Aí, sim.
Sucesso: Logo todo mundo queria fazer parte da igreja do Diabo. Como no capitalismo, onde o homem vende sua força de trabalho ao patrão. Machado tripudia sobre o jogo de aparências na classe burguesa que freqüenta igrejas.
A igreja do Diabo faz sucesso no mundo todo. Porém, para seu desespero, alguns dos fiéis começam a freqüentar mesquitas, dar esmolas, socorrer vítimas. O Diabo vai falar com Deus e perguntar a razão disso. E Deus responde:” É a eterna contradição humana”.

6. “Missa do Galo”
Um dos contos mais discutidos de Machado de Assis , foi publicado em “Páginas Recolhidas” (1899). Gira em torno de uma insinuação de adultério. O autor aproveita para alfinetar um costume antigo: a missa na noite de Natal. Nesta, o marido está na casa da amante. A esposa (Conceição- Concepção? Nossa Senhora?. O autor gosta de trabalhar bem o nome dos seus personagens, como em “Dom Casmurro”: Justina, Glória, José Dias, Bento e no romance onde expõe a rivalidade entre irmãos “Esaú e Jacó”, nomes bíblicos).
Oswald de Andrade já chamou-o de “Machado Penumbra”. O fato de Machado ter sido dado como modelo de autor perfeito incomoda os irreverentes , como o próprio Oswald também o foi, a seu modo.
A Missa: Um jovem (“Senhor Nogueira” - dezessete anos) hospeda-se na casa de um escrivão, “Chiquinho”, que já fora casado com uma prima sua. Está armado o circo: Esposa insatisfeita busca a compreensão de um jovem, o narrador provoca risos nos leitores. É quase meia- noite e o adolescente que é o narrador (conta a história já velho, lembrando daquela noite) estava lendo “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas, o que sugere um clima romântico.
“A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas, costumes velhos”. Machado é seco, brusco.
A obsessão pelo adultério é repetitiva: O esposo “trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana”. Todos sabiam disso, inclusive nosso narrador, que recorda de tudo. Conceição era chamada de “Santa”, ou então seria como “maometana que aceitaria um harém”, contanto que as aparências fossem mantidas. É a hipocrisia social. “Tudo nela era passivo”. Ela era “simpática” e “perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar”. Porém naquela noite, sob a luz do candeeiro de querosene, de modo insinuante, Conceição, vestindo um roupão branco, compartilhou momentos sensuais com aquele menino.
“Já leu A Moreninha?”, disse a mulher de vinte e sete anos, e o narrador diz que ela fez isso “enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas”, sem os tirar do narrador: E “passava a língua nos beiços para umedecê-los”.
O jovem tenta sair, mas ela o detém: “Ainda é cedo”, diz exibindo partes do corpo, como no conto “Uns Braços”, cujo tema é semelhante: Um jovem hóspede (virgem?) e um esposa disposta a pecar :”Mamãe está longe, tem sono muito leve; se acordasse agora ...”. Com essa conversa, nosso narrador esqueceu a hora marcada com um vizinho para que saíssem para a tal missa do galo. Esqueceu também de outras coisas que aconteceram naquela noite. Há impressões “truncadas ou confusas”. Ela pôs a mão no ombro do rapaz”.
Na parede da sala, um quadro representava Cleópatra. No oratório uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, “minha madrinha”, diz a anfitriã.
Uma espécie de “sonho magnético” envolveu os dois naquele momento: “a língua e os sentidos”. O silêncio entre os dois era ardoroso e misturou-se ao silêncio da rua até que o vizinho gritou: “Missa do Galo!” , quebrando o “magnetismo” sugerido pelo narrador, que chegando na missa ficou inquieto: “A figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre”.
O jovem viaja para o interior do Rio de Janeiro e quando volta o marido de Conceição havia morrido , vítima de um ataque de apoplexia. Ela havia se mudado para o distante bairro de Engenho Novo: “Ouvi mais tarde que casara com o escrevente do marido”. É a alfinetada final do narrador.


Dias Gomes, Ferreira Gullar e Drummond:

A visão do social no teatro e na poesia do Brasil.

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador em 1922 e faleceu num trágico acidente automobilístico ocorrido em São Paulo no final dos anos 90.Em 42, estreou como dramaturgo com uma comédia: “Pé de Cabra”. Seguiram- se : “Amanhã Será Outro Dia”, “Doutor Ninguém” e “Zeca Diabo”. Dedicou- se ao rádio e à televisão. Em 1959, escreveu “O Pagador de Promessas” (marco da dramaturgia nacional), peça que se transformou em filme dirigido por Anselmo Duarte e venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, Dias Gomes ganhou destaque nacional. Escreveu ainda “O Santo Inquérito”, “A Revolução dos Beatos”, “O Berço do Herói”, “A Invasão”, “Meu Reino por um Cavalo” e outras peças, sempre com temática em defesa da justiça social e contra a opressão. Para a TV escreveu, dentre outras novelas, “O Bem-Amado” (1973), “Saramandaia” (1975) e a censurada versão original de “Roque Santeiro” (1976).
Em “O Pagador de Promessas”, vemos o personagem central, Zé do Burro, um homem simples do interior, ingênuo e fiel aos valores em que crê (o misticismo é o irmão gêmeo da ignorância e foi gerado no ventre negro da miséria e da exploração do homem pelo homem), é levado ao desespero e à morte, traído pelo governo e pela igreja, embora ajudado pelo povo: “Zé do Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé do Burro corre e abaixa- se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiras caem sobre os policiais para defendê- lo. Zé do Burro desapareceu na onda humana. Ouve-se um tiro . A multidão se dispersa como num estouro de boiada. Fica apenas Zé do Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto” (esta é uma das rubricas da cena final da peça) . Tudo porque queria cumprir uma promessa religiosa, carregando uma cruz até dentro da igreja. Ele e sua mulher(Rosa), depararam-se com prostitutas e outros tipos na cidade de Salvador, onde a ambição desmedida, o dinheiro e o jogo político colocam em xeque valores como amizade e dignidade humana. No final, o povo coloca o cadáver de Zé do Burro sobre a cruz e entram todos na igreja.
O Berço do Herói”: Cabo Jorge é o nome de uma cidade. Este nome foi dado em homenagem ao militar que morreu na Itália lutando contra os nazistas, “pagara com a vida o direito de ser livre. Soldado da democracia, enchera de glória e orgulho o coração da pátria amada”. A cidade vivia de sua memória (turismo). As datas do seu nascimento e de sua morte eram pontos altos do calendário cívico de todas as escolas do Brasil até que um dia o cabo reaparece. Na verdade, ele não morrera em combate. Fugira, desertara. Depois do processo de anistia geral ele resolvera voltar à Pátria, à sua cidadezinha. A tradição heróica do exército não podia ser manchada por esta gozação. O comércio e a indústria também sofreriam. Dias Gomes traça uma crítica ao poder militar brasileiro em seus anos de chumbo(ditadura). No meio das prostitutas cabo Jorge conclui: “Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu regimento era eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem para isso. Sempre tive um medo danado de morrer. É tão bom a gente está vivo. E melhor ainda é a gente está vivo e na terra da gente (...) sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Tudo está suspenso por um botão. O botão que vai disparar o primeiro foguete atômico. Este é que é o verdadeiro herói. O verdadeiro Deus. O deus-botão (ri) E vocês ficam cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não pode Ter. Coragem, caráter, dignidade humana... não vêem que tudo isso é absurdo? (O prefeito e o general continuam impassíveis). “Qual de nós você prefere, Cara de Anjo?”, perguntam as prostitutas ao cabo Jorge. “Todas”, ele responde. As prostitutas dão cachaça envenenada dentro de um coco, cabo Jorge, o “Cara de Anjo“, bebe o líquido encomendado pelo Major e morre. As beatas chegam, apedrejam o bordel, as prostitutas gritam: “Chupadoras de hóstias! Beatas de uma figa! Estão é com falta de homem! Vão jogar pedra na mãe!” A prostituta Matilde tem uma idéia: Corta a cabeça do cabo Jorge com o vidro quebrado da janela e diz que foi uma das pedras que a beata jogaram, que o matou. “Não morreu numa guerra de verdade, pra vir morrer numa guerrinha besta de mulheres”, resmunga outra personagem, enquanto o padre e o major decidem que não houve culpados na morte do cabo, a cidade continuaria como era no início, antes do incômodo reaparecimento:”Assim senhoras e senhores,/ foi salva a nossa cidade./ Com pequenos sacrifícios/ de nossa dignidade,/ com ligeiros arranhões/ em nossa castidade,/ e algumas hesitações entre Deus e o Demônio,/ conseguimos preservar/ todo o nosso patrimônio”, sentencia o Major.
Em “A Invasão” Dias Gomes aborda o problema dos sem teto nos centros urbanos. Um drama intenso e amargo. Ele investiga causas e conseqüências dos nossos problemas sociais numa linguagem despojada e contundente. Aponta soluções drásticas num país onde impera a desigualdade social e vive de politicagem. A peça é uma espécie de crônica ao Brasil pós 64. Dias quer alertar o povo da necessidade ser independente. Seu teatro não busca divertir os burgueses. É um teatro de revolta, de amargura. Mesmo suas comédias são atravessadas por um ironia mordaz. Ele despreza os clichês partidários. Nesta peça, os invasores de um prédio, “favela do esqueleto”, o povo brasileiro oprimido e explorado por um governo incompetente, dão vazão às suas angústias e anseios. A morte de Mané Gorila, encarregado do despejo tem um toque de vingança da plebe rude. Um juiz autoriza a permanência do grupo no prédio e tudo termina como num delírio.
A Revolução dos Beatos também trata do tem dos subdesenvolvidos do Brasil. Um caso de histeria coletiva em Juazeiro do Norte, Ceará, que segue Padre Cícero. A história de um camponês, do misticismo à tomada der consciência social.
Meu Reino por um Cavaloé uma comédia caótica sobre um dramaturgo em crise(Otávio Santarrita), questionando os valores sociais tidos como
padrão e como absolutos. Caos , pessimismo, negatividade, no meio de um país absurdo, vão chateando Otávio que, em vez de ficar deprimido, começa a se divertir com o caos. A conformidade burguesa é questionada. O trabalho, a mulher, os filhos, as posições ideológicas, a amante, tudo gira numa seqüência absurda que, com linguagem inovadora, brinca com nossa miséria existencial.
O Santo Inquérito: História de Branca Dias, torturada e morta pela santa inquisição na Paraíba, Por ansiar a liberdade terminou na fogueira: “Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar”, diz a mártir.

José Ribamar Ferreira Gullar nasceu em 1930 em São Luís do Maranhão. Em 49 publicou seu primeiro livro de poemas “Um Pouco Acima do Chão”. Em 54 lança “A Luta Corporal”, um dos livros mais discutidos de sua geração, rico em pesquisas formais. Gullar foi um dos que falou no poema como “objeto artístico. Em 56, participou da primeira exposição de poesia concreta. Liderou o neoconcretismo (a teoria do não-objeto). Abandonou o concretismo e voltou a fazer o que se poderia chamar de verso “tradicional”. 1958 foi o ano de “Poemas” e daí sua poesia social sobrepõe-sse aos seus experimentalismos com a palavra. Seguiram-se: “João Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer” (62, na fase mais politizada), “Dentro da Noite Veloz” (75), “Poema Sujo (76-escrito no exílio da Argentina, retrata os anseios do cidadão brasileiro , suas esperanças, vitórias, derrotas. São versos “sujos”, disse o poeta) e “Na Vertigem do Dia” (80). Escreveu também ensaios (“Cultura Posta em Questão”-63 e “Vanguarda e Subdesenvolvimento”-69) teorizando sobre o engajamento do artista no processo de evolução social, peças teatrais (foi parceiro de Dias Gomes em “Doutor Getúlio, sua Vida e sua Glória”-68, e de Oduvaldo Vianna Filho em “Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come”) e assinou roteiros para a televisão, com o “intuito de manter viva” sua poesia. Nesses textos seu lirismo borbulha uma espécie de poesia de resistência, como faria também Chico Buarque.
Os versos de Gullar exibem imagens brutais. É uma obra carregada de tensão psíquica e ideológica - contra a repressão e por justiça. Denuncia os problemas na época da guerra fria (EUA x URSS), o racismo, o drama dos países subdesenvolvidos, o cinismo capitalista, o perigo das armas atômicas. Por outro lado, esse poeta do mundo também faz muitas vezes referência à sua infância, aos seus parentes e conhecidos, ao cotidiano da velha São Luís do Maranhão.
Sou um homem comum, brasileiro, maior, casado, reservista / e não vejo na vida, amigo / nenhum sentido, senão / lutarmos por um mundo melhor(...) O latifúndio está aí matando (...) o chase bank (...) a nos sugar a vida / e a bolsa(...) A sombra do latifúndio mancha a paisagem (...)somos milhões e homens / comuns / e podemos formar uma muralha / com nossos corpos de sonhos e margaridas” (no poema “Homem Comum”, do livro “Dentro da Noite Veloz”).

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro de Itabira, foi outro escritor que se dedicou ao conflito do homem com a causa social, mostrando que a solidariedade é um dos maiores valores para o ser humano. Seu lirismo ao tratar o cotidiano e os problemas do mundo é marcado por um humor fino, requintado, filosófico, às vezes. Sua obra pode ser dividida em três fases:
1ª Fase: GAUCHE, “torto”: (“Alguma Poesia” em 1930 e “Brejo das Almas” em 1934) - Ironia, humor, poema-piada, síntese, linguagem coloquial. Faltam saídas, daí só restar ao poeta a poesia, isto é, a esperança. Há nesta fase gauche uma espécie de “inexperiência do sofrimento e deleição ingênua” com o próprio indivíduo, como afirmou o próprio Drummond. Vejamos o poema-pílula “Cota Zero”: “Stop/ a vida parou/ ou foi o automóvel?”.
2ª Fase: Individualismo nas contradições entre o eu e o mundo(“Sentimento do Mundo” em 1940, “José” em 1942 e “Rosa do Povo” em 1945) O Eu-lírico interessa-se pelos problemas sociais e exibe sentimento de solidariedade numas poesia social, como já dissemos. “Não, meu corpo não é maior que o mundo./É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / Por isso gosto tanto de me contar. / Por isso me dispo. / Por isso me grito, / por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente em livrarias: Preciso de todos (...) o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias / entre o amor e o fogo, / entre a vida e o fogo, / meu coração cresce, dez metros e explode. / - Ó vida futura! Nós te criaremos.” (trecho de “Mundo grande”, poema do livro “Sentimento do Mundo”)
3ª Fase: A Poesia Filosófica (“Claro Enigma” em 1951, “Fazendeiro do Ar” em 55, “Vida Passada a Limpo” em 59). Pessimismo, preocupação formal na construção dos poemas (verso regular, soneto, seleção vocabular). Quanto ao conteúdo dos versos encontramos ali o existencialismo: Vida / morte / velhice / amor / família / infância / metalinguagem-metapoema, o questionamento da finalidade da própria poesia.
Em “Lição das coisas”, 1962 percebemos a liberdade formal, neologismos, aliterações, sugestões visuais e rupturas sintáticas (influências do Concretismo?).
Nos anos 70 e 80 (“Boitempo”, “As Impurezas do Branco”, “A Paixão Medida”, “Corpo” e outros), sua poesia é marcada por recordações: A infância em Itabira, a família. O humor cotidiano e a auto-ironia permanecem.
Há também os livros póstumos: “O Amor Natural”, publicado em 1992 (poemas eróticos) e “Farewell”.


Ascenso Ferreira e Jorge Amado: O povo no poder!

Pernambucano nascido em 1895 na cidade de Palmares, Ascenso Ferreira faleceu em Recife no ano de 1965.
Inicialmente preso aos moldes parnasianos, assumiu o modernismo em 1922 e em 1927 lançou seu livro de poemas “Catimbó”; em 1930 foi a vez de “Cana Caiana”. Em 1951, uma edição luxuosa contendo as duas obras citadas e um terceiro livro “Xenhenhém”, além de um disco com melodias para os poemas.
São poemas que pedem um público ouvinte, daí dizer-se que sua poesia é mais para ser recitada e ouvida do que impressa e lida.
Quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais nelas contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor. Assim, em ‘Sertão´, quando ele começa: ‘Sertão! - Jatobá! / Sertão! - Cabrobó ! / - Ouricuri!´.
A palavra ‘sertão´ é pronunciada em voz de cabeça, como um prolongado grito de aboio, ao passo que ‘Jatobá´ e ‘Cabrobó´ caem pesadamente do peito, sinistramente escandidas (separadas), evocando desde logo a caatinga. E o resto vem vindo quase sussurrando, um recolhimento quase religioso(...), um sortilégio evocativo tanto pelo ritmo como pela musicalidade.
De repente, eis que o poeta abandona o verso livre, o vozeirão catastrófico e assume o tom dançarino, a cadência de quem vai pastoreando reses mansas: ‘Lá vem o vaqueiro, pelos atalhos, / Tangendo as reses para os currais / Blém... blém, cantam os chocalhos / Dos tristes bodes patriarcais.´
Esta passagem sem preparação do verso livre para os metrificados constituem a característica da forma tão pessoal de Ascenso.
‘É lamp ... é lamp ... é lamp ... / É Virgulino Lampião ... / E O urro do boi no alto da serra, / para os horizontes cada vez mais limpos, / tem algo de sinistro como as vozes / dos profetas anunciadores de desgraças ... / - O sol é vermelho como um tição! / - Sertão! / Sertão!´.
“Ver e sobretudo ouvir Ascenso, é viver intensamente no mundo dos mangues do Recife, do massapê e das caatingas, das cavalhadas, pastoris, maracatus, vaquejadas (...) Ascenso identificou- se com o homem do povo de sua terra mesmo quando este é o cangaceiro que a fatalidade mesológica (do meio onde vive) marcou com o estigma do crime, afirmou o recifense Manuel Bandeira. O Sertão estava no sangue de Ascenso.
O poeta perdeu o pai aos 7 anos, numa cavalhada. Sua mãe, que fora abolicionista , foi sua única professora durante anos.
Dos sonetos e baladas, madrigais, até a poesia brincalhona, foi um passo. O “primeiro Ascenso” cismou com o Modernismo de São Paulo, mas aproximou-se de Mário de Andrade e, claro, de Manuel Bandeira.
Com Gilberto Freyre, Joaquim Inojosa e Joaquim Cardozo fundamentaram o Regionalismo Modernista em Recife.
Se o modernismo paulista aderia aos modelos franceses e italianos, o recifense aproveitou somente o verso livre, o humor, a linguagem coloquial, enfim, pouca coisa das vanguardas de além-mar.
“O freguês que não bebe não é bom cristão! / Peia nele, mestre Mateu!´ / E o coro canta em profusão: / `Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu? / Se o copo era grande, pra que encheu!´ (...) Se a mulher era o diabo, pra que bebeu / essa jurema que é o beijo seu!“.
“Cana Caiana” é um frege que lembra música popular, embolada. Uma poesia “estranha e doce” de um poeta “legítimo”, como disse Luís da Câmara Cascudo, que relembra: Ascenso dava risadas de “acordar os defuntos de Santo Amaro” (cemitério de Recife).
“- Viva o arco-íris (...) Vamos pegá-lo (...) fugiu ... / a chuva fina tem carícias de morte ... / Fugiu ... / Para o sul? Para o norte / - Quem sabe! / Desapareceu ... / Além ... /Vida-Arco-íris também ...” (in “Arco-Íris “ do livro “Catimbó”).
Os engenhos de “fogo morto”, os maracatus, a sensualidade da mulher pernambucana, a culinária, a lua, o mar, o frevo, tudo isso mistura- se na poesia deste poeta de Palmares, cujo ritmo é contagiante.
“O sino bate, / o condutor apita o apito, / solta o trem de ferro um grito, / põe-se logo a caminhar... / - Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / com vontade de chegar / Mergulham mocambos / nos mangues molhados, / moleques mulatos, / vêm vê-lo passar. / - Adeus, - Adeus / Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, / Cajueiros com frutos / já bom de chupar ... / - Adeus, morena do cabelo cacheado! / (...) Mangabas maduras, / mamões amarelos (...) o Pai- das Mata! (...) a casa das Caiporas! (...) Meu deus! Já deixamos a praia tão longe ... / No entanto avistamos outro mar ... (...) Cana-caiana / Cana roxa / cana-fita/ todas boas de chupar” (in “Trem das Alagoas” de “Cana- Caiana”).

Jorge Amado de Faria nasceu em Ferradas, município de Itabuna, Bahia, em 1912.Romântico e sensual, este filho de plantador de cacau levou vida de boêmio no final dos anos 20 em Salvador. Cursou Direito no Rio e publicou seu primeiro livro , “O País do Carnaval”, em 1931 (Resumo: Paul Rigger é um intelectual brasileiro que se formou na Europa, adora o Brasil, mas não consegue se acostumar novamente e volta para o velho continente).
Jorge torna-se “esquerdista” e publica “Cacau”, 1933 (Critica a exploração dos trabalhadores pelos donos das terras de plantações de cacau. O romance busca agradar às massas populares).
Suor”, 1934: Polícia persegue os trabalhadores dos bondes que faziam greve. O cenário é Salvador e mendigos, malandros e meretrizes, tão presentes em outras obras do mestre baiano, já aparecem nesse romance.
Jubiabá”,1935: Antônio Balduíno, Baldo, órfão da periferia ,é criado por ricos, mas prefere a rua. Briga para ganhar dinheiro. Trabalha como agricultor, depois num circo e por fim torna-se operário, engajando-se na luta por melhorias sociais. Jubiabá é seu pai-de-santo. Lindalva ,filha dos seus pais adotivos, sua amada, casa com um homem rico que lhe desgraça a vida.
Em “Mar Morto”, 1936, Amado exibe sua devoção pela religião africana e pela Bahia, terra mágica e poética.
Capitães da Areia”, 1937: Meninos órfãos, ou que fugiram de casa vivem no mundo do crime a dura realidade do litoral, do porto de Salvador. Contravenções e maldades. O chefe é Pedro Bala, que de pequeno marginal, conscientiza-se politicamente dos seus compromissos de cidadão que luta por uma sociedade mais justa.
Terras do sem fim” (43) e “São Jorge dos Ilhéus” (44) têm como tema a região cacaueira da Bahia, a ganância dos latifundiários. Lutas sangrentas, traições conjugais, coronelismo, brigas entre estes “coronéis” e os exportadores e a falência dos produtores no jogo do mercado inescrupuloso.
Seara Vermelha” (46) tem como personagem central um jagunço perigoso, Zé Trovoada, que é joguete das forças conservadoras, os proprietários, contra as dos trabalhadores.
Em 1946, Amado era deputado pelo partido comunista e exilou- se na Europa e Ásia. Quando voltou, publicou a série “Os Subterrâneos da Liberdade”. Em 58, com “Gabriela, Cravo e Canela”, é acusado de pieguice e de estereotipar seus personagens, cometer erros de português ao imitar a fala do povo, além de abusar de palavrões. Entre fazendeiros, exportadores e comerciantes, surge a retirante Gabriela, que se casa com Nacib e trai o marido com Tonico Bastos, um filho de “Coronel”. Nacib a aceita de volta  mas, só como amante e empregada.
Dona Flor e seus Dois Maridos” (67) também é uma crônica de costumes, como “Gabriela”: Dividida entre o espírito do primeiro marido falecido (Vadinho) e a formalidade do segundo (Teodoro), Flor vê sua vida de quituteira transformada num “inferno”. Macumba e culinária na Bahia de Todos os Santos. Sensualidade e malícia nos encantos de Florípedes.
Teresa Batista Cansada de Guerra” (73) e “Tieta do Agreste”, são prostitutas. A primeira é levada ao assassinato no meio de tanta injustiça social, e Tieta é um folhetim picante sobre uma mulher que volta à antiga cidadezinha natal sem contar que é dona de bordel na “cidade grande”.


Capitães da Areia

Jorge Amado nasceu em Itabuna, em 10/08/1912 e morreu em agosto de 2001.Sua trajetória é marcada pela prisão por motivos políticos em 36/37, durante o governo de Getúlio Vargas e o exílio em 41/43(Argentina) e após 47: França,Estados Unidos(!),União Soviética,dentre outros lugares. Voltou ao Brasil em 52 e deu novo rumo à sua carreira.Em 61 entrou para a Academia Brasileira de Letras. Dentre os seus livros publicados estão: País do Carnaval(31), Cacau(33), Suor(34), Jubiabá(35), Mar Morto(36), Capitães da Areia(37), Terras do Sem Fim(43), São Jorge dos Ilhéus(44), Seara Vermelha(46), Os Subterrâneos da Liberdade (3 volumes:Os Ásperos Tempos,Agonia da Noite e A Luz e o Túnel), Gabriela Cravo e Canela(58), Dona Flor e seus Dois Maridos(67), Tenda dos Milagres(70), Teresa Batista Cansada de Guerra(73), Tieta do Agreste(77), Farda,Fardão,Camisola de Dormir(79), O Menino Grapiúna(82).
Sua obra divide-se em: Romances proletários (Cacau, Suor, País do Carnaval). Depoimentos líricos (Jubiabá,Mar Morto,Capitães da Areia). Pregação partidária. Painéis da região do cacau (Terras do Sem Fim,São Jorge dos Ilhéus. Crônicas de costumes (Gabriela, Dona Flor, Teresa Batista, Tenda dos Milagres e Tieta). Amado idealiza o negro e em Seara Vermelha volta-se para o banditismo(sempre como efeito da miséria,do latifúndio). A linguagem é simples e oferece ao leitor uma visão “crítica”das relações sociais (o homem se dissolve na massa que,às vezes,pode ser o fascismo,o racismo, o stalinismo). A tensão é mínima e o conflito no máximo é verbal, quando muito.Os personagens interagem com a paisagem e são condicionados por ela. Jorge era filho de comerciante sergipano dono de terras em Sergipe e na Bahia,daí sua fonte de inspiração.Foi influenciado por Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz e fez literatura de propaganda política,realismo bruto,influenciado por romancistas norte-americanos e literatura russa. Boa parte dos seus personagens exibe atitudes românticas e sensuais. Criou “tipos” inesquecíveis. Suas narrativas buscam a oralidade num regionalismo quase apelativo e que depois foi permeado por palavrões e oscilando entre a pieguice e a volúpia e entregando-se ao descuido formal. Soube como poucos transmitir o Eros do povo. O romance Capitães da Areia narra a vida de menores abandonados da Bahia,que vivem num barraco abandonado.O líder é Pedro Bala,bom e corajoso (mais um estereótipo de Amado), João Grande (o negro bondoso e forte, outro “tipo”), o Professor (“artista”), Pirulito (místico e introvertido), Dora (jovem amante de Pedro Bala), Gato (elegante e conquistador), Sem-Pernas (bom,mas revoltado por não ter um “lar”), Volta Seca (afilhado de Lampião). São tipos quase caricaturais. A narrativa busca ser fiel à realidade, ao abordar o cotidiano destes jovens que tentam driblar seu destino miserável,sua angústia por não ter quem os proteja,a falta de comida,de dinheiro,de amor,numa sociedade extremamente injusta que os persegue e quer matá-los. A narrativa é ao mesmo tempo “crua e lírica” (poética). O narrador joga a culpa nas desigualdades sociais,que levam ao crime e à marginalização. A narrativa é intercalda com reportagens sobre o grupo dos “Capitães da areia” e mostrando os menores do ponto de vista da burguesia bem situada. “O romance sugere o contraste entre a humanidade e a sensibilidade das crianças e a desonestidade das classes dominantes.Conduzindo a história em função dos destinos individuais de cada participante do bando,Jorge Amado acaba por mostrar que,à exceção de um ou outro (o Gato torna-se de vez um bandido; Sem-Pernas morre fugindo da polícia; e Volta-Seca alia-se a Lampião), os demais ganham consciência política,revolucionária e participam de movimentos reivindicatórios”,diz o crítico Álvaro Gomes. A grande admiração do autor pelos vagabundos inspirou-o na composição deste romance.Estes órfãos desamparados que vivem na orla de Salvador, à custa de furtos e pequenas trapaças são como um “desdobramento” do que ocorre Em “Jubiabá” (história da vida de Antônio Balduíno,mostrando o povo colorido da Bahia,personagens pitorescos como o pai-de-santo Jubiabá,que protege Baldo, que nutre paixão por Lindinalva,tudo num clima sensual e apimentado) ,em que o herói ascende da marginalidade à consciência política.

CONCEPÇÕES DO AUTOR SOBRE Capitães da Areia Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandros, os rostos chupados de fome, vos pedirão esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quase oito anos escrevi um romance sobre eles, os Capitães da Areia. Os que conheci naquela época são hoje homens feitos, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados na polícia, mas capitães da areia continuam a existir enchendo as ruas da cidade, dormindo ao léu. Não são um bando surgido ao acaso, coisa passageira na vida da cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas.Os jornais denunciam constantes malfeitos desses meninos que têm como único corretivo as surras na polícia. Os maus tratos sucessivos.Parecem pequenos ratos agressivos,sem medo de coisa alguma,de choro fácil e falso,de inteligência ativíssima,soltos de língua,conhecendo todas as misérias do mundo numa época em que as crianças ricas ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de Paris no bico de uma cegonha. Triste espetáculo das ruas da Bahia, os capitães de areia. Nada existe que eu ame com tão profundo amor quanto estes pequenos vagabundos, ladrões de onze anos, assaltantes infantis, que os pais tiveram de abandonar por não ter como alimenta-los. Vivem pelo areal do cais, por sob as pontes, nas portas dos casarões, pedem esmolas, fazem recados, agora conduzem americanos ao mangue. São vítimas,um problema que a caridade dos bons de coração não resolve. Que adianta os orfanatos para quinze ou vinte? Que adiantam as colônias agrícolas para meia dúzia? Os capitães da areia continuam a existir. Crescem e vão embora mas já muitos outros tomaram os lugares vagos. Só matando a fome dos pais pode-se arrancar à sua desgraçada vida essas crianças sem infância,sem brinquedos, sem carinhos maternos, sem escola,sem lar e sem comida. Os capitães da areia,esfomeados e intrépidos!


Sentimento do mundo: a guerra de Drummond

“Esse incessante morrer / que nos teus versos encontro / é tua vida, poeta, /e por ele / te comunicas com o mundo em que te esvais. / Debruço-me em teus poemas /e nele percebo ilhas / em que nem tu nem nós habitamos / (ou jamais habitaremos) / e nessas ilhas me banho / num sol que não é dos trópicos, / numa água que não é das fontes / mas que ambos refletem a imagem / de um mundo amoroso e patético. / Tua violenta ternura,tua infinita polícia, / tua trágica existência / no entanto sem nenhum sulco / exterior-salvo tuas rugas, / tua gravidade simples, / a acidez e o carinho simples / que desbordam em teus retratos, / que capturo em teus poemas, / são razões por que te amamos / e por que nos fazes sofrer (...) Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa, / anunciando que tua vida passou à toa, à toa / Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino, / diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado (...) Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite (...) és tu mesmo,é tua poesia, (...) é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador”.
Assim expressou-se Drummomd quando Manuel Bandeira completou 50 anos (Ode no Cinqüentenário do poeta Brasileiro-poema do livro SENTIMENTO DO MUNDO). O ano era 1940, marcado pela segunda guerra mundial.
O novo livro de Drummond trazia a necessidade de darmo-nos as mãos e sermos no futuro uma lembrança,como um retrato na parede, porque o amor resultou inútil e olhos não choram. Porque chegara um tempo em que não adiantava morrer. A vida? Uma ordem. Vida apenas, sem mistificação.
Drummond tinha a História como perspectiva,e dizia-se poeta de “ritmos elementares”. Porém sua obra é uma espécie de suporte pra o viver, o sobreviver e o morrer. Onde o Bem, o Belo, a Forma,a Estrutura, a Verdade, a Realidade, o Indivíduo, as Pessoas, a Sociedade, o Canto, a Arte,o Artifício, o Menos e o Mais, o Sim e o Não, giram em alegorias no cotidiano do brasileiro simples.
O poeta de Itabira (MG) descobriu também que o sentido da vida é o seu sem-sentido onde tudo se comunica: o real e o imaginário de todas as épocas se misturam. Assuntos, motivos, temas, tópicos que até então estavam banidos da poética aparecem na poesia dele numa espécie de novo “viva o dia” (carpe diem), como frisou Antônio Houaiss. Drummond é mestre da língua. Sua invenção da modernidade é uma postura que se faz necessária, é pois um projeto de vida ou de carreira. Uma busca incessante, onde Linguagem e Homem reinauguram-se. Sua busca da simplicidade, oralidade, é característica marcante, particularizante. Suas utopias, sonhos, protestos, indagações, enlaces, desenlaces, fazem dele um “corajoso desor-ganizador”. Ele se escreve. Ele acusa o limite, não apenas entre o bem e o mal (que não existe, é apenas um contraste do bem). Sua obra ”que não foi construída segundo um projeto,a partir de intenções e fôrmas e/ou formas externas- por exemplo a de `ser´ poeta, a de fazer um soneto, uma sextilha ou um poema de vanguarda, sobre este ou aquele tema,segundo esta ou aquela técnica”. “O amor truncado, que não chega a ser amor,mas que perdido se revela amor que podia ter sido”. O humor dessa vida que continuará nos outros, ou em “algo que talvez nem seja o Outro, mesmo que não valha a pena: continuará”: “Onde o diabo joga dama com o destino”. “Debruça-se o autor sobre o próprio texto à medida que o elabora, inquirindo-lhe do cabimento, da legitimidade, da propriedade das palavras. Uma atitude metalingüística. É o cotidiano repetido num singular irrepetido. A técnica machadiana: espíritos afins, em determinadas condições histórico-sociais, são levados ao uso de técnicas de expressão afins”, ressaltou o mestre Houaiss. O itabirano foi cristalizador do modernismo em sua plenitude cheia de crises, monstros e utopias. Crise totalizante, porque planetizada num mundo “fomicizado” pela mecanização “coisificante”, daí o conflito da mente do poeta com a realidade total em que vivia, Luís Costa Lima afirmou: ”Drummond é o maior e último poeta modernista:seu riso corrói,dissolve aquelas dissonâncias que são a regra da vida.Ele assume com a História uma relação aberta”. Ele se opõe ao “fluir sentimental de Manuel Bandeira,pois que não há piedade em si mesmo por uma vida que podia ter sido e que não foi e cujos elementos de saudade se constituem, assim, em força predominante de um poetar num infinito jogo de recursos para enunciação do inédito. Uma lição de vida”. O livro “Sentimento do Mundo” contém os seguintes poemas:
SENTIMENTO DO MUNDO - o poeta é surpreendido pela guerra: ”Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. / Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho (...) ao amanhecer / esse amanhecer / mais noite que a noite.”
CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO - as lembranças da cidade-natal: “Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro” (principal atividade da cidade) “A vontade de amar,que me paralisa o trabalho, vem de Itabira (...) E o hábito de sofrer,que tanto me diverte, é doce herança itabirana (...) Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas um retrato na parede. / Mas como dói!”
CANÇÃO DA MOÇA-FANTASMA DE BELO HORIZONTE. - uma mistura de lenda e metáfora: ”Eu sou a Moça-Fantasma / que espera na rua do Chumbo / o carro da madrugada / Eu sou branca e longa e fria / a minha carne é um suspiro / na madrugada da serra / Eu sou a Moça-Fantasma / O meu nome era Maria, / Maria - Que Morreu – Antes. (...) Eu nunca fui deste mundo: / Se beijava, minha boca / dizia outros planetas / em que os amantes se queima / num fogo casto e se tornam / estrelas sem ironia / Morri sem ter tido tempo / de ser vossa,como as outras. Não me conformo com isso (...) Não sei como libertar-me”.
POEMA DA NECESSIDADE - utilizando-se do recurso da anáfora (repetições), o poeta anuncia o “fim do mundo”, num cotidiano frenético: “É preciso casar João, / é preciso suportar Antônio, é preciso odiar Melquíades, / é preciso substituir nós todos. / É preciso salvar o país, é preciso crer em Deus, / é preciso pagar as dívidas (...) é preciso colher flores (...) É preciso viver com homens, / é preciso não assassiná-los, / é preciso ter mãos pálidas / e anunciar o FIM DO MUNDO”.
TRISTEZA DO IMPÉRIO - a relação irônica do modernismo com a História,prato preferido de Oswald,aparece na poesia de Drummond: ”esqueciam a Guerra do Paraguai (...) a dor cada vez mais forte dos negros / e sorvendo mecânicos / uma pitada de rapé, / sonhavam com a libertação dos instintos / e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana,com rádio e telefone automático”.
O OPERÁRIO DO MAR - o homem do povo: “Para onde vai o operário? / Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. / Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... (...) quem sabe se um dia o compreenderei?”
MENINO CHORANDO NA NOITE - a união entre seres humanos, flagrados em atitudes simples: “Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora. / O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça (...) E não há ninguém mais nesse mundo a não ser esse menino chorando.”
MORRO DA BABILÔNIA - a gente brasileira: ”Há mesmo um cavaquinho bem afinado / que domina os ruídos da pedra e da folhagem / e desce até nós, modesto e recreativo, / como uma gentileza do morro”.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO - “Provisoriamente não cantaremos o amor / ... depois morreremos de medo”.
OS MORTOS DE SOBRECASACA - “Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis / alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, / em que todos se debruçavam / na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca / Um verme principiou a roer (...) Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava / que rebentava daquelas páginas”.
BRINDE AO JUÍZO FINAL - “Em vão assassinaram a poesia nos livros (...) Os sobreviventes aqui estão”.
PRIVILÉGIOS DO MAR - “Neste terraço mediocremente confortável, / bebemos cerveja e olhamos o mar./Sabemos que nada nos acontecerá.”
INOCENTES DO LEBLON - “Os inocentes do Leblon/não viram o navio entrar (...) tudo ignoram, / mas a areia é quente, e há um óleo suave / que lês passam nas costas, e esquecem”.
CANÇÃO DE BERÇO - “O amor não tem importância(...) Mas também a carne não tem importância (...) Também a vida é sem importância. / Os homens não me repetem / nem me prolongo até eles. / A vida é tênue, tênue / O grito mais alto ainda é suspiro, /os oceanos calaram-se há muito. / Em tua boca,menina, / ficou o gosto de leite? /ficará o gosto de álcool? / Os beijos não são importantes. / No teu tempo nem haverá beijos. / Os lábios serão metálicos, / civil,e mais nada, será o amor / dos indivíduos perdidos na massa / e uma só estrela / guardará o reflexo / do mundo esvaído / (aliás sem importância).”
INDECISÃO DO MÉIER - “Teus dois cinemas, um ao pé do outro,por que não se afastam/para não criar,todas as noites,o problema da opção.”
BOLERO DE RAVEL - “Alma cativa e obcecada / enrola-se infinitamente numa espiral de desejo / e melancolia (...) Os tambores abafam a morte do Imperador”
LA POSSESSION DU MONDE - “Os homens célebres visitam a cidade. / Obrigatoriamente exaltam a paisagem. / Alguns se arriscam no mangue, / outros se limitam ao Pão de Açúcar, / mas somente Georges Duhamel / passou a manhã inteira no meu quintal. / Ou antes no quintal vizinho do meu quintal”.
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO - um dos poemas mais conhecidos de Drummond da vida, simplesmente,sem mistificação: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus (...) não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco. (...) Chegou um tempo em que não adianta morrer”.
MÃOS DADAS - aqui o poeta diz que é melhor não fazer poesia “alienada”. Fala também na necessidade de união para resolver os problemas (“a enorme realidade”). Uma resposta à aflição da guerra: “Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à vida e olho meus companheiros. / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”.
DENTADURAS DUPLAS - a velhice, num poema dedicado a Onestaldo de Pennafort:”Dentaduras duplas! / Inda não sou bem velho / para merecer-vos (...) daí-me enfim a calma / que Bilac não teve/para envelhecer (...) feéricas dentaduras, admiráveis presas, / mastigando lestas / e indiferentes / a carne da vida!”
A NOITE DISSOLVE OS HOMENS - a Portinari: “A noite desceu. Que noite! / Já não enxergo meus irmãos (...) Tremenda, / sem esperança ... Os suspiros / acusam a presença negra / que paralisa os guerreiros. / E o amor não abre caminhão / na noite. (...) A noite anoiteceu tudo... / O mundo não tem remédio ... / Os suicidas tinham razão (...) O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos (...) O mundo / se tinge com as tintas da antemanhã / e o sangue é doce,de tão necessário / para cobrir tuas pálidas faces,aurora.”
MADRIGAL LÚGUBRE - “Em vossa casa feita d cadáveres (...) quisera eu morar (...) Cá fora é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada. (...) Dai-me vossa cama,princesa, (...) sutil flui o sangue nas escadarias”.
LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO - “Clara passeava no jardim com as crianças. / O céu era verde sobre o gramado, / a água era dourada sob as pontes, / outros elementos eram azuis, róseos,alaranjados (...) Havia jardins,havia manhãs naquele tempo!!!”
ELEGIA 1938 - “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, / onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. (...) Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição / porque não podes,sozinho,dinamitar a ilha de Manhattan.”
MUNDO GRANDE - “Não,meu coração não é maior que o mundo./É muito menor./Nele não cabem as minhas dores/Por isso gosto tanto de me contar./por isso me dispo,/por isso me grito,/por isso freqüento os jornais,me exponho cruamente nas livrarias:/preciso de todos(...)o grande mundo está crescendo todos os dias,/entre o fogo e o amor.//Então,meu coração também pode crescer(...) – Ó vida futura!nós te criaremos”.


Manuel Bandeira: estrela da vida inteira

O livro “Estrela da Vida Inteira” é, na verdade, um conjunto de livros do poeta recifense, um dos mais ternos do Brasil, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira(1886-1968). São eles: Cinza das Horas (1917): Nele podemos perceber que o poeta, vindo da tradição simbolista e parnasiana,mantém com ela profundos laços e caminha, paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição. “O que tu chamas tua paixão / É tão somente curiosidade. / E os teus desejos ferventes vão / Batendo as asas na irrealidade ... / Curiosidade sentimental / Do seu aroma,sua pele. / Sonhas um ventre de alvura tal, / Que escuro o linho fique ao pé dele(...) E acima disso, buscas saber / Os seus instintos, suas tendências... / Espiar-lhe na alma por conhecer / O que há sincero nas aparências.” (trecho de “Poemeto Irônico”)
Carnaval (1919): Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica especializada. “É um livro sem unidade. Sob pretexto de que no carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos, e isto ao lado das alfinetadas dos `Sapos´”, disse o poeta. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao parnasianismo e foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. O poema seria considerado uma espécie de hino nacional dos modernistas. Outro poema deste livro: ”Na velha torre quadrangular / Vivia a Virgem dos Devaneios ... / Tão alvos braços ... Tão lindos seios... / Tão alvos seios por afagar...” (em “Baladilha Arcaica”).
O Ritmo Dissoluto (1924): Neste livro Bandeira começa a explorar mais sistematicamente a simplicidade popular e um certo prosaísmo. É um livro,como o próprio poeta via, de “transição entre dois momentos de sua poesia”. “A doce tarde morre. E tão mansa / Ela esmorece, / Tão lentamente no céu de prece, / Que assim parece,toda repouso, / Como um suspiro de extinto gozo / De uma profunda, longa esperança / Que, enfim cumprida, morre, descansa ...” (em “Felicidade”).
Libertinagem (1930): Com a publicação deste livro,pode-se dizer que a poesia de Bandeira amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais freqüência as cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: “Não Sei Dançar”, ”Pneumotórax”, ”Poética”, ”Evocação do Recife”, ”Poema tirado de uma Notícia de Jornal”, ”Teresa” e “Vou-me Embora para Pasárgada”.
“Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. /Tenho todos os motivos menos um de ser triste. / Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...” (em “Não Sei Dançar”). “Recife / Não a Veneza americana / Não a Mauritstadt dos armadores das Índias Ocidentais (...) Mas o Recife sem história nem literatura / Recife sem mais nada / Recife da minha infância” (em “Evocação do Recife”).
Estrela da Manhã (1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou 50 exemplares na marra (papel doado e impressão custeada por subscritos). Alguns músicos interessaram-se por seus textos, como Jaime Ovall e Radamés Gnatali, entre outros. Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de canções, a pedido do maestro Villa-Lobos, que queria composições tipicamente brasileiras para serem cantadas em ocasiões festivas. Foram reunidas com o nome de Canções de Cordialidade (“Trem de Ferro”, ”Berimbau”, “Cantiga”, “Dona Janaína”, ”Irene no CÉU”, ” Na Ruia do Sabão”, “Macumba do Pai Zuzé”, “Boca de Forno”, “O Menino Doente” e “Dentro da Noite”, publicados em outras obras.
“As três mulheres do sabonete Araxá me invocam,me bouleversam,me hipnotizam. / Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde! / O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! / Que outros, não eu, a pedra cortem / Para brutais vos adorarem, ”Ó brancaranas azedas, / Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata / Ou celestes africanas (...) Meu Deus, serão as três Marias? / A mais nua é doirada borboleta / Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra e nunca mais telefonava / Mas, se a terceira morresse ... Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim”. (em “Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”)
Lira dos Cinqüenta Anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite que o poeta recebeu de uma casa editora. Bandeira candidatou-se à Academia Brasileira de Letras.“Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada /Ribeirão trepidante e de cada recosto / De montanha o metal rolou na cascalhada / Para o fausto d´El-Rei,para a glória do imposto / Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: / Pedras...templos que são fantasmas do sol- posto.” (em “Ouro Preto”)
“Vi uma estrela tão alta, / Vi uma estrela tão fria! / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida vazia / Era uma estrela tão alta! / Era uma estrela tão fria! / Era uma estrela sozinha/Luzindo no fim do dia” (em “A Estrela”)
“Lapa - Lapa do Desterro -, / Lapa que tanto pecais! / (Mas quando bate seis horas, / Na primeira voz dos sinos, / Como anunciava / A conceição de Maria, / Que graças angelicais!” (em Última Canção do Beco”) Belo Belo (1948): Esse título foi tirado de um poema da Lira dos Cinqüent´Anos. Numa edição posterior, de 1951, foram acrescentados alguns poemas. “Vamos viver no Nordeste, Anarina. / Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha / Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante. / Aqui faz muito calor. / No Nordeste faz calor também. / Mas lá tem brisa”. (em “Brisa”)
”Belo belo minha bela / Tenho tudo que não quero / Não tenho nada que quero / Não quero óculos nem tosse / Nem obrigação de voto (...) Belo belo / Mas basta de lero-lero / Vida noves fora zero” (em “Belo Belo”)
Mafuá do Malungo (1948): Publicado na Espanha por iniciativa de João Cabral de Melo Neto. Mafuá significa feira popular, malungo é um africanismo, significando companheiro. Nesse livro, Bandeira faz jogos com as primeiras letras das palavras, faz também sátiras políticas, brinca “à maneira de” outros poetas.”
“Olhei para ela com toda a força. / Disse que era boa. / Que ela era gostosa, / Que ela era bonita pra burro: / Não fez efeito (...) Virei pirata (...) Então banquei o sentimental (...) Escrevi cartinhas (... Perdi meu tempo: não fez efeito. / Meu Deus que mulher durinha! / Foi um buraco na minha vida. / Mas eu mato ela na cabeça: / Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas, / Pastilhas purgativas: / É impossível que não faça efeito!” (em “Dois Anúncios”: “ I - Rondó de efeito”)
Opus 10 (1952-1955) A expressão do título vem do universo da música. A palavra latina Opus indica genericamente obra, composição, e o número indica a posição de determinada peça num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a partir de uma expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a importância da música e da musicalidade em sua obra.
“Como em turvas águas de enchente / Me sinto a meio submergido, / Entre destroços do presente / Dividido,subdividido, / Onde rola, enorme, o boi morto (...) Morto sem forma ou sentido / Ou significado. O que foi/Ninguém sabe.Agora é boi morto” (em “Boi Morto”) “Grilo toca aí um solo de flauta. / - De flauta? Você me acha com cara de flautista? / - A flauta é um belo instrumento. Não gosta? / -  Troppo dolce!” (em “O Grilo “).
Estrela da Tarde (1960) reeditado em 1963,com novos poemas. É a maturidade do poeta completo que Bandeira já é ao tempo deste livro,onde ele tanto retorna ao soneto tradicional (reinventado na sua poética),como se utiliza de recursos gráficos –talvez inspirados nas vanguardas contemporâneas-na montagem de poemas como “O Nome em Si”.
“Vejo mares tranqüilos, que repousam, / Atrás dos olhos das meninas sérias. /Alto e longe elas olham,mas não ousam / Olhar a quem as olha, e ficam sérias” (em “Variações Sérias em Forma de Soneto”).
Lira do Brigadeiro “Depois de tamanhas dores, / De tão duro cativeiro / às mãos dos interventores, / Que quer o Brasil inteiro? / - O Brigadeiro! (...) Brigadeiro da esperança, / Brigadeiro da lisura / Que há nele que tanto afiança / A sua candidatura? / - Alma pura! (...) Abaixo a politicalha! / Abaixo o politiqueiro! / Votemos em quem nos valha: / Que nos vale, brasileiro? / - O Brigadeiro! (...) O Brigadeiro é católico (...) Comunga, mas não comunga / Com os impostores ateus / E os ricos do Estado Novo: / Comunga só com o seu Deus / E com o povo! (...) - Não voto no militar; voto no homem escandaloso. / - Ué, compadre, quem é o homem escandaloso? / - O Brigadeiro (...) Não zunzuna / Nem não fala atoamente; / Será nosso presidente / Estava no seu destino / Desde que ele era tenente / Desde que ele era menino”
OUTROS POEMAS. “O SUPLICANTE - Padre Nosso, que estás no céu santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pó nosso de cada dia nos dá hoje... / O SENHOR (interrompendo enternecidíssimo) - Toma lá,meu filho. Afinal tu és pó e em pó te converterás!” (em “Sonho de uma noite de coca”)
“Casa Grande & Senzala” / Grande livro que fala / Desta nossa leseira / Brasileira / Mas com aquele forte / Cheiro e sabor do Norte / - Dos engenhos de cana / (Massangana!) (...) Se nos brasis abunda / Jenipapo na bunda, / Se somos todos uns / Octoruns / Que importa? E lá é desgraça? / Essa história de raça, / Raças más, raças boas (...) É coisa que passou / Pois o mal do mestiço não está nisso. / Está em causas sociais, / De higiene e outras que tais: / Assim pensa, assim fala / Casa Grande &Senzala. / Livro que à ciência alia / A profunda poesia / Que o passado revoca / E nos toca / A alam de brasileiro, / Que o portuga femeeiro / Fez e o mau fado quis / Infeliz!”.

Memórias do Cárcere Graciliano Ramos escreve sobre sua prisão na Era Vargas
por Moisés Neto. A obra do alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) divide-se assim:
Romance: Caetés(33), São Bernardo(34), Angústia(36), Vidas Secas(38).
Conto Obra Memorialista: Infância(45), Memórias do Cárcere(53), Viagem(54), Linhas tortas(62) Viventes das Alagoas (Quadros e costumes do Nordeste,1962.
Literatura infantil: História de Alexandre(44), Dois Dedos(45), Histórias Incompletas(46). Realismo crítico onde o herói não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Não há predomínio do Regionalismo, da paisagem, que só interessa quando interage com o psicológico, e mesmo assim tudo passando pelo crivo da economia vocabular e correção gramatical. Ao contrário de Jorge Amado,não apelou para o populismo. Eis um resumo feito por Moisés Neto, em forma dramática, do texto Memórias do Cárcere: “Meu nome é Graciliano Ramos Fui prefeito e secretário da educação, em Alagoas. Eu sou apenas um escritor, para muitos. Minha mulher, Heloísa,acha que eu tenho uma amante e costuma dizer que eu só penso em mim, e devia pensar mais nos meus filhos. Eu já havia publicado meu primeiro romance `Caetés´ e escrito o segundo, `Angústia´, quando fui preso como comunista. Vieram avisar-me para fugir, porque a pressão era muita. Fugir para onde? Viver escondido nas dunas da praia? Deixar a barba crescer? Fui preso.Conheci muita gente no cárcere. Primeiro numa colônia penal, a seguir no porão de um navio. Um lugar sufocante,cheio de gente. Um prisioneiro ao ser arrastado para fora, gritou: `Companheiros vão separar-nos. Se nunca mais nos virmos, ficam vocês sabendo o lugar da minha morte!´ Já se viram numa situação semelhante? Lá estava o que a burguesia sempre deu ao proletariado: fezes, urina e comida ruim. Um dia, acordei e vi homens desesperados, e, mesmo assim, masturbando-se. Perguntei porque alguns usavam cruzes. Disseram que quando a revolução triunfasse, os ateus `de todos os credos´ seriam mortos. Havia de tudo lá, até mulheres. Uma delas, chamada Maria Joana foi detida com uma metralhadora na mão. Inocentes, que cumpriam ordens em nome da revolução. Presos e torturados porque queriam distribuição de terras e melhores condições de vida para os trabalhadores. Restos de comida pelos cantos, caindo sobre mim! Pensam que estão num chiqueiro? Porcos! O `beato´que me amaldiçoou, rezava. `Seu Ramos,tem alguém lhe procurando no convés´.Quem seria? Era um bispo conhecido meu.Trouxera-me roupas e notícias da minha família.Disse-me que eu seria solto logo,logo. Não acreditei no que aquele bispo dizia.Eu não acreditava naquilo. A luta contra o imperialismo e o latifúndio,sempre fez muitas vítimas. Um dia comprei uma garrafa de cachaça:foi uma festa naquele porão imundo.Teve um que começou a cantar e todos acompanhavam batendo palmas,utilizando objetos como percussão.Era ao mesmo tempo fascinante e assustador. Chegamos ao Rio de Janeiro:`O diretor da Instrução pública do Estado de alagoas.Graciliano Ramos: funcionário público´, por isso ganhei uma `acomodação´ melhor. Religião? Nenhuma. O funcionário não quis registrar isso. Os prisioneiros nos receberam cantando o hino nacional e gritaram: ´viva os nossos companheiros revolucionários do Norte!´ Que revolução? Lá estavam: médicos, professores, militares, engenheiros. Presos por motivos políticos, em sua maior parte. Porque lutaram por um país melhor Capitão Mota era poeta. Foi um dos que conheci lá. O pessoal inventou uma tal de `Rádio Libertadora´,que transmitia direto da `Praça Vermelha´: um prisioneiro imitando a voz de locutor de rádio. Sonhavam com um governo popular que combatesse o fascismo de Vargas. Ele havia decretado estado de guerra´no Brasil.
Praia maravilhosa, cheia de balas mil. Vermelha e majestosa, sentinela do Brasil! (cantavam as mulheres,na prisão ao lado da nossa, parodiando a música `Cidade Maravilhosa´). A revolução! Gritava alguém.Não escutam o barulho das metralhadoras? Muitos enlouqueciam naquela tortura. A `transferência´, às vezes, era um artifício para encobrir uma possível execução. Nas celas havia aulas de matemática, inglês, política, história e muito mais. Um italiano traçava as bases para a tomada do poder. Heloísa, minha esposa, visitou-me.Eu ali, indefeso. José Olympio aceitou publicar meu romance (sem correções) e o Capitão Mota entregou um conto meu na redação de uma revista, que o publicou. Na minha cela ficou um certo capitão Pompeu, que por ironia ameaçara-me de fuzilamento na Revolução de 30,em Alagoas. Que ironia. A `rádio revolucionária´ anunciava: Getúlio assinou contrato com os Estados Unidos para pagamento da dívida externa. Na cela ao lado estava Olga, esposa de Luis Carlos Prestes, grávida. Getúlio a entregaria para a Alemanha nazista.Mentiram dizendo para as companheiras que ela estava apenas sendo transferida. A revolução tem que ser universal! Devemos ser instrumentos dela, gritavam. Coragem! O ódio dos fascistas nada significa para nós,revolucionários.
Eu tomava muito café. Os soldados mantinham na prisão, hábitos militares. Sempre querendo controlar a situação. Fascistas! E ainda diziam que eu tinha alma de usineiro! Fiquei doente, colocaram-me na enfermaria. Trouxeram-me um advogado: doutor Sobral,o mesmo de Prestes. Mandei-o para o inferno. Heloísa insistiu. Terminei aceitando que ele fizesse a minha defesa, embora não houvesse acusação. Nunca me disseram o motivo da minha prisão! Houve festa no hospital, comemorando o lançamento do meu livro. Ridículo. Fui transferido depois para Ilha Grande. Uma pessoa inteligente nunca se aperta, disse-me um sargento. Aconselhou-me também a esconder meus escritos e um resto de dinheiro que eu guardava. Rasparam meus cabelos. Reencontrei muitos companheiros do cárcere anterior. Fui colocado entre ladrões. Éramos tratados a tapas e pontapés. Aqui não há nenhum direito. Vocês vieram aqui para morrer!Estão ouvindo? Morrer! Restavam,para alguns, a masturbação e a sodomia. Minha úlcera voltou a incomodar-me. Uma operação ali seria suicídio. Um companheiro chamado Gaúcho,ladrão muito decente,pediu-me para colocar o nome dele nestas minhas `memórias´. Muitos pediam isso,e iam trazendo informações. Gaúcho roubou papel e tinta no escritório, para mim. Pegou solitária por isso. Um dos presos transformou o cabo de uma colher em faca, esfregando-o contra as pedras. Matou outro preso que trabalhava como guarda. Eram assim os dias. Sempre li sobre a revolução,desde pequeno no armazém do meu pai. Pelo menos era isso que diziam sobre mim. 3353. Era esse o meu número. Um dia o chefe do presídio pediu-me para escrever um discurso para o aniversário do diretor, em nome da polícia. Eu poderia escrever isso? Em troca ele me daria papel e tinta para meus `escritos´. Ensinei como ele mesmo devia escrevê-lo, na sua simplicidade. Acostumados com a miséria,alguns presos resistiam bem e diziam que ao sair dali, iam se juntar à guerrilha para matar soldados.Desprezavam o trabalho intelectual e diziam que eu não agüentaria, por muito tempo, aquelas condições de vida. Comprei de Gaúcho uma cama no alojamento. Cinco mil réis. Os camaradas disseram que eu devia ter consultado o coletivo.Gritaram que eu vivia e iria morrer como um burguês! Ilha Grande! Que assunto magnífico. Hoje tão distante. Não foi fácil sair de lá com meus escritos. Mas,eu consegui” O concretismo.
• Origens “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária” (Maiakóvski)

Levando ao máximo a tendência ao despojamento vocabular e à racionalização da linguagem que vimos principalmente em João Cabral de Melo Neto, vai surgir um movimento de vanguarda, que após a explosão modernista de 1922, foi o que trouxe à literatura brasileira o maior impulso no sentido de uma renovação estilística: o Concretismo. A Poesia Concreta é originária do trabalho conjunto do grupo que se reuniu em torno da revista-livro Noigandres (antídoto do tédio,em provençal). A equipe era composta por três jovens: Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Seu consumo se deu da maneira mais surpreendente. Na linguagem e na visualidade cotidianas, a Poesia Concreta comparece. Está no texto de propaganda, na paginação e na titulação do jornal, na diagramação do livro, no slogan de televisão, na letra de “bossa nova” (“Teoria da Poesia Concreta”, Revista Invenção, pag. 5).

Características Tem conexão com o status tecnológico do nosso século e reflete a influência dos meios de comunicação de massa: jornal, televisão, revista em quadrinhos etc. Preconiza a substituição da estrutura da frase, peculiar ao verso, por estruturas nominais, que se relacionam especialmente tanto na direção horizontal como na vertical. A substituição da sintaxe verbal pela sintaxe analógico-visual deve ser entendida como fruto legítimo da civilização audiovisual. Na medida em que o material significante assume o primeiro plano, verbal e visual, vale destacar alguns procedimentos: no campo semântico: ideogramas (“apelo à comunicação não-verbal”, polissemia, trocadilho, nonsense; no campo sintático: ilhamento ou atomização das partes do discurso; justaposição; redistribuição de elementos; ruptura com a sintaxe da proposição; no campo léxico, substantivos concretos, neologismo, tecnicismos, estrangeirismos, siglas, termos plurilingües; no campo morfológico: desintegração do sintagma nos seus morfemas; separação dos prefixos, dos radicais, dos sufixos; uso intensivo de certos morfemas; no campo fonético: figuras de repetição sonora (aliteração, assonâncias, rimas internas, homoteleutons); preferência dada às consoantes e aos grupos consonantais; jogos sonoros; no campo topográfico: abolição de verso, não-linearidade; uso construtivo dos espaços brancos; ausência de sinais de pontuação; constelações; sintaxe gráfica. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. Seu método material: a palavra (som, forma visual, carga semântica).
A POESIA PRÁXIS. Foi, de início, uma ruptura polêmica e agressiva com o grupo concretista, retomando o engajamento histórico e a linguagem verbal, a palavra. A Poesia Práxis teve como seu principal teorizador e autor o poeta Mário Chamie, que rompeu com o grupo concretista, por volta de 1961 e, junto ao poeta veterano Cassiano Ricardo, pesquisou uma “nova estrutura” para o poema. Em 1962, Mário Chamie pública o livro Lavra Lavra, que representou a grande abertura para a Poesia Práxis.
- todo problema tem as suas palavras;
- cada palavra tem o seu centro de energia e o seu vocabulário;
- todo vocabulário de uma palavra tem as suas relações em níveis sintático, semântico e pragmático;
- cada núcleo de relações condiciona blocos de estruturas correspondentes;
- cada bloco de estrutura é uma originalidade formal, refletindo um aprendizado particular do autor;
- cada originalidade formal é, necessariamente, um texto que esgota a área de que é levantamento;
- cada texto, nas múltiplas linhas de força desse processo, é linguagem que a própria área possibilitou, pela mediação da palavra.

João Cabral de Melo Neto: 60 anos de poesia por Moisés Neto
Nascido em Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, onde passou a infância e recebeu grande influência. No Recife, jogou pelo time Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 45 ingressou na carreira diplomática. Seu primeiro livro Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo, semana de 22,etc.), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”. Em 45, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes. Em 47, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas. Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio”(em 1ª pessoa,com técnica dos romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar. Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema). Em Paisagem com Figuras (56), compara o norte da Espanha com a paisagem nordestina. Quaderna (60) é antilírico e composto por quartetos rimados. Dois Parlamentos (61) parodia a gratuidade e a recorrência da fala dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa Grande”). Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição. Educação pela Pedra (66) é coletânea que expõe a “depuração” atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência / consistência da pedra. Museu de Tudo (76) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores). Escola das Facas (80) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença). Em 82, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista a refletir sobre a própria arte. Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:
“-Ei-lo que vem descendo a escada, degrau a degrau. Como vem calmo.
- Crê no mundo,e quis conserta-lo.
- E ainda crê, já condenado?
- Sabe que não o consertará.
- Mas que virão para imita-lo.” Em 85 e 87, respectivamente são publicados Agrestes e Crime na Calle Relator. Ficou o senso de medida e a expressão sem excessos ou derramamentos, a despoetização do poema que, longe da retórica, concentra a emoção dando à palavra espessura, concretude. Mais qualidade do que quantidade. Cada uma com o máximo de conotação possível. Emoção passando pelo crivo da precisão, humanitariamente: a presença do humor numa “concepção objectualista”. Um verso substantivo e despojado, que nos deu uma nova perspectiva do discurso lírico. Até hoje, a nos seguir, está o cão sem plumas (=pêlos) arrastando ainda detritos das casas grandes & senzalas. Prosaico, lírico, polirrítmico, severo e pícaro. Violentando o horizonte nordestino com sua forma dura. A palo seco: sem guitarra, sem mais nada. Só a lâmina da voz, sem tempero ou ajuda. Com sua chama nua sobre o fio de cobre. Ferro contra pedra. Ferro contra ferro. O rio como um cão vivo. “O que vive não entorpece / o que vive fere (...) viver é ir entre o que vive...” Ariano disse que João Cabral é parte da formação e manutenção da identidade nacional. Haroldo de Campos o considera um dos maiores poetas do Brasil. A Espanha e os EUA já o reverenciaram. Cabral resmunga: “Me considero um marginal na poesia luso-brasileira. Como foram Sousândrade e Augusto dos Anjos.” Nosso poeta resgatou o homem,como o Barroco resgatou Deus. Numa literatura que busca o “engajamento”. Em 1968, assumiu a cadeira deixada por Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras. Em 53, acusado de comunista, passou algum tempo afastado da carreira diplomática. Cabral negou a experiência de 22. Augusto de Campos disse que ele não tinha “antecedentes” (só “conseqüentes”). “A poesia concreta não depende de mim”, sentenciou Cabral do alto dos seus oito livros de poemas e dois autos dramáticos. Em prosa, lançou estudo sobre Juan Miró. “Plantas franzinas em ambiente de rapina”, foi como descreveu os camponeses da zona da mata pernambucana. O nordestino é marcado pela paisagem.

Graciliano Ramos

São Bernardo: A busca do sentido da vida

O romance (narrado em 1a pessoa) se inicia com a exposição do desejo da capitalista Paulo Honório (protagonista) de fazer um livro “pela divisão do trabalho”, numa espécie de catarse (purificação do espírito) conta a história de suas “violências miúdas” e mais graves. Tudo o que fez para conseguir ser o proprietário da Fazenda São Bernardo: a forma como envolveu o Luís Padilha (herdeiro da fazenda), as dívidas que este contraiu, as promissórias assinadas por conta de jogo até a perda total da propriedade que passou para Paulo Honório; os subornos na justiça para se apropriar de partes dos terrenos alheios, a forma grosseira de lidar com os trabalhadores e com a esposa Madalena.
Não tendo o domínio da arte de escrever convida algumas pessoas para redigir o romance. O padre Silvestre, o Nogueira, Arquimedes e Azevedo Gondim. Este último era redator de O Cruzeiro. Os colaboradores exageram na língua de Camões e o livro não agrada a Paulo Honório que decide fazê-lo só. Tarefa difícil para quem conhecia apenas de agricultura, pecuária e estatística. Foi, neste momento, que pensou em Madalena. Se estivesse viva escreveria tudo muito rápido mas, agora, ela era apenas lembrança.
O que provocou a necessidade de fazer o livro? Por que o protagonista decidiu refletir sobre sua vida? “A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa (...) De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa: ‘– Estraguei a minha vida...’” (p. 184). Oprimiu tanto a esposa que ela suicidou-se.
O desejo expresso de dominar sempre foi o que estragou sua vida e a de Madalena, a esposa que não agüentou as pressões do marido. Esse eu que narra emite opiniões duras sobre si e sobre as pessoas com quem conviveu. Sozinho – após a morte da esposa quase todos o abandonam – decide escrever sobre sua vida, atenuar a solidão.
O conflito interior que o leva à retrospectiva sobre suas atitudes, leva-o também a ver-se como um monstro.
“Devo ter coração moído, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens...”.
Senta-se à mesa, solitário (Casimiro Lopes e o filho ficaram com ele bem como Rosa e Marciano), a vela quase a extinguir-se e o eu-narrador exausto buscando na atividade de escrever apagar o que fez ou entender (?).
Organizou a fazenda aos poucos. Contratou homens. Foi duro e tudo se fez. Mandou buscar a velha Margarida que o criou e lhe deu abrigo. Forma de pagar o que a velha fizera por ele.
Paulo Honório conhecera Madalena (loura, olhos azuis, 27 anos) graças a Gondim e a Padilha. Ela morava com uma tia, a Dona Glória. Aproximou-se delas e fez um convite para conhecerem a fazenda. Paulo pensou em um herdeiro e um belo dia decidiu casar (a mulher seria uma propriedade a mais). Casam-se na capela da fazenda.
Madalena era uma mulher culta – professora, – o marido não sabia muito, a não ser dos números. Logo Madalena revelou sua preocupação com os trabalhadores. Exigiu providências do marido. Observou condições de trabalho, salários e instrução dos trabalhadores e filhos desses trabalhadores. O marido se revoltou: “Ora gaitas! berrei. Até a senhora? Meta-se com os romances.” (p. 100) As idéias socialistas da mulher se opunham às idéias capitalistas do marido – eis o conflito que nascia.
O dono da fazenda São Bernardo não admitia qualquer gesto de revolta, comprazia-se em humilhar os trabalhadores. (reflexo de sua vida sofrida? Foi guia de cego, vendeu doces, foi trabalhador do eito, foi criado pela preta Margarida.). Ao ouvir, certo dia, seu empregado Luís Padilha discursando para o mulato Marciano e para Casimiro Lopes sobre direito de trabalhador, revoltou-se: “(...)  chamo o delegado de polícia, que isto aqui não é Rússia.” (p. 161)
Promessas com pagamentos para depois e assim a fazenda foi crescendo. O governador visita a fazenda e gosta de tudo – das galinhas Orpington, do algodão, da mamona e pergunta onde ficava a escola. Não havia escola e Paulo Honório pensa: “Trabalhador instruído é coisa perigosa. Metam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver a colheita.” (p. 44)
Madalena insiste na idéia da escola. Paulo pensa no governador elogiando o feito. Pensa na amizade com o político. Decide construir a escola em São Bernardo: “De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador para certos favores que eu tencionava solicitar.” (p. 44). Padilha fica como o professor dos trabalhadores. Madalena analisou o método de Padilha e condenou tudo. Solicitou material escolar (globos, mapas, artigos necessários) – “nota gasta, despesa supérflua” – pensou o marido: “Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábuas para filhos de trabalhadores. Calculem. Um dinheirama gasto por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta da ABC, em almanaques, em bíblia.” (p. 107) – Foi assim que o dono da fazenda aprendeu a ler.
Madalena dedicava-se cada vez mais à instrução dos trabalhadores. Procurava ajudar a todos. Presenteava a Rosa, mulher de Marciano, conversava com Padilha. Reclamava com o marido sobre o tratamento dado aos empregados ao que ele revidava enciumado:
“Que diabo tem você com Marciano para estar tão parida por ele?” (p. 110) Acusava a esposa, reclamava por acostumar mal os pobres.
A esposa passa a trabalhar mais com seu Ribeiro, o guarda-livros, homem responsável pelos balanços da fazenda. A tia de Madalena – Dona Glória – vivia conversando com seu Ribeiro e Madalena, fato que desagradava Paulo Honório, pois acreditava atrapalhar o serviço. Reclamações surgem e Madalena se irrita. Devia sua vida e profissão àquela senhora.
Paulo Honório protesta: “(...) Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabrica às dúzias. Uma propriedade como São Bernardo era diferente” (p. 115)
A ambição dele estava acima de qualquer sentimento, nada poderia atrapalhar os lucros, o crescimento. Assim, graças à mão de ferro do narrador:
“As casas, a igreja, a estrada, o açude, as pastagens, tudo é novo. O algodoal quase uma légua de comprimento e meia de largura (...) Pensam que isto nasceu assim sem mais nem menos? (p. 122)
Nasce o herdeiro de São Bernardo e a vida prossegue. Madalena não muda. Torna-se cada vez mais sensível à realidade da fazenda.
Chega a revolução. Padre Silvestre, Padilha, João Nogueira discutem sobre as notícias no jornal. O padre condena os políticos, João Nogueira acreditava que o país naufragara. As finanças do estado andavam mal.
A Revolução trouxe mudanças significativas: “o crédito sumia, o câmbio baixava, a mercadoria estrangeira ficava pela hora da morte. Sem falar na atrapalhação da política.” (p. 127), refletia o Nogueira. Padilha e Madalena, no entanto, deliravam: “seria magnífico depois se endireitava tudo.” (p. 128) – Pensem na coletividade. Gondim contesta:  “– Era o que vocês queriam. Teremos o comunismo”. Seu Ribeiro teme. Padre Silvestre achava o comunismo uma miséria, “a desorganização social, a fome.”
A raiva de Paulo Honório aumentava, o ciúme crescia a cada instante: “sim senhor! Conluiada com Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando. (p. 130)
Padre Silvestre acreditava que a religião seria um freio necessário. Paulo Honório tinha um conceito diferente (e condenava Madalena por ela não se mostrar religiosa):
“Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho, portanto, um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível. Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com Padilha, aquele imbecil.” (p. 131)
O marido capitalista cada vez mais ofendido: “Mulher sem religião é capaz de tudo. (131). Os ciúmes aumentam, as acusações. Afasta Padilha da casa. Deixa-o restrito à escola. Tira-lhe o salário por quatro meses para sentir o prazer de vê-lo “magro, com o colarinho sujo e o cabelo crescido.” Xinga-o; humilha-o:
“Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os contozinhos sobre os proletários.” (p. 132)
Padilha engole tudo e pede ajuda ao patrão. Solicita que intervenha para que ele consiga uma colocação no fisco estadual. E o proprietário de São Bernardo responde de modo irônico:
“– Impossível, Padilha. Espere o soviete.
Você se colocará com facilidade na guarda vermelha.” (p. 133)
Observe que ao mesmo tempo que Graciliano Ramos exibe a questão social (opressão exercida pelo dominador) ele acentua a psicologia do personagem. O retrato de Paulo Honório é-nos passado pelas ações dele e as ações revelam seu mundo interior.
Dois anos de casados. As brigas aumentavam. Paulo Honório xingava a todos, detestava Dona Glória e sentia vontade de matar tia e sobrinha, porém não possuía a prova da infidelidade da esposa. Procura na correspondência de Madalena algum sinal de traição. Madalena chora, entra em crise. Todos os homens eram suspeitos para o marido. Tudo o que ela fazia era suspeito: “– Deixa ver a carta, galinha.”
Paulo Honório é o capitalista sangüinário, desejoso das torturas.
“E se eu soubesse que ela me traía? Ah! (...)
abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue escorrer um dia inteiro.” (p. 149) (Lembra as torturas na época da ditadura? Observa a época do romance decada de ‘30)
Começou a ouvir pessoas à noite, acordava. Xingava a esposa dizendo tratar-se de amantes. Depois descobre que não passava de ratos. As pancadas do relógio o assustavam. Certo dia encontra uma folha de carta – provavelmente voara e Madalena não vira. Interroga Madalena sobre o resto, tortura-a.
Madalena adoece. Começa a dizer palavras desconexas. Pede ao marido que ajude a todos: Sr. Ribeiro (o guarda-livros), Padilha, Marciano, Dona Glória. Pedia ao marido para esquecer a raiva.
“Três anos de casados Madalena comete suicídio. Fazia exatamente um ano que o ciúme começara.” Madalena deixa uma carta (a carta cuja folha perdida Paulo Honório encontrara) para o marido. Não era para o amante como pensara Paulo Honório. Madalena é enterrada debaixo do mosaico da capela-mor.
Todos que gostavam de Madalena após sua morte decidem deixar a fazenda: Dona Glória, Sr. Ribeiro, Padilha (vai juntar-se aos revolucionários), este quando sai leva bastantes trabalhadores com ele.
Chega a revolução... bandeiras surgem encarnadas por toda parte. Paulo Honório odiava a revolução. Neste ano muito comerciante quebrou, houve falências e concordatas. O proprietário de São Bernardo teve que aceitar liquidações péssimas. Perdeu a avicultura, a pomicultura, a horticultura. As fábricas de tecidos (que adiantavam o pagamento) quebraram e o algodão da fazenda não saía mais. Compra fiado. O dinheiro para investir acaba em seis meses e só houve perdas. Paulo Honório vende o automóvel para fazer pagamentos de promissórias. Não havia mais o que fazer pela propriedade.
Dois anos depois de Madalena morta a casa estava vazia. Todos partiram. Nem os amigos vinham mais para falar de política. Bate a solidão, a amargura e com elas o desejo de escrever:
“Cinquenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo a maltratar-me e a maltratar os outros.”
Os anos fizeram de Paulo Honório um ser endurecido, calejado. Angustia-se: “Que estupidez! (...) não é bom vir o diabo e levar tudo?” (p. 181)
Estoura a revolução e Paulo Honório está à mesa escrevendo. Meia-noite, as janelas fechadas. A casa deserta. A lembrança de Madalena a persegui-lo. Reflete:
“Se fosse possível recomeçarmos... Por que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu.” (p. 187)
Paulo Honório reconheceu que contribuiu para a situação de miséria em que se encontravam os trabalhadores. Lamentou, mas sabia que voltar no tempo era fazer tudo igualzinho. Daí buscar na escrita atenuar seu sofrimento, a solidão.
Paulo Honório foi dominador, ativo. Tudo ao seu redor se reduzia à sua voz áspera. Sua linguagem era econômica, direta, grosseira.
Para Luiz Lafetá Paulo Honório simboliza “a modernidade penetrando no sertão brasileiro, é o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, vai-se apropriando do que vê, um burguês”.
Tomou inicialmente posse da fazenda depois tomou posse de Madalena “Amanheci um dia pensando em casar”. Observamos que o casamento é mais uma transação, mais um negócio.
Podemos observar que a estrutura do romance se subordina à ação ou enredo e ao personagem. Paulo Honório é seus atos ou os atos fazem de Paulo Honório, homem de vontade; determinação, energia. Tudo era calmo antes dele. A roça de seu Ribeiro era calma, sem transtornos, no tempo do Imperador. Luís Padilha tinha vida modorrenta, preguiçosa. Paulo Honório é que veio modificar as relações daquele universo.
Interessante destacar o que representam os trabalhadores da fazenda (para Paulo Honório), os despossuídos: são quantidades, são força de trabalho, peças da engrenagem, mercadorias. O sentimento de propriedade é uma constante na vida no narrador (egoísta e brutal): a fazenda, o rebanho, as plantações de mamona e algodão, o capital, Madalena.
Paulo Honório foi incapaz de sentir Madalena, de enxergar-lhe a grandeza de espírito, as reais intenções da mulher e professora. A relação de choques entre ambos seria inevitável, eis um novo núcleo narrativo, mas tudo reflete o motivo central da história: “Ela também é objeto possuído” e ela foge ao seu controle, ao controle do dominador.
O mundo se desgoverna para Paulo Honório com a morte de Madalena. Tenta, ao construir o texto encontrar o sentido da vida, o fio condutor. A narrativa do presente contrasta com a narrativa do passado. Paulo Honório não era mais o símbolo do dominador, mas deixa-se levar, está desnorteado: “E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem alguém”. (p. 179). O tempo é outro. O tempo sem Madalena, o tempo sem os empregados, o tempo da revolução e da crise.
A narrativa do passado e a do presente juntas oferecem a visão do romance, o romance que começou com a divisão do trabalho.
Outro contraste a se observar ocorre no plano da linguagem. Antes da morte de Madalena a linguagem do Narrador é grosseira, seca (TEMPO DO ENUNCIADO), depois da morte, assume um tom mais melancólico (TEMPO DA ENUNCIAÇÃO). O mesmo se observa com as ações. “O ritmo rápido da narrativa” é substituído pelos compassos mais lentos, pela reflexão, pelo desejo de entender a vida quando depois da morte da esposa:
“Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar, levanto-me, chego à janela que deita para a horta.”
Quando a vida de Paulo Honório parece perder todo o sentido a narrativa começa. Eis um novo percurso, um novo rumo à procura de valores autênticos, as veredas trilhadas por um personagem problemático. Antes Paulo Honório apareceu inteiro e dominador. Depois fragmentado, perdido, sem vontade de agir – angústia de quem começou a se conhecer, de quem percorreu o labirinto da memória e não achou a saída. Para Luís Lafetá esta parte da narrativa tinge-se de Lirismo e se afasta da “objetividade épica”.
No tempo do enunciado, a objetividade do narrador é visível. No tempo da enunciação as marcas da subjetividade se fazem notar bem como o fluxo de consciência.
As dúvidas do narrador quanto à traição de Madalena – o ciúme que lhe rouba a certeza – também abala a estrutura do narrador onisciente. Não podemos deixar de perceber, no entanto, os dois planos de representação a justificar tais fatos. O narrador parece – muitas vezes – perder o domínio sobre o tempo, sobre a precisão da hora, fato que se justifica pela inquietação em que se encontrava o narrador no instante de escrever. É neste ponto que irrompe a escuridão do mundo interior que muitas vezes se anuncia.
Através do pio agourento das corujas, da imobilidade de um “herói derrotado” pelo seu mundo interior, pela solidão.
É importante destacarmos ainda o estilo Graciliano Ramos.
– a construção de um texto enxuto, conciso, claro (A preocupação com o fazer literário – METALINGUAGEM).
– o uso de uma sintaxe clássica, a economia quanto aos adjetivos.
– o elemento regional ganha em universalidade.
– predomínio de um realismo crítico, consciente – o herói é problemático.

Estrela da Manhã – (Publicação – 1936)

“Modelo de uma poesia lírica a que se mistura IRONIA e mesmo o sarcasmo. A poesia evolui num certo sentido humorístico, num certo sensualismo (Canção das Duas Índias “Entre estas Índias de leste / E as Índias ocidentais / Meu Deus que distância enorme / (...) Sirtes sereias medéias / Púbis a não poder mais...” Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá, as mulheres que hipnotizam o poeta, as mulatas cor da lua, as celestes africanas, “as prostitutas, as declamadoras, as acrobaras ou as Três Marias?), um erotismo que parece não se concretizar, pois as mulheres, as duas índias são comparadas às inacessíveis praias – o humor amargo” à maneira dos ingleses Oscar Wilde e Lord Byron”.
O eu-poético começa procurando a estela da manhã “Eu quero a estrela da manhã” – O que seria afinal essa estrela? Abre-se aqui um campo de interpretações (texto aberto) – e termina encontrando apenas a estrela Vésper (o ocaso, o fim da tarde será o fim da vida? “Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade”.  Quer a estrela-d’alva, a rainha do mar, quer apenas ser feliz e poder descansar. O eu-poético se sente só e sua busca parece resultar em nada” (...) gritava o seu nome três vezes / Dois grandes botões de rosa murcharam / e o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de Deus.” A saída parece nunca existir, fato que se repete em Conto Cruel. O pai que sofria de UREMIA toma injeção de sedol, mas não consegue dormir e “Jesus-Cristinho” nem se incomoda com os apelos.
A amargura do eu-poético, a sua solidão deixa-se notar no poema Marinheiro Triste. Compara sua vida com a do marinheiro. O poeta é uma pessoa amargurada, de uma amargura “nobre e funda”, uma tristeza consciente (assim como a do poeta da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.) O destino do marinheiro, seu lugar seguro é o navio (“o feroz casco sujo amarrado ao cais” para onde volta mesmo sem saber se será feliz (deveria voltar bêbado?). Ao marinheiro restará no mínimo)  o horizonte imenso”, mas ao poeta nada restará. Talvez a morte. Morte que contempla em Momento num café ao olhar um esquife que passava.
No percurso da busca, o eu-poético faz reflexões sobre o beco. O beco que aprendeu a cantar num dístico (poema de dois versos).
A temática social (pouco freqüente nos textos do poeta) aparece também na prosa poética Tragédia brasileira e em Rondós dos Cavalinhos. Veja que o crime ou a tragédia brasileira – o assassinato de Maria Elvira – ocorreu na rua da Constituição (será que poderemos remeter aos crimes, assassinatos na época da ditadura?). Maria representa a gente do povo e Misael trabalha para o governo – Ministério da Fazenda. Metaforicamente ele é o Governo e ela é a prostituta (Bandeira tem admiração especial pelas prostituídas – por ser uma excluída?). Para José de Nicola, Misael, num gesto populista, comprou Maria Elvira (= povo) com algumas coisas (pseudo-paternalismo), o mesmo que fez Getúlio Vargas antes de preparar o golpe de Estado (governo populista), comprou o povo a fim de garantir-se no poder. Vale destacar que quando o crime ocorreu, Maria Elvira morava na Rua da Constituição e Misael já era um sujeito, “privado de sentimentos e inteligência”. Na Constituição estariam algumas contradições?
Como esse poema foi escrito na década de ‘30 – a era Vargas – talvez a Tragédia Brasileira tenha uma ligação com o momento político em que vivíamos.
Vale destacar que Bandeira mexeu com a estrutura da tragédia à maneira dos gregos, pois os personagens pertencem a uma classe que não é dominante, ou seja, é gente do povo.
Já em Rondó dos Cavalinhos o poeta se mostra mais irônico, sarcástico ao falar (indiretamente) do Brasil político, um Brasil distante do elemento sensível: “O Brasil politicando, / Nossa! A poesia morrendo...”.
A metrificação curta e o ritmo leve aparecem principalmente em Cantiga (pentassílabos – redondilha menor). O ritmo leve das brincadeiras infantis é exibo também com Boca de Forno (intertexto) e Trem de Ferro. Neste último, podemos perceber a língua errada do povo’, ‘língua certa do povo’, ou seja, o jeito de o brasileiro falar, como falamos, como somos. O recurso da polifonia a permitir a voz do outro no texto: “Oô... / Quando me prendero / no canaviá / Cada pé de cana / Era um oficiá / Oô ... / menina bonita / Do vestido verde / me dá tua boca / Pra matá minha sede / Oô ... / Vou mimbora vou mimbora / não gosto daqui / nasci no sertão / sou de Ouricuri / Oô ...”
Além dos temas desenvolvidos por Bandeira (a família, a morte, a infância no Recife, o Rio Capibaribe) podemos destacar a preocupação do poeta com os outros: os mendigos, os meninos carvoeiros, as prostitutas, os carregadores de feira-livre, as ‘pálidas crianças, tristes, asiladas, os meninos sem amor de mãe e que viviam de caridade, em vestes tristes como mortalha. As Irenes pretas, os Joões gostosos, as flores muchas da vida a cobrar do eu-poético esperanças. Flores Murchas é um poema que funciona como um canto de solidariedade ao povo, um povo que também precisa da Estrela da Manhã.
Bandeira é ainda o poeta das lembranças: a infância, o Recife, Juiz de Fora e suas manhãs, suas “jabuticabeiras cansada de doçura, o cineminha namoriqueiro, o parque senhorial, os bondes dando sem pressa voltas vadias, o primeiro sorriso da doce província de Minas Gerais. O poeta em Declaração de Amor lembra o poeta Mauro Mota na busca do tempo na Farmácia, um tempo “tão de dentro deste Brasil”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário