A surpresa nos camarotes do carnaval do Recife é que o Governo e a Prefeitura, na última hora, depois de gastar muito, e sem uma explicação convincente, cancelaram, quando já estavam quase prontos e com o que faltava comprado, seus espaços, cedendo-os ao galo da madrugada, num erro de cálculo, ou numa estratégia rocambolesca que deixou muitos de orelha em pé!
Eduardo campos e Geraldo Júlio dizem uma coisa e os dados rolam em outra direção.
É frevo!
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
domingo, 23 de fevereiro de 2014
Um bairro para se conhecer melhor: o Recife Antigo, com Moisés Neto
Açúcar
e pau-brasil foram as primeiras mercadorias exportadas pelo Recife cuja população costumava rezar na ermida de Santelmo que
ficava próxima ao porto. Como dissemos a cidade ficava espremida entre o
mar e os rios no século XVI: uma faixa
de terra com no máximo 50 passos de largura. Naquela época não havia casas
suficientes para abrigar os que chegavam, inclusive os holandeses que se
amontoavam em promiscuidade em cubículos, até 8 pessoas no mesmo quarto, que
também servia de depósito de mercadorias.
A
densidade demográfica foi uma das maiores que se viu na história da humanidade.
Todos espremidos em 100.000 metros quadrados.. Só depois de 1630 houve um plano
urbanístico digno desse nome. Depois vieram os aterros: para o lado do Pilar,
por exemplo. O bairro ficou com 750.000 metros quadrados. Em 1654 eram 300 prédios.
O
pelourinho de 1709 foi derrubado na Guerra dos Mascates em 1709.
No
século XIX, Dom Pedro II veio ao Recife.
Na
época da reforma do porto (a partir de 1909) foram destruídos: o Forte do Picão
(antigo Castelo do Mar), a praia do
Brum, que tinha cabanas de palha onde os banhistas trocavam de roupa, os Arcos da Cidade nas
cabeceiras da Ponte Maurício de Nassau ( o da Conceição, na atual Rua Marques
de Olinda e o de Santo Antônio, na 1º de Março).
Em
1942 a boemia do bairro do Recife intensificou-se: havia de tudo: Cassinos,
prostíbulos, clubes grã-finíssimos, um dos mais chiques era o dos
ingleses. A freqüência destes lugares, dos anos 30 aos anos 50, era de
primeira. Oferecia-se música ao vivo,
com duas orquestras, e as pessoas lotavam os salões do Cassino Imperial. O
Texas Bar era freqüentado por intelectuais, políticos e jornalistas. Comia-se
bem: camarões, pitus e outras iguarias
locais. Tomava-se cerveja e bom uísque.
Dentre os mais assíduos estava o poeta Ascenso Ferreira e também o saudoso
Antônio Maria. Mas a partir dos anos 70 veio a completa decadência do Bairro
que só se reergueria, sob a gestão de Jarbas Vasconcelos, nos anos 90.
A
Casa de Banhos merece destaque: ela funcionou de 1887 a 1924 em pleno dique dos
arrecifes(próxima ao porto. Reza a lenda que foi destruída por um incêndio
criminoso. As mulheres da sociedade estariam iradas com as farras dos maridos
por ali. Antes um local familiar, o ponto servia para os famosos banhos de Mara que começaram
a virar coqueluche naquela época. Hoje no local funciona um restaurante.
Destacamos
agora o Forte do Brum: construído pelos holandeses, é uma das poucas
obras deles que resistiram à destruição. O nome é uma homenagem ao Conselheiro
neerlandês Johan de Bruyne. Esta herança está intacta, porém sofreu
diversas reformas.
A
Cruz do Patrão: seu nome vem de Patrão-Mor, ou timoneiro, principalmente o
manobrista que fazia as manobras na entrada do porto. A Cruz servia de
referência para os navios. Trata-se de uma espécie de obelisco com cerca de 6
metros de altura e tem uma cruz em cima com as iniciais INRI (Jesus Nazareno,
rei dos judeus).
A
Torre Malakoff: de feitio oriental, ia sendo demolida na década de 1920,
jornalistas como Mário Melo evitaram a tragédia. Seu nome vem da semelhança com
outro monumento em Sebastopol.
Igreja
Madre de Deus: de 1709 é de estilo barroco, um dos mais significativos
exemplos no Recife. Em 1971 sofreu um
incêndio. Em 75 houve reformas.
Ainda
sobre a Ponte Limoeiro: tem este nome porque por ali passava o trem que ia para
Limoeiro(interior do recife). Eram os trilhos da Great Western.
O dirigível LZ-129 Hindenburg sobrevoa os guindastes do Porto de Recife em seu caminho em direção ao Campo do Juquiá
A
cidade do Recife cabe num livro?
“Mauricéia! Um clarão de
vitória/ A visão de tua alma produz/ Toda vez que no cimo da história/ Se
desenha o teu vulto de luz//Tecida de claridade, / Recife sonha ao luar/
Lendária e heróica cidade/ Plantada à beira do mar”. Hino da cidade do Recife (oficializado
em 1924) Letra Manuel Arão. Música Nelson Ferreira.
O
livro “O Recife: Histórias de uma Cidade” do professor de história da UFPE Dr.
Antônio Paulo Rezende (Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002. 205
páginas) é o volume 6 da Coleção Malungo que investe em valores locais.
A brochura é a coletânea de textos anteriormente publicados como encarte no Jornal
do Commercio no final do século passado.
Segundo Heloísa Arcoverde, diretora do Deptº
de literatura e editoração da FCCR, é um
“diálogo entre o passado e o presente que se registra. E continua: “ Há, ainda,
muito o que fazer na projeção do futuro. São tantos os mangues a preservar, são
tantas as pontes a erguer, num processo
coletivo e solidário de reinventar o Recife, patrimônio multicultural de
cada cidadão” . Já a diretora do Deptº de documentação e formação cultural,
Zélia Sales, aponta o texto como “um presente para a cidade(...) representa
a visão de que a cidadania se conquista
fundamentalmente pelo conhecimento da história e da cultura de um povo”.
Magdalena Almeida, do mesmo departamento,
insinua que “ a história do Recife só passa a existir a
partir da ocupação holandesa”, mas reconhece que “ a opção pela colonização portuguesa” foi a voz
que se fez mais forte na velha Mauricéia.. Diz que no século XVIII nossa
cidade era “cenário para a busca de uma identidade nativa”. E passa ao século
XX lembrando que Mário de Andrade em “Macunaíma” , ao falar de Bandeira,
reconheceu o talento do povo recifense.
Saiamos
das introduções e vamos aos dez textos que compõem o livro de Rezende.
Como
epígrafe duas estrofes de
Prosopopéia(1601) onde o cristão-novo Bento Teixeira descreve o recife como “
um porto quieto e tão seguro,/ que para as curvas náos serve de muro” .
Antônio
vai logo esclarecendo que “Entre o recife do século XVI e O Recife onde vivemos
existem diferenças imensas” e que hoje por aqui as “pessoas vivem, sobrevivem,
produzem riquezas, trocam experiências, vivenciam suas afetividades, disputam
espaços de poder e cidadania” e que a “invenção cotidiana” é “em
muitos aspectos imprevisível”. Cita Gonsalves de Mello: “Porque se
originou de um acidente geográfico (...) o Recife
não prescinde do artigo masculino”.
Rezende
forja textos como este drummondiano sobre a formação da cidade: “Povos
de culturas diferentes se aproximavam, mais do que isso, se chocavam: o vasto
mundo que se formava era bem mais vasto do que seus corações”.
Sim,
a cidade anfíbia (como Amsterdã e Veneza) começa a ser relatada por um expert
com farta bibliografia à disposição. São textos que falam sobre “o” Recife desde 1537. Um
levantamento que cita até a quantidade
de navios e de açúcar no porto da cidade em
1589, e da ocupação inglesa (30 dias) em 1595, quando éramos o maior
porto em movimento na América portuguesa.
Esmiuçando
o período holandês, o professor comete um erro muito comum: diz que Nassau
“trouxe” o cientista Jorge Marcgrave,
que construiu por aqui o 1º observatório astronômico das Américas, Marcgrave
veio por conta própria. O livro faz os elogios habituais ao príncipe e diz que
o recife daquela época era a “mais cosmopolita das cidades das Américas” e que os judeus eram bons agiotas.
Sobre o teatro daquela época ressalta que aqui havia peças dos mais variados
gêneros.. daí para a Guerra dos Mascates e a elevação do Recife a Vila
independente em 1710 é um passo. Fala dos “deliciosos banhos” com “poderes
medicinais” no rio Capibaribe, numa época sem hábitos de banhos de mar. Destaca
a fundação de bairros como o (Arraial) do Poço da Panela em 1758, que ganhou
este nome por causa de uma panela de barro numa cacimba.
Na
transposição dos fascículos do JC para o formato de livro, a revisão deixa
escapar erros editoriais como o da página 61: veja o “box”, quando não há mais box
nenhum a ver.
CRONOLOGIA- Vem do início do século XIX as revoltas e
urbanização d cidade, o aparecimento do Diário de Pernambuco (1825) “até
hoje em circulação”. O autor esclarece que “não havia interesse em construir um
modelo republicano com ativa participação popular” na Revolução Pernambucana de
1817. Aborda a Confederação do Equador (1824), A Revolução Praieira (1848),
passando por 1823 e 1827, quando o Recife tornou-se “cidade” e “capital de
Pernambuco”.
O
livro dispõe de belas ilustrações
coloridas e em preto e branco: destaca
as obras mais importantes feitas em administrações como a do Conde da Boa
Vista, Francisco do rego Barros, de 1837 1844: água potável, luz pública a gás,
padronização dos prédios, a revista “Progresso”, o teatro de Santa Isabel, a
chegada do 1º navio a vapor (1839).A narrativa segue a passos largos: já em
1867 aparece a estrada de ferro que ligava o Recife aos bairros da Várzea, Dois
Irmãos e Boa Viagem, e, em 1870, até Olinda. Os bondes de tração animal até
1914, o 1º governador eleito de Pernambuco, o Barão de Lucena, a chegada do Graf
Zeppelin (a foto da página 94 mostra
um mocambo em primeiro plano e o dirigível pousado entre os coqueiros no mangue
do Jiquiá em 22/05/30).
O
lema do século XX: urbanizar, civilizar e modernizar. A urbanização de Boa
Viagem, o forçado regionalismo de Freyre sob contestação de Inojosa, o Ciclo de
Cinema do Recife (1923-1931), a Revista do Norte, o telégrafo (1873), o
telefone (1881), os bondes elétricos (1914, nova rede de esgoto (1925), a Rádio
Clube (1924), o carnaval, as Jazz bands nas casas de chá da Rua
Nova, o partido Comunista por aqui (1922), a instituição de uma bandeira para a
cidade (1973).
O
texto de Antônio, apesar de reforçar certos clichês, mexe com os recifenses,
“futuca” velhos traumas, mas não é um livro de denúncias nem de grandes
novidades. Parece mais uma colcha de retalhos para a nossa alma despedaçada por
tanto horror e iniqüidade, expressos por Carlos Pena Filho no “Guia Prático da
Cidade do Recife” (citado no livro). “Recife, cruel cidade (...) Amiga dos que
a maltratam,/ inimiga dos que não/ este é o teu retrato feito/ com tintas do
teu verão/ e desmaiadas lembranças/ do tempo que também eras/ noiva da
revolução”.
“Recife:
Histórias de uma Cidade” é um livro básico. Precisamos de outros que traduzam
injustiças mais recentes.
TÁBUA
RASA- A Fundação de Cultura vem
buscando novos rumos e vislumbrando novas saídas, mas sobre muitas coisas ainda
faz tábua rasa e não seria num livro que a história do recife iria ficar
clara.
Neste
petardo o autor, de maneira suave, pincela ainda as repressões sofridas pela
esquerda no Recife do século XX. A característica maior destes textos talvez seja a linearidade
histórica, a visão geográfica, a preocupação com os números. Caberia ao leitor
arrancar daí a “alma recifense”, à fórceps.
A
SEGUNDA PARTE DO LIVRO- A 2ª parte do
livro é composta por “Textos
Complementares”. Novamente a ordem cronológica impera e o organizador vai
relacionando os autores do século XVI até o século XX. Destaque para um dos
textos de Mauro Santoro que afirma que aos negros escravos “foi dada a tarefa
de construir o Brasil (página 149). Ou
um de Geraldo Marinho que descreve o Recife , dizendo que a cidade “guarda a tipicidade
do Barroco(...) oferta percursos marcados por surpresas e mudanças de escala na
visão de quem caminha pela área central, criando perspectivas de forte efeito
cenográfico” (p.158). Ou um de Charles Darwin em 6/8/1836: “ Recife é por toda
parte detestável, as ruas imundas(...) terra de escravidão”, e ainda Josué de
Castro ensinado: “Os mangues do Capibaribe(...) o povo daí vive de pegar
caranguejo, chupar-lhes as patas, comer sua carne feita de lama(...) o que o
organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue, para criar caranguejo
outra vez”.
Ah,
Recife! Hoje quase coubeste, sem dor, neste livro. Mas, olhar para ti, como
realmente és, dói!
Brasileiro traz policial americano de volta às telas
José Padilha estreou sua versão de Robocop (a 1º foi de do holandês Paul Verhoeven). É seu primeiro
filme nos EUA. E daí? É um remake de US$
140 milhões, o tira já foi gay no pop do Brasil dos anos 90 (Robocop Gay, dos Mamonas Assassinas)!
Verhoeven fez sátira à
corrupção, às corporações, à mídia, ao marketing. Padilha... bem, ele fez algo
bem ao próprio estilo. Gostam de Tropa de elite? Pois pois...
O jornal The Guardian diz que ele demonstra “mão
pesada” e que retirou “toda a sagacidade da joia criada por Paul Verhoeven. Já
o L.A. Times publica que o filme traz nada de novo em termos de ficção
científica e diz que a maior parte da emoção do original “se perdeu”. “A
questão da vigilância e robotização da violência são mais importantes do que as
pessoas imaginam”, sela Padilha.
Poesia romântica no Brasil: o caso Tobias Barreto
Tobias Barreto nasceu em Campos do Rio Real, que então era Sergipe em 1839 e faleceu em Recife em 1889. Seu livro de Poesia chama-se Dias e noites
.
À VISTA DO RECIFE
.
À VISTA DO RECIFE
É a cidade valente
brio da altiva nação,
soberba, ilustre, candente
como uma imensa explosão:
de pedra, ferro e gravura,
de aurora, de formosura,
de glória, fogo e loucura. . .
Quem é que lhe põe a mão?
brio da altiva nação,
soberba, ilustre, candente
como uma imensa explosão:
de pedra, ferro e gravura,
de aurora, de formosura,
de glória, fogo e loucura. . .
Quem é que lhe põe a mão?
Mágoas tem que estão guardadas,
quando as vingar é sem dó!
Raça das Romãs tombadas,
das Babilônias em pó,
quer ter louros que reparta;
vencer, morrer, não a farta. . .
Grande, d’altura de Esparta,
afronta o mundo ela só! . . .
quando as vingar é sem dó!
Raça das Romãs tombadas,
das Babilônias em pó,
quer ter louros que reparta;
vencer, morrer, não a farta. . .
Grande, d’altura de Esparta,
afronta o mundo ela só! . . .
Com os seios entumescidos
do germen de muito herói,
tem nos olhos aguerridos
fulmínea luz que destrói.
Detesta a classe tirana,
consigo mesma inumana,
vê seu sangue que espadana,
ri de raiva e diz: não dói! . . .
do germen de muito herói,
tem nos olhos aguerridos
fulmínea luz que destrói.
Detesta a classe tirana,
consigo mesma inumana,
vê seu sangue que espadana,
ri de raiva e diz: não dói! . . .
No seu pisar progressivo
ostenta um certo desdém;
suspendendo o colo altivo,
não rende preito a ninguém.
Lê no céu seu fado escrito,
quando o Brasil solta um grito,
franze a testa de granito,
e diz ao estrangeiro: vem!.
ostenta um certo desdém;
suspendendo o colo altivo,
não rende preito a ninguém.
Lê no céu seu fado escrito,
quando o Brasil solta um grito,
franze a testa de granito,
e diz ao estrangeiro: vem!.
Sim, eu vejo: ainda a espada
na tua destra reluz.
Cabocla civilizada
de pernas e braços nus,
cidade das galhardias,
que no teu punho confias,
coeva de Henrique Dias,
guerreira da Santa Cruz!
na tua destra reluz.
Cabocla civilizada
de pernas e braços nus,
cidade das galhardias,
que no teu punho confias,
coeva de Henrique Dias,
guerreira da Santa Cruz!
Estremecida, ridente,
como que esperas alguém.
Ouves um som de torrente?
É a grandeza que vem. . .
Teu hálito alimpa os ares,
por cima do azul dos mares
prolongam-se os teus olhares,
que vão namorar além. . .
como que esperas alguém.
Ouves um som de torrente?
É a grandeza que vem. . .
Teu hálito alimpa os ares,
por cima do azul dos mares
prolongam-se os teus olhares,
que vão namorar além. . .
Não te pegam em descuido;
teu movimento é fatal.
E a liberdade, esse fluido,
que forma o gládio, o punhal,
nos teus contornos ondula,
nas tuas veias circula,
e vai chocar-se a medula,
dos ossos de pedra e cal.
teu movimento é fatal.
E a liberdade, esse fluido,
que forma o gládio, o punhal,
nos teus contornos ondula,
nas tuas veias circula,
e vai chocar-se a medula,
dos ossos de pedra e cal.
É um lidar incessante,
cai-te da fronte o suor;
ferve tua alma brilhante,
e tudo o belo em redor.
O assombro lambe-te a planta,
na estrela, que se levanta,
pousado um arcanjo canta:
vai ser do mundo a maior!
cai-te da fronte o suor;
ferve tua alma brilhante,
e tudo o belo em redor.
O assombro lambe-te a planta,
na estrela, que se levanta,
pousado um arcanjo canta:
vai ser do mundo a maior!
Tens aberta a tua história,
laboras como um crisol;
como um estigma de glória,
nos ombros queima-te o sol.
A guerra, a guerra é teu cio.
Fera!… O estrangeiro frio
se aquece ao beijo macio
dos teus lábios de arrebol.
laboras como um crisol;
como um estigma de glória,
nos ombros queima-te o sol.
A guerra, a guerra é teu cio.
Fera!… O estrangeiro frio
se aquece ao beijo macio
dos teus lábios de arrebol.
Assopras nas grandes tubas,
que despertam as nações;
eriçam-se as férreas jubas,
uivam as revoluções. . .
Teus edifícios dourados
vão-se erguendo, penetrados
da voz dos Nunes Machados,
dos gritos dos Camarões! . . .
que despertam as nações;
eriçam-se as férreas jubas,
uivam as revoluções. . .
Teus edifícios dourados
vão-se erguendo, penetrados
da voz dos Nunes Machados,
dos gritos dos Camarões! . . .
Com a morte bebes a vida;
não te abalas, não te dóis!
D’oiro e luz sempre nutrida,
novas idéias remóis,
é que à voz das liberdades,
calcadas as potestades,
germinam, brotam cidades
do sepulcro dos heróis!
não te abalas, não te dóis!
D’oiro e luz sempre nutrida,
novas idéias remóis,
é que à voz das liberdades,
calcadas as potestades,
germinam, brotam cidades
do sepulcro dos heróis!
Possa a coragem de novo
teu bafo ardente inspirar,
e a glória sair do povo,
como tu surges do mar. . .
teu bafo ardente inspirar,
e a glória sair do povo,
como tu surges do mar. . .
O gênero feminino na literatura
por Moisés (de Melo) Neto
Quando nos referimos ao gênero em literatura, tendemos automaticamente a
associar este questionamento à forma e às vezes aos subgêneros contidos em cada
uma delas, mas a questão “gênero” também inclui a dicotomia homem/mulher e a
questão da voz, no sentido Bakthiniano, de posicionamento frente à organização
da sociedade.
Esta voz, o ethos, o tom, o sentido, vem sendo cada vez mais observado e os discursos “machistas”, principalmente desde os anos 50, “desconstruídos”. Filósofos franceses como Roland Barthes e Derrida serviram/servem de inspiração para intelectuais como a indiana Gayatri Spivak e outras que se unem em torno do questionamento sobre a posição opressora da voz masculina como dominante nos discursos históricos, antropológicos, psicanalíticos, literários, ideológicos enfim. Percebendo que em Simone de Beauvoir e seu livro “O segundo sexo” já se começava a tecer a ideia de respeito ao “outro”, hoje vemos que mesmo a idéia do “outro”, no caso das mulheres, às vezes justifica até uma visão patriarcal e que é impossível representar coerentemente este “outro”, isto é, a visão que a mulher tem do homem ou vice-versa, pois será sempre transcrito por um “eu”. A mulher, quer seja na literatura lírica, épica e dramática, atravessou milênios no papel de musa, muitas vezes foi representada no papel de submissa ou traidora como a bíblica Dalila, transgressora como Joana D´Arc, cujo maior delito teria sido travestir-se de homem numa época que proibia as mulheres, inclusive, de morrer pela pátria.
Esbarramos agora no ponto da teoria: os textos femininos visitados pelos teóricos, quase sempre homens até o início do Século XX, eram vistos como textos de exceção. Contra isso, levantou-se a inglesa Virgínia Woolf que, no ensaio “Um teto todo seu”, fez da literatura o pódio onde sugeria às mulheres que sem independência - inclusive financeira - não haveria possibilidade de “voz”, aqui mais uma vez no sentido Bakthiniano, numa sociedade que as proibia até de frequentar determinadas instituições. Se observamos não só pelo lado das ideias e preconceitos dos teóricos mas da própria representação literária vemos a mulher apresentada como reprodutora, cujos filhos machos devem desde cedo dela diferenciar-se e serem alertados sobre este necessário distanciamento e o reforço da identidade masculina. As correntes teóricas literárias de hoje sofrem grande influxo dos estudos culturais, como as de Homi Bhabha, por exemplo, e apontam como correção aos antigos erros a sugestão, mais uma vez desconstrucionista, Bhabha serve de influência para intelectuais como Gayatri Spivak, por exemplo. Ela consegue arrancar das palavras o sentido e reescrevê-las em palimpsesto e catacrese, revertendo assim o discurso do machoopressor.
Os discursos pós-coloniais de teóricos como os caribenhos Stuart Hall, Édouard Glissant e Fanon, também vêm a cada dia comprovando que a problemática dos gêneros na literatura, a questão da voz, não deve separar-se de outros como raça, etnia, classes sociais, homossexualismo, multiculturalismo enfim. As teorias feministas francesas apoiaram-se na psicanálise, as anglo-americanas nas questões marxistas, mas o que percebemos é que tais discursos constroem-se com bases num resgate que envolve a história de um silenciamento das mulheres na sociedade, silêncio este que aos poucos rompe suas últimas amarras. A escritora Heloisa Buarque tem um discurso recheado de ironia quando traça um estranho paralelo entre a mulher de hoje e um Cyborg, ser construído em laboratório. Tal criatura artificial superaria o modelo de família, nem “pais” nem “filhos”, religião metafísica (não voltaria ao pó, pois não veio do barro e como uma salamandra poderia até recompor suas partes físicas que se perdessem). Notamos que os teóricos usam tais exemplos para justificar seus posicionamentos antagônicos quando que se trata de conservadorismo social. Retrabalhar o discurso do outro, quer seja masculino ou feminino, em busca de estratégias libertárias, comparar tendências e buscar novas estratégias parece-nos um dos caminhos mais adequados nos dias de hoje em que a relação entre os seres e as coisas devem buscar reativar o senso crítico e não a reificação. Proponho algo similar a um palimpsesto que tanto exiba o que estava antes quanto abra caminhos para um novo quadro usando a linguagem para desconstruir o racionalismo e as noções de veracidade.
Stella Maris Saldanha e Roger Bravo na peça Anjos de Fogo e Gelo
Esta voz, o ethos, o tom, o sentido, vem sendo cada vez mais observado e os discursos “machistas”, principalmente desde os anos 50, “desconstruídos”. Filósofos franceses como Roland Barthes e Derrida serviram/servem de inspiração para intelectuais como a indiana Gayatri Spivak e outras que se unem em torno do questionamento sobre a posição opressora da voz masculina como dominante nos discursos históricos, antropológicos, psicanalíticos, literários, ideológicos enfim. Percebendo que em Simone de Beauvoir e seu livro “O segundo sexo” já se começava a tecer a ideia de respeito ao “outro”, hoje vemos que mesmo a idéia do “outro”, no caso das mulheres, às vezes justifica até uma visão patriarcal e que é impossível representar coerentemente este “outro”, isto é, a visão que a mulher tem do homem ou vice-versa, pois será sempre transcrito por um “eu”. A mulher, quer seja na literatura lírica, épica e dramática, atravessou milênios no papel de musa, muitas vezes foi representada no papel de submissa ou traidora como a bíblica Dalila, transgressora como Joana D´Arc, cujo maior delito teria sido travestir-se de homem numa época que proibia as mulheres, inclusive, de morrer pela pátria.
Esbarramos agora no ponto da teoria: os textos femininos visitados pelos teóricos, quase sempre homens até o início do Século XX, eram vistos como textos de exceção. Contra isso, levantou-se a inglesa Virgínia Woolf que, no ensaio “Um teto todo seu”, fez da literatura o pódio onde sugeria às mulheres que sem independência - inclusive financeira - não haveria possibilidade de “voz”, aqui mais uma vez no sentido Bakthiniano, numa sociedade que as proibia até de frequentar determinadas instituições. Se observamos não só pelo lado das ideias e preconceitos dos teóricos mas da própria representação literária vemos a mulher apresentada como reprodutora, cujos filhos machos devem desde cedo dela diferenciar-se e serem alertados sobre este necessário distanciamento e o reforço da identidade masculina. As correntes teóricas literárias de hoje sofrem grande influxo dos estudos culturais, como as de Homi Bhabha, por exemplo, e apontam como correção aos antigos erros a sugestão, mais uma vez desconstrucionista, Bhabha serve de influência para intelectuais como Gayatri Spivak, por exemplo. Ela consegue arrancar das palavras o sentido e reescrevê-las em palimpsesto e catacrese, revertendo assim o discurso do machoopressor.
Os discursos pós-coloniais de teóricos como os caribenhos Stuart Hall, Édouard Glissant e Fanon, também vêm a cada dia comprovando que a problemática dos gêneros na literatura, a questão da voz, não deve separar-se de outros como raça, etnia, classes sociais, homossexualismo, multiculturalismo enfim. As teorias feministas francesas apoiaram-se na psicanálise, as anglo-americanas nas questões marxistas, mas o que percebemos é que tais discursos constroem-se com bases num resgate que envolve a história de um silenciamento das mulheres na sociedade, silêncio este que aos poucos rompe suas últimas amarras. A escritora Heloisa Buarque tem um discurso recheado de ironia quando traça um estranho paralelo entre a mulher de hoje e um Cyborg, ser construído em laboratório. Tal criatura artificial superaria o modelo de família, nem “pais” nem “filhos”, religião metafísica (não voltaria ao pó, pois não veio do barro e como uma salamandra poderia até recompor suas partes físicas que se perdessem). Notamos que os teóricos usam tais exemplos para justificar seus posicionamentos antagônicos quando que se trata de conservadorismo social. Retrabalhar o discurso do outro, quer seja masculino ou feminino, em busca de estratégias libertárias, comparar tendências e buscar novas estratégias parece-nos um dos caminhos mais adequados nos dias de hoje em que a relação entre os seres e as coisas devem buscar reativar o senso crítico e não a reificação. Proponho algo similar a um palimpsesto que tanto exiba o que estava antes quanto abra caminhos para um novo quadro usando a linguagem para desconstruir o racionalismo e as noções de veracidade.
sábado, 22 de fevereiro de 2014
Análises dos livros “O Mulato”, ”Memórias de um Sargento de Milícias”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “A Lenda dos Cem”, ”Muito Além do Corpo”, “Os Rios Turvos”, “Os Sertões”. Pelo professor Moisés Neto
“O
Mulato”
Aluísio Azevedo (São Luís, MA, 1857-Buenos Aires,
Argentina,1913),traz no seu texto uma aproximação com a sintaxe lusitana, e
neste livro naturalista, aponta alguns vícios de linguagem do Nordeste
brasileiro. Há em “O Mulato” uma forte crítica à hipocrisia da vida provinciana
de São Luís, caricaturada aqui na forma de anticlericalismo(o padre, depois
cônego Diogo é devasso, mentiroso e assassino), denuncia do preconceito racial
(eixo da trama), foco no aspecto sexual (a paixão do protagonista, Raimundo, e
Ana Rosa, sua prima, é “carnal”) mas, o golpe final é exibir ao leitor o
triunfo da maldade e mostrar que o “mulato”, não era também tão inocente assim, afinal era
preconceituoso e tinha lá suas “taras”. Mas o autor também o idealiza.
Raimundo tem olhos azuis, cabelos lustrosos, tez amulatada, mas fina, apesar da mãe dele
ser “negra retinta” e o pai “branco”.
Aluísio, como sabemos é determinista e atribui ao
meio, raça e ao momento, uma força irresistível.
A trama parece com as do Romantismo: uma história
de amor que as tradições e o preconceito impedem de se realizar. A diferença
está na “despreocupação” com a moralidade, na literatura “engajada”, na
observação e análise da realidade, nos temas da patologia social(taras, vícios,
problemas sociais/familiares, miséria, adultério, criminalidade, desequilíbrio
psíquico, problemas ligados ao sexo).
Com a publicação de “O Mulato”(1881) teve início o
Naturalismo no Brasil(vindo da França, Emile Zola). Aluísio também sofre
influência de Eça de Queiroz.
Azevedo vivia do que escrevia(depois tornou-se
diplomata) e escreveu tanto dramalhões quanto romances “engajados”.
O protagonista Raimundo ignora a própria cor e
condição de filho de escrava(Domingas), não entende porque sofre o preconceito
da sociedade de São Luís, ele, que era um doutor formado na Europa!
A família de
Ana Rosa o humilha. No final os namorados planejam fugir e ele é assassinado e
Ana Rosa casa com um homem de “bem” (o caixeira Dias, assassino de Raimundo).
Há uma sátira aos maranhenses: o rico grosseiro, a
beata mau-caráter, o padre depravado e conivente. O autor era contra a
sociedade reacionária de sua cidade, que ao se identificar na trama que ele
criou fica chocada.
A narração em 3ª pessoa (onisciente) exibe Domingas
(ex-escrava de José Pedro, pai de Raimundo) como vítima dos ciúmes de Quitéria
(mulher de José) que mandou queimar as “partes sexuais” da antiga escrava.
Pressionado pela mulher, José não vê outra saída a
não ser entregar o filho bastardo para que Manuel Pescada, que “apadrinhou” o
rapaz, o criasse.
Um dia José Pedro encontrou sua mulher mantendo relações
sexuais com o padre Diogo na sua cama.
Matou a esposa.O padre viu e calou para escapar do escândalo. Mas o tal vigário
trama a posterior morte do José. O tempo passa e Raimundo forma-se e pretende
casar-se com Ana Rosa. O caixeiro Dias ajudado pelo (já) cônego Diogo,
assassina,com um tiro pelas costas, o mulato Raimundo.
A família da moça (que estava grávida, do primo mas
fez aborto), principalmente sua avó, fica mais tranqüila quando a menina faz o
casamento de conveniências e gera “três filhinhos”.
“Memórias
de um Sargento de Milícias”
Manuel
Antônio de Almeida (médico, jornalista e funcionário público carioca,
1831-1861)
Aos 22 anos, o autor, sob pseudônimo de “um
brasileiro”, publicou este romance picaresco em forma de folhetim. Isto não
significa que se trate de um dramalhão.Pelo contrário, a história do malandro
Leonardinho, que só quer se dar “de bem”, tem ginga e malícia, o “veneno da
raça” brasileira, seu cheiro e tempero à maneira de personagens anti-heróicos,
modalidades de pícaros.
Manuel Antônio, posteriormente, viu sua obra
transformada em livro (1854-1855). É bom lembrar que o senhor Almeida ajudou um
jovem iniciante nas Letras: Machado de Assis.
Este “Memórias de um Sargento de Milícias” é uma
caricatura cheia de astúcia para exibir a decadência urbana da sociedade do Rio
de Janeiro no início do século XIX.Tem enredo meio comédia pastelão, exagerada
e popularesca, numa linguagem jornalística que buscava retratar o Rio da época
de Dom João VI (o “rei”). São memórias,
mas o narrador está em 3ª pessoa e não
exprime uma visão de classe dominante. A linguagem busca o tom coloquial.
Leonardinho, cujo pai Leonardo Pataca fora traído
pela mulher (Maria das Hortaliças, mãe
do protagonista), assistiu à sua mãe abandonar o lar. O menino é enjeitado pela mãe e depois pelo pai.
Vai ser criado pelo padrinho e depois pela madrinha. O jovem transforma-se num
conquistador barato e só quer saber da boa vida. Conhecemos com ele um Rio de
Janeiro apimentado.
Um jogo social e amoroso surge: Leonardinho quer se
casar com Luisinha, mas ela descobre que ele é amante de Vidinha, então... ela
casa com José Manuel – partido mais seguro conforme pensara a tia de Luisinha.
Nem tudo estava perdido: Leonardinho foi preso pelo
Major Vidigal (chefe de polícia). Por meio de algumas trapaças sai da cadeia,
já como “praça”. É preso novamente. Novos “golpes” da sorte o transformam em
“sargento de milícias” (tropas). Luisinha fica viúva e cai nos braços do (ex?)
malandro. Vão casar-se.
O texto é ágil e faz-nos refletir sobre os tipos,
crendices, ambientes e costumes daquela época.”Início” da malandragem carioca.
Apesar disto, não é realista. Trata-se de um Realismo espontâneo, arcaico. Alguns críticos o apontam como um
romance de “transição”. É um caso a se pensar.
Leonardinho é comparável a outro herói sem nenhum caráter: Macunaíma , do
romance paulista de Mário de Andrade(1928-Modernismo).
Filho de um beliscão e de uma pisadela - Imigrantes, os pais dele se
conheceram numa viagem de navio para o Brasil, e usaram um artifício em moda:
ele pisou no pé dela e ela deu-lhe um beliscão nas costas da mão esquerda.
Engravidou na viagem. Quase todos os personagens nesta narrativa são
“trambiqueiros”. É o “jeitinho” brasileiro nos seus primórdios. Não há
idealização dos personagens, que geralmente são de classe inferior: barbeiros,
comadres, parteiras, meirinhos (oficiais),
saloias (cariocas maliciosas, no que lembravam, as camponesas que viviam
perto de Lisboa).
Há uma ruptura com o maniqueísmo
bem/mal, herói/vilão, típico do Romantismo. (nivelamento)
Para driblar a miséria e se dar
bem, os personagens fazem o que for possível. ”O espelhamento foi distorcido
apenas pelo ângulo da comicidade”, disse o professor Alfredo Bosi. Predomina a imaginação e o improviso sobre a reconstituição histórica e as indicações
documentárias são reduzidas, daí à denominação Romance de Costumes.
Manuel Antônio de Almeida é “o
primeiro a fixar em literatura o caráter
nacional brasileiro”, a criar um estilo “próprio da comicidade popularesca
ou das manifestações de cunho arquetípico – o início do romance lembra a frase
padrão dos contos infantis: “Era no
tempo do Rei”. No mesmo campo, vemos as “fadas boas” (Padrinho e Madrinha)
e o tipo agourento (a Vizinha), que vivia dizendo que o menino jamais chegaria
a ser padre.
Vemos, no romance, categorias sociais típicas. Como
exemplo da descrição dos costumes temos a Procissão
dos Ourives (o retrato físico e moral de um povo); a Estralada, a festa animada de aniversário da cigana – mulher com
quem o mestre de cerimônias foi pego em trajes menores (por Leonardinho); a capoeiragem – que exibe o traço físico
e moral do capoeira; as festas
religiosas, etc.
Podemos afirmar que o romance é
social não por seu caráter documentário, mas por exibir “o ritmo geral da
sociedade” e dos tipos que a formam.
Observar esquema:
Leonardo Ma das Hortaliças
Pataca pisadela/beliscão (mãe)
(pai)
Leonardinho (desordem) Soldado
(herói?) Sargento
Luisinha
Vidinha Major Vidigal (ordem) x Maria Regalada
(ex-amante de Vidigal)
O autor morreu no auge da carreira
num naufrágio. Era 2º oficial de negócios da Fazenda.Deixou um drama lírico
(“Dois Amores”), algumas traduções e sua tese de Doutoramento.
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”
Joaquim Maria Machado de Assis (Rio 1839-1908) foi romântico,
parnasiano e realista.É desta última fase o romance “Memórias Póstumas...”
(1881), livro que serve de “marco inicial” desta escola no Brasil.
Vemos a ele: ruptura com a
narrativa linear, metalinguagem, pessimismo, ironia/humor negro, citações a
autores clássicos (Sthendal, por exemplo), psicologismo,estilo enxuto, desprezo
pelas idéias românticas.
Brás Cubas é um homem comum; que
não consegue escapar da mediocridade em vida: tudo tentou e nada deixou: “Não alcancei a celebridade
(...) não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento (...) coube-me
a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto (...) ao chegar a
este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo (...) não tive
filhos, não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria”.
Estas são as palavras finais do
livro, uma “autobiografia” de Brás,narrador-personagem, “defunto-autor” (não
autor-defunto) onisciente! Senhor do tempo e do espaço, conta sua história de
forma não linear, como dissemos.
Jovem, amou: a prostituta Marcela que quase arruinou o patrimônio
da família dele, Eugênia, menina
pobre e deficiente física, Loló (Eulália),que
morreu e Virgília, que casou com Lobo Neves,tornando-se posteriormente
amante do narrador (quando vivo). Virgília chega a ficar grávida de Brás. O
filho morre antes de nascer.Há que se destacar o personagem dona Plácida, uma alcoviteira que cuidava da
casinha da Gamboa.
Brás é um burguês entediado e sem
um objetivo firme na vida.Um dos seus amigos,Quincas Borba, empobrecido
torna-se filósofo (funda a doutrina
do Humanistismo). Depois de enriquecer devolve um relógio que roubara do
narrador e mergulha em peculiar loucura.
Cubas tenta produzir um
“emplastro”, um remédio que levaria seu nome. Pegou uma pneumonia e veio a falecer antes disso. Narra seu velório
enterro e fala dos pouquíssimos amigos que a ele compareceu.
Ao referir-se à própria infância
diz que foi “incompleta” e “negativa”, a mãe foi “fraca, de pouco cérebro e
muito coração”. E ele foi um “menino
diabo (...) dos mais malignos”, batia nos escravos. O pai era omisso nessas horas. Há também a irmã, Sabina.
Machado deita e rola nas “inovações” narrativas. Há “capítulos- pílulas, outros só com reticências (cap. CXXXIX: “De
como não fui Ministro d´Estado”)
Este romance foi publicado a
primeira vez em folhetim (!) em 1880.O cinismo em jogar com a realidade, a
fantasia, o desencanto de existir e a importância da experiência no jogo
social, este baile de máscaras, empolgaram
os leitores de Machado, fascinados por suas técnicas narrativas, seus
truques e seu perfeccionismo.
Há que destacar o capítulo CXVII -
O Humanitismo: “sistema de filosofia destinado a arruinar
todos os demais sistemas (...) só há uma desgraça: é não nascer (...) nenhum
homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as
aparências contrárias (...) do indivíduo que estripa a outro; é uma
manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele
seja igualmente estripado (...) a inveja não é senão admiração que luta, e
sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos,
são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude”.
O escritor mostra-se no auge de
sua concepção materialista do universo. Com frieza, “sentimento amargo e
áspero” e rabugens de pessimismo um defunto-autor conta a história de sua vida,
da família e da sociedade da qual fez parte.
Desprovido de qualquer crença na
sinceridade dos gestos humanos ou grandeza deles Brás Cubas exibe a podridão dos
homens, o jogo de aparência (ser x parecer), o amor por interesse, as formas de
ascensão social, mas só o faz porque está do outro lado da vida (não passa,
portanto, de um covarde.).
O que chama nossa atenção é a
desordem aparente do contar. Começa com O
óbito do autor, vai para a origem da família Cubas, volta para a doença – O Delírio, vai para o dia em que nasceu
(o dia em que brotou uma graciosa flor, o herói da casa), segue com um episódio de 1814, salta a parte da
escola (um salto) que culmina em O
primeiro beijo e na prostituta Marcela
e segue na desordem que, na verdade, põe em relevo o comportamento humano. As
lembranças surgem e são registradas de modo a exibir o homem não como ser
supremo da criação, mas como o vil verme: “Trata-se de uma obra difusa na qual
eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne...”
Machado despreza as simetrias, o
discurso pomposo. Investe na clareza, na sutileza da linguagem, na concisão do
estilo. Seu leitor será tratado de várias formas: bobo, ignorante, esperto,
“alma sensível” – ao dirigir-se ao leitor de vários modos deseja dialogar e
convencer. Usa do humor, da ironia, fragmenta o texto lança mão da multidisciplinaridade de fatos,
faz muitas paradas na história (digressões),
usa um narrador que emite opiniões, julgamentos e torna tudo relativo (seu narrador é onisciente intruso – sabe
tudo e antecipa para o leitor). “Nenhuma verdade é absoluta”, tudo depende do
interesse de cada um. Tanto faz o narrador afirmar algo como destruir. Nada é
absoluto, nem as filosofias da época ironicamente parodiada no capítulo
HUMANITAS.
Outro aspecto importante no texto
é o uso de intertextos: “’Que bom
que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!’ Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção,
confesso que senti em mim um eco...” (p. 46); com a Eneida de Virgílio: “Arma virumque cano” (p. 48)
(canto as armas e o varão, verso inicial da epopéia de Virgílio), com o texto bíblico ao usar referências a
episódios bíblicos tais como: “Bem-aventurados
os que não descem” (p. 54), “O
caminho de Damasco”. “No caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que
me sussurrou as palavras da Escritura
(Act., IX, 7): Levanta-te, e entra na cidade” (p. 55). Brás Cubas faz
referência ao episódio da conversão de São Paulo. A origem dessa voz tem como
fim mostrar o que pensava Brás Cubas sobre Eugênia, a menina bela, porém coxa.
Nele, misturam-se dois sentimentos terríveis: a piedade para com a coxa e o
terror de vir a amá-la e desposá-la. Os intertextos são muitos: Pascal, Sterne,
Swift, Camões, etc,. Entram sempre para revelar mais e mais o comportamento dos
personagens.
Faz uso constante das repetições
(de idéias, de imagens – a idéia do emplastro sempre retorna: “Descida o leitor
entre o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplastro”). A idéia da
morte, do tempo. Machado discute ainda a forma como vai construindo seu romance
(Metalinguagem):
“Este livro e o meu estilo são
como os ébrios, guinam à dirita e à esquerda, andam e param.”
Toda narrativa visa a confirmar
que a índole de um homem é “efeito das relações sociais”, que a “boa ação dele”
nada mais é do que a certeza de ver-se admirado por todos:
“(Cotrim) não era perfeito
decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um
ou outro benefício que praticava (...) desculpava-se dizendo que as boas ações
eram contagiosas, quando públicas...”(p. 124)
O mesmo acontece com Brás Cubas ao
descobrir um remédio que iria curar a humanidade de todos os males O Emplastro Brás Cubas. Na verdade, o
que ele queria era ver o seu nome estampado em todos os lugares.
O remorso é outro aspecto
desconhecido pelos personagens a confirmar que precisamos observar as
circunstâncias e os lugares em que se econtram, contemplar o gesto vil dos
homens por partes. Lembremos o Brás Cubas no capítulo XXI – O Almocreve. O jumento em que estava
empaca e Brás Cubas fustiga-o. Este saiu dando corcovos, jogou Brás Cubas fora
da sela, deixando-o com o pé esquerdo preso. Disparou pela estrada a fora.
Seria a morte certa se não fosse a ajuda de um condutor de bestas – o almocreve
– que dominou o bruto. A primeira reação do narrador (o sangue agitado) foi dar
ao condutor três moedas de ouro (das cinco que achara na praia). O sangue
esfriou e ele pensou em “duas moedas de ouro. Talvez uma”. Olhou para o
almocreve, um homem pobre, constatou-o. Chegou a tirar as moedas de ouro
hesitou. Trocou por um cruzado, afastou-se com remorso, mas ao ver o almocreve
grato, refrescou a alma, a consciência. Eis a Lei da Equivalência das janelas. Afastou-se mais e sentiu no bolso
umas poucas moedas de cobre, achou que estas seriam suficientes, afinal que
fizera aquele pobre homem a não ser reagir por instinto, “um impulso natural”.
Brás Cubas vai diminuindo o mérito do rapaz até nenhum. Com esta reflexão, acaba-se
o “remorso”: “Era preciso arejar a consciência.” p. (111) – a consciência sem
remorso e o universo todo subordinado à ponta do nariz: equilíbrio das
sociedades.
Não esqueçamos a abertura do livro
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa
lembrança estas memórias”. Machado
abre o romance fazendo uso de um tom cáustico, sombrio indício de como será o
seu romance e de como vê a humanidade: cada um por si, a mostrar sua
superioridade veja o caso, por exemplo, do escravo alforriado Prudêncio que
vergalha um negro na praça só para mostrar-se domínio. (Cap. LXVIII).
“Filosofismo, ironia amarga, reflexão profunda em torno do trágico
da condição humana, da ´sem –razão´ de tudo(...) apenas um indivíduo louco
poderia passionalmente apegar-se à vida(...) antipositivismo(...) sátira(...) cosmovisão machadiana. Numa literatura
carente de inquietação filosófica ou existencial, as memórias póstumas de Brás
Cubas constituem exceção de superior quilate, a desafiar esfingicamente gerações de leitores e críticos”, disse Massaud
Moisés.
Machado abraçou “como fado
eterno dos seres o convívio entre os egoísmos(..)veio-lhe sempre do
espírito atilado um ´não´ao convencional, um ´não´ que , o tempo foi sombreando
de reservas, de ´mas´, de ´talvez´, embora permanecesse até o fim como espinha dorsal de sua relação com a existência(...)linguagem
da ambigüidade”, disse Alfredo Bosi.
Desde sua fase romântica ele
combateu a apologia da paixão amorosa, contrapondo a isso um frio jogo de
interesses e fala das máscaras que o homem afivela à consciência tão firmemente
que acaba por identificar-se com elas”.
É Machado contra a pieguice,distanciando-se para melhor
criticar e paradoxalmente entreter a sociedade, numa conversa meio informal com
seu leitor.
Touché!
É a comédia dos equívocos.Não há heróis.”Há apenas destinos sem grandezas”,
observou Bosi ao referir-se ao “bruxo da
rua Cosme Velho, como Drummond chamou Machado no poema “A um bruxo, com amor”(do livro “ A vida passada a limpo, de 1959).
“A Lenda dos Cem”
do pernambucano (São Bento do Una) Gilvan Lemos
Todos os capítulos iniciam-se com sueltos (pequenos tópicos) tirados de uma
suposta publicação intitulada “O pernambucano” seção “Há um século”.As
referentes a 1946,49,56,59,63,64 e 70, foram adaptadas de tópicos constantes no
livro “Aos Trancos e Barrancos- Como o Brasil Deu no que Deu”, de Darcy
Ribeiro. Os outros (1922, por exemplo) o autor “inventou”.
No 1ª capítulo vemos dois capangas
de Meneses assassinando Joca Correia(na verdade João Panta,
filho da índia Nacha e do
comerciante protestante Mardônio(que
era casado com Benvinda). O crime se dá na presença de Pedro Correia (Peto, que é salvo na ocasião pelo seu
padrinho Brás, também assassino,
capanga de Meneses, que vai encaminhar o menino para ser educado noutro
lugar),filho da vítima e neto do cacique Olímpio
Picha,avô de Nacha, da fictícia tribo dos Xacuris.Os dois capatazes são homossexuais.Assim como o é também o
mandante do crime, Meneses,chefe oligárquico do interior de Pernambuco.
O tópico que abre o livro já fala
de norte-americanos que seqüestram crianças brasileiras para usá-las como
cobaias em experiências científicas em Nova York. Uma característica de Gilvan:
ele é crítico feroz do imperialismo
ianque, representado neste livro por Mr. Rodber (que é gay) e sua gangue.
O autor não se curva aos que
cultuam somente a forma nem faz concessão aos que preferem o enredo.Se ele
emociona e empolga em “A Lenda dos Cem” (ed. Civilização Brasileira. 285
páginas. SP 1995) e nos faz pensar num filme de faroeste caboclo nordestino
“antropológico delirante” que narra a
saga de 3 gerações de uma tribo de índios pernambucanos, é porque expõe a
violência, os crimes, o heroísmo e a
impunidade que grassam neste estado do Nordeste há tanto tempo, quer seja no
interior ou em Recife.
A aculturação indígena, a
guerrilha, a luta pelo poder, o delírio, a dramaticidade, a miséria, vão
rodopiando num torvelinho bem urdido que é a escrita do mestre Gilvan.
A narrativa é não-linear a saga dos Xacuris
é narrada desde 1922 (cem anos de
“independência”) até os anos 70, com
a tribo esfacelada.
A “lenda dos cem” a que se refere
o título quem conta é Olímpio, o cacique decadente: num tempo antigo os brancos
vieram e selecionaram os cem jovens mais
fortes e sadios dos Xacuris. Mataram o resto da tribo. Amarraram os cem,como se
fossem contas de um estranho rosário. Um escapou misteriosamente. Os índios
foram suprir a mão de obra escrava que escasseou. Este que fugiu era protegido
de Tupã. Voltou encantado e libertou os irmãos, reconduzindo-os ao lugar onde
existira a tribo: arrasado e deserto. Num passe de mágica faz aparecer mulheres
Xacuris e uma plantação. Assim a tribo se recompõe. E é em nome desse Moquê que
Olímpio lidera o que restou da tribo muito tempo depois e tenta enfrentar os
americanos e o pessoal de Meneses que queriam as terras para seus negócios
pessoais(minas e fábricas). As metralhadoras dos brancos vencem os Xacuris. Só
escaparam Nacha, Antônio Panta (com quem ela se “casa”,já grávida de Mardônio),
Pichá (que se junta ao bando de
Lampião e Corisco e, já velho nos anos 60/70 vai participar de guerrilhas, onde
morrerão Rodber e Meneses).
Gilvan separa os Xacuris em dois blocos: os que se embriagam e prostituem
na cidade de Santana da Serra e os
que ficam na aldeia: “Nacha se deslumbrara com as bolhas mutantes da gasosa,
com receio até de desmancha-las, embora sabendo que as ingerindo mais se
deslumbraria” (p.18).
A narrativa constantemente
utiliza-se do discurso indireto livre
sem pudores em relação a palavrões ou
vícios de linguagem: “punhetinha”, “cacunda”, “inda,“sustança”, “muito
olhuda, boca sangrosa”. Há também neologismos
como “somiticaria”(p.46) e “desvisível” (p.49)
Nacha é descrita como “casmurra” e
tendo “olhos oblíquos”.
O autor é materialista, anticlerical e não perde um efeito cômico, mesmo quando o
assunto é massacre indígena, ato sexual, desintegração da família,
moralidade.Tudo explode em êxtase verbal crítico e recheado de humor negro que
se misturam a “buchada” e carne de sol, casinhas de taipa,bodoque, juá,
bacurau. Gilvan é classe média politizada: horroriza-se com o “jeitinho
brasileiro” e o descreve com raiva e um certo cinismo. Clama por vingança e
justiça.Os Xacuris viviam no vale do Iurubá,banhavam-se no rio Añun
(“maternalmente acolhedor,o líquido adaptável ao corpo, morno na superfície,
friinho nas profundezas, um frio morno, misturado 2-p.42). Viviam em casinhas
simples, uma igreja(padre depravado e ladrão, que aparecia raramente), uma
escola que não funcionava. Consideravam-se “pobres”.A única cerimônia que os
unia aos antepassados era o Torém (ritual). “O coco se aparentava às danças dos
antigos Xacuris” (p. 43). A maioria era analfabeta e não tinham registro da
terra que o imperador demarcara (p.39).Estranhavam a ambição dos brancos(p.44).
Cita tribos do sertão/agreste de Pernambuco: Pankararus (de Tacaratu);
Tukás (Cabrobó); Kambiwás (Inajá); Xucurus (de Cimbres); Atikuns (de Floresta);
Fulni-ôs (de Águas Belas). Espoliados, descaracterizados, roubados
vergonhosamente(p.50).Eis a crítica.
Joça Correia (João Panta, que
fugiu da mãe, Nacha, e do pai indígena,Antônio- na verdade era filho de
branco,Mardônio) vai ser criminoso e
termina como Édipo: assassina o próprio
pai sem saber. Meneses manda matar Mardônio,já velho, porque ele queria
investigar o massacre dos Xacuris). A vítima teve seu pênis (imenso) cortado e
enfiado na boca.
Ao se relacionar com uma
prostituta gerou Peto, o que no início viu este pai ser morto a pauladas como um cachorro e que se vinga matando
Meneses no final da trama.
A vida de Peto: Brás o deixa com
um casal que o repassa para um
professor (Nobre,por cuja filha, Lurdinha,
Peto vai nutrir uma paixão não correspondida) que tem uma escola decadente no
Recife. Peto passa num concurso público para ser funcionário da Previdência
Social, depois de enfrentar a miséria no centro do Recife. Presencia o golpe
militar de 64 e testemunha as barbáries dos anos de chumbo. Volta a Santana da
Serra para vingar a morte do pai. Encontra Nacha, (quando é seqüestrado por Pichá,
que, velho, se transformou em guerrilheiro/assaltante).A velha índia vê no
rosto de Peto algo de Mardônio, e algo do próprio filho (o louro JOCA, João
Panta/Correia, sobrenome que, ela não sabe, ele adotou ao olhar tal objeto na
casa de Meneses).
Inocentado do crime por artimanha
de Pichá, Peto volta ao Recife como herói, que se livrou do seqüestro, e casa-se com Geni, que ele não sabe, é sua
prima,filha de Pichá.
LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA
UMA APAIXONADA PELAS LETRAS
A UPE escolheu
a leitura de “Muito além do corpo” (87) e “Rios turvos” (94), romances da
pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, como pré-requisito para seu exame de
vestibular 2003. Decisão acertada.
A autora vem lutando pela divulgação das letras
femininas, com um afã invejável, dirige inclusive um núcleo de estudos com esta
temática na UFPE, onde leciona.
Este ano Luzilá vai, ao que tudo indica, concorrer
a uma vaga na Academia Pernambucana de Letras. Ela é autora de mais dois
romances: “A garça mal ferida” (93) e “Voltar a Palermo”, este último, lançado
em 2002, tem como eixo narrativo a história de Maria, uma brasileira
cinqüentona, que volta à Argentina, onde havia morado na época da ditadura
militar. Na cabeça “recuerdos” sobre um motorista de táxi (Nino, sobre quem
sabia quase nada fora uma relação-relâmpago).
Luzilá explica que se inspirou levemente no filho
de outro taxista, seu freguês. Que por um dia substituiu o pai, lá em Buenos
Aires onde ela morava. E também cavou em si própria e daí retirou a personagem
professora, que, metamorfoseada numa pessoa sedenta de amor e movidades que
busca saciar-se através de uma velha fantasia
amorosa.
O texto de Luzilá, como sempre é extremamente
poético. Ela tem uma intimidade total com a criação literária e uma visão
particular sobre o “feitiço” das letras.
Do mesmo modo que em “Muito além do corpo”, romance que ganhou o prêmio Nestlé em 88,
temos uma personagem que ao questionar-se, reencontra-se numa nova forma de
amar, que faz com que ela reflita sobre os intrincados caminhos da paixão.
Se em “Rios
Turvos” ela revirou a vida de Bento Teixeira, cristão-novo (autor de
“Prosopopéia”, poema que marcou o início do Barroco na literatura nacional) e
de sua mulher (um caso que terminou em tragédia), e em “Humana, demasiado
humana” ela destrinchou/forjou a alma de Lou Andréas-Salomé (que foi amante de
Rilke e Nietzsche) em “Voltar a Palermo”
ela mostra uma fêmea em busca de si mesma e de um tempo que talvez seja
reencontrado.
Há passagens que
nos lembram Mauro Mota: “Abri a janela e de súbito Buenos Aires inteira
foi minha, sua paisagem cinza e seus cheiros me penetraram, como nos penetra o
cheiro da pessoa amada. Era uma mistura de odores vários, gasolina e óleo
queimado, fumaça e poeira, mas igualmente perfume de flor, beleza a se
esparramar ao longo da nueve de julho, que nome tinham aquelas árvores? Um dia
eu soubera, quando ainda não havia deixado Buenos Aires e a cidade era como uma
extensão do meu corpo”.
LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA: MUITO ALÉM DO CORPO”
“Muito além
do corpo”, Romance da Pernambucana
Luzilá Gonçalves Ferreira (prêmio Nestlé de Literatura Brasileira – 3º
lugar, 1988, 79 páginas, editora: Scipione) é repleto de inventividade, dando
menos valor ao ambiente e aos costumes, a autora aprofunda-se na dimensão
existencial das personagens, no caráter psicológico e social. O livro
se divide em quatro partes: Tu, Eu, Ele e Tu (Ele).
Há que se considerar também a poeticidade enxuta,
uma “interferência lírica”, como ressaltou o mestre Adonias Filho, que
“assegura por sua vez o acabamento ficcional em todas as suas exigências
literárias”.
Luzilá vai “muito além do corpo”, até os limites da
imaginação, do intimismo, buscar o reconhecimento do ser humano, como o francês
Proust, em outra perspectiva, tentou no seu “Em busca do tempo perdido”.
É o horror e a surpresa refrescante de uma
intelectual vendo chegar, o analisado previamente (idealizado), amor.
O romance começa com a narradora (1ª pessoa)
descobrindo a ação do tempo no corpo do seu amado, “um pouco de ventre
que me comoveu (...) o vinco na testa (...) então me fazia pequena e redonda, e
o frio e a tristeza se dissolviam (...) a respiração dele me aquecia a nuca e o
coração (...) eu amo este corpo, eu amo este homem (...) havia algo além
daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tu mesmo
ignoravas. E eu: apenas pressentia”.
Quem é esse “tu”, a que a narradora se refere? (p.
8) trata-se de uma referência a um terceiro, que pouco a pouco vai se
revelando.
“Algo mais para que o contato com o corpo de um
homem provocasse em mim aquela deliciosa desordem de vísceras e alma, e cada
vez que tentara amar só de corpo, sempre restara o vazio no após (...) à
sensação de solidão se mesclava uma leve náusea: que fazia junto de mim aquele
corpo insuficiente?” (p. 8) “contigo nunca fora assim” (novamente a
narradora aponta para um terceiro vértice).
“Homem e mulher, e cada um se espelhava no outro
semelhante, cada corpo remetendo ao outro, companheiro”. (p. 9). “Um tácito
acordo de espírito (...) macaíba em flor (...) terra molhada”.
No Capítulo II, a narradora apresenta sutilmente, e
de modo sempre “enxuto”, seu amante, evitando uma noção demasiado
romântica da vida. E temendo a felicidade como algo “pequeno-burguês”.
Luzilá parece querer agradar ao júri que lhe deu o 3º lugar no concurso
(Adonias Filho, Eduardo Portela, José J. Vieira, J. Garbublio e Álvaro Gomes),
mas ela se supera na arte de escrever e resolve “começar do começo cronológico”
(p. 13).
A narradora usa sempre o “tu”, em vez de você e
salpica o texto com frases como “amar é sempre uma tomada de posição contra”
(p. 15) ou “aquela parte de mim que por ti ardia” e “éramos seres de exceção”
(p. 16). E finalmente o nome do amado: “Mário (...) não estou sabendo resolver
tua ausência dentro de mim”. Um pouco intelectual não? E um toque de Clarice Lispector também permeia todo o texto como
uma sombra: “tudo era pesado e misterioso (...) então não mais eras Tu e sim um
Ele escorregadio” (p. 22).
Há um individualismo pressionando o relato amoroso:
“Preciso me encontrar a sós comigo mesmo”, e o discurso do outro: “que tua
figura não se interponha entre mim e o que posso viver às vezes”.
Então a narradora fala da paralisia do seu amado.
A 2ª parte do livro (“EU”) dialoga com Cecília
Meireles: “também não sei em que espelho ficou perdida minha outra face (...)
quem é essa que assim me fita?”, a narradora atribui ao astigmatismo não ter se
visto assim antes (humor). “A gente deveria possuir vários nomes”, nova
referência a poetas: Fernando Pessoa, Mário de Andrade: “Eu sou trezentos”. Há também
existencialismo: “sou tantas (...) neste corpo que carrego há mais de quarenta
anos”. E o toque feminino: “Mulher é coisa complexa (...) bicho
monogâmico (...) agora seu maridinho chegou, meu amor” (p. 29). E retoma:
“Quarenta anos foram precisos para chegar a isto, e, toneladas de alimento e
amor e tanta literatura”, aqui uma nota autobiográfica: a menina-moça Luzilá
funde-se com a quarentona narradora na paixão pelos livros: “a fala silenciosa
dos que haviam partido tantos anos antes” (p. 31). E trabalha a
metalinguagem, questionando-se sobre “o fazer” do livro. (p. 31).
Outro poeta é citado nesta 2ª parte: Drummond (p.
32): “Amor é privilégio dos maduros” e Romain Roland: “o cúmulo da dor confina
com a libertação” (p.33)
Luzilá é poética. A narradora rememora a infância:
episódio da declaração de guerra (Brasil x Alemanha) e medo do mundo acabar:
“sentada na escuridão, eu chorei pelos lírios que nunca floresceriam (...)
naquela noite eu aprendi a primeira lição sobre o limitado poder do amor” (p. 37)
Há também um toque de James Joyce, num discurso
direto/indireto onde o fluxo de consciência transcorre como “as frutas que
boiavam na água, caindo ploc ploc ploc” (p. 38)
E veio o episódio do bodinho (nome: em flor, enflor), que a narradora ganhou quando
criança, e que a machucou quando cresceu, “amor às vezes maltrata” e que foi
vendido para abate. “Todo o mundo vai ter que morrer um dia. E de repente o
mundo todo virou uma coisa triste, uma prisão e ninguém podia sair de dentro
dele” (p. 40)
Há uma certa confusão sobre “usina” (p. 40) e
“engenho” (p. 43) na narrativa que mergulha de repente nas histórias paralelas
ao núcleo central do romance. “Causos” da juventude da narradora nos típicos
lugares do interior de Pernambuco.
Chegamos na última parte do livro: “Ele”, que
começa assim: “Dia de São João”, íamos nos encontrar à noite (...) olharíamos
balões no céu: (...) copinhos de canjica (...) ramos de ingá (...) lembrava uma
paisagem de Post, e o céu estava azul. Fizeram fogueira”. (p. 53)
Há metáforas como “um silêncio equívoco esticava os
fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, que a narradora usa para introduzir
o tema da separação do amado, naquela mesma noite de São João em que fora ao
cinema e conhecera o outro: “em silêncio nos amamos por séculos (...) estranha
foi a volta para ti, depois daquele encontro com ele” (p. 57) e a narradora
conta ao amado como é bonito seu novo amor: “deve ser, teu rosto resplende”,
responde ele (p. 59)
Vem a ruptura, que Luzilá trata poeticamente.
“O corpo é metáfora de nós, sinal evidente de algo
mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno” (p. 60)
E a narradora também é brega: “Te amei como ninguém
te amou querida, de ti o menor gestor adorei” (citando “perfídia”) ao descrever
o choque da separação e o bilhete, “não me procura, por favor, teu”, que o
outro deixara. E vem um texto muito bonito sobre os amantes verdadeiros que se
separam: “partiste e ficou em mim aquela parte de ti que só a mim pertencia e
que está colada em mim, como uma segunda pele. Como fiquei em ti, e disso o
sabias: que te indo, eu te acompanharia, menina acocorada e quietinha em algum
lugar de ti, a te espiar, a te amar de longe, a te dar a certeza da impossível
solidão, eu em ti, eu do teu corpo” (p. 61)
Luzilá repete as mesmas metáforas (p. 29 e 62):
“transmudados em sombras esfumaçadas...”
A narradora se entrega a um jovem vinte anos mais
jovem e ele diz: “amo suas rugas e seu cansaço”. E ela pensava:
“envergonhava-me quase, de não poder lhe ofertar a pele de pêssego (...) seus
dedos refaziam o caminho que o tempo abrira no canto dos meus olhos, no vinco
da testa, ao lado dos meus lábios, as marcas de tanto sorriso, tanta dor, tanta
vida” (p. 64)
Há um “deslumbramento” subjacente: “eu voltava aos quinze anos e ele
era o meu primeiro amor (...) o nosso amor era o perfume do amor”.
Luzilá é sereia e nos encanta com sua poesia.
Há também um toque daqueles romances típicos dos
anos 70: um caleidoscópio psicodélico que numa página junta Freud (“machista”),
Woody Allen (“genial”), Bethânia (um “sarro”), uma calabreza e mais dois
chopinhos (p. 68)
Sobre o seu “segundo homem” no livro, a narradora
compara: “Ele quase com a duração de um relâmpago, passou em minha vida,
deixando-me encandeada” (p. 69), ou: “amor meteoro” (p. 70)
E o corpo
termina só, “a inenarrável solidão dos seres sobre a terra” (p. 71). E “tu sob
a terra, onde já não chegam cores, nem perfumes nem sons (p. 72)
O “tu” parece ser tanto o amante, quando o leitor
de Luzilá: “Eu te amo, tu do outro lado” (p. 73)
“Tua mão buscou a minha. Aproximei minha face de
ti,
– Queria teu perdão, falaste.
– Te amo, respondi” (p. 79).
Luzilá não precisa turvar águas para parecer
profunda. Ela tem autenticidade verbal. Seu romance é como a ponta de um
iceberg: faz-nos supor o que não se escreveu. O familiar nela torna-se fonte de
estranhamento. Joga com o leitor, surpreende-o com pequenas armadilhas, busca
sua cumplicidade ao mesmo tempo oferece fruição estética. Com ela
mergulhamos num universo feminino poético essencial fascinante, insinuante,
compacto, sugestivo.
Em “Muito
além do corpo”, ela tece e destece,
qual Penélope, as tramas de dois amores entrecruzados, às vezes meio neobarroca,
na sua paixão por Bach, nas comparações entre as fontes da vida e a morte (p.
60) , no êxtase.
Criou um romance (novela?) moderno, cheio de
impulso vital. Tentativa de conjurar passado e presente num texto sintético e
denso, imagem a imagem, balançando entre o corpo e o espírito.
Luzilá, pernambucana que soube buscar no silêncio
da palavra a força da linguagem.
A UPE (antiga FESP) está de
parabéns ao escolher esta autora como básica para seu exame de admissão 2003.
Os Rios Turvos
“Do amor não vi senão breves enganos...” formadores
dos Rios Turvos da minha vida.
“Um único amor amara ...
vinte anos, dos trinta e sete de sua vida e só preocupações, invejas,
sobressaltos. Um ciúme tão grande que melhor seria se não tivesse amado, mas
viver sem amor ninguém pode, “é doce o mal que nos causa uma mulher.”
O romance Os Rios Turvos, narrado em 3a pessoa, lembra a função documental que teve a
arte. Trata-se da vida do autor do poema épico Prosopopéia: O português Bento Teixeira, portanto uma biografia
(do nosso primeiro poeta) que se mistura à ficção. O tema da obra nada mais é
do que a trajetória amorosa do português Bento Teixeira com a brasileira natural
do Espírito Santo Filipa Raposa, a
grande paixão de sua vida e a responsável por seu destino trágico: a própria
mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício acusando-o de judeu e mau cristão
e ainda instiga outras pessoas a fazerem. Vai trair o marido por vária vezes,
obrigando-o a morar em lugares diferentes da Paranambuco (Pernambuco) do início
da colonização.
O apetite sexual da esposa
era sabido de todos. Desde adolescente tinha uma malícia natural: Seduzia – com
seus olhos belos e verdes até os padres nos confessionários. Bento via-se
obrigado a constantes mudanças: Olinda, Igarassu, nas terras de João Paes no
Cabo, freguesia de Santo Antônio. Neste último lugar, havia pouquíssimos
homens, mas Filipa consegue trair o marido com o frei Duarte Pereira, vigário
da freguesia de Santo Agostinho e único homem do lugar.
Ao chegar ao engenho de João
Paes no Cabo, pensou que ia controlar a mulher, mas esta era mais esperta e
dormira com o padre Duarte muitas vezes (mesmo já mãe de dois filhos) sem que o
marido desconfiasse.
Uma das situações mais
humilhantes para Bento foi quando a esposa o traiu com um mulato, crime
repugnante na época.
Bento Teixeira era filho de
pais humildes e cristãos-novos. Seria, portanto, um dos filhos desgarrados de
David cuja família abandonou Portugal por conta da perseguição a judeus. Apesar
da pobreza dos pais, Bento ao chegar ao Brasil, na Vila de Salvador na Bahia,
foi ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras que lhe ensinou latim e o iniciou
nas artes. Leu os gregos tais como Ovídio, Aristóteles. Conseguiu estudar no
colégio da Companhia de Jesus e fazer algumas amizades que lhe foram úteis mais
tarde como testemunhas contra as pressões da Santa Inquisição.
Sem pensar que era um gesto
herético Bento traduziu, a pedido do sobrinho Antônio Teixeira, do latim para o
português o livro DEUTERONÔMIO, livro da Torá, que Javeh ditara a Moisés –
conforme afirmava sua mãe cristã-nova. Porém esta missão caberia apenas à
Igreja. Leu livros que figuravam no Index e acabou, pelos colegas, sendo
denunciado ao visitador, mas não foi logo preso. Tornou-se alvo predileto da
Inquisição e de alguns padres por ele criticado.
Bento esteve um período no
mosteiro de São Bento, para onde chega com carta de recomendação.
Ensina latim, aritmética e
poesia para sobreviver. Revela-se fiel aos princípios da igreja para livrar-se
da Inquisição, mas não deixa de criticá-la: “(...) almeja escravos para a
lavoura.” p. 49 este seria o propósito da Igreja, pensava Bento.
Embora não fosse exímio
escritor (às vezes criticado pela própria Filipa), Bento fazia sonetos e
trovas. Escreveu um poema épico – PROSOPOPÉIA – à semelhança de Camões homenageando o governador da
capitania de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque. Seus escritos, no entanto, não
tinham a espontaneidade dos versos de Filipa.
A esposa gostava de ler à
noite. Ficava com o marido. Liam Gil Vicente, Salomão, Camões, Ovídio, Catulo.
Para a esposa, Bento mostrara seus escritos e a ela dizia de sua dificuldade
para escrever, fato que não ocorria com Filipa. Às vezes a dificuldade de Bento
era usada por Filipa para xingá-lo, outras vezes ela o ajudava.
Apesar de tudo que fizera
Filipa Raposa (as traições constantes que levou Bento a assassiná-la) Bento –
após a morte da esposa – sentia falta dela, afinal “era uma parte dele que
morria. Ele que não soubera o que era amor. Não amou o pai – homem rude,
astero, exigente; a mãe que o obrigou a ser judeu; nem mesmo aos dois
filhos, cópias de Filipa, “a raposa atenuada em felinos.” Tudo seria diferente
se ele não fosse um Pinto, um cristão-novo e ela não fosse uma Raposa, uma
cristã-velha? Quem saberia dizer?
Quando matou Filipa, Bento
confiou seus filhos a João Paes – dono das terras onde morou em Santo
Agostinho. Escreve-lhe e lhe explica sobre tudo que fizera por causa da esposa.
Foge para Olinda – o mosteiro de São Bento, onde ficaria (até que a Inquisição
o pegasse) escondido.
Antes de morrer, ainda
agonizando ao receber o golpe de faca de Bento, Filipa pediu que o marido
pegasse em uma gaveta do quarto um maço de cartas – poemas que ela escrevera
(ou os amantes escreveram para ela?). Durante a fuga para Olinda Bento os
perde. Lê apenas alguns poemas, quase nada.
No mosteiro de São Bento, o
poeta ganhou a inimizade de Frei Damião por desafiar o religioso nos seus
argumentos espirituais e por denunciá-lo aos outros padres dizendo que o
referido frei freqüentava a casa de mulheres casadas como Isabel Raposa e Ana
Lins. Por tal feito compra um inimigo declarado.
Em 12 de agosto de 1595,
recebeu ordem de prisão. Começam os julgamentos e Bento prepara documentos para
sua defesa.
Em 22 de outubro de 1595, é
mandado a Lisboa como acusado do Santo Ofício por praticar heresias, ter o
sangue daqueles que mataram a Cristo.
Ao redigir os documentos,
para se defender das acusações, exibe seu conhecimento. Usa citações eruditas,
textos latinos. Quando interrogado pelos inquisidores, sempre se diz inocente,
mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece sua culpa. Renega e
abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não vem e Lisboa
torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600 morre e um ano depois a Santa
Inquisição concedeu licença para que se publicasse, em Lisboa, a primeira
edição de Prosopopéia.
Bento morreu pensando na sua
Filipa de olhos verdes e cabelo de fogo. A Filipa adolescente que lia com ele
Ovídio, Gil Vicente, os poemas de amor de Salomão:
“Beije-me ele com os beijos
de sua boca porque é melhor o seu amor do que a própria vida. Vive sem amor! se
um deus me falasse assim, eu recusaria, tanto é doce o mal que nos causa uma
mulher.” – Razão da sua vida e da sua morte. – E morre sorrindo como um pequeno
judeu após ter feito sua oração. Morreu pensando no que poderia ter sido e não
foi.
Observamos na obra Os Rios Turvos os intertextos que enfatizam sobretudo a temática do amor: Ovídio aparece tantas vezes como
epígrafes dos capítulos, o Ovídio degustado por Bento e Filipa em seus serões;
Camões de Sôbolos Rios, o Camões dos breves enganos: “Do amor não vi senão
breves enganos”; o intertexto bíblico, na história dos judeus, na comparação de
Bento a Jonas ‘a caminho de Nínive, o grande mar’ (p. 195), nas citações
latinas; nos poemas encomiásticos (escritos por Bento) onde confessava o
mistério de um Pai, um Filho e um Espírito Santo e por fim na Prosopopéia
aquele longo poema que escrevera em Paranambuco, Pernambuco e os versos à
maneira de Camões que lhe vinham sempre à mente:
“Cantem, poetas, o Poder
Romano
Submetendo Nações ao jogo
duro...” (p. 209)
Filipa Raposa, cristã-velha e
Bento Teixeira, cristão-novo dois seres tão diferentes, unidos pelas águas dos Rios Turvos do amor, um amor que nem
eles conseguiram perceber na sua inteireza ou até mesmo nas suas contradições.
Destacamos ainda nas brigas
de Filipa com o marido (quando ela ao ler os textos dele percebia versos
inteiros de outros poetas) uma preocupação com o fazer literário, os caminhos
complicados da criação poética percebidos pelos protagonistas. Bento chega a
discutir sobre a habilidade de Gil Vicente para compor os versos de Auto da Alma:
“Alma humana, formada / de
nenhuma cousa feita.” (p. 23) “Eu e tu, Filipa para dizermos estas cousas,
utilizamos todas estas frases (...) Gil Vicente o diz em sete vocábulos.” (p.
23)
Um relato dramático para
falar da vida, do amor, do desejo, da inveja, das contradições, do poder da
igreja, da morte, enfim, coisas da vida de um cristão-novo do século XVI
brasileiro e sua mulher uma cristã-velha. Uma recriação que não esconde o
aspecto social do primeiro século da formação do nosso país.
Os Sertões
de
EUCLIDES DA CUNHA em 2002: CENTENÁRIO DA OBRA. 25 MIL BRASILEIROS MORTOS:
quando? Por quê? Onde? Como foi dito?
Canudos como a mais sangrenta guerra civil do país,
que então tinha como chefe o Prudente de Morais. As crianças brancas foram
vendidas para bordéis baianos, depois que todas foram violentadas pelos
soldados como prêmio.
Enquanto
conselheiro cearense fundava canudos em 1893 o rio assistia Sarah Bernhardt, a atriz francesa veio
com a “Tosca”, outros, que davam as caras, eram os cangaceiros (que
atuariam até 1940).
A maldição de
conselheiro começava: Euclides começou a ter visões com “mulheres de branco”. O
ministro da Guerra e comandante da 4ª missão foi assassinado (assim como
Euclides e seus 2 filhos). E o terreno onde fora Canudos, seria coberto por um açude,em 1966 (pelo DROCS).
Seria
ridículo o monarquismo de Conselheiro vencer a república? Corta essa, Brasil.
4 de Agosto
Euclides chega a Salvador e segue para
Canudos onde fica até 3 de outubro de 1897. Lá só ficou 3 semanas (em Canudos)
antevéspera da vitória do “Exército Republicano”. Dia 22 de setembro morreu,
aos 69 anos, Antônio Conselheiro mais
uma vez a moda francesa de cortar
cabeças. A de Conselheiro foi levada para o Rio de Janeiro.
“Divergências
estéticas, ideológicas e literárias”, porém Euclides encontrou Canudos intacta,
e com maestria reconstruiu-a de modo
exemplar aos nossos olhos para sempre. Para isso o ajudou a polícia popular, os
manuscritos (inclusive do conselheiro) e pinçados nas ruínas. E travestiu
Canudos em centro nervoso da cultura nosso povo para horror dos urbanóides cariocas e paulistas que
resolveram estender até Canudos o seu campo de batatas machadiano (Ao vencedor as batatas!)
Outros
jornalistas foram a Canudos. Mas Euclides era o homem certo. Intelectualmente o mais preparado. Pensarmos que anos
depois ele retornaria suas rotas para produzir o colossal “Os Sertões”,
enquanto trabalhava no projeto de uma ponte, faz-nos levar um murro no rosto
criando o quadro do terror e da glória num cenário detalhista. Provocando
sensações literárias arrepiantes. Empolgando com sua oratória de Ateu. Que um
crítico chamou “linguagem-sucuri” por comprimir tão bem a realidade.
“Cocorobó” é o ridículo nome da represa do DNOCS
sobre Canudos,que foi um clã hierárquico
segundo alguns, despótico – 5.200
casas. 25.000 mortos. Hoje mais de 100 anos depois o sertão de Canudos continua
abandonado, ali onde a imagem da virgem santíssima, segundo a lenda, chorou
sangue. Esse açude é bebido, lava e rega.
Conselheiro foi contra o casamento civil que veio
com o advento da República do Brasil
(quando a Igreja separou-se do Estado). Mas também não propôs “reforma agrária
violenta”. Simplesmente ele tirava da mão de obra barata, o “vigor do negro e a
virtude do branco” e dos mestiços.
O povo de Canudos era grandioso, nobre, heróico,
mesmo que a metrópole o desdenhasse numa época (fim do século XIX) que o Brasil
vivesse 85% no campo, a modernidade no Brasil sempre foi autoritária.
“Os
Sertões”,publicado em 1902,foi a grande aventura literária de Euclides da
Cunha.
O Escritor
Peruano Mário Vargas Llosa escreveu também a história de Canudos em “A
guerra do fim do mundo” (1981) onde reafirmou que os jagunços não tinham
outra cultura além da religiosa e regional.
SOBRE EUCLIDES DA CUNHA ,O CARIOCA
Euclides
tinha 31 anos em 1897,quando foi para Canudos cobrir a guerra,como jornalista.
Fora criado por tias (e órfão de mãe) No Rio estuda
no Colégio Anglo-Americano. Vai para (Escola Militar) quer ser Engenheiro
Civil, mas sofre influencia de seu primo e influenciado pela posição social que
os militares gozavam no período pós
“guerra” do Paraguai vai estudar Engenharia Militar e arvora-se a escritor
abolicionista e republicano. Publicando poemas e críticas(um dos seus alvos é a
“deplorável infecundidade” dos críticos literários da época). Atrevendo-se a
criticar o ministro da Guerra (ele partiu a espada na frente do Ministro e foi expulso do exército).
Junta-se a Júlio Mesquita (dono de um Jornal) e quando é proclamada a República do
Brasil, ele volta ao exército, faz curso de artilharia, já é segundo tenente.
Casa com Ana, filha do homem que entregou a ordem de despejo da família imperial.A esposa no futuro será causa da sua
desgraça:para vingar o adultério ele morre em duelo, do mesmo modo seu filho
assim sucumbirá.
Euclides é bacharel em matemática, ciências físicas
e naturais. É um positivista/naturalista. Um funcionário público (com as
implicações que isto traz) e chega a ser capitão (os jagunços de Conselheiro
que o aguardem). A ânsia de participar ativamente
da realidade leva-o a publicar dois artigos no estado baiano de fim de século.
Se compararmos o fato que Euclides sofria dispepsia
(dificuldade para digerir) com a negação que Euclides faz de si mesmo ao
criticar os mestiços, com fato dele ser traído pela mulher e interessar-se por
problemas públicos, e com o poeta lacrimogêneo,que foi, fisgaremos deste
emaranhado o Euclides que olhava para a incultura esmagada pela fé de Antônio
Conselheiro (chefe religioso/político de Canudos). Vemos Euclides como um
Homero. (Prosador). Seu painel é menos rico, é certo, mas com “magnificência
dramática” e “riqueza” de reconhecimentos espirituais”, como enfatizou Stefan
Zweig.E lá no fundo:frustrado,traído.
Como Euclides, Antônio Conselheiro viajava muito, também foi traído pela mulher e exerceu
diversas profissões. Nosso autor biografa o beato como decadente e “infeliz” em penitência “demorada e rude”, “fantástico
e mal-assombrado” capaz de emudecer “vielas festivas” no sertão (onde a “sociedade
primitiva” compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres). Seu
temperamento delirante, “desvairado”, “insano,monstruoso e autômato”, fez de
Conselheiro um “agente-passivo”, no interior de Pernambuco onde passou muito
tempo arrastando-se com seus
escritos. Um asceta (só pedia o necessário para sobreviver, em esmolas)
solitário, dormindo no chão ou em “tábua nua”. Euclides diz que os primeiros discípulos eram gente avessa ao trabalho, vencida da vida, “rapina”. E
Conselheiro uma “múmia”, inteligente,
mas “sem cultura... imerso no sonho de onde não
mais despertaria”.
Foram 15 anos de penitência e angústias recalcadas. A pele seca cobria a carne morta anestesiada
pela dor. “Um estóico” bufão a dizer que a igreja romana obedece a Satanás. O amor
em canudos era livre (quase extinção do casamento), mas cons. casava e batizava
(o cristianismo voltando ao seu berço judaico?) o povo segue o “rabino” e deixa
os padres de boca aberta e igreja vazia.
Conselheiro como dominador incondicional de Canudos,
incitou o povo a não pagar impostos .
Canudos
tem esse nome por causa de um vegetal que crescia à beira do rio e o povo usava
para fazer estranhos cachimbos. Conselheiro muda o lugar em 1893,
transformando-a na “Tróia de Taipa”
(lembrem-se de Homero). “A urbs”
monstruosa de barro, a civitas
sinistra do enfoque surgiu “já feito
ruínas”. Feita por um povo que largou de qualquer jeito tudo que tinha para
seguir Conselheiro. “Como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente uma
noite, por uma multidão de loucos” ,traduzindo a “decrepitude da raça” expressa
até em “Santos africanizados e Maria Santíssimas feias como negras”.
O Clã de Conselheiro vivendo sob
“a preocupação doentia da outra vida não cogitava instituições garantidoras de
um destino na terra. Canudos era o cosmos.”
Comunidade absoluta de terra. Amor
livre entre os matutos “crédulos e
iludidos” (?).Sinistros heróis da faca. A cadeia em Canudos era guardada por
assassinos que vigiavam os presos, em sua maior parte gente que não que
não rezou direito ou tomou aguardente:
Na igreja (“Monstruosa”), de um “gótico rude”,
prostitutas e donzelas nivelavam-se, negro e branco, ex-rico com miserável em
comunhão num Ângelus incrível de Kyries e genuflexões: “Galvanizados por
um doido”. Enquanto o resto do Brasil entrava polidamente na civilização
republicana. (1894)
Os rudes poetas de Canudos rimavam “desvarios em
quadras incolores” (sempre segundo Euclides da Cunha) excomungando a República
Demoníaca. Os mortos eram como que “desertores do martírio”.
O Brasil malsinado de
indisciplinados heróis, disciplinou o (louvar o cangaço é louvar a máfia). É
esta mais ou menos a visão do leitor euclidiano que ao mesmo tempo é como
atraído pelo potencial bélico do nosso oprimido povo. Mas o braço dos ricos
sobrepõe-se altaneiro, à esquerda e à direita.
Para os matutos a tática da fuga
“estonteadora”. Só os dividindo o exército venceu quilombos e revoltas.
Enquanto isso o sertanejo qual “titã bronzeado fez vacilar a marcha do
exército. E Euclides sai negando a produtividade de Canudos e enfeitando sua
narrativa com comparações esdrúxulas” e excessos de adjetivos para louvar os
canhões do exército republicano em repentino deflagrar de tiros.
Os soldados (que bebiam qualquer
água imunda). Morriam matando os ditos sanhudos,
bárbaros ardilosos” que caíam qual “Dédalos rasgados”. Euclides esbanja o termo
“psicologia” em sua narrativa.
Na segunda expedição os soldados carregaram bomba
artesiana para aproveitar lençóis líquidos.
Conselheiro: evangelista “humílimo e formidável”.
Um feiticeiro na natureza imóvel, no “fastígio da montanha sem uma flor”
enfrentaria as tropas do governo descrito por Euclides com humor detalhista, ou
horror.
Quatro
expedições foram necessárias para arrasar Canudos “o último espantalho monárquico” um dos batalhões tinha o nome de
“Frei Caneca” (!).
Euclides comparando Conselheiro chama Padre Cícero (que tentou ajudar Conselheiro)
de “Heresiárca sinistro”.Os soldados,
fujões ou dedicados são reversos desta medalha, títeres do poder que salva,
deitavam-se na “mais niveladora promiscuidade” enquanto voavam milhões de
balas.
“E assim iam-se os dias, nesse intermitir de
refregas furiosas e rápidas, e longas reticências de calma, pontilhadas balas”.
(4ª expedição).
O Arraial era inatingível (aquela tapera babilônica
(para o exército: raiz de umbu, rapadura, eram “iguarias santuárias”, um
cigarro “um ideal de epicurista”).
Descia a noite, Canudos (“O
inimigo traiçoeiro”) se acendia e pelos
descampados ecoava o toque da Ave-Maria sobre a seca que já dava sinais em
julho;
[Soldados arrasariam Canudos com canhões]
Um litro de farinha para sete “praças” e um boi
para um batalhão.
Lá estava Dantas
Barreto frente ao sertanejo que defendia o lar invadido.
10 de agosto de 1897: 2049 soldados mortos.
Soldados: “essas máquinas de músculos e nervos
feitas para agirem mecanicamente” ,sob a “ pressa inflexível das leis”
Os espinhos inchavam os pés.
Se o sertão tem 377 páginas,
Euclides só entra em cena na 277.
“Soldados são heróis”.
A figura de Conselheiro desaparece por mais de 100
páginas [o judaísmo é usado como comparação]. O perfil judaico .
Cirurgiões, jornalistas e estudantes chegam a
Canudos.
Setembro de 1897: derrubadas, as duas torres da
igreja nova, Canudos já parecia uma “necrópole antiga”.
Do lado dos militares os estudantes riam e contavam
anedotas (“férias forçadas”) – a vida normatizara-se naquela anormalidade”, toda agente já
se adaptara à situação” .
22 de agosto: morrera o Conselheiro, vítima de um
estilhaço de granada. Morreu de “bruços, afronte colada à terra, dentro do
templo em ruínas”. (“Aconchegando ao peito uma cruz de prata”).
Dizem que ele teve ataque de disenteria.Isso o
teria matado.
Seguem-se degolas estripamentos do povo de canudos.
Um raro negro puro de Canudos (“Espigado e seco”)
cabeça lanzuda, cara exígua, nariz chato sobre lábios grossos, dentes oblíquos
e saltados” parecia um “orango valetudinário”. Euclides é racista:“Era um
animal, não valia a pena interrogá-lo (naturalismo exacerbado, formação
positivista atuando).
Uma mameluca,quando interrogado respondia “sei
não”, ou, “e eu sei?”(Tal “bruxa” foi degolada)
Aquilo não era campanha, era vingança(contra
velhinhos e crianças).A base comum a opressor e oprimidos:os instintos
inferiores e maus.
Os prisioneiros eram obrigados a cavar o próprio
túmulo.
1º de outubro últimos tiros, “o último trecho de
Canudos arrebentava todo”.
A cidadela não se rendeu.
Exumaram Conselheiro.Cortaram sua cabeça e levaram
para o litoral.
As reportagens de Euclides foram publicadas em
livro em 1902.
Estranho centenário.Notável Canudos, dos Sertões de
Euclides.
O ESTILO GILVAN LEMOS
Gilvan Lemos, autor de
linguagem expressiva e vigorosa das mais possantes nos anos 60/80 do nosso
insosso panorama intelectual brasileiro, é legítimo herdeiro da prosa
Regionalista da geração de 30, revitalizando-a
com a contemporaneidade de seu estilo.
Características:
• Espontaneidade
nos diálogos.
• Segurança
ao fixar ambientes e tipos.
• Cria
climas densos, dramáticos, misteriosos.
• Critica
a passividade do povo do interior diante da opressão.
• Não
se preocupa muito com a chamada “cor local” , isto é descrição de paisagens, o
que só é feito para integrá-las ao lado da construção psicológica das
personagens.
• Zomba
de “estrangeirismos”, e mesmo dos
intelectuais do “sul”
• Critica
a esquerda e a direita num ceticismo que atinge até o anticlericalismo.
Livros
Publicados:
NOTURNO SEM
MÚSICA - Romance , Ed. Nordeste,
Recife/l956 . Prêmio Secretaria de Educação de Pernambuco.2ª edição pela Ed.
Bagaço, Recife 1996.
JUTAÍ MENINO
- romance, Edições O Cruzeiro, Rio/1968. Prêmio Orlando Dantas, Diário de
Notícias , Rio . Prêmio Olívio Montenegro UBE -PE. 2ª edição pela Ed. Bagaço ,
Recife/1995.
EMISSÁRIOS DO DIABO - romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/1968). Prêmio
APL. 2ª edição, Editora 3, São Paulo/1974, incluído na coleção Literatura
Brasileira Contemporânea. 3ª edição - Ed. Mercado Aberto, Porto Alegre /1987.
O DEFUNTO
AVENTUREIRO - Contos, Ed.
Universitária, Recife/1974. Menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego, da Ed.
José Olympio, Rio.
A NOITE DOS
ABRAÇADOS - novelas, Ed. Globo,
Porto Alegre/1975.
OS OLHOS DA TREVA
- romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio/1975. Menção honrosa do Prêmio José
Condé, Recife. 2ª edição - Círculo do Livro, São Paulo/1983.
OS QUE SE
FORAM LUTANDO - Contos,
Artenova, Rio/1976.
O ANJO DO QUARTO DIA - romance, Ed. Globo, Porto Alegre/1976. Prêmio Érico Veríssimo.
2ª edição - Ed Globo, São Paulo/1981).
OS PARDAIS ESTÃO VOLTANDO - Romance, Ed. Guararapes, Recife/1983.
MORTE AO INVASOR -
contos. Ed. Francisco Alves, Rio/1984.
A INOCENTE FACE DA VINGANÇA - Contos, Ed. Estação Liberdade, São Paulo/1991.
O MAR EXISTE -
Novelas (incluídas no livro acima).
ESPAÇO TERRESTRE -
Romance, Ed. Civilização Brasileira, Rio 1993.
ENQUANTO O RIO DORME - novela, Ed . Bagaço , Recife/1993. (Uma das novelas
de “A noite Dos Abraçados”).
CECÍLIA ENTRE OS LEÕES - romance, Ed. Bagaço, Recife/1994. 2ª edição, pela
mesma editora, em 1998.
NEBLINAS E SERENOS -
novelas, Ed. Bagaço, Recife 1994. (duas novelas de “A Noite dos Abraçados”). 2ª
edição 1995.
A LENDA DOS CEM -
romance, Ed Civilização Brasileira, Rio/1995.
MORCEGO CEGO -
romance, Ed. Record, Rio/1998.
ARIANO SUASSUNA:
O criativo e polêmico mestre das Letras no Nordeste.
“Eu vi a Morte, a moça Caetana,/ com o manto negro,
rubro e amarelo./ Vi o inocente olhar, puro e perverso,/ e os dentes de Coral
da desumana / Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel(...) Ela virá, a Mulher
aflando as asas,/ com os dentes de cristal, feitos de brasas (...) só assim
verei a coroa da Chama e Deus, meu Rei, / assentado em seu trono do Sertão”.
Ariano Suassuna (Sonetos: “A
Moça Caetana” e “A Morte”)
Uma análise da obra teatral
de Ariano Suassuna nos faz mergulhar nas nossas origens culturais. Num recuo
positivo em direção às sucessivas fontes que nos fizeram quem somos hoje: misto
de regional e universal.
Os primeiros colonizadores
trouxeram para cá a cultura européia, transmitida oralmente. Assimilada pelos
nordestinos, desenvolveram-se as influências ibéricas e mediterrâneas.
Uma das influências que
Ariano sofreu foi a dos escritores Gil
Vicente, português, e do espanhol Calderón,
ambos homens de teatro na época das grandes descobertas. Suassuna pratica o
entrecruzamento de textos, adaptando várias obras populares (do cordel ao
teatro europeu) ao seu modo. Conserva a língua popular, mas, com grafia e
correção gramatical eruditas. Prepara o espectador para uma moral conforme o
cristianismo. É muito comum em suas peças a cena de um “juízo
final”(juiz-acusador-defensor-réu).
Além de usar textos alheios,
recriando-os, Ariano pratica a intertextualidade, refazendo cenas de suas
peças(exemplo: “O auto da Compadecida”) e enxertando-os em outras (em “A pena e
a lei”).
Suas fontes vão de Shakespeare até a Bíblia. A
intertextualidade (“comunicação entre textos”) era prática comum desde a Idade
Média. Ariano a mantém, utilizando o cordel, o bumba-meu-boi, o mamulengo e
também mistura o popular ao erudito (Cervantes,
Moliére), fazendo tudo às claras, muito bem explicado em prefácios,
palestras e aulas.
PEÇAS PRINCIPAIS:
O AUTO DA COMPADECIDA (1955):
Como sabemos, um “AUTO” é o teatro medieval de alegorias(pecado, virtude,
etc.). Personagens como santos, demônios. É um teatro de construção simples
,ingenuidade na linguagem, caracterização exacerbada e intenção moralizante,
podendo conter o cômico. Para escrever esta peça, Suassuna baseou-se em
folhetos populares - primeiro e segundo atos baseiam-se em, respectivamente, “
O Enterro do Cachorro” e “A História do Cavalo que defecava dinheiro “, textos
de Leandro Gomes. O terceiro ato é uma mistura de “O castigo da sabedoria”, de
Anselmo Vieira e “A peleja da alma”, de Silvino Pirauá Lima. A invocação de
João Grilo à Maria e o nome “Compadecida” também são inspirados em textos
populares. João Grilo é o herói picaresco, passou fome e mente para ganhar o
que quer, seu amigo Chicó também é mentiroso. A infidelidade da mulher do
padeiro, a mesquinhez deste, o anticlericalismo e o cangaço são analisados por
Suassuna num julgamento presidido
por Maria, Jesus (negro) e atiçado
por uma figura diabólica. No final, João Grilo volta à vida depois de morto.
A FARSA DA BOA PREGUIÇA
(1955): Escrita em versos livres, tem trechos cantados. Cita a Bíblia e Camões,
poeta da Renascença portuguesa. Cada ato tem uma certa independência um do
outro (“O peru do cão coxo”, “A cabra do cão caolho” e “O rico avarento”). A
inspiração de Suassuna desta vez recai sobre a arte do mamulengo, teatro de
bonecos do Nordeste, com suas pancadarias e mestres,
sua trama simples, como por exemplo, o patrão sempre é culpado. A história do
diabo que quer levar uma mulher e um homem para o inferno. A exploração do
homem pelo homem. A falta de caridade , a preguiça, a prova imposta à mulher, a
vitória, seres celestiais disfarçados de pedintes e seres infernais oferecendo
o pecado são temas que mais uma vez nos remetem à referida simplicidade
medieval que apontamos no início deste estudo.
O CASAMENTO SUSPEITOSO
(1957): É uma comédia de costumes. Trata do tema casamento por dinheiro. A ação
se passa na casa da matriarca de uma família, dona Guida. Travestimentos, cenas de pancadaria e sátira aos membros da igreja
e da justiça compõem esta peça. Cancão (figura tomada emprestada do
bumba-meu-boi) é o empregado esperto e também faz lembrar alguns personagens
das comédias de Molière (autor de comédias, francês).
O SANTO E A PORCA (1957), o
casamento da filha de um avarento. O “santo “ em questão é Santo Antônio e a
“porca” é um cofrinho, símbolo do acúmulo de dinheiro (tão protetor quanto o
santo).
A PENA E A LEI (1959): Aqui
Suassuna reaproveitou cenas de seus textos “Torturas de um Coração” e da
“Compadecida”, numa encenação que vai do boneco irresponsável ao ser humano
pleno diante de Deus (Benedito, Mateus, Cheiroso e Cheirosa intensificam o
cômico). A peça diverte mas também analisa as questões sociais: trabalho na
usina, reivindicações dos trabalhadores, companhias estrangeiras, fome,
prostituição em cenas curtas e de muita movimentação. A preocupação com a moral
está sempre presente e o trágico é diluído pelo cômico . São personagens
estereotipados. Suassuna também se utiliza das cantorias nordestinas.
RESUMINDO: a comédia da
antigüidade, o teatro religioso, a arte popular do Nordeste e seus folguedos
são as salutares influências deste mestre das letras que é o paraibano Ariano
Suassuna, Ex-aluno do Colégio Americano Batista do Recife (dos 10 aos 15 anos,
uma fase de sua vida que sempre recorda com saudade), professor de Filosofia,
foi secretário de cultura do governo Arraes
e que também é autor de três romances:
“Fernando e Isaura” (sobre um amor impossível”,), “Romance d´A pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e Volta”
.(Ed. José Olympio. RJ. 1970), sobre um poeta que na década de 30 sonha em
escrever um épico nordestino e acaba preso como comunista e “História d´O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao sol da onça
Caetana”, suas lembranças de infância e do pai, mescladas num sertão
mítico.
Ariano é fundador do
MOVIMENTO ARMORIAL , reafirmando no nordeste a influência ibérica, africana e
indígena.
A musicalidade dos textos de
Ariano é agreste. Sua poesia rebrilha à luz ardente do Nordeste.
“Não faço distinção entre a cultura popular e a
erudita. A cultura brasileira, a cultura popular brasileira, não está ameaçada
. Ela é resistente. Estão tentando matá-la, mas não conseguirão”, diz Ariano e nos convida ao deleite com pérolas do
cancioneiro ibérico, a arquitetura africana, as cores da África, textos de José
de Alencar, de Aluízio Azevedo. E é
no Romanceiro popular que Ariano mais se inspira. Nas novelas de cavalaria, nos
amores incríveis, nos heróis picarescos (zombeteiros) que permeiam as histórias
que o povo conhece. Ele chega a usar um mesmo texto várias vezes como base para
sua recriação. “A novela da Renascença é
picaresca. O personagem principal é a Fome”. Emigra para o Brasil o herói
pícaro ibérico, o astucioso que difere do opressor que é o lado ruim. Ao
comentar o Brasil antes de Cabral, Ariano reafirma nossa cultura milenar: “Existia teatro indígena antes da chegada
dos jesuítas. É absurdo centralizar a origem do teatro. O teatro japonês não
nasceu na Grécia. Tem outra origem. O teatro indígena é um teatro de máscaras e
excelentes figurinos e enredos fascinantes que envolvem sua religiosidade. Eu
queria que um cineasta brasileiro fizesse com este tipo de teatro brasileiro o
que o cineasta japonês Kurosawa fez
com o antigo teatro japonês, o teatro Nô e com o Kabuki. Injustiça social não é
base para a arte popular. Ela também não é primitiva. Os violeiros vêem
televisão, os artistas populares transformam as informações universais em
linguagem com temática local. Temos que fortalecer nossa cultura”. Para
isso, Ariano usa seus conhecimentos de Filosofia, História e Literatura,
trabalhando o belo de forma dialética, unindo-o ao cômico misturando o espírito
intelectual com a esperança no homem, fundindo nossa herança barroca com um
espírito neoclássico.
Análise do “Romance d´A Pedra do Reino” (1970): Ariano recheia seu livro “Romance d´ A Pedra do Reino”
com humor malicioso e exibe sua perícia na selva
das palavras. Mistura nobres e pobres num processo criativo ímpar. Os
colonizadores do Brasil aparecem como bravos que tiveram coragem de matar para
estabelecer novos rumos. Ariano traz para a narrativa suas experiências com o
teatro e a poesia, brinca com a metalinguagem,
expõe os “mistérios” da criação. O tema central do romance são as artimanhas de
Quaderna e a trágica história dos seus antepassados na cidade de São José do Belmonte, interior de Pernambuco. Ariano, através da narração
em primeira pessoa (Quaderna), descreve paisagens e situações alucinantes,
reinventa a cronologia, adapta fatos históricos à sua ficção (a magia das
grandes navegações, as cruzadas, os romances de cavalaria, as revoluções. Se
Alencar foi exuberante mas não ousou exibir um herói picaresco, Ariano, com seu
Regionalismo natural, busca as
interseções entre o popular e o erudito, misturando a poética aristotélica com
Romantismo e buscando o êxtase criativo num realismo que alguns intelectuais
rotulam de mágico, fantástico. O encatatório,
o mítico, o exótico vão delineando o espaço criativo que traça o painel do
sonho de uma monarquia de esquerda,
sonho que Ariano alimentou durante algum tempo. Obcecado em criar uma epopéia
nordestina, o narrador torna-se cômico e o recurso Deus ex machina (sobrenatural) surge para resolver as inquietações
da alma que perturbam a raça humana. Outro mito recorrente é o sebastianismo.
Podemos até arriscar em
julgar o discurso de Ariano como um discurso maniqueísta que recusa a
polifonia. Mestre na arte literária, ele criou um herói bufão numa espécie de
circo fantasioso e hedonista em busca de um sentido, de dignidade, num
emaranhado de “causos” alinhados por uma escrita competente que se utiliza do
pictórico (xilogravuras) para reforçar seu discurso que, no fundo, transforma o
interior de Pernambuco numa espécie de Camelot da caatinga, onde humor e malícia unem-se ao ingênuo, à lenda do
cavaleiro que enfrenta as instituições (representadas no texto pelo Corregedor)
e o imaginário supera o racional na reinvenção do passado histórico, através da
alquimia verbal típica de Suassuna que rompe a linearidade, enxertando a todo
instante várias tramas secundárias à narrativa central, numa colagem que
redimensiona a obra em pequenos contos. O julgamento de Quaderna é a espinha
dorsal do texto que vai buscar nos poetas populares (cordel e emboladores) suas
referências. Depois de trair seus amigos covardes, Quaderna busca a imortalidade através da Literatura,
quer ser fidalgo. Quer louvar sua estirpe. Tenta reiventar Homero, a sua Odisséia é
através do Atlântico nordestino e sua Ilíada
tem como palco o sertão, ali está a Onça Caetana (a morte, a vida, o amor, a
nacionalidade). Seres fantásticos pululam ao lado de personagens estilizados
numa narrativa explosiva recheada de situações absurdas.
Três Romances de Raimundo Carrero
DADOS BIOGRÁFICOS:
Nascido em 20 de dezembro de 1947.É jornalista, ficcionista, bastante
supersticioso e temente a Deus. Começou a escrever ainda como aluno interno no
colégio Salesiano do Recife. Em seus escritos objetiva aprofundar temas eternos
como “liberdade, igualdade e justiça”.
1. SOMBRA SEVERA:
Publicado em 1986( Editora
José Olympio), o romance traz o estilo de Carrero, este pernambucano da cidade
de Salgueiro, estampado por todas as páginas:
• A ANGÚSTIA DIANTE DA
INCOMUNICABILIDADE
• O ESTRANHAMENTO DIANTE DO
QUE É SIMPLES E COMUM
• IMPOSSIBILIDADE DE AMAR
COMPLETAMENTE
• ÓDIO POR NÃO SER
COMPREENDIDO
• A QUESTÃO DA FÉ
• AS ARBITRARIEDADES DO PODER
• ABORDAGEM PSICOLÓGICA
• O HOMEM DO CAMPO
• A CIDADE PROBLEMATIZADA
• CRÍTICA À INJUSTIÇA SOCIAL
Num dos seus livros
encontramos a seguinte epígrafe:
“Intuitivamente eu me agarro ao abismo” (Murilo Mendes). Existe um certo
fascínio na obra de Carrero em retratar a decadência humana em sua busca de
esperança. A desgraça psíquica afeta os personagens movidos por seus fantasmas
interiores, agindo como irracionais.
Três personagens dominam a
narrativa em terceira pessoa de “Sombra Severa”:
JUDAS - Irmão mais moço de
Abel. Prepara um caixão e pede que o irmão se finja de morto enquanto ele”
despista” seus perseguidores. Na verdade, Judas odeia o irmão e vai terminar
por esfaqueá-lo, dizer que ele morreu num acidente, casar com a mulher que o
irmão raptara (Dina).
ABEL - É perseguido pelos
irmãos da mulher que ama. Aceita fingir-se de morto no caixão. Enquanto isso,
Judas aproveita para violentar sua mulher dentro da capela, na fazenda JATI, de
propriedade de ambos.
DINA - Filha de Sara e Adão,
irmã de Jordão (Carrero adora nomes bíblicos). Depois de casada com Judas,
assume a identidade do seu amado assassinado, Abel, criando inclusive um clima
de incesto.
Resumo: A
inveja e o fratricídio permeiam esta versão da história de Caim e Abel. Judas é
obscurecido pela sombra do irmão , Abel, o “bom”, que não o deixará em paz nem
depois de morto, já que reaparece na figura de Dina travestida. Merece destaque
a fúria exposta pelo narrador quando descreve a morte do carneiro que Abel
ganhara do padrinho e que Judas, morrendo de inveja, esfaqueia e queima o
bicho.
Há algo de mórbido em
Raimundo Carrero. Algo de “casmurro” em vários de seus personagens. Quase não
há diálogo, o discurso indireto apossa-se da trama conduzindo a juízos sobre:
DEUS - (página ll4) “...era um ser incrível cercado de solidão-
a solidão dos abandonados da sorte, dos miseráveis que estendem latas vazias
pelas ruas, das mulheres que, enlouquecidas andam sujas pelas estradas. A
solidão do esquecimento completo e absoluto”.
AMOR - “ O amor é a inveja do outro: ama-se para roubar do outro a parte que
lhe falta” (P- 56).
CONCLUSÃO:
No final, como numa imensa alegoria, um bando de cães famintos invadem a casa
de Dina e Judas, ela os afasta. A seguir, vem a metamorfose definitiva de Dina
em Abel, de quem ela assume os trajes, o corte de cabelo e ... a identidade.
Judas tranca-se no quarto e Dina (Abel?) encara a luz do sol.
Rachel de Queiroz: “ Memorial de Maria Moura”
Rachel é polêmica a partir da
grafia do seu nome. Muitos autores preferem “Raquel de Queirós”, erroneamente.
Em 1992, a imortal lançou seu declarado último romance, o calhamaço
“Memorial de Maria Moura” (482 páginas
11ª edição. Editora Siciliano, São Paulo,1998). Uma narrativa ágil. Uma
trama cheia de aventuras folhetinescas. Rachel sempre flertou com o romance
popular.
Inicialmente, o romance tem
três núcleos de ação: O de Maria Moura, dos primos inimigos dela e o do Padre
José Maria (Beato Romão). Posteriormente surge o sub- núcleo Marialva e Valentim (com seus parentes mãe, pai e tio ,
no “circo”). Os últimos capítulos são narrados por Moura e pelo Beato que se
joga numa aventura suicida com ela.
Maria Moura mostra-se arisca
desde os primeiros momentos em que aparece. Manda assassinar o padrasto que a
assediava desde os tempos que a mãe dela era viva (a mãe se enforcou no armador de rede: “Sonho com aquela cara de
enforcada, a face roxa, os olhos estatelados, a ponta da língua saindo da boca”
diz a sinhazinha, assim chamam Maria, cuja história se passa na época da escravidão no Brasil). A seguir,
Maria trama a morte do assassino que ela mesma tinha seduzido para matar o
padrasto. Enfrenta a ganância dos primos Irineu, Tonho e sua mulher Firma, já
que a prima Marialva está mais interessada em fugir com um artista de circo de
olhos verdes iguais aos dela. Maria incendeia sua casa no sítio Limoeiro, que
fica próximo da Vila Vargem da Cruz. Foge com um bando de homens, que lembram
em tudo cangaceiros. Rachel diz que se inspirou em Elisabeth I, Rainha da
Inglaterra (1533-1603) para compor Maria.
Após a fuga do Limoeiro,
Maria e seu bando vagam pelas brenhas do sertão ao relento, sem tomar banho e
comendo o que aparecesse e aparecia muito pouco. Tudo com muito respeito e
dignidade: Maria é a “chefe” do bando e a maior parte dos jagunços são jovens,
sem ambição e querendo “aventura”, como ela mesma sugere enquanto ia se
enchendo do ouro que roubava, numa espécie de farra inconseqüente, até a metade
do livro. Tudo para ela vai dando certo. Arranchados com escravos fugidos,
Maria se estabelece por algum tempo junto à Lagoa do Socorro. Ela e seu bando
roubam e levam para lá.
Junta-se ao bando o ex-padre
José Maria, que recebe o nome de Beato Romão para fugir da culpa de um crime
que cometeu em sua última paróquia: matou o marido de sua amante, Isabel.
Rejeitada pelo marido e desejando um filho, ofereceu-se ao sacerdote, que
resistiu um pouco mas terminou engravidando-a. O marido volta, esfaqueia-a e
mata o bebê de seis meses no ventre da mãe. O padre, ao ver Isabel estraçalhada
e o marido atacando-o com a mesma faca, quebra-lhe um banco na cabeça,
matando-o.
Como vemos na primeira parte
da trama do livro, a autora não dá sinal de cansaço. Tudo é estimulante e
vigoroso. Ao ódio que cerca Maria, seus primos e o padre sobrepõe- se o romance
de Marialva (a prima de Maria) e Valentim (o artista de circo com quem ela
fugiu e casou).
Voltemos até o primeiro livro
de Rachel, “O Quinze”, escrito por uma jovem mal saída da adolescência e que
foi publicado em 1930, sobre a seca de 1915, da qual Rachel também foi
“retirante” (foi primeiro para o Rio de
Janeiro e depois para Belém, só regressando ao Ceará em 1919), tinha então
nove anos. Rachel nasceu em Fortaleza e lá ,em 1925 , concluiu o Curso Normal.
Atua como jornalista de esquerda, porém em 64 Rachel apoiou o golpe militar
desfechado pela direita elitista contra a esquerda radical.
Em “O Quinze”, alguns
personagens (Chico Bento, Dona Inácia e outros, como o afilhado de Conceição,
heroína da trama, moça um tanto quanto romântica que tem um namoro frustrado
com seu primo Vicente), têm como cenário o flagelo da seca, a miséria absoluta
de um povo sofrido e conformado. Empolgada com a literatura popular , Rachel é
vigorosa narradora, recheando seus romances com o modo de viver nordestino. A
vida é a coisa mais valiosa e o ouro, teoricamente, é objeto de perdição.
Injustiça é resolvida na faca ou por Nosso Senhor, assim é em Maria Moura. “A linguagem direta, límpida, fluente e
desafetada que, realizando o ideal dos homens de 22 , apontava um manejo seguro
e adulto do idioma”, escreveu Massaud Moisés. O instrumental lingüístico
que Rachel utiliza em suas narrativas culmina com o “Memorial...”. De volta ao
sertão, a velha dama realiza uma obra onde resplandece todo o seu talento.
Em “Memorial de Maria
Moura”(92), a autora utiliza- se do discurso polifônico (várias vozes). São vários narradores, porém o que se
pressente é que por trás deles esconde-se o pulso vigoroso da cearense e que os
diversos narradores, dentre os quais Maria (cada capítulo carrega o nome de um
deles) são como títeres da força reivindicativa de Rachel. Dentre os narradores
estão: o Padre José Maria, Irineu e Tonho (primos da Moura, o primeiro
solteiro; o segundo, casado com uma megera chamada Firma) e Marialva (prima de Maria que fugiu e
casou com um artista de circo, Valentim)
. A participação dos diversos narradores propõe uma certa ruptura com a
linearidade.
Outros personagens vão
ganhando destaque na trama: Duarte,
meio irmão dos primos de Maria e filho da ex- escrava Rubina, ajudou Marialva a fugir; os capangas de Maria: João Rufo,
antigo e fiel empregado do Limoeiro e “padrinho” da heroína, Zé Vicente, Juco e
outros.
No início, Maria confessou ao
Padre José Maria que ia mandar assassinar seu padrasto por ter abusado dela.
Após os crimes, Maria arrancha-se com Amaro e Libânia, na Lagoa do Socorro. A
miséria era absoluta. Maria assaltou umas pessoas e as coisas foram melhorando.
Comida e equipamentos vão fortalecendo Maria e seu bando. Com o estilo
folhetinesco nos são apresentados os colonizadores do sertão nordestino. Os que
resistem agem de maneira brusca , lembrando muitas vezes um comportamento
instintivo, atávico, onde o meio dita as regras. A Moura é o eixo, o ponto de
convergência, símbolo do poder e da ambição. No final do livro, apenas ela e o
Beato Romano narram. A narrativa em primeira pessoa vai impregnando o romance
de subjetividade. Maria desafia o poder masculino.
O Neo- Realismo aplicado nas
narrativas de “O Quinze” e “João Miguel” (ambientados no Ceará) exibe parágrafos curtos na transcrição de atos e
acontecimentos, o que também é corrente em “Maria Moura”, assim como o Regionalismo
que está presente nas suas peças de teatro “Lampião” e em “A Beata Maria do
Egito”. No romance “Caminho de Pedras” (1936), Rachel polemiza o Integralismo
em oposição ao Comunismo: a narrativa em terceira pessoa vai desnudando a vida
de um casal de esquerda. Outro destaque da carreira literária de Rachel são
suas crônicas.
Passada a ditadura Vargas,
Rachel assume espírito conservador
“identificando-se com a defesa passional das raízes do status quo; roteiro que
a aproxima de Gilberto Freyre, cuja
presença na cultura nordestina ultrapassou de longe, a área do ensaísmo
sociológico e incindiu diretamente na valorização das tradições, dos estilos de
viver e pensar herdados à sociedade patriarcal. De onde a nostalgia dos bom
tempo antigo que até recebeu o batismo de ciência: É a Lusotropicologia”, ensina-nos Alfredo Bosi. Além dos romances
citados Rachel escreveu: “As Três Marias” (1939), “Dôra Doralina” (1975) e
“Galo de Ouro” (1986). Além do Regionalismo, outro clichê sobre Rachel é a “narrativa de cunho psicológico e/ou social”.
Voltemos Ao “Memorial”: “Não sei bem se sou capaz de ver sangue
derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se
for tirado pela minha mão”. O que era mais importante para Maria, naquele
ponto em que ela falou do sangue, era o ouro. Maria se acha superior aos índios
e escravos, como vemos por exemplo na página 178: “... aquela negrinha ... bem que eu gostaria de ter uma bichinha
daquelas para mim ... e até que poderia ter pegado ela junto com as jóias”.
O livro tem passagens curiosas, como por exemplo, quando o padre José Maria
fala sobre as lembranças: “O homem feliz é o que não tem passado.
O pior dos castigos, para o qual só há pior no inferno, é a gente recordar. O
passado te persegue como um cão perverso nos teus calcanhares. Não há dia
claro, nem céu azul, nem esperança de futuro que resista aos assaltos da
lembranças”.
Já Maria busca construir seu
mito de mulher forte, decidida, fria e calculista, que no final vai desafiar o
perigo por não dar valor à vida (tudo que conquista , deixará para Alexandre,
filho de Marialva e Valentim): “Minha
idéia era meter na cabeça dos cabras e do povo em geral que ninguém pode
avaliar do que Maria Moura é capaz”.
Logo, Duarte, primo bastardo
de Maria, junta-se ao bando com sua mãe, a ex-escrava Rubina (eles moravam com
Irineu, Tonho e Firma). Maria começa a fabricar pólvora com a ajuda de Duarte,
que também se torna seu amante. Chega então Cirino, cujo pai paga para que ele
se esconda nas terras de Maria, a fim de fugir da perseguição por causa de um
crime. Cirino é louro e conquistador. “Rouba” Maria de Duarte e depois a trai
por ambição, ao que Maria vai responder mandando Valentim esfaqueá-lo no coração.
Maria, quando jovem, leu “A Vida do Imperador Carlos Magno e os Doze
Pares da França”, (um dos livros que
Ariano Suassuna usa na composição do Romance d’A Pedra do Reino. Aliás, ao
buscar inspiração em Elisabeth I ,
Rachel aproxima- se mais ainda do mestre paraibano e de sua visão mítica da
história antiga européia). Maria Moura refere-se a sua Casa Forte como se
fosse um castelo.
Ao saber que o Beato Romano
(Padre José Maria) está evangelizando seus capangas, Maria fica preocupada: ”O senhor quando me procurou, não sabia
qual era o nosso meio de vida? Não vá longe demais. Se minha cabocrina se
converter? Virar tudo penitente e sair tocando matraca- o que é que eu faço?”
Maria acha que o “Não matarás“ dos mandamentos sagrados é uma coisa
relativa.(p-369).
Sozinha no seu quarto, Maria
chora quando está longe de Cirino: “Te
aquieta Maria Moura. Você não é mulher de chorar, nem mesmo escondida (...)
cadê o cabecel desses homens todos, que comanda de garrucha na mão e punhal no
cinto?” . Pensa, porém, em entregar tudo que tem para o amado. Observar que
não mata ninguém, ela manda matar, durante todo o romance.
Ao descobrir que Cirino traiu
a casa forte, Maria chora com tanta fúria que chega a rasgar o lençol com os
dentes (p-404). Cirino traiu Maria porque “era ruim”, por dinheiro de Judas.
Rachel intensifica o código de honra proposto pelo Romantismo: “O meu mal era aquela grande fraqueza por
ele que eu sentia. Eu gostava de comigo
chamar aquilo de amor. Mas não era amor, era pior .Não era cio (...)E eu me
imaginando tão forte, tão braba. Era afronta - Era para acabar comigo (...)
aquele coisinha ruim (...) solapar os alicerces do meu castelo! (...) por amor
dos trinta dinheiro de Judas! E eu adorar um desgraçado desses, abri para ele o
meu quarto, a minha cama, o meu corpo. Foi humilhação demais. Se ainda soubesse rezar, rezava, tão
desesperada me sentia. (...) Como é que vou acabar com o Cirino, sem acabar
comigo? (...) Como posso arrancar o coração para fora? Ninguém pode fazer isso
e continuar vivo. E se me matasse com ele? (...) Não. Eu quero morrer na minha grandeza“, lamenta-se Maria que,
resgatando Cirino da cadeia, diz: “Quem
segura os presos ricos na cadeia (Cirino era rico) é o medo de serem mortos pelos inimigos, mal ponham um pé fora”.
Maria estava tão acostumada
com a vida rude que aprendeu a comer e dormir enquanto cavalgava.
Levando Cirino para o cubico
(cômodo escondido na Casa Forte, cofre e esconderijo), depois de dias fazem
amor: “Foi um amor desesperado , furioso, que doía, machucava; amor de dois
inimigos, se mordendo e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse em
morte (...) Quanto tempo durou?-nos separamos exaustos (...) entendia que
no meio daquele desadoro, que eu tinha mesmo que matar Cirino . Entre nós dois
não podia mais haver solução. Se ele escapasse vinha atrás de mim para me
pegar. Não ia nunca me perdoar tinha que se vingar desta hora de humilhação.
Era impossível ele esquecer. Agora era ele ou eu” (Maria obrigava-o a ficar
trancado num cubículo e ameaçava-o com uma arma). “Fiquei atirada na cama, sem poder chorar, cega, surda, vazia por
dentro (...) não era dor propriamente que eu sentia, era mais um estupor que me
deixava dormente, numa espécie de meia morte (...) eu pensava às vezes que
estava a bem dizer igual à situação de Marialva, quando servia de alvo ao
marido” (Valentim era atirador de facas, treinava, no circo) “Só que o atirador de faca acertava sempre
em mim, mas sem me ferir mortalmente, só me
pegando pela pele me pregando na tábua, por toda a volta do meu corpo.
Escorchada e sangrando , eu ficava morrendo de dor, sem contudo morrer nunca“,
lamenta-se após mandar executar seu amado.
Ouro, pedras preciosas,
propriedades, sim, mas dinheiro de papel Maria não gosta. Quando aparece
Francelino para negociar gado - o sul do país em guerra precisava da charque
nordestina para alimentar soldados, Maria pretendia assaltar os negociantes - e
lhe mostra uma cédula impressa em letras pretas Maria recorda: ”Era muito feio. Fiquei desapontada.
Pensava que dinheiro em papel era de cor, com a cara do rei, assim como a
figura de santo (...) eu virei na mão a tal cédula. É. Não tinha graça nenhuma.
Ainda vai levar muito tempo para aquilo ser considerado. O mais certo é que não
vá pegar nunca. Quem troca ouro ou prata ou até mesmo cobre por um pedaço de
papel? Você quer é sentir a moeda pesando na tua mão” .
Para o último assalto, que Rachel deixa em suspenso e o leitor não saberá
o que aconteceu com Maria, seu bando e o Beato Romano, na sua mais arriscada
investida, quase como um suicídio coletivo- Maria não distribui riqueza com
seus cabras (“O povo é engraçado, cada
pessoa acredita no que quer e passa adiante o que entende”), guardou tudo
para si, deixando para Alexandre, filho de Marialva, sua prima carnal, tudo em
testamento. “Já tinha arma ali que dava
para fazer uma guerra (...) nos nossos entreveros, em caso de muita pressa, eu
preferia antes deixar o dinheiro que as armas (...) arma de fogo não se compra em mão de mascate nem em barraca de feira”, diz a Moura.
Duarte vacila, falando da
superioridade do inimigo, ao que Maria retruca: “Se eles correm a gente atira nas pernas dos cavalos, os homens rolam
no chão. E quando baterem em terra, já atordoados, já se está em cima deles. Eu
calculei tudo na minha cabeça. Fecho os olhos e vejo tudo como é que vai se
passar”. E quando o ex- amante pergunta sobre o risco de vida, ela
responde: “E eu estou me importando em salvar esta desgraça de vida, Duarte? (...)
Desça Deus do céu e me peça, que eu falto e faço que disse”. Já os cabras,
pressentindo algo de estranho naquela última batalha, pedem que o Beato Romano
vá junto na campanha:” Morrer não é nada,
mas sempre se morria mais satisfeito tendo ele junto para abençoar. Pra dizer ‘
Jesus seja contigo’ “, diz Zé Soldado, um dos principais jagunços de Maria.
O padre e Maria concordam.
Na partida da tropa, Duarte
diz. “Ainda está na hora de mudar de
idéia, Sinhá. Vai ser uma luta muito
dura, com esses homens traquejados para matar. Não é briga para mulher. E se
lhe matam?“. Maria responde olho no olho: “Se tiver de morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro
muito mais”.
E, nas duas últimas linhas da
narrativa (do romance), Maria arremata:”Saí
na frente, num trote largo. Só mais adiante segurei as rédeas, diminuí o passo
do cavalo, para os homens poderem me acompanhar”.
E Rachel de Queiroz localiza
o tempo em que concluiu, com maestria, seu último
romance, este “Memorial de Maria Moura”: Rio 22 de fevereiro de 1992- onze da
manhã.
Machado de Assis - Contos
A vida de Joaquim Maria
Machado de Assis (1839-1908) sempre é contada a partir do seu nascimento no
Morro do Livramento. Descendente de escravos por parte de pai, diz-se que ele
sempre procurou disfarçar sua mestiçagem da melhor maneira possível. Infância
pobre, órfão de pai e mãe aos doze anos. Publicou seu primeiro poema “Ela” aos
dezessete. Trabalhou na Tipografia e Livraria Paula Brito, onde conheceu vários
intelectuais (1858-tinha dezenove anos). O ingresso no funcionalismo público em
1867 e o casamento com Carolina, em 1869, que seria a revisora dos seus textos.
Em 1897 é eleito o primeiro Presidente da Academia Brasileira de Letras.
Muito já foi dito sobre o
grande mestre das letras nacionais: Que ele procurou ir além das aparências e
revelar ao leitor os “motivos secretos” das ações humanas, fazendo assim a
análise do mundo interior de suas personagens, investigando as causas profundas
do comportamento humano e, fazendo isso, mostrou que o homem é um ser volúvel,
mesquinho, interesseiro, que pensa apenas em si próprio e no seu bem estar.
Desde seu primeiro romance,
“Ressurreição”, publicado em 1872, até o último, “Memorial de Aires”, 1908,
Machado denunciou como poucos as armadilhas da vaidade, do egoísmo e da
violência.
Seu humor, pessimismo, ironia
“amarga e cruel” vão tecendo enredos onde ação e tempo perdem a importância, ao
mostrar a luta pela vida na qual o homem vai destruindo seus irmãos de forma
implacável para conseguir o que quer e no final deparar-se com o vazio. A trama
só interessa enquanto parte da análise feroz empreendida por um narrador
inteligente e perspicaz que busca a todo momento a cumplicidade do leitor (metalinguagem).
Foram nove romances. Os da fase romântica são:
“Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876), “Iaiá Garcia”
(1878). Os da fase realista: “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881),”Quincas
Borba” (1891), “Dom Casmurro” (1899), “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de
Aires” (1908).
Machado foi um hábil cronista
e um sofrível autor teatral.
Contos foram
mais de duzentos. Analisaremos alguns
deles:
1. “A Desejada
das gentes”:
Um conto sem narrador e com
parágrafos enormes. Lê-lo é como passear com Machado pelas ruas do Rio de
Janeiro na Segunda metade do século XIX. A narrativa ironiza a fé, o dinheiro e
a alma humana em geral. Machado é um homem materialista. É uma narrativa de
reminiscências (como nos romances “Memórias Póstumas...” e “Dom Casmurro”).
A “Divina Quintília” é evocada por um “Conselheiro”(titulo honorífico do
Império, sempre citado por Machado) que fala a um interlocutor, também sem
nome.
O tio da “Divina”
proibira-lhe o namoro, há muitos anos atrás, com o conselheiro, que o chama de
“velha alma aleijada “, pois este usa Quintilha como “muleta”. É um exemplo do
humor ferino de Machado .
“O que é a saudade senão uma
ironia do tempo e da fortuna?”, pergunta o conselheiro. Machado adora aforismos
(citações).
Ao descrever a Divina,
Machado zomba dos românticos: “Olhos noturnos, mas sem mistérios nem abismos.
Voz brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes,
quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso”.
A época é 1855-1859
Os Conselheiro cita o caso de
um companheiro de escritório que também quase se apaixonou pela rica e bela
Divina: os bens da moça “eram um dos feitiços dela”. Não “vamos divinizar o
dinheiro nem bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá
alguma coisa e até muita coisa”. O amigo levado pela tristeza e uma nomeação
foi ser juiz no sertão da Bahia, onde definhou e morreu.
O Conselheiro queria casar
com Quintilha. Ela olhou-o “espantada , como se olha para uma pessoa cujas
faculdades parecem transtornadas (...), pediu que fizesse dos meus sentimentos
pessoais e sem eco, uma página de uma história acabada”.
Se antes a impedira o tio,
quando o velho morre ela diz que tinha trinta e três anos e estava velha e que seria melhor continuarem
amigos e jurou-lhe: “Não casarei nunca”.
Machado desvenda os recantos
da alma feminina em Quintilha: “largamente e intimamente “.
Os ambientes são os mesmos de
outras narrativas machadianas. As mesmas ruas e bairros do Rio. Perpassam todo
o texto citações ao Romantismo. Quer seja o “Werther” de Goethe (romance sobre um jovem que se mata por um
amor não correspondido. Livro que deu origem ao movimento romântico) ou
mesmo frase melodramáticas: “Muitas vezes quis dizer- lhe o que sentia, mas as
palavras tinham medo e ficavam no coração (...), escrevi cartas sobre cartas”,
lamenta-se o Conselheiro.
A amada, como todos os outros
personagens no conto, além do Conselheiro e seu interlocutor sem personalidade
própria, não tem voz.
“A amizade que o Conselheiro
sentia por Quintília era a sentinela do amor. Não podendo mais contê-lo, deixou
que ele saísse “.
É amor platônico. Ela adoece,
uma “moléstia na espinha”. Ele cuida dela. No leito de morte, ela permite o
casamento. Diz o Conselheiro: “Não me relembre esta triste cerimônia; ou antes
deixe-me relembrá- la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou
recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril
de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril, ao pé da minha noiva
moribunda, e abracei-a a última vez, feita cadáver (“A desejada”?). Tudo isso é
muito esquisito. Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha que é de profano,
crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio
defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino”.
2. “Uns
Braços”
São três personagens: Inácio,
Severina e Borges. O primeiro é escrevente empregado no escritório de Borges,
que é casado com Severina, a dona dos braços que dão título ao conto. Braços
que “fechavam um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida” que
Inácio levava.
Num jogo de sedução e malícia
armado por Machado, é narrada uma história que se passa na Rua da Lapa, em
1870, Rio de Janeiro.
No início do conto vemos
Borges em sua residência quando “abarrotava-se de alface e vaca” durante o
jantar e detratava o pobre Inácio de quinze anos que vivia entediado por
executar tarefas tão estúpidas e corriqueiras e preferia apreciar os dotes da
esposa do patrão que, desconfiada, arma situações que comprometam o rapaz, por
quem sente até certa atração.
Severina, a esposa de Borges,
tem vinte e sete anos “floridos e sólidos”. Num jogo metonímico (a parte pelo
todo), a narrativa joga com o real e o insólito: “Inácio demorou o café o mais
que pôde. Entre um e outro gole, alisava a toalha, arrancava dos dedos
pedacinhos de pele imaginários, ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar,
que eram dois, um São Pedro e um São João”. Uma contraposição cômica diante de
um quase adultério.
Borges
a reclamar que “trabalhava como um negro” enquanto a noite caíra de todo; e a
esposa ouve o “tlic” do lampião de gás da rua., que acabavam de acender. O
“fedelho” sonhava em possuir a esposa do patrão e ela a devanear sobre aquele
“amor adolescente e virgem”. Está criado o “clima”.
“Dona
Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos
quando ria”.
Num
domingo foi ao quarto dele, que depois de observar o mar e as gaivotas,
adormeceu na rede a ler um folhetim barato. Ele sonhava com ela.
Dona
Severina não resiste. Vai até a rede e beija o rapaz na boca.
O
rapaz pensou que era um sonho. Dias depois Borges despediu-o: “Inácio saiu sem
entender nada”. Até os braços de dona Severina, que ele tanto admirava,
mantinham- se agora sempre cobertos com um xale.
“Estava
tão bem! Falava-lhe com tanta amizade!
Como é que de repente... tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum
olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera. Não importa; levava consigo
o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais afetivos
e longos, nenhuma sensação achou igual à daquele Domingo, na Rua da Lapa,
quando ele tinha quinze anos “.
Percebemos
neste conto o refinado humor do nosso Machado. Desmascara os personagens do lar
(marido e esposa), simplesmente introduzindo um terceiro elemento: um jovem
adolescente. Tece-se assim a teia que envolveria sua descrença na fidelidade
conjugal. Na família. Característica que permeia boa parte de sua ficção.
3. “Mariana”
Neste
conto-evocação, o narrador faz uma análise de um relacionamento amoroso que tem
como eixo uma senhora um tanto quanto misteriosa: a personagem-título.
Após
dezoito anos na Europa, Evaristo volta e procura antiga “namorada”. O ano é
1890.Ele estivera em Paris. Um repórter lá, havia perguntado sobre a “revolução
no Rio de Janeiro”. Como sabemos, Machado era funcionário do Império e vai
continuar assim na República, portanto seus comentários são sempre cheios de
sutilezas.
O
conto divide-se em três capítulos. O segundo é um delírio onde Evaristo, já na
sala da sua antiga amada, imagina tê-la outra vez entre os braços, a dizer que
ainda o ama muito (por causa dela ele “fugira “ do Brasil, para não sofrer
quando ela casou com outro) .
Na
verdade, ela o trata friamente no terceiro capítulo. Mesmo depois da morte do
marido, ela não quer saber dele, o que o deixa contrariado . Sendo assim, ele
prefere voltar a Paris, onde alguns amigos que na sua saída iriam estrear uma
peça, amargam o fim de uma temporada de retumbante fracasso.
Machado
faz uma reflexão engraçada: “Coisas de teatro. Há peças que caem(não têm bom
êxito). Há outras que ficam no repertório.”
Uma
sutil crítica aos sentimentais, aos românticos. Com direito ao ridículo das
lágrimas e arroubos de paixão.
4.
“A
Cartomante”
Amigo
de infância de Vilela, Camilo vai recebê-lo no porto quando o companheiro volta
ao Rio de Janeiro, casado, para abrir banca de advogado. Rita é bela e logo
inicia um caso de amor com Camilo.
Ela
freqüenta uma cartomante. O narrador diz que Camilo, como o próprio Machado, é
incrédulo e faz pouco caso das superstições de Rita.
Camilo
é o próprio burguês, dependente da mãe, que tudo fez para vê-lo um homem de
respeito. Com a morte desta intensifica-se a sua dependência em relação a Rita.
Porém, cartas anônimas começam a minar a confiança do rapaz.
Estaria
Vilela a par de tudo?
As
relações adúlteras davam-se na casa de uma comprovinciana de Rita.
“Há mais coisas entre o céu e a terra do que
supõe nossa vã filosofia”. Machado cita Shakespeare. As cartas se sucedem.
Camilo suspende as visitas. Vilela estranha. Camilo dá uma desculpa boba.
Um
bilhete na hora do almoço atrai Camilo à casa de Vilela. No meio do caminho um
acidente obriga-o, por coincidência, a para na frente da casa da cartomante de
Rita. Hesita, mas termina entrando e, após uma consulta cheia de revelações
sobre ele e sua amante, ele, que não acreditava em nada, sai confiante, quando escuta
a vidente acertar coisas sobre a vida dele e dizer que tudo continuaria bem,
que o marido de Rita não desconfiava de nada. Ao chegar na casa de Vilela este
o espera com uma pistola na mão: matara a esposa adúltera e então, atira em
Camilo. O leitor fica sem saber quem escrevera as cartas anônimas.
Novamente percebemos Machado
a analisar as relações humanas num mundo marcado pelo egoísmo , pelo cinismo.
5. “A
Igreja do Diabo”
“Conta um velho manuscrito
beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja”
(comparando-a a uma “hospedaria barata”).
Assim começa um dos mais ferinos contos de Machado: “A Igreja do Diabo”
(composto por quatro capítulos) seria o meio mais eficaz de combater as outras
religiões (Maomé, Lutero) e destruí-las de uma vez. Lá não haveria obrigações e
sim vinho e pão à farta.
No “infinito céu azul”, o
“Senhor” quer saber qual o propósito do Diabo: “Negócios mais altos”, responde
ele.
“Tudo que dizes e redizes
está dito e redito pelos moralistas do mundo”, insiste Deus.
“Nego tudo”, respondeu o
Diabo. E voltou à terra. Na sua igreja, soberba, luxúria, preguiça, avareza,
hipocrisia, ira, inveja (que supre o talento), tudo isso seria incentivado.
Toda as formas de respeito seriam condenadas. Quanto ao “amor ao próximo”, isso
seria “simples invenção de parasitas. Não se devia dar ao próximo senão
indiferença”. E o Diabo citava Galiani, padre napolitano:” Leve a breca o
próximo! Não existe o próximo!”. Só se a próxima for a mulher dos outros. Aí,
sim.
Sucesso: Logo todo mundo
queria fazer parte da igreja do Diabo. Como no capitalismo, onde o homem vende
sua força de trabalho ao patrão. Machado tripudia sobre o jogo de aparências na
classe burguesa que freqüenta igrejas.
A igreja do Diabo faz sucesso no mundo todo. Porém, para seu
desespero, alguns dos fiéis começam a freqüentar mesquitas, dar esmolas,
socorrer vítimas. O Diabo vai falar com Deus e perguntar a razão disso. E Deus
responde:” É a eterna contradição humana”.
6. “Missa do Galo”
Um dos contos mais discutidos
de Machado de Assis , foi publicado em “Páginas Recolhidas” (1899). Gira em
torno de uma insinuação de adultério.
O autor aproveita para alfinetar um costume antigo: a missa na noite de Natal.
Nesta, o marido está na casa da amante. A esposa (Conceição- Concepção? Nossa Senhora?. O autor gosta de trabalhar bem o
nome dos seus personagens, como em “Dom Casmurro”: Justina, Glória, José Dias,
Bento e no romance onde expõe a rivalidade entre irmãos “Esaú e Jacó”, nomes
bíblicos).
Oswald de Andrade já chamou-o
de “Machado Penumbra”. O fato de Machado ter sido dado como modelo de autor
perfeito incomoda os irreverentes , como o próprio Oswald também o foi, a seu
modo.
A Missa: Um jovem (“Senhor Nogueira” - dezessete anos) hospeda-se na
casa de um escrivão, “Chiquinho”, que já fora casado com uma prima sua. Está
armado o circo: Esposa insatisfeita busca a compreensão de um jovem, o narrador
provoca risos nos leitores. É quase meia- noite e o adolescente que é o
narrador (conta a história já velho, lembrando daquela noite) estava lendo “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre
Dumas, o que sugere um clima romântico.
“A família era pequena, o
escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas, costumes velhos”. Machado é seco,
brusco.
A obsessão pelo adultério é
repetitiva: O esposo “trazia amores com uma senhora, separada do marido, e
dormia fora de casa uma vez por semana”. Todos sabiam disso, inclusive nosso
narrador, que recorda de tudo. Conceição era chamada de “Santa”, ou então seria
como “maometana que aceitaria um harém”, contanto que as aparências fossem
mantidas. É a hipocrisia social. “Tudo nela era passivo”. Ela era “simpática” e
“perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar”. Porém
naquela noite, sob a luz do candeeiro de querosene, de modo insinuante,
Conceição, vestindo um roupão branco, compartilhou momentos sensuais com aquele
menino.
“Já leu A Moreninha?”, disse a mulher de vinte e sete anos, e o narrador
diz que ela fez isso “enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas”,
sem os tirar do narrador: E “passava a língua nos beiços para umedecê-los”.
O jovem tenta sair, mas ela o
detém: “Ainda é cedo”, diz exibindo partes do corpo, como no conto “Uns
Braços”, cujo tema é semelhante: Um jovem hóspede (virgem?) e um esposa
disposta a pecar :”Mamãe está longe,
tem sono muito leve; se acordasse agora ...”. Com essa conversa, nosso narrador
esqueceu a hora marcada com um vizinho para que saíssem para a tal missa do galo. Esqueceu também de outras
coisas que aconteceram naquela noite. Há impressões “truncadas ou confusas”.
Ela pôs a mão no ombro do rapaz”.
Na parede da sala, um quadro
representava Cleópatra. No oratório
uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, “minha madrinha”, diz a anfitriã.
Uma espécie de “sonho
magnético” envolveu os dois naquele momento: “a língua e os sentidos”. O
silêncio entre os dois era ardoroso e misturou-se ao silêncio da rua até que o
vizinho gritou: “Missa do Galo!” , quebrando o “magnetismo” sugerido pelo
narrador, que chegando na missa ficou inquieto: “A figura de Conceição
interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre”.
O jovem viaja para o interior
do Rio de Janeiro e quando volta o marido de Conceição havia morrido , vítima
de um ataque de apoplexia. Ela havia se mudado para o distante bairro de
Engenho Novo: “Ouvi mais tarde que casara com o escrevente do marido”. É a
alfinetada final do narrador.
Dias Gomes, Ferreira Gullar e Drummond:
A visão do social no teatro e
na poesia do Brasil.
Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador em 1922 e
faleceu num trágico acidente automobilístico ocorrido em São Paulo no final dos
anos 90.Em 42, estreou como dramaturgo com uma comédia: “Pé de Cabra”.
Seguiram- se : “Amanhã Será Outro Dia”, “Doutor Ninguém” e “Zeca Diabo”.
Dedicou- se ao rádio e à televisão. Em 1959, escreveu “O Pagador de Promessas”
(marco da dramaturgia nacional), peça que se transformou em filme dirigido por
Anselmo Duarte e venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, Dias
Gomes ganhou destaque nacional. Escreveu ainda “O Santo Inquérito”, “A
Revolução dos Beatos”, “O Berço do Herói”, “A Invasão”, “Meu Reino por um
Cavalo” e outras peças, sempre com temática em defesa da justiça social e
contra a opressão. Para a TV escreveu, dentre outras novelas, “O Bem-Amado”
(1973), “Saramandaia” (1975) e a censurada versão original de “Roque Santeiro”
(1976).
Em “O Pagador de Promessas”, vemos o personagem central, Zé do Burro,
um homem simples do interior, ingênuo e fiel aos valores em que crê (o misticismo é o irmão gêmeo da
ignorância e foi gerado no ventre negro da miséria e da exploração do homem
pelo homem), é levado ao desespero e à morte, traído pelo governo e pela
igreja, embora ajudado pelo povo: “Zé do
Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus de
costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a
faca vá cair no meio da praça. Zé do Burro corre e abaixa- se para apanhá-la.
Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiras caem
sobre os policiais para defendê- lo. Zé do Burro desapareceu na onda humana.
Ouve-se um tiro . A multidão se dispersa como num estouro de boiada. Fica
apenas Zé do Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda
um passo em direção à igreja e cai morto” (esta é uma das rubricas da cena
final da peça) . Tudo porque queria cumprir uma promessa religiosa, carregando
uma cruz até dentro da igreja. Ele e sua mulher(Rosa), depararam-se com
prostitutas e outros tipos na cidade de Salvador, onde a ambição desmedida, o dinheiro
e o jogo político colocam em xeque valores como amizade e dignidade humana. No
final, o povo coloca o cadáver de Zé do Burro sobre a cruz e entram todos na
igreja.
“O Berço do Herói”: Cabo Jorge é o nome de uma cidade. Este nome foi
dado em homenagem ao militar que morreu na Itália lutando contra os nazistas, “pagara com a vida o direito de ser livre.
Soldado da democracia, enchera de glória e orgulho o coração da pátria amada”.
A cidade vivia de sua memória (turismo). As datas do seu nascimento e de sua
morte eram pontos altos do calendário cívico de todas as escolas do Brasil até
que um dia o cabo reaparece. Na verdade, ele não morrera em combate. Fugira,
desertara. Depois do processo de anistia geral ele resolvera voltar à Pátria, à
sua cidadezinha. A tradição heróica
do exército não podia ser manchada por esta gozação. O comércio e a indústria
também sofreriam. Dias Gomes traça uma crítica ao poder militar brasileiro em
seus anos de chumbo(ditadura). No meio das prostitutas cabo Jorge conclui: “Parece que a única maneira de não desmentir
o boletim do meu regimento era eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só
que me falta coragem para isso. Sempre tive um medo danado de morrer. É tão bom
a gente está vivo. E melhor ainda é a gente está vivo e na terra da gente (...)
sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Tudo está suspenso por
um botão. O botão que vai disparar o primeiro foguete atômico. Este é que é o
verdadeiro herói. O verdadeiro Deus. O deus-botão (ri) E vocês ficam cultuando
a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades
que não pode Ter. Coragem, caráter, dignidade humana... não vêem que tudo isso
é absurdo? (O prefeito e o general continuam impassíveis). “Qual de nós você prefere, Cara de Anjo?”,
perguntam as prostitutas ao cabo Jorge. “Todas”, ele responde. As prostitutas
dão cachaça envenenada dentro de um coco, cabo Jorge, o “Cara de Anjo“, bebe o
líquido encomendado pelo Major e morre. As beatas chegam, apedrejam o bordel,
as prostitutas gritam: “Chupadoras de
hóstias! Beatas de uma figa! Estão é com falta de homem! Vão jogar pedra na
mãe!” A prostituta Matilde tem uma idéia: Corta a cabeça do cabo Jorge com
o vidro quebrado da janela e diz que foi uma das pedras que a beata jogaram,
que o matou. “Não morreu numa guerra de
verdade, pra vir morrer numa guerrinha besta de mulheres”, resmunga outra
personagem, enquanto o padre e o major decidem que não houve culpados na morte
do cabo, a cidade continuaria como era no início, antes do incômodo reaparecimento:”Assim
senhoras e senhores,/ foi salva a nossa cidade./ Com pequenos sacrifícios/ de
nossa dignidade,/ com ligeiros arranhões/ em nossa castidade,/ e algumas
hesitações entre Deus e o Demônio,/ conseguimos preservar/ todo o nosso
patrimônio”, sentencia o Major.
Em “A Invasão” Dias Gomes aborda o problema dos sem teto nos centros
urbanos. Um drama intenso e amargo. Ele investiga causas e conseqüências dos
nossos problemas sociais numa linguagem despojada e contundente. Aponta
soluções drásticas num país onde impera a desigualdade social e vive de politicagem. A peça é uma espécie de
crônica ao Brasil pós 64. Dias quer alertar o povo da necessidade ser
independente. Seu teatro não busca divertir os burgueses. É um teatro de
revolta, de amargura. Mesmo suas comédias são atravessadas por um ironia
mordaz. Ele despreza os clichês partidários. Nesta peça, os invasores de um
prédio, “favela do esqueleto”, o povo brasileiro oprimido e explorado por um
governo incompetente, dão vazão às suas angústias e anseios. A morte de Mané
Gorila, encarregado do despejo tem um toque de vingança da plebe rude. Um juiz
autoriza a permanência do grupo no prédio e tudo termina como num delírio.
“A Revolução dos Beatos”
também trata do tem dos subdesenvolvidos do Brasil. Um caso de histeria
coletiva em Juazeiro do Norte, Ceará, que segue Padre Cícero. A história de um
camponês, do misticismo à tomada der consciência social.
“ Meu Reino por um Cavalo “ é uma comédia caótica sobre um
dramaturgo em crise(Otávio Santarrita), questionando os valores sociais tidos
como
padrão e como absolutos. Caos , pessimismo, negatividade, no meio de um país absurdo, vão chateando Otávio que, em vez de ficar deprimido, começa a se divertir com o caos. A conformidade burguesa é questionada. O trabalho, a mulher, os filhos, as posições ideológicas, a amante, tudo gira numa seqüência absurda que, com linguagem inovadora, brinca com nossa miséria existencial.
padrão e como absolutos. Caos , pessimismo, negatividade, no meio de um país absurdo, vão chateando Otávio que, em vez de ficar deprimido, começa a se divertir com o caos. A conformidade burguesa é questionada. O trabalho, a mulher, os filhos, as posições ideológicas, a amante, tudo gira numa seqüência absurda que, com linguagem inovadora, brinca com nossa miséria existencial.
“O Santo Inquérito”: História de Branca Dias, torturada e
morta pela santa inquisição na Paraíba, Por ansiar a liberdade terminou na
fogueira: “Há um mínimo de dignidade que
não se pode negociar”, diz a mártir.
José Ribamar Ferreira Gullar nasceu em 1930 em São
Luís do Maranhão. Em 49 publicou seu primeiro livro de poemas “Um Pouco Acima
do Chão”. Em 54 lança “A Luta Corporal”, um dos livros mais discutidos de sua
geração, rico em pesquisas formais. Gullar foi um dos que falou no poema como
“objeto artístico. Em 56, participou da primeira exposição de poesia concreta.
Liderou o neoconcretismo (a teoria do
não-objeto). Abandonou o concretismo
e voltou a fazer o que se poderia chamar de verso “tradicional”. 1958 foi o ano
de “Poemas” e daí sua poesia social sobrepõe-sse aos seus experimentalismos com a palavra. Seguiram-se: “João Boa Morte,
Cabra Marcado para Morrer” (62, na fase mais politizada), “Dentro da Noite
Veloz” (75), “Poema Sujo (76-escrito no
exílio da Argentina, retrata os anseios do cidadão brasileiro , suas
esperanças, vitórias, derrotas. São versos “sujos”, disse o poeta) e “Na
Vertigem do Dia” (80). Escreveu também ensaios (“Cultura Posta em Questão”-63 e
“Vanguarda e Subdesenvolvimento”-69) teorizando sobre o engajamento do artista
no processo de evolução social, peças teatrais (foi parceiro de Dias Gomes
em “Doutor Getúlio, sua Vida e sua Glória”-68, e de Oduvaldo Vianna Filho em
“Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come”) e assinou roteiros para a
televisão, com o “intuito de manter viva”
sua poesia. Nesses textos seu lirismo borbulha uma espécie de poesia de
resistência, como faria também Chico Buarque.
Os versos de Gullar exibem
imagens brutais. É uma obra carregada de tensão psíquica e ideológica - contra
a repressão e por justiça. Denuncia os problemas na época da guerra fria (EUA x URSS), o racismo, o
drama dos países subdesenvolvidos, o cinismo capitalista, o perigo das armas
atômicas. Por outro lado, esse poeta do mundo também faz muitas vezes
referência à sua infância, aos seus parentes e conhecidos, ao cotidiano da
velha São Luís do Maranhão.
“Sou um homem comum, brasileiro, maior, casado, reservista / e não vejo
na vida, amigo / nenhum sentido, senão / lutarmos por um mundo melhor(...) O
latifúndio está aí matando (...) o chase bank (...) a nos sugar a vida / e a
bolsa(...) A sombra do latifúndio mancha a paisagem (...)somos milhões e homens
/ comuns / e podemos formar uma muralha / com nossos corpos de sonhos e
margaridas” (no poema “Homem Comum”, do livro “Dentro da Noite Veloz”).
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro de Itabira, foi outro
escritor que se dedicou ao conflito do homem com a causa social, mostrando que a solidariedade é um dos maiores
valores para o ser humano. Seu lirismo ao tratar o cotidiano e os problemas do
mundo é marcado por um humor fino, requintado, filosófico, às vezes. Sua obra
pode ser dividida em três fases:
1ª Fase: GAUCHE, “torto”: (“Alguma Poesia” em
1930 e “Brejo das Almas” em 1934) - Ironia, humor, poema-piada, síntese,
linguagem coloquial. Faltam saídas, daí só restar ao poeta a poesia, isto é, a
esperança. Há nesta fase gauche uma
espécie de “inexperiência do sofrimento e
deleição ingênua” com o próprio indivíduo, como afirmou o próprio Drummond.
Vejamos o poema-pílula “Cota Zero”: “Stop/
a vida parou/ ou foi o automóvel?”.
2ª Fase:
Individualismo nas contradições entre o eu e o mundo(“Sentimento do Mundo” em
1940, “José” em 1942 e “Rosa do Povo” em 1945) O Eu-lírico interessa-se pelos
problemas sociais e exibe sentimento de solidariedade numas poesia social, como
já dissemos. “Não, meu corpo não é maior
que o mundo./É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / Por isso
gosto tanto de me contar. / Por isso me dispo. / Por isso me grito, / por isso
freqüento os jornais, me exponho cruamente em livrarias: Preciso de todos (...)
o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias / entre o amor e o fogo, /
entre a vida e o fogo, / meu coração cresce, dez metros e explode. / - Ó vida
futura! Nós te criaremos.” (trecho de “Mundo grande”, poema do livro
“Sentimento do Mundo”)
3ª Fase: A
Poesia Filosófica (“Claro Enigma” em 1951, “Fazendeiro do Ar” em 55, “Vida
Passada a Limpo” em 59). Pessimismo, preocupação formal na construção dos
poemas (verso regular, soneto, seleção vocabular). Quanto ao conteúdo dos
versos encontramos ali o existencialismo: Vida / morte / velhice / amor /
família / infância / metalinguagem-metapoema, o questionamento da finalidade da
própria poesia.
Em “Lição das coisas”, 1962
percebemos a liberdade formal, neologismos, aliterações, sugestões visuais e
rupturas sintáticas (influências do Concretismo?).
Nos anos 70 e 80 (“Boitempo”,
“As Impurezas do Branco”, “A Paixão Medida”, “Corpo” e outros), sua poesia é
marcada por recordações: A infância em Itabira, a família. O humor cotidiano e
a auto-ironia permanecem.
Há também os livros póstumos:
“O Amor Natural”, publicado em 1992 (poemas eróticos) e “Farewell”.
Ascenso
Ferreira e Jorge Amado: O povo no poder!
Pernambucano nascido em 1895
na cidade de Palmares, Ascenso
Ferreira faleceu em Recife no ano de 1965.
Inicialmente preso aos moldes
parnasianos, assumiu o modernismo em 1922 e em 1927 lançou seu livro de poemas
“Catimbó”; em 1930 foi a vez de “Cana Caiana”. Em 1951, uma edição luxuosa contendo as duas obras citadas
e um terceiro livro “Xenhenhém”,
além de um disco com melodias para os poemas.
São poemas que pedem um
público ouvinte, daí dizer-se que sua poesia é mais para ser recitada e ouvida
do que impressa e lida.
Quem não ouviu Ascenso dizer,
cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar seus poemas, não pode fazer
idéia das virtualidades verbais nelas
contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor. Assim, em ‘Sertão´,
quando ele começa: ‘Sertão! - Jatobá! / Sertão! - Cabrobó ! / - Ouricuri!´.
A palavra ‘sertão´ é
pronunciada em voz de cabeça, como um prolongado grito de aboio, ao passo que
‘Jatobá´ e ‘Cabrobó´ caem pesadamente do peito, sinistramente escandidas
(separadas), evocando desde logo a caatinga. E o resto vem vindo quase
sussurrando, um recolhimento quase religioso(...), um sortilégio evocativo tanto pelo ritmo como pela musicalidade.
De repente, eis que o poeta
abandona o verso livre, o vozeirão catastrófico e assume o tom dançarino, a
cadência de quem vai pastoreando reses mansas: ‘Lá vem o vaqueiro, pelos
atalhos, / Tangendo as reses para os currais / Blém... blém, cantam os
chocalhos / Dos tristes bodes patriarcais.´
Esta passagem sem preparação
do verso livre para os metrificados constituem a característica da forma tão
pessoal de Ascenso.
‘É lamp ... é lamp ... é lamp ... / É Virgulino
Lampião ... / E O urro do boi no alto da serra, / para os horizontes cada vez
mais limpos, / tem algo de sinistro como as vozes / dos profetas anunciadores
de desgraças ... / - O sol é vermelho como um tição! / - Sertão! / Sertão!´.
“Ver e sobretudo ouvir Ascenso, é viver intensamente
no mundo dos mangues do Recife, do massapê e das caatingas, das cavalhadas,
pastoris, maracatus, vaquejadas (...) Ascenso identificou- se com o homem do
povo de sua terra mesmo quando este é o cangaceiro que a fatalidade mesológica
(do meio onde vive) marcou com o estigma do crime”, afirmou o recifense
Manuel Bandeira. O Sertão estava no sangue de Ascenso.
O poeta perdeu o pai aos 7
anos, numa cavalhada. Sua mãe, que fora abolicionista , foi sua única
professora durante anos.
Dos sonetos e baladas,
madrigais, até a poesia brincalhona, foi um passo. O “primeiro Ascenso” cismou
com o Modernismo de São Paulo, mas aproximou-se de Mário de Andrade e, claro,
de Manuel Bandeira.
Com Gilberto Freyre, Joaquim
Inojosa e Joaquim Cardozo fundamentaram o Regionalismo
Modernista em Recife.
Se o modernismo paulista
aderia aos modelos franceses e italianos, o recifense aproveitou somente o
verso livre, o humor, a linguagem coloquial, enfim, pouca coisa das vanguardas
de além-mar.
“O freguês que não bebe não é bom cristão! / Peia
nele, mestre Mateu!´ / E o coro canta em profusão: / `Se a aguardente era o
diabo, pra que bebeu? / Se o copo era grande, pra que encheu!´ (...) Se a
mulher era o diabo, pra que bebeu / essa jurema que é o beijo seu!“.
“Cana Caiana” é um frege que
lembra música popular, embolada. Uma poesia “estranha e doce” de um poeta
“legítimo”, como disse Luís da Câmara Cascudo, que relembra: Ascenso dava
risadas de “acordar os defuntos de Santo Amaro” (cemitério de Recife).
“- Viva o arco-íris (...) Vamos pegá-lo (...) fugiu
... / a chuva fina tem carícias de morte ... / Fugiu ... / Para o sul? Para o
norte / - Quem sabe! / Desapareceu ... / Além ... /Vida-Arco-íris também ...” (in “Arco-Íris “ do livro “Catimbó”).
Os engenhos de “fogo morto”, os
maracatus, a sensualidade da mulher pernambucana, a culinária, a lua, o mar, o
frevo, tudo isso mistura- se na poesia deste poeta de Palmares, cujo ritmo é
contagiante.
“O sino bate, / o condutor apita o apito, / solta o
trem de ferro um grito, / põe-se logo a caminhar... / - Vou danado pra Catende
/ Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / com vontade de chegar /
Mergulham mocambos / nos mangues molhados, / moleques mulatos, / vêm vê-lo
passar. / - Adeus, - Adeus / Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, /
Cajueiros com frutos / já bom de chupar ... / - Adeus, morena do cabelo
cacheado! / (...) Mangabas maduras, / mamões amarelos (...) o Pai- das Mata!
(...) a casa das Caiporas! (...) Meu deus! Já deixamos a praia tão longe ... /
No entanto avistamos outro mar ... (...) Cana-caiana / Cana roxa / cana-fita/
todas boas de chupar” (in “Trem das
Alagoas” de “Cana- Caiana”).
Jorge Amado
de Faria nasceu em Ferradas, município de Itabuna, Bahia, em 1912.Romântico e
sensual, este filho de plantador de cacau levou vida de boêmio no final dos
anos 20 em Salvador. Cursou Direito no Rio e publicou seu primeiro livro , “O País do Carnaval”, em 1931 (Resumo: Paul Rigger é um
intelectual brasileiro que se formou na Europa, adora o Brasil, mas não
consegue se acostumar novamente e volta para o velho continente).
Jorge torna-se “esquerdista”
e publica “Cacau”, 1933 (Critica a
exploração dos trabalhadores pelos donos das terras de plantações de cacau. O
romance busca agradar às massas populares).
“Suor”, 1934: Polícia persegue os trabalhadores dos bondes que
faziam greve. O cenário é Salvador e mendigos, malandros e meretrizes, tão
presentes em outras obras do mestre baiano, já aparecem nesse romance.
“Jubiabá”,1935: Antônio Balduíno, Baldo, órfão da periferia ,é
criado por ricos, mas prefere a rua. Briga para ganhar dinheiro. Trabalha como
agricultor, depois num circo e por fim torna-se operário, engajando-se na luta
por melhorias sociais. Jubiabá é seu pai-de-santo. Lindalva ,filha dos seus
pais adotivos, sua amada, casa com um homem rico que lhe desgraça a vida.
Em “Mar Morto”, 1936, Amado exibe sua devoção pela religião africana e
pela Bahia, terra mágica e poética.
“Capitães da Areia”, 1937: Meninos órfãos, ou que fugiram de casa
vivem no mundo do crime a dura realidade do litoral, do porto de Salvador.
Contravenções e maldades. O chefe é Pedro Bala, que de pequeno marginal,
conscientiza-se politicamente dos seus compromissos de cidadão que luta por uma
sociedade mais justa.
“Terras do sem fim” (43) e “São
Jorge dos Ilhéus” (44) têm como tema a região cacaueira da Bahia, a
ganância dos latifundiários. Lutas sangrentas, traições conjugais, coronelismo,
brigas entre estes “coronéis” e os exportadores e a falência dos produtores no
jogo do mercado inescrupuloso.
“Seara Vermelha” (46) tem
como personagem central um jagunço perigoso, Zé Trovoada, que é joguete das
forças conservadoras, os proprietários, contra as dos trabalhadores.
Em 1946, Amado era deputado
pelo partido comunista e exilou- se na Europa e Ásia. Quando voltou, publicou a
série “Os Subterrâneos da Liberdade”. Em
58, com “Gabriela, Cravo e Canela”,
é acusado de pieguice e de estereotipar seus personagens, cometer erros de
português ao imitar a fala do povo, além de abusar de palavrões. Entre fazendeiros,
exportadores e comerciantes, surge a retirante Gabriela, que se casa com Nacib
e trai o marido com Tonico Bastos, um filho de “Coronel”. Nacib a aceita de
volta mas, só como amante e empregada.
“Dona Flor e seus Dois Maridos” (67) também é uma crônica de
costumes, como “Gabriela”: Dividida entre o espírito do primeiro marido
falecido (Vadinho) e a formalidade do segundo (Teodoro), Flor vê sua vida de
quituteira transformada num “inferno”. Macumba e culinária na Bahia de Todos os
Santos. Sensualidade e malícia nos encantos de Florípedes.
“Teresa Batista Cansada de Guerra” (73) e “Tieta do Agreste”, são prostitutas. A primeira é levada ao
assassinato no meio de tanta injustiça social, e Tieta é um folhetim picante
sobre uma mulher que volta à antiga cidadezinha natal sem contar que é dona de
bordel na “cidade grande”.
Capitães da
Areia
Jorge Amado nasceu em
Itabuna, em 10/08/1912 e morreu em agosto de 2001.Sua trajetória é marcada pela
prisão por motivos políticos em 36/37, durante o governo de Getúlio Vargas e o
exílio em 41/43(Argentina) e após 47: França,Estados Unidos(!),União
Soviética,dentre outros lugares. Voltou ao Brasil em 52 e deu novo rumo à sua
carreira.Em 61 entrou para a Academia Brasileira de Letras. Dentre os seus
livros publicados estão: País do
Carnaval(31), Cacau(33), Suor(34), Jubiabá(35), Mar Morto(36),
Capitães da Areia(37), Terras do Sem Fim(43), São Jorge dos Ilhéus(44), Seara Vermelha(46), Os Subterrâneos da Liberdade (3 volumes:Os Ásperos Tempos,Agonia da Noite
e A Luz e o Túnel), Gabriela Cravo e
Canela(58), Dona Flor e seus Dois
Maridos(67), Tenda dos Milagres(70),
Teresa Batista Cansada de Guerra(73),
Tieta do Agreste(77), Farda,Fardão,Camisola de Dormir(79), O Menino Grapiúna(82).
Sua obra divide-se em:
Romances proletários (Cacau, Suor, País do Carnaval). Depoimentos líricos
(Jubiabá,Mar Morto,Capitães da Areia). Pregação partidária. Painéis da região
do cacau (Terras do Sem Fim,São Jorge dos Ilhéus. Crônicas de costumes
(Gabriela, Dona Flor, Teresa Batista, Tenda dos Milagres e Tieta). Amado
idealiza o negro e em Seara Vermelha volta-se para o banditismo(sempre como
efeito da miséria,do latifúndio). A linguagem é simples e oferece ao leitor uma
visão “crítica”das relações sociais (o homem se dissolve na massa que,às vezes,pode
ser o fascismo,o racismo, o stalinismo). A tensão é mínima e o conflito no
máximo é verbal, quando muito.Os personagens interagem com a paisagem e são
condicionados por ela. Jorge era filho de comerciante sergipano dono de terras
em Sergipe e na Bahia,daí sua fonte de inspiração.Foi influenciado por
Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz e fez literatura de propaganda
política,realismo bruto,influenciado por romancistas norte-americanos e
literatura russa. Boa parte dos seus personagens exibe atitudes românticas e
sensuais. Criou “tipos” inesquecíveis. Suas narrativas buscam a oralidade num
regionalismo quase apelativo e que depois foi permeado por palavrões e
oscilando entre a pieguice e a volúpia e entregando-se ao descuido formal.
Soube como poucos transmitir o Eros do povo. O romance Capitães da Areia narra
a vida de menores abandonados da Bahia,que vivem num barraco abandonado.O líder
é Pedro Bala,bom e corajoso (mais um estereótipo de Amado), João Grande (o
negro bondoso e forte, outro “tipo”), o Professor (“artista”), Pirulito
(místico e introvertido), Dora (jovem amante de Pedro Bala), Gato (elegante e
conquistador), Sem-Pernas (bom,mas revoltado por não ter um “lar”), Volta Seca
(afilhado de Lampião). São tipos quase caricaturais. A narrativa busca ser fiel
à realidade, ao abordar o cotidiano destes jovens que tentam driblar seu
destino miserável,sua angústia por não ter quem os proteja,a falta de comida,de
dinheiro,de amor,numa sociedade extremamente injusta que os persegue e quer
matá-los. A narrativa é ao mesmo tempo “crua e lírica” (poética). O narrador
joga a culpa nas desigualdades sociais,que levam ao crime e à marginalização. A
narrativa é intercalda com reportagens sobre o grupo dos “Capitães da areia” e
mostrando os menores do ponto de vista da burguesia bem situada. “O romance
sugere o contraste entre a humanidade e a sensibilidade das crianças e a
desonestidade das classes dominantes.Conduzindo a história em função dos
destinos individuais de cada participante do bando,Jorge Amado acaba por
mostrar que,à exceção de um ou outro (o Gato torna-se de vez um bandido;
Sem-Pernas morre fugindo da polícia; e Volta-Seca alia-se a Lampião), os demais
ganham consciência política,revolucionária e participam de movimentos
reivindicatórios”,diz o crítico Álvaro Gomes. A grande admiração do autor pelos
vagabundos inspirou-o na composição deste romance.Estes órfãos desamparados que
vivem na orla de Salvador, à custa de furtos e pequenas trapaças são como um
“desdobramento” do que ocorre Em “Jubiabá” (história da vida de Antônio
Balduíno,mostrando o povo colorido da Bahia,personagens pitorescos como o
pai-de-santo Jubiabá,que protege Baldo, que nutre paixão por Lindinalva,tudo
num clima sensual e apimentado) ,em que o herói ascende da marginalidade à consciência
política.
CONCEPÇÕES DO AUTOR SOBRE Capitães da Areia Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido,
a gíria de malandros, os rostos chupados de fome, vos pedirão esmola. Praticam
também pequenos furtos. Há quase oito anos escrevi um romance sobre eles, os
Capitães da Areia. Os que conheci naquela época são hoje homens feitos,
malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados
na polícia, mas capitães da areia continuam a existir enchendo as ruas da
cidade, dormindo ao léu. Não são um bando surgido ao acaso, coisa passageira na
vida da cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as
classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas.Os jornais
denunciam constantes malfeitos desses meninos que têm como único corretivo as
surras na polícia. Os maus tratos sucessivos.Parecem pequenos ratos
agressivos,sem medo de coisa alguma,de choro fácil e falso,de inteligência
ativíssima,soltos de língua,conhecendo todas as misérias do mundo numa época em
que as crianças ricas ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de Paris no
bico de uma cegonha. Triste espetáculo das ruas da Bahia, os capitães de areia.
Nada existe que eu ame com tão profundo amor quanto estes pequenos vagabundos,
ladrões de onze anos, assaltantes infantis, que os pais tiveram de abandonar
por não ter como alimenta-los. Vivem pelo areal do cais, por sob as pontes, nas
portas dos casarões, pedem esmolas, fazem recados, agora conduzem americanos ao
mangue. São vítimas,um problema que a caridade dos bons de coração não resolve.
Que adianta os orfanatos para quinze ou vinte? Que adiantam as colônias
agrícolas para meia dúzia? Os capitães da areia continuam a existir. Crescem e
vão embora mas já muitos outros tomaram os lugares vagos. Só matando a fome dos
pais pode-se arrancar à sua desgraçada vida essas crianças sem infância,sem
brinquedos, sem carinhos maternos, sem escola,sem lar e sem comida. Os capitães
da areia,esfomeados e intrépidos!
Sentimento
do mundo: a guerra de Drummond
“Esse incessante morrer / que nos teus versos encontro
/ é tua vida, poeta, /e por ele / te comunicas com o mundo em que te esvais. /
Debruço-me em teus poemas /e nele percebo ilhas / em que nem tu nem nós
habitamos / (ou jamais habitaremos) / e nessas ilhas me banho / num sol que não
é dos trópicos, / numa água que não é das fontes / mas que ambos refletem a
imagem / de um mundo amoroso e patético. / Tua violenta ternura,tua infinita
polícia, / tua trágica existência / no entanto sem nenhum sulco /
exterior-salvo tuas rugas, / tua gravidade simples, / a acidez e o carinho
simples / que desbordam em teus retratos, / que capturo em teus poemas, / são
razões por que te amamos / e por que nos fazes sofrer (...) Não é o canto da
andorinha, debruçada nos telhados da Lapa, / anunciando que tua vida passou à
toa, à toa / Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino, /
diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado (...) Não
são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite (...) és tu mesmo,é tua
poesia, (...) é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso
portador”.
Assim expressou-se Drummomd
quando Manuel Bandeira completou 50 anos (Ode no Cinqüentenário do poeta
Brasileiro-poema do livro SENTIMENTO DO MUNDO). O ano era 1940, marcado pela
segunda guerra mundial.
O novo livro de Drummond
trazia a necessidade de darmo-nos as mãos e sermos no futuro uma lembrança,como
um retrato na parede, porque o amor resultou inútil e olhos não choram. Porque
chegara um tempo em que não adiantava morrer. A vida? Uma ordem. Vida apenas,
sem mistificação.
Drummond tinha a História
como perspectiva,e dizia-se poeta de “ritmos
elementares”. Porém sua obra é uma espécie de suporte pra o viver, o
sobreviver e o morrer. Onde o Bem, o Belo, a Forma,a Estrutura, a Verdade, a
Realidade, o Indivíduo, as Pessoas, a Sociedade, o Canto, a Arte,o Artifício, o
Menos e o Mais, o Sim e o Não, giram em alegorias no cotidiano do brasileiro
simples.
O poeta de Itabira (MG) descobriu
também que o sentido da vida é o seu sem-sentido onde tudo se comunica: o real
e o imaginário de todas as épocas se misturam. Assuntos, motivos, temas,
tópicos que até então estavam banidos da poética aparecem na poesia dele numa
espécie de novo “viva o dia” (carpe diem), como frisou Antônio Houaiss.
Drummond é mestre da língua. Sua invenção da modernidade é uma postura que se
faz necessária, é pois um projeto de vida ou de carreira. Uma busca incessante,
onde Linguagem e Homem reinauguram-se. Sua busca da simplicidade, oralidade, é
característica marcante, particularizante. Suas utopias, sonhos, protestos,
indagações, enlaces, desenlaces, fazem dele um “corajoso desor-ganizador”. Ele
se escreve. Ele acusa o limite, não apenas entre o bem e o mal (que não existe,
é apenas um contraste do bem). Sua obra ”que
não foi construída segundo um projeto,a partir de intenções e fôrmas e/ou
formas externas- por exemplo a de `ser´ poeta, a de fazer um soneto, uma
sextilha ou um poema de vanguarda, sobre este ou aquele tema,segundo esta ou
aquela técnica”. “O amor truncado, que não chega a ser amor,mas que perdido
se revela amor que podia ter sido”. O humor dessa vida que continuará nos
outros, ou em “algo que talvez nem seja o
Outro, mesmo que não valha a pena: continuará”: “Onde o diabo joga dama com o
destino”. “Debruça-se o autor sobre o
próprio texto à medida que o elabora, inquirindo-lhe do cabimento, da
legitimidade, da propriedade das palavras. Uma atitude metalingüística. É o
cotidiano repetido num singular irrepetido. A técnica machadiana: espíritos
afins, em determinadas condições histórico-sociais, são levados ao uso de
técnicas de expressão afins”, ressaltou o mestre Houaiss. O itabirano foi
cristalizador do modernismo em sua plenitude cheia de crises, monstros e
utopias. Crise totalizante, porque planetizada num mundo “fomicizado” pela
mecanização “coisificante”, daí o conflito da mente do poeta com a realidade
total em que vivia, Luís Costa Lima afirmou: ”Drummond é o maior e último poeta modernista:seu riso corrói,dissolve
aquelas dissonâncias que são a regra da vida.Ele assume com a História uma
relação aberta”. Ele se opõe ao “fluir
sentimental de Manuel Bandeira,pois que não há piedade em si mesmo por uma vida
que podia ter sido e que não foi e cujos elementos de saudade se constituem,
assim, em força predominante de um poetar num infinito jogo de recursos para
enunciação do inédito. Uma lição de vida”. O livro “Sentimento do Mundo”
contém os seguintes poemas:
SENTIMENTO DO MUNDO
- o poeta é surpreendido pela guerra: ”Sinto-me
disperso, / anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. /
Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho (...) ao amanhecer / esse
amanhecer / mais noite que a noite.”
CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO - as lembranças da cidade-natal: “Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por
isso sou triste, orgulhoso: de ferro” (principal atividade da cidade) “A
vontade de amar,que me paralisa o trabalho, vem de Itabira (...) E o hábito de
sofrer,que tanto me diverte, é doce herança itabirana (...) Tive ouro, tive
gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas um
retrato na parede. / Mas como dói!”
CANÇÃO DA MOÇA-FANTASMA DE BELO HORIZONTE. - uma mistura de lenda e metáfora: ”Eu sou a Moça-Fantasma / que espera na rua
do Chumbo / o carro da madrugada / Eu sou branca e longa e fria / a minha carne
é um suspiro / na madrugada da serra / Eu sou a Moça-Fantasma / O meu nome era
Maria, / Maria - Que Morreu – Antes. (...) Eu nunca fui deste mundo: / Se
beijava, minha boca / dizia outros planetas / em que os amantes se queima / num
fogo casto e se tornam / estrelas sem ironia / Morri sem ter tido tempo / de
ser vossa,como as outras. Não me conformo com isso (...) Não sei como
libertar-me”.
POEMA DA NECESSIDADE - utilizando-se do recurso da anáfora (repetições), o poeta
anuncia o “fim do mundo”, num cotidiano frenético: “É preciso casar João, / é preciso suportar Antônio, é preciso odiar
Melquíades, / é preciso substituir nós todos. / É preciso salvar o país, é
preciso crer em Deus, / é preciso pagar as dívidas (...) é preciso colher
flores (...) É preciso viver com homens, / é preciso não assassiná-los, / é
preciso ter mãos pálidas / e anunciar o FIM DO MUNDO”.
TRISTEZA DO IMPÉRIO - a
relação irônica do modernismo com a História,prato preferido de Oswald,aparece
na poesia de Drummond: ”esqueciam a
Guerra do Paraguai (...) a dor cada vez mais forte dos negros / e sorvendo
mecânicos / uma pitada de rapé, / sonhavam com a libertação dos instintos / e
ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana,com rádio e
telefone automático”.
O OPERÁRIO DO MAR - o homem
do povo: “Para onde vai o operário? /
Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. / Ele sabe que não é, nunca foi meu
irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... (...) quem sabe se um
dia o compreenderei?”
MENINO CHORANDO NA NOITE - a
união entre seres humanos, flagrados em atitudes simples: “Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora. / O
choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça (...) E não há ninguém mais nesse
mundo a não ser esse menino chorando.”
MORRO DA BABILÔNIA - a gente
brasileira: ”Há mesmo um cavaquinho bem
afinado / que domina os ruídos da pedra e da folhagem / e desce até nós, modesto
e recreativo, / como uma gentileza do morro”.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO
MEDO - “Provisoriamente não cantaremos o
amor / ... depois morreremos de medo”.
OS MORTOS DE SOBRECASACA - “Havia a um canto da sala um álbum de
fotografias intoleráveis / alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
/ em que todos se debruçavam / na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca /
Um verme principiou a roer (...) Só não roeu o imortal soluço de vida que
rebentava / que rebentava daquelas páginas”.
BRINDE AO JUÍZO FINAL - “Em vão assassinaram a poesia nos livros
(...) Os sobreviventes aqui estão”.
PRIVILÉGIOS DO MAR - “Neste terraço mediocremente confortável, /
bebemos cerveja e olhamos o mar./Sabemos que nada nos acontecerá.”
INOCENTES DO LEBLON - “Os inocentes do Leblon/não viram o navio
entrar (...) tudo ignoram, / mas a areia é quente, e há um óleo suave / que lês
passam nas costas, e esquecem”.
CANÇÃO DE BERÇO - “O amor não tem importância(...) Mas também
a carne não tem importância (...) Também a vida é sem importância. / Os homens
não me repetem / nem me prolongo até eles. / A vida é tênue, tênue / O grito
mais alto ainda é suspiro, /os oceanos calaram-se há muito. / Em tua
boca,menina, / ficou o gosto de leite? /ficará o gosto de álcool? / Os beijos não
são importantes. / No teu tempo nem haverá beijos. / Os lábios serão metálicos,
/ civil,e mais nada, será o amor / dos indivíduos perdidos na massa / e uma só
estrela / guardará o reflexo / do mundo esvaído / (aliás sem importância).”
INDECISÃO DO MÉIER - “Teus dois cinemas, um ao pé do outro,por
que não se afastam/para não criar,todas as noites,o problema da opção.”
BOLERO DE RAVEL - “Alma cativa e obcecada / enrola-se
infinitamente numa espiral de desejo / e melancolia (...) Os tambores abafam a
morte do Imperador”
LA POSSESSION DU MONDE - “Os homens célebres visitam a cidade. /
Obrigatoriamente exaltam a paisagem. / Alguns se arriscam no mangue, / outros
se limitam ao Pão de Açúcar, / mas somente Georges Duhamel / passou a manhã
inteira no meu quintal. / Ou antes no quintal vizinho do meu quintal”.
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO -
um dos poemas mais conhecidos de Drummond da vida, simplesmente,sem
mistificação: “Chega um tempo em que não
se diz mais: meu Deus (...) não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou
inútil. / E os olhos não choram / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o
coração está seco. (...) Chegou um tempo em que não adianta morrer”.
MÃOS DADAS - aqui o poeta diz
que é melhor não fazer poesia “alienada”. Fala também na necessidade de união
para resolver os problemas (“a enorme realidade”). Uma resposta à aflição da
guerra: “Não serei o poeta de um mundo
caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à vida e olho meus
companheiros. / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”.
DENTADURAS DUPLAS - a
velhice, num poema dedicado a Onestaldo de Pennafort:”Dentaduras duplas! / Inda não sou bem velho / para merecer-vos (...)
daí-me enfim a calma / que Bilac não teve/para envelhecer (...) feéricas
dentaduras, admiráveis presas, / mastigando lestas / e indiferentes / a carne
da vida!”
A NOITE DISSOLVE OS HOMENS -
a Portinari: “A noite desceu. Que noite!
/ Já não enxergo meus irmãos (...) Tremenda, / sem esperança ... Os suspiros /
acusam a presença negra / que paralisa os guerreiros. / E o amor não abre
caminhão / na noite. (...) A noite anoiteceu tudo... / O mundo não tem remédio
... / Os suicidas tinham razão (...) O triste mundo fascista se decompõe ao
contato de teus dedos (...) O mundo / se tinge com as tintas da antemanhã / e o
sangue é doce,de tão necessário / para cobrir tuas pálidas faces,aurora.”
MADRIGAL LÚGUBRE - “Em vossa casa feita d cadáveres (...)
quisera eu morar (...) Cá fora é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e
comida guardada. (...) Dai-me vossa cama,princesa, (...) sutil flui o sangue
nas escadarias”.
LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO - “Clara passeava no jardim com as crianças. /
O céu era verde sobre o gramado, / a água era dourada sob as pontes, / outros
elementos eram azuis, róseos,alaranjados (...) Havia jardins,havia manhãs
naquele tempo!!!”
ELEGIA 1938 - “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
/ onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. (...) Aceitas a chuva,
a guerra, o desemprego e a injusta distribuição / porque não podes,sozinho,dinamitar
a ilha de Manhattan.”
MUNDO GRANDE - “Não,meu coração não é maior que o mundo./É
muito menor./Nele não cabem as minhas dores/Por isso gosto tanto de me
contar./por isso me dispo,/por isso me grito,/por isso freqüento os jornais,me
exponho cruamente nas livrarias:/preciso de todos(...)o grande mundo está
crescendo todos os dias,/entre o fogo e o amor.//Então,meu coração também pode
crescer(...) – Ó vida futura!nós te criaremos”.
Manuel
Bandeira: estrela da vida inteira
O livro “Estrela da Vida
Inteira” é, na verdade, um conjunto de livros do poeta recifense, um dos mais
ternos do Brasil, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira(1886-1968). São eles: Cinza das Horas (1917): Nele podemos
perceber que o poeta, vindo da tradição simbolista e parnasiana,mantém com ela
profundos laços e caminha, paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição. “O que tu chamas tua paixão / É tão somente
curiosidade. / E os teus desejos ferventes vão / Batendo as asas na irrealidade
... / Curiosidade sentimental / Do seu aroma,sua pele. / Sonhas um ventre de
alvura tal, / Que escuro o linho fique ao pé dele(...) E acima disso, buscas
saber / Os seus instintos, suas tendências... / Espiar-lhe na alma por conhecer
/ O que há sincero nas aparências.” (trecho de “Poemeto Irônico”)
Carnaval
(1919): Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica
especializada. “É um livro sem unidade.
Sob pretexto de que no carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na
coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de
pastiches parnasianos, e isto ao lado das alfinetadas dos `Sapos´”, disse o
poeta. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao parnasianismo e foi lido por Ronald
de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo,
em 1922. O poema seria considerado uma espécie de hino nacional dos
modernistas. Outro poema deste livro: ”Na
velha torre quadrangular / Vivia a Virgem dos Devaneios ... / Tão alvos braços
... Tão lindos seios... / Tão alvos seios por afagar...” (em “Baladilha
Arcaica”).
O Ritmo Dissoluto
(1924): Neste livro Bandeira começa a explorar mais sistematicamente a
simplicidade popular e um certo prosaísmo. É um livro,como o próprio poeta via,
de “transição entre dois momentos de sua
poesia”. “A doce tarde morre. E tão
mansa / Ela esmorece, / Tão lentamente no céu de prece, / Que assim parece,toda
repouso, / Como um suspiro de extinto gozo / De uma profunda, longa esperança /
Que, enfim cumprida, morre, descansa ...” (em “Felicidade”).
Libertinagem
(1930): Com a publicação deste livro,pode-se dizer que a poesia de Bandeira
amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o
poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais freqüência as
cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: “Não Sei
Dançar”, ”Pneumotórax”, ”Poética”, ”Evocação do Recife”, ”Poema tirado de uma
Notícia de Jornal”, ”Teresa” e “Vou-me Embora para Pasárgada”.
“Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu já tomei
tristeza, hoje tomo alegria. /Tenho todos os motivos menos um de ser triste. /
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...” (em “Não Sei Dançar”). “Recife / Não a Veneza americana / Não a Mauritstadt dos armadores
das Índias Ocidentais (...) Mas o Recife sem história nem literatura / Recife
sem mais nada / Recife da minha infância” (em “Evocação do Recife”).
Estrela da Manhã
(1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou 50
exemplares na marra (papel doado e
impressão custeada por subscritos). Alguns músicos interessaram-se por seus
textos, como Jaime Ovall e Radamés Gnatali, entre outros. Em 1945, o poeta
compôs as letras para uma série de canções, a pedido do maestro Villa-Lobos,
que queria composições tipicamente brasileiras para serem cantadas em ocasiões
festivas. Foram reunidas com o nome de Canções de Cordialidade (“Trem de
Ferro”, ”Berimbau”, “Cantiga”, “Dona Janaína”, ”Irene no CÉU”, ” Na Ruia do
Sabão”, “Macumba do Pai Zuzé”, “Boca de Forno”, “O Menino Doente” e “Dentro da
Noite”, publicados em outras obras.
“As três mulheres do sabonete Araxá me invocam,me
bouleversam,me hipnotizam. / Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas
da tarde! / O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! / Que outros,
não eu, a pedra cortem / Para brutais vos adorarem, ”Ó brancaranas azedas, /
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata / Ou celestes africanas (...) Meu
Deus, serão as três Marias? / A mais nua é doirada borboleta / Se a segunda
casasse, eu ficava safado da vida, dava pra e nunca mais telefonava / Mas, se a
terceira morresse ... Oh, então, nunca mais a minha vida outrora teria sido um
festim”. (em “Balada das Três
Mulheres do Sabonete Araxá”)
Lira dos Cinqüenta Anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite
que o poeta recebeu de uma casa editora. Bandeira candidatou-se à Academia
Brasileira de Letras.“Ouro branco! Ouro
preto! Ouro podre! De cada /Ribeirão trepidante e de cada recosto / De montanha
o metal rolou na cascalhada / Para o fausto d´El-Rei,para a glória do imposto /
Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: / Pedras...templos que são
fantasmas do sol- posto.” (em “Ouro Preto”)
“Vi uma estrela tão alta, / Vi uma
estrela tão fria! / Vi uma estrela luzindo / Na minha vida vazia / Era uma
estrela tão alta! / Era uma estrela tão fria! / Era uma estrela sozinha/Luzindo
no fim do dia” (em “A Estrela”)
“Lapa - Lapa do Desterro -, / Lapa que
tanto pecais! / (Mas quando bate seis horas, / Na primeira voz dos sinos, /
Como anunciava / A conceição de Maria, / Que graças angelicais!” (em Última Canção do Beco”) Belo Belo (1948): Esse título foi tirado de um poema da Lira dos
Cinqüent´Anos. Numa edição posterior, de 1951, foram acrescentados alguns
poemas. “Vamos viver no Nordeste,
Anarina. / Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha
vergonha / Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante. / Aqui faz
muito calor. / No Nordeste faz calor também. / Mas lá tem brisa”. (em
“Brisa”)
”Belo belo minha bela / Tenho tudo que
não quero / Não tenho nada que quero / Não quero óculos nem tosse / Nem
obrigação de voto (...) Belo belo / Mas basta de lero-lero / Vida noves fora
zero” (em “Belo Belo”)
Mafuá do Malungo (1948): Publicado na Espanha por iniciativa de João
Cabral de Melo Neto. Mafuá significa feira popular, malungo é um africanismo,
significando companheiro. Nesse livro, Bandeira faz jogos com as primeiras
letras das palavras, faz também sátiras políticas, brinca “à maneira de” outros poetas.”
“Olhei para ela com toda a força. /
Disse que era boa. / Que ela era gostosa, / Que ela era bonita pra burro: / Não
fez efeito (...) Virei pirata (...) Então banquei o sentimental (...) Escrevi
cartinhas (... Perdi meu tempo: não fez efeito. / Meu Deus que mulher durinha!
/ Foi um buraco na minha vida. / Mas eu mato ela na cabeça: / Vou lhe mandar
uma caixinha de Minorativas, / Pastilhas purgativas: / É impossível que não
faça efeito!” (em “Dois Anúncios”: “
I - Rondó de efeito”)
Opus 10 (1952-1955) A expressão do título vem do universo da
música. A palavra latina Opus indica
genericamente obra, composição, e o número indica a posição de determinada peça
num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a partir de uma
expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a importância da música
e da musicalidade em sua obra.
“Como em turvas águas de enchente / Me
sinto a meio submergido, / Entre destroços do presente / Dividido,subdividido,
/ Onde rola, enorme, o boi morto (...) Morto sem forma ou sentido / Ou
significado. O que foi/Ninguém sabe.Agora é boi morto” (em “Boi Morto”) “Grilo
toca aí um solo de flauta. / - De flauta? Você me acha com cara de flautista? /
- A flauta é um belo instrumento. Não gosta? / - Troppo dolce!” (em “O Grilo “).
Estrela da Tarde (1960) reeditado em 1963,com novos poemas. É a
maturidade do poeta completo que Bandeira já é ao tempo deste livro,onde ele
tanto retorna ao soneto tradicional (reinventado na sua poética),como se
utiliza de recursos gráficos –talvez inspirados nas vanguardas
contemporâneas-na montagem de poemas como “O Nome em Si”.
“Vejo mares tranqüilos, que repousam, /
Atrás dos olhos das meninas sérias. /Alto e longe elas olham,mas não ousam /
Olhar a quem as olha, e ficam sérias” (em
“Variações Sérias em Forma de Soneto”).
Lira do Brigadeiro “Depois de
tamanhas dores, / De tão duro cativeiro / às mãos dos interventores, / Que quer
o Brasil inteiro? / - O Brigadeiro! (...) Brigadeiro da esperança, / Brigadeiro
da lisura / Que há nele que tanto afiança / A sua candidatura? / - Alma pura!
(...) Abaixo a politicalha! / Abaixo o politiqueiro! / Votemos em quem nos
valha: / Que nos vale, brasileiro? / - O Brigadeiro! (...) O Brigadeiro é
católico (...) Comunga, mas não comunga / Com os impostores ateus / E os ricos
do Estado Novo: / Comunga só com o seu Deus / E com o povo! (...) - Não voto no
militar; voto no homem escandaloso. / - Ué, compadre, quem é o homem
escandaloso? / - O Brigadeiro (...) Não zunzuna / Nem não fala atoamente; /
Será nosso presidente / Estava no seu destino / Desde que ele era tenente /
Desde que ele era menino”
OUTROS
POEMAS. “O SUPLICANTE - Padre Nosso, que
estás no céu santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja feita a
tua vontade, assim na terra como no céu. O pó nosso de cada dia nos dá hoje...
/ O SENHOR (interrompendo enternecidíssimo) - Toma lá,meu filho. Afinal tu és
pó e em pó te converterás!” (em “Sonho de uma noite de coca”)
“Casa Grande & Senzala” / Grande
livro que fala / Desta nossa leseira / Brasileira / Mas com aquele forte /
Cheiro e sabor do Norte / - Dos engenhos de cana / (Massangana!) (...) Se nos
brasis abunda / Jenipapo na bunda, / Se somos todos uns / Octoruns / Que
importa? E lá é desgraça? / Essa história de raça, / Raças más, raças boas
(...) É coisa que passou / Pois o mal do mestiço não está nisso. / Está em
causas sociais, / De higiene e outras que tais: / Assim pensa, assim fala /
Casa Grande &Senzala. / Livro que à ciência alia / A profunda poesia / Que
o passado revoca / E nos toca / A alam de brasileiro, / Que o portuga femeeiro
/ Fez e o mau fado quis / Infeliz!”.
Memórias do Cárcere Graciliano Ramos escreve sobre sua prisão na
Era Vargas
por Moisés Neto. A obra do
alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) divide-se assim:
Romance:
Caetés(33), São Bernardo(34), Angústia(36), Vidas Secas(38).
Conto Obra Memorialista: Infância(45), Memórias do Cárcere(53), Viagem(54), Linhas tortas(62) Viventes das Alagoas (Quadros e costumes do Nordeste,1962.
Literatura infantil: História de Alexandre(44), Dois Dedos(45), Histórias Incompletas(46). Realismo crítico onde o herói não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Não há predomínio do Regionalismo, da paisagem, que só interessa quando interage com o psicológico, e mesmo assim tudo passando pelo crivo da economia vocabular e correção gramatical. Ao contrário de Jorge Amado,não apelou para o populismo. Eis um resumo feito por Moisés Neto, em forma dramática, do texto Memórias do Cárcere: “Meu nome é Graciliano Ramos Fui prefeito e secretário da educação, em Alagoas. Eu sou apenas um escritor, para muitos. Minha mulher, Heloísa,acha que eu tenho uma amante e costuma dizer que eu só penso em mim, e devia pensar mais nos meus filhos. Eu já havia publicado meu primeiro romance `Caetés´ e escrito o segundo, `Angústia´, quando fui preso como comunista. Vieram avisar-me para fugir, porque a pressão era muita. Fugir para onde? Viver escondido nas dunas da praia? Deixar a barba crescer? Fui preso.Conheci muita gente no cárcere. Primeiro numa colônia penal, a seguir no porão de um navio. Um lugar sufocante,cheio de gente. Um prisioneiro ao ser arrastado para fora, gritou: `Companheiros vão separar-nos. Se nunca mais nos virmos, ficam vocês sabendo o lugar da minha morte!´ Já se viram numa situação semelhante? Lá estava o que a burguesia sempre deu ao proletariado: fezes, urina e comida ruim. Um dia, acordei e vi homens desesperados, e, mesmo assim, masturbando-se. Perguntei porque alguns usavam cruzes. Disseram que quando a revolução triunfasse, os ateus `de todos os credos´ seriam mortos. Havia de tudo lá, até mulheres. Uma delas, chamada Maria Joana foi detida com uma metralhadora na mão. Inocentes, que cumpriam ordens em nome da revolução. Presos e torturados porque queriam distribuição de terras e melhores condições de vida para os trabalhadores. Restos de comida pelos cantos, caindo sobre mim! Pensam que estão num chiqueiro? Porcos! O `beato´que me amaldiçoou, rezava. `Seu Ramos,tem alguém lhe procurando no convés´.Quem seria? Era um bispo conhecido meu.Trouxera-me roupas e notícias da minha família.Disse-me que eu seria solto logo,logo. Não acreditei no que aquele bispo dizia.Eu não acreditava naquilo. A luta contra o imperialismo e o latifúndio,sempre fez muitas vítimas. Um dia comprei uma garrafa de cachaça:foi uma festa naquele porão imundo.Teve um que começou a cantar e todos acompanhavam batendo palmas,utilizando objetos como percussão.Era ao mesmo tempo fascinante e assustador. Chegamos ao Rio de Janeiro:`O diretor da Instrução pública do Estado de alagoas.Graciliano Ramos: funcionário público´, por isso ganhei uma `acomodação´ melhor. Religião? Nenhuma. O funcionário não quis registrar isso. Os prisioneiros nos receberam cantando o hino nacional e gritaram: ´viva os nossos companheiros revolucionários do Norte!´ Que revolução? Lá estavam: médicos, professores, militares, engenheiros. Presos por motivos políticos, em sua maior parte. Porque lutaram por um país melhor Capitão Mota era poeta. Foi um dos que conheci lá. O pessoal inventou uma tal de `Rádio Libertadora´,que transmitia direto da `Praça Vermelha´: um prisioneiro imitando a voz de locutor de rádio. Sonhavam com um governo popular que combatesse o fascismo de Vargas. Ele havia decretado estado de guerra´no Brasil.
Praia maravilhosa, cheia de balas mil. Vermelha e majestosa, sentinela do Brasil! (cantavam as mulheres,na prisão ao lado da nossa, parodiando a música `Cidade Maravilhosa´). A revolução! Gritava alguém.Não escutam o barulho das metralhadoras? Muitos enlouqueciam naquela tortura. A `transferência´, às vezes, era um artifício para encobrir uma possível execução. Nas celas havia aulas de matemática, inglês, política, história e muito mais. Um italiano traçava as bases para a tomada do poder. Heloísa, minha esposa, visitou-me.Eu ali, indefeso. José Olympio aceitou publicar meu romance (sem correções) e o Capitão Mota entregou um conto meu na redação de uma revista, que o publicou. Na minha cela ficou um certo capitão Pompeu, que por ironia ameaçara-me de fuzilamento na Revolução de 30,em Alagoas. Que ironia. A `rádio revolucionária´ anunciava: Getúlio assinou contrato com os Estados Unidos para pagamento da dívida externa. Na cela ao lado estava Olga, esposa de Luis Carlos Prestes, grávida. Getúlio a entregaria para a Alemanha nazista.Mentiram dizendo para as companheiras que ela estava apenas sendo transferida. A revolução tem que ser universal! Devemos ser instrumentos dela, gritavam. Coragem! O ódio dos fascistas nada significa para nós,revolucionários.
Conto Obra Memorialista: Infância(45), Memórias do Cárcere(53), Viagem(54), Linhas tortas(62) Viventes das Alagoas (Quadros e costumes do Nordeste,1962.
Literatura infantil: História de Alexandre(44), Dois Dedos(45), Histórias Incompletas(46). Realismo crítico onde o herói não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Não há predomínio do Regionalismo, da paisagem, que só interessa quando interage com o psicológico, e mesmo assim tudo passando pelo crivo da economia vocabular e correção gramatical. Ao contrário de Jorge Amado,não apelou para o populismo. Eis um resumo feito por Moisés Neto, em forma dramática, do texto Memórias do Cárcere: “Meu nome é Graciliano Ramos Fui prefeito e secretário da educação, em Alagoas. Eu sou apenas um escritor, para muitos. Minha mulher, Heloísa,acha que eu tenho uma amante e costuma dizer que eu só penso em mim, e devia pensar mais nos meus filhos. Eu já havia publicado meu primeiro romance `Caetés´ e escrito o segundo, `Angústia´, quando fui preso como comunista. Vieram avisar-me para fugir, porque a pressão era muita. Fugir para onde? Viver escondido nas dunas da praia? Deixar a barba crescer? Fui preso.Conheci muita gente no cárcere. Primeiro numa colônia penal, a seguir no porão de um navio. Um lugar sufocante,cheio de gente. Um prisioneiro ao ser arrastado para fora, gritou: `Companheiros vão separar-nos. Se nunca mais nos virmos, ficam vocês sabendo o lugar da minha morte!´ Já se viram numa situação semelhante? Lá estava o que a burguesia sempre deu ao proletariado: fezes, urina e comida ruim. Um dia, acordei e vi homens desesperados, e, mesmo assim, masturbando-se. Perguntei porque alguns usavam cruzes. Disseram que quando a revolução triunfasse, os ateus `de todos os credos´ seriam mortos. Havia de tudo lá, até mulheres. Uma delas, chamada Maria Joana foi detida com uma metralhadora na mão. Inocentes, que cumpriam ordens em nome da revolução. Presos e torturados porque queriam distribuição de terras e melhores condições de vida para os trabalhadores. Restos de comida pelos cantos, caindo sobre mim! Pensam que estão num chiqueiro? Porcos! O `beato´que me amaldiçoou, rezava. `Seu Ramos,tem alguém lhe procurando no convés´.Quem seria? Era um bispo conhecido meu.Trouxera-me roupas e notícias da minha família.Disse-me que eu seria solto logo,logo. Não acreditei no que aquele bispo dizia.Eu não acreditava naquilo. A luta contra o imperialismo e o latifúndio,sempre fez muitas vítimas. Um dia comprei uma garrafa de cachaça:foi uma festa naquele porão imundo.Teve um que começou a cantar e todos acompanhavam batendo palmas,utilizando objetos como percussão.Era ao mesmo tempo fascinante e assustador. Chegamos ao Rio de Janeiro:`O diretor da Instrução pública do Estado de alagoas.Graciliano Ramos: funcionário público´, por isso ganhei uma `acomodação´ melhor. Religião? Nenhuma. O funcionário não quis registrar isso. Os prisioneiros nos receberam cantando o hino nacional e gritaram: ´viva os nossos companheiros revolucionários do Norte!´ Que revolução? Lá estavam: médicos, professores, militares, engenheiros. Presos por motivos políticos, em sua maior parte. Porque lutaram por um país melhor Capitão Mota era poeta. Foi um dos que conheci lá. O pessoal inventou uma tal de `Rádio Libertadora´,que transmitia direto da `Praça Vermelha´: um prisioneiro imitando a voz de locutor de rádio. Sonhavam com um governo popular que combatesse o fascismo de Vargas. Ele havia decretado estado de guerra´no Brasil.
Praia maravilhosa, cheia de balas mil. Vermelha e majestosa, sentinela do Brasil! (cantavam as mulheres,na prisão ao lado da nossa, parodiando a música `Cidade Maravilhosa´). A revolução! Gritava alguém.Não escutam o barulho das metralhadoras? Muitos enlouqueciam naquela tortura. A `transferência´, às vezes, era um artifício para encobrir uma possível execução. Nas celas havia aulas de matemática, inglês, política, história e muito mais. Um italiano traçava as bases para a tomada do poder. Heloísa, minha esposa, visitou-me.Eu ali, indefeso. José Olympio aceitou publicar meu romance (sem correções) e o Capitão Mota entregou um conto meu na redação de uma revista, que o publicou. Na minha cela ficou um certo capitão Pompeu, que por ironia ameaçara-me de fuzilamento na Revolução de 30,em Alagoas. Que ironia. A `rádio revolucionária´ anunciava: Getúlio assinou contrato com os Estados Unidos para pagamento da dívida externa. Na cela ao lado estava Olga, esposa de Luis Carlos Prestes, grávida. Getúlio a entregaria para a Alemanha nazista.Mentiram dizendo para as companheiras que ela estava apenas sendo transferida. A revolução tem que ser universal! Devemos ser instrumentos dela, gritavam. Coragem! O ódio dos fascistas nada significa para nós,revolucionários.
Eu tomava muito café. Os
soldados mantinham na prisão, hábitos militares. Sempre querendo controlar a
situação. Fascistas! E ainda diziam que eu tinha alma de usineiro! Fiquei
doente, colocaram-me na enfermaria. Trouxeram-me um advogado: doutor Sobral,o
mesmo de Prestes. Mandei-o para o inferno. Heloísa insistiu. Terminei aceitando
que ele fizesse a minha defesa, embora não houvesse acusação. Nunca me disseram
o motivo da minha prisão! Houve festa no hospital, comemorando o lançamento do
meu livro. Ridículo. Fui transferido depois para Ilha Grande. Uma pessoa
inteligente nunca se aperta, disse-me um sargento. Aconselhou-me também a
esconder meus escritos e um resto de dinheiro que eu guardava. Rasparam meus
cabelos. Reencontrei muitos companheiros do cárcere anterior. Fui colocado
entre ladrões. Éramos tratados a tapas e pontapés. Aqui não há nenhum direito.
Vocês vieram aqui para morrer!Estão ouvindo? Morrer! Restavam,para alguns, a
masturbação e a sodomia. Minha úlcera voltou a incomodar-me. Uma operação ali
seria suicídio. Um companheiro chamado Gaúcho,ladrão muito decente,pediu-me
para colocar o nome dele nestas minhas `memórias´. Muitos pediam isso,e iam
trazendo informações. Gaúcho roubou papel e tinta no escritório, para mim.
Pegou solitária por isso. Um dos presos transformou o cabo de uma colher em
faca, esfregando-o contra as pedras. Matou outro preso que trabalhava como
guarda. Eram assim os dias. Sempre li sobre a revolução,desde pequeno no
armazém do meu pai. Pelo menos era isso que diziam sobre mim. 3353. Era esse o
meu número. Um dia o chefe do presídio pediu-me para escrever um discurso para
o aniversário do diretor, em nome da polícia. Eu poderia escrever isso? Em
troca ele me daria papel e tinta para meus `escritos´. Ensinei como ele mesmo
devia escrevê-lo, na sua simplicidade. Acostumados com a miséria,alguns presos
resistiam bem e diziam que ao sair dali, iam se juntar à guerrilha para matar
soldados.Desprezavam o trabalho intelectual e diziam que eu não agüentaria, por
muito tempo, aquelas condições de vida. Comprei de Gaúcho uma cama no
alojamento. Cinco mil réis. Os camaradas disseram que eu devia ter consultado o
coletivo.Gritaram que eu vivia e iria morrer como um burguês! Ilha Grande! Que
assunto magnífico. Hoje tão distante. Não foi fácil sair de lá com meus
escritos. Mas,eu consegui” O concretismo.
• Origens “Sem forma revolucionária não há arte
revolucionária” (Maiakóvski)
Levando ao máximo a tendência
ao despojamento vocabular e à racionalização da linguagem que vimos
principalmente em João Cabral de Melo Neto, vai surgir um movimento de
vanguarda, que após a explosão modernista de 1922, foi o que trouxe à
literatura brasileira o maior impulso no sentido de uma renovação estilística:
o Concretismo. A Poesia Concreta é originária do trabalho conjunto do grupo que
se reuniu em torno da revista-livro Noigandres (antídoto do tédio,em
provençal). A equipe era composta por três jovens: Décio Pignatari, Haroldo de
Campos e Augusto de Campos. Seu consumo
se deu da maneira mais surpreendente. Na linguagem e na visualidade cotidianas,
a Poesia Concreta comparece. Está no texto de propaganda, na paginação e na
titulação do jornal, na diagramação do livro, no slogan de televisão, na letra
de “bossa nova” (“Teoria da Poesia Concreta”, Revista Invenção, pag. 5).
Características
Tem conexão com o status tecnológico do nosso século e reflete a influência dos
meios de comunicação de massa: jornal, televisão, revista em quadrinhos etc.
Preconiza a substituição da estrutura da frase, peculiar ao verso, por
estruturas nominais, que se relacionam especialmente tanto na direção
horizontal como na vertical. A substituição da sintaxe verbal pela sintaxe
analógico-visual deve ser entendida como fruto legítimo da civilização
audiovisual. Na medida em que o material significante assume o primeiro plano,
verbal e visual, vale destacar alguns procedimentos: no campo semântico:
ideogramas (“apelo à comunicação não-verbal”, polissemia, trocadilho, nonsense;
no campo sintático: ilhamento ou atomização das partes do discurso;
justaposição; redistribuição de elementos; ruptura com a sintaxe da proposição;
no campo léxico, substantivos concretos, neologismo, tecnicismos,
estrangeirismos, siglas, termos plurilingües; no campo morfológico:
desintegração do sintagma nos seus morfemas; separação dos prefixos, dos
radicais, dos sufixos; uso intensivo de certos morfemas; no campo fonético:
figuras de repetição sonora (aliteração, assonâncias, rimas internas,
homoteleutons); preferência dada às consoantes e aos grupos consonantais; jogos
sonoros; no campo topográfico: abolição de verso, não-linearidade; uso construtivo
dos espaços brancos; ausência de sinais de pontuação; constelações; sintaxe
gráfica. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de
objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. Seu método
material: a palavra (som, forma visual, carga semântica).
A POESIA PRÁXIS. Foi,
de início, uma ruptura polêmica e agressiva com o grupo concretista, retomando
o engajamento histórico e a linguagem verbal, a palavra. A Poesia Práxis teve
como seu principal teorizador e autor o poeta Mário Chamie, que rompeu com o
grupo concretista, por volta de 1961 e, junto ao poeta veterano Cassiano
Ricardo, pesquisou uma “nova estrutura” para o poema. Em 1962, Mário Chamie
pública o livro Lavra Lavra, que
representou a grande abertura para a Poesia Práxis.
- todo problema tem as suas
palavras;
- cada palavra tem o seu
centro de energia e o seu vocabulário;
- todo vocabulário de uma
palavra tem as suas relações em níveis sintático, semântico e pragmático;
- cada núcleo de relações
condiciona blocos de estruturas correspondentes;
- cada bloco de estrutura é
uma originalidade formal, refletindo um aprendizado particular do autor;
- cada originalidade formal
é, necessariamente, um texto que esgota a área de que é levantamento;
- cada texto, nas múltiplas
linhas de força desse processo, é linguagem que a própria área possibilitou,
pela mediação da palavra.
João Cabral de Melo Neto: 60
anos de poesia por Moisés Neto
Nascido em Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, onde passou a infância e recebeu grande influência. No Recife, jogou pelo time Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 45 ingressou na carreira diplomática. Seu primeiro livro Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo, semana de 22,etc.), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”. Em 45, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes. Em 47, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas. Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio”(em 1ª pessoa,com técnica dos romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar. Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema). Em Paisagem com Figuras (56), compara o norte da Espanha com a paisagem nordestina. Quaderna (60) é antilírico e composto por quartetos rimados. Dois Parlamentos (61) parodia a gratuidade e a recorrência da fala dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa Grande”). Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição. Educação pela Pedra (66) é coletânea que expõe a “depuração” atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência / consistência da pedra. Museu de Tudo (76) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores). Escola das Facas (80) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença). Em 82, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista a refletir sobre a própria arte. Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:
Nascido em Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, onde passou a infância e recebeu grande influência. No Recife, jogou pelo time Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 45 ingressou na carreira diplomática. Seu primeiro livro Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo, semana de 22,etc.), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”. Em 45, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes. Em 47, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas. Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio”(em 1ª pessoa,com técnica dos romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar. Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema). Em Paisagem com Figuras (56), compara o norte da Espanha com a paisagem nordestina. Quaderna (60) é antilírico e composto por quartetos rimados. Dois Parlamentos (61) parodia a gratuidade e a recorrência da fala dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa Grande”). Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição. Educação pela Pedra (66) é coletânea que expõe a “depuração” atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência / consistência da pedra. Museu de Tudo (76) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores). Escola das Facas (80) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença). Em 82, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista a refletir sobre a própria arte. Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:
“-Ei-lo que vem descendo a escada, degrau a degrau.
Como vem calmo.
- Crê no mundo,e quis conserta-lo.
- E ainda crê, já condenado?
- Sabe que não o consertará.
- Mas que virão para imita-lo.” Em 85 e 87, respectivamente são publicados Agrestes e Crime na Calle Relator. Ficou o senso de medida e a expressão sem
excessos ou derramamentos, a despoetização do poema que, longe da retórica,
concentra a emoção dando à palavra espessura, concretude. Mais qualidade do que
quantidade. Cada uma com o máximo de conotação possível. Emoção passando pelo
crivo da precisão, humanitariamente: a presença do humor numa “concepção
objectualista”. Um verso substantivo e despojado, que nos deu uma nova
perspectiva do discurso lírico. Até hoje, a nos seguir, está o cão sem plumas
(=pêlos) arrastando ainda detritos das casas grandes & senzalas. Prosaico,
lírico, polirrítmico, severo e pícaro. Violentando o horizonte nordestino com
sua forma dura. A palo seco: sem guitarra, sem mais nada. Só a lâmina da voz,
sem tempero ou ajuda. Com sua chama nua sobre o fio de cobre. Ferro contra
pedra. Ferro contra ferro. O rio como um cão vivo. “O que vive não entorpece / o que vive fere (...) viver é ir entre o
que vive...” Ariano disse que João Cabral é parte da formação e manutenção
da identidade nacional. Haroldo de Campos o considera um dos maiores poetas do
Brasil. A Espanha e os EUA já o reverenciaram. Cabral resmunga: “Me considero um marginal na poesia
luso-brasileira. Como foram Sousândrade e Augusto dos Anjos.” Nosso poeta
resgatou o homem,como o Barroco resgatou Deus. Numa literatura que busca o
“engajamento”. Em 1968, assumiu a cadeira deixada por Assis Chateaubriand na
Academia Brasileira de Letras. Em 53, acusado de comunista, passou algum tempo
afastado da carreira diplomática. Cabral negou a experiência de 22. Augusto de
Campos disse que ele não tinha “antecedentes” (só “conseqüentes”). “A poesia concreta não depende de mim”,
sentenciou Cabral do alto dos seus oito livros de poemas e dois autos
dramáticos. Em prosa, lançou estudo sobre Juan Miró. “Plantas franzinas em ambiente de rapina”, foi como descreveu os
camponeses da zona da mata pernambucana. O nordestino é marcado pela paisagem.
Graciliano Ramos
São
Bernardo: A busca do sentido da vida
O romance (narrado em 1a pessoa) se
inicia com a exposição do desejo da capitalista Paulo Honório (protagonista) de fazer um livro “pela divisão do
trabalho”, numa espécie de catarse
(purificação do espírito) conta a história de suas “violências miúdas” e mais
graves. Tudo o que fez para conseguir ser o proprietário da Fazenda São Bernardo: a forma como
envolveu o Luís Padilha (herdeiro da fazenda), as dívidas que este contraiu, as
promissórias assinadas por conta de jogo até a perda total da propriedade que
passou para Paulo Honório; os subornos na justiça para se apropriar de partes
dos terrenos alheios, a forma grosseira de lidar com os trabalhadores e com a
esposa Madalena.
Não tendo o domínio da arte de escrever convida
algumas pessoas para redigir o romance. O padre Silvestre, o Nogueira,
Arquimedes e Azevedo Gondim. Este último era redator de O Cruzeiro. Os
colaboradores exageram na língua de Camões e o livro não agrada a Paulo Honório
que decide fazê-lo só. Tarefa difícil para quem conhecia apenas de agricultura,
pecuária e estatística. Foi, neste momento, que pensou em Madalena. Se
estivesse viva escreveria tudo muito rápido mas, agora, ela era apenas
lembrança.
O que provocou a necessidade de fazer o livro? Por
que o protagonista decidiu refletir sobre sua vida? “A lembrança de Madalena
persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa (...) De longe em
longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa: ‘– Estraguei a minha vida...’” (p. 184).
Oprimiu tanto a esposa que ela suicidou-se.
O desejo expresso de dominar sempre foi o que
estragou sua vida e a de Madalena, a esposa que não agüentou as pressões do
marido. Esse eu que narra emite opiniões duras sobre si e sobre as pessoas com
quem conviveu. Sozinho – após a morte da esposa quase todos o abandonam – decide
escrever sobre sua vida, atenuar a solidão.
O conflito interior que o leva à retrospectiva
sobre suas atitudes, leva-o também a ver-se como um monstro.
“Devo ter
coração moído, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros
homens...”.
Senta-se à mesa, solitário (Casimiro Lopes e o
filho ficaram com ele bem como Rosa e Marciano), a vela quase a extinguir-se e
o eu-narrador exausto buscando na atividade de escrever apagar o que fez ou
entender (?).
Organizou a fazenda aos poucos. Contratou homens.
Foi duro e tudo se fez. Mandou buscar a velha Margarida que o criou e lhe deu
abrigo. Forma de pagar o que a velha fizera por ele.
Paulo Honório conhecera Madalena
(loura, olhos azuis, 27 anos) graças a Gondim e a Padilha. Ela morava com uma
tia, a Dona Glória. Aproximou-se delas e fez um convite para conhecerem a
fazenda. Paulo pensou em um herdeiro e um belo dia decidiu casar (a mulher
seria uma propriedade a mais). Casam-se na capela da fazenda.
Madalena era uma mulher culta –
professora, – o marido não sabia muito, a não ser dos números. Logo Madalena
revelou sua preocupação com os trabalhadores. Exigiu providências do marido.
Observou condições de trabalho, salários e instrução dos trabalhadores e filhos
desses trabalhadores. O marido se revoltou: “Ora
gaitas! berrei. Até a senhora? Meta-se com os romances.” (p. 100) As idéias
socialistas da mulher se opunham às idéias capitalistas do marido – eis o
conflito que nascia.
O dono da fazenda São Bernardo não
admitia qualquer gesto de revolta, comprazia-se em humilhar os trabalhadores.
(reflexo de sua vida sofrida? Foi guia de cego, vendeu doces, foi trabalhador
do eito, foi criado pela preta Margarida.). Ao ouvir, certo dia, seu empregado
Luís Padilha discursando para o mulato Marciano e para Casimiro Lopes sobre
direito de trabalhador, revoltou-se: “(...) chamo o delegado de polícia, que isto aqui
não é Rússia.” (p. 161)
Promessas com pagamentos para depois
e assim a fazenda foi crescendo. O governador visita a fazenda e gosta de tudo
– das galinhas Orpington, do algodão, da mamona e pergunta onde ficava a
escola. Não havia escola e Paulo Honório pensa: “Trabalhador instruído é coisa perigosa. Metam pessoal letrado na
apanha da mamona. Hão de ver a colheita.” (p. 44)
Madalena insiste na idéia da escola.
Paulo pensa no governador elogiando o feito. Pensa na amizade com o político.
Decide construir a escola em São Bernardo: “De
repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador para
certos favores que eu tencionava solicitar.” (p. 44). Padilha fica como o
professor dos trabalhadores. Madalena analisou o método de Padilha e condenou
tudo. Solicitou material escolar (globos, mapas, artigos necessários) – “nota
gasta, despesa supérflua” – pensou o marido: “Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábuas para filhos de
trabalhadores. Calculem. Um dinheirama gasto por um homem que aprendeu leitura
na cadeia, em carta da ABC, em almanaques, em bíblia.” (p. 107) – Foi assim
que o dono da fazenda aprendeu a ler.
Madalena dedicava-se cada vez mais à
instrução dos trabalhadores. Procurava ajudar a todos. Presenteava a Rosa,
mulher de Marciano, conversava com Padilha. Reclamava com o marido sobre o
tratamento dado aos empregados ao que ele revidava enciumado:
“Que
diabo tem você com Marciano para estar tão parida por ele?” (p. 110) Acusava a esposa, reclamava por acostumar mal os
pobres.
A esposa passa a trabalhar mais com
seu Ribeiro, o guarda-livros, homem responsável pelos balanços da fazenda. A
tia de Madalena – Dona Glória – vivia conversando com seu Ribeiro e Madalena,
fato que desagradava Paulo Honório, pois acreditava atrapalhar o serviço.
Reclamações surgem e Madalena se irrita. Devia sua vida e profissão àquela
senhora.
Paulo Honório protesta: “(...) Professorinhas de primeiras letras a
escola normal fabrica às dúzias. Uma propriedade como São Bernardo era
diferente” (p. 115)
A ambição dele estava acima de
qualquer sentimento, nada poderia atrapalhar os lucros, o crescimento. Assim,
graças à mão de ferro do narrador:
“As
casas, a igreja, a estrada, o açude, as pastagens, tudo é novo. O algodoal
quase uma légua de comprimento e meia de largura (...) Pensam que isto nasceu
assim sem mais nem menos? (p. 122)
Nasce o herdeiro de São Bernardo e a
vida prossegue. Madalena não muda. Torna-se cada vez mais sensível à realidade
da fazenda.
Chega a revolução. Padre Silvestre,
Padilha, João Nogueira discutem sobre as notícias no jornal. O padre condena os
políticos, João Nogueira acreditava que o país naufragara. As finanças do
estado andavam mal.
A Revolução trouxe mudanças
significativas: “o crédito sumia, o
câmbio baixava, a mercadoria estrangeira ficava pela hora da morte. Sem falar
na atrapalhação da política.” (p. 127), refletia o Nogueira. Padilha e
Madalena, no entanto, deliravam: “seria
magnífico depois se endireitava tudo.” (p. 128) – Pensem na coletividade.
Gondim contesta: “– Era o que vocês
queriam. Teremos o comunismo”. Seu Ribeiro teme. Padre Silvestre achava o
comunismo uma miséria, “a desorganização social, a fome.”
A raiva de Paulo Honório aumentava, o
ciúme crescia a cada instante: “sim
senhor! Conluiada com Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom
caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando. (p. 130)
Padre Silvestre acreditava que a
religião seria um freio necessário. Paulo Honório tinha um conceito diferente
(e condenava Madalena por ela não se mostrar religiosa):
“Admito
Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e
admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça.
Tenho, portanto, um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é
dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível. Comunista,
materialista. Bonito casamento! Amizade com Padilha, aquele imbecil.” (p. 131)
O marido capitalista cada vez mais
ofendido: “Mulher sem religião é capaz de
tudo. (131). Os ciúmes aumentam, as acusações. Afasta Padilha da casa.
Deixa-o restrito à escola. Tira-lhe o salário por quatro meses para sentir o
prazer de vê-lo “magro, com o colarinho sujo e o cabelo crescido.” Xinga-o;
humilha-o:
“Tenha
paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os
contozinhos sobre os proletários.” (p. 132)
Padilha engole tudo e pede ajuda ao
patrão. Solicita que intervenha para que ele consiga uma colocação no fisco
estadual. E o proprietário de São Bernardo responde de modo irônico:
“–
Impossível, Padilha. Espere o soviete.
Você
se colocará com facilidade na guarda vermelha.” (p. 133)
Observe que ao mesmo tempo que Graciliano Ramos exibe a questão social
(opressão exercida pelo dominador) ele acentua a psicologia do personagem. O
retrato de Paulo Honório é-nos passado pelas ações dele e as ações revelam seu
mundo interior.
Dois anos de casados. As brigas
aumentavam. Paulo Honório xingava a todos, detestava Dona Glória e sentia
vontade de matar tia e sobrinha, porém não possuía a prova da infidelidade da
esposa. Procura na correspondência de Madalena algum sinal de traição. Madalena
chora, entra em crise. Todos os homens eram suspeitos para o marido. Tudo o que
ela fazia era suspeito: “– Deixa ver a carta, galinha.”
Paulo Honório é o capitalista
sangüinário, desejoso das torturas.
“E
se eu soubesse que ela me traía? Ah! (...)
abria-lhe
a veia do pescoço, devagar, para o sangue escorrer um dia inteiro.” (p. 149) (Lembra as torturas na época da ditadura? Observa
a época do romance decada de ‘30)
Começou a ouvir pessoas à noite,
acordava. Xingava a esposa dizendo tratar-se de amantes. Depois descobre que
não passava de ratos. As pancadas do relógio o assustavam. Certo dia encontra
uma folha de carta – provavelmente voara e Madalena não vira. Interroga
Madalena sobre o resto, tortura-a.
Madalena adoece. Começa a dizer
palavras desconexas. Pede ao marido que ajude a todos: Sr. Ribeiro (o guarda-livros),
Padilha, Marciano, Dona Glória. Pedia ao marido para esquecer a raiva.
“Três anos de casados Madalena comete
suicídio. Fazia exatamente um ano que o ciúme começara.” Madalena deixa uma
carta (a carta cuja folha perdida Paulo Honório encontrara) para o marido. Não
era para o amante como pensara Paulo Honório. Madalena é enterrada debaixo do
mosaico da capela-mor.
Todos que gostavam de Madalena após
sua morte decidem deixar a fazenda: Dona Glória, Sr. Ribeiro, Padilha (vai
juntar-se aos revolucionários), este quando sai leva bastantes trabalhadores
com ele.
Chega a revolução... bandeiras surgem
encarnadas por toda parte. Paulo Honório odiava a revolução. Neste ano muito
comerciante quebrou, houve falências e concordatas. O proprietário de São
Bernardo teve que aceitar liquidações péssimas. Perdeu a avicultura, a
pomicultura, a horticultura. As fábricas de tecidos (que adiantavam o
pagamento) quebraram e o algodão da fazenda não saía mais. Compra fiado. O
dinheiro para investir acaba em seis meses e só houve perdas. Paulo Honório
vende o automóvel para fazer pagamentos de promissórias. Não havia mais o que
fazer pela propriedade.
Dois anos depois de Madalena morta a
casa estava vazia. Todos partiram. Nem os amigos vinham mais para falar de
política. Bate a solidão, a amargura e com elas o desejo de escrever:
“Cinquenta
anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo a maltratar-me e a maltratar
os outros.”
Os
anos fizeram de Paulo Honório um ser endurecido, calejado. Angustia-se: “Que
estupidez! (...) não é bom vir o diabo e levar tudo?” (p. 181)
Estoura a revolução e Paulo Honório
está à mesa escrevendo. Meia-noite, as janelas fechadas. A casa deserta. A
lembrança de Madalena a persegui-lo. Reflete:
“Se
fosse possível recomeçarmos... Por que enganar-me? Se fosse possível
recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu.” (p. 187)
Paulo Honório reconheceu que
contribuiu para a situação de miséria em que se encontravam os trabalhadores.
Lamentou, mas sabia que voltar no tempo era fazer tudo igualzinho. Daí buscar
na escrita atenuar seu sofrimento, a solidão.
Paulo Honório foi dominador, ativo. Tudo ao seu
redor se reduzia à sua voz áspera. Sua linguagem era econômica, direta,
grosseira.
Para Luiz
Lafetá Paulo Honório simboliza “a modernidade penetrando no sertão
brasileiro, é o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente,
vai-se apropriando do que vê, um burguês”.
Tomou inicialmente posse da fazenda depois tomou
posse de Madalena “Amanheci um dia pensando em casar”. Observamos que o
casamento é mais uma transação, mais um negócio.
Podemos observar que a estrutura do romance se
subordina à ação ou enredo e ao personagem. Paulo Honório é seus atos ou os
atos fazem de Paulo Honório, homem de vontade; determinação, energia. Tudo era
calmo antes dele. A roça de seu Ribeiro era calma, sem transtornos, no tempo do
Imperador. Luís Padilha tinha vida modorrenta, preguiçosa. Paulo Honório é que
veio modificar as relações daquele universo.
Interessante destacar o que representam os
trabalhadores da fazenda (para Paulo Honório), os despossuídos: são
quantidades, são força de trabalho, peças da engrenagem, mercadorias. O
sentimento de propriedade é uma constante na vida no narrador (egoísta e
brutal): a fazenda, o rebanho, as plantações de mamona e algodão, o capital,
Madalena.
Paulo Honório foi incapaz de sentir Madalena, de
enxergar-lhe a grandeza de espírito, as reais intenções da mulher e professora.
A relação de choques entre ambos seria inevitável, eis um novo núcleo
narrativo, mas tudo reflete o motivo central da história: “Ela também é objeto
possuído” e ela foge ao seu controle, ao controle do dominador.
O mundo se desgoverna para Paulo Honório com a
morte de Madalena. Tenta, ao construir o texto encontrar o sentido da vida, o
fio condutor. A narrativa do presente
contrasta com a narrativa do passado.
Paulo Honório não era mais o símbolo do dominador, mas deixa-se levar, está
desnorteado: “E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem
alguém”. (p. 179). O tempo é outro. O tempo sem Madalena, o tempo sem os
empregados, o tempo da revolução e da crise.
A narrativa do passado e a do presente juntas
oferecem a visão do romance, o romance que começou com a divisão do trabalho.
Outro contraste a se observar ocorre no plano da
linguagem. Antes da morte de
Madalena a linguagem do Narrador é grosseira, seca (TEMPO DO ENUNCIADO), depois da morte, assume um tom mais
melancólico (TEMPO DA ENUNCIAÇÃO). O
mesmo se observa com as ações. “O ritmo
rápido da narrativa” é substituído pelos compassos mais lentos, pela
reflexão, pelo desejo de entender a vida quando depois da morte da esposa:
“Aqui
sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às
vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece,
digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a
pensar, levanto-me, chego à janela que deita para a horta.”
Quando a vida de Paulo Honório parece perder todo o
sentido a narrativa começa. Eis um novo percurso, um novo rumo à procura de
valores autênticos, as veredas trilhadas por um personagem problemático. Antes
Paulo Honório apareceu inteiro e dominador. Depois fragmentado, perdido, sem
vontade de agir – angústia de quem começou a se conhecer, de quem percorreu o
labirinto da memória e não achou a saída. Para Luís Lafetá esta parte da narrativa tinge-se de Lirismo e se afasta da “objetividade épica”.
No tempo do
enunciado, a objetividade do narrador é visível. No tempo da enunciação as marcas da subjetividade se fazem notar
bem como o fluxo de consciência.
As dúvidas do narrador quanto à traição de Madalena
– o ciúme que lhe rouba a certeza – também abala a estrutura do narrador
onisciente. Não podemos deixar de perceber, no entanto, os dois planos de
representação a justificar tais fatos. O narrador parece – muitas vezes –
perder o domínio sobre o tempo, sobre a precisão da hora, fato que se justifica
pela inquietação em que se encontrava o narrador no instante de escrever. É
neste ponto que irrompe a escuridão do mundo interior que muitas vezes se
anuncia.
Através do pio agourento das corujas, da
imobilidade de um “herói derrotado” pelo seu mundo interior, pela solidão.
É importante destacarmos ainda o estilo Graciliano Ramos.
– a construção de um texto enxuto, conciso, claro
(A preocupação com o fazer literário – METALINGUAGEM).
– o uso de uma sintaxe clássica, a economia quanto
aos adjetivos.
– o elemento regional ganha em universalidade.
– predomínio de um realismo crítico, consciente – o
herói é problemático.
Estrela
da Manhã – (Publicação – 1936)
“Modelo de uma poesia lírica a que se mistura IRONIA e mesmo o sarcasmo. A poesia
evolui num certo sentido humorístico, num certo sensualismo (Canção das Duas Índias “Entre estas Índias de leste /
E as Índias ocidentais / Meu Deus que distância enorme / (...) Sirtes sereias
medéias / Púbis a não poder mais...” Balada
das Três Mulheres do Sabonete Araxá, as mulheres que hipnotizam o poeta, as
mulatas cor da lua, as celestes africanas, “as prostitutas, as declamadoras, as
acrobaras ou as Três Marias?), um erotismo que parece não se concretizar, pois
as mulheres, as duas índias são comparadas às inacessíveis praias – o humor
amargo” à maneira dos ingleses Oscar Wilde e Lord Byron”.
O eu-poético começa procurando a estela da manhã
“Eu quero a estrela da manhã” – O que seria afinal essa estrela? Abre-se aqui
um campo de interpretações (texto aberto) – e termina encontrando apenas a
estrela Vésper (o ocaso, o fim da tarde será o fim da vida? “Vésper em cuja
ardência não havia a menor parcela de sensualidade”. Quer a estrela-d’alva, a rainha do mar, quer
apenas ser feliz e poder descansar. O eu-poético se sente só e sua busca parece
resultar em nada” (...) gritava o seu nome três vezes / Dois grandes botões de
rosa murcharam / e o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo
insatisfeito de Deus.” A saída parece nunca existir, fato que se repete em Conto Cruel. O pai que sofria de UREMIA
toma injeção de sedol, mas não consegue dormir e “Jesus-Cristinho” nem se
incomoda com os apelos.
A amargura do eu-poético, a sua solidão deixa-se
notar no poema Marinheiro Triste.
Compara sua vida com a do marinheiro. O poeta é uma pessoa amargurada, de uma
amargura “nobre e funda”, uma tristeza consciente (assim como a do poeta da
“vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.) O destino do marinheiro,
seu lugar seguro é o navio (“o feroz casco sujo amarrado ao cais” para onde
volta mesmo sem saber se será feliz (deveria voltar bêbado?). Ao marinheiro
restará no mínimo) o horizonte imenso”,
mas ao poeta nada restará. Talvez a morte. Morte que contempla em Momento num café ao olhar um esquife
que passava.
No percurso da busca, o eu-poético faz reflexões
sobre o beco. O beco que aprendeu a cantar num dístico (poema de dois versos).
A temática social (pouco freqüente nos textos do
poeta) aparece também na prosa poética Tragédia
brasileira e em Rondós dos
Cavalinhos. Veja que o crime ou a tragédia brasileira – o assassinato de
Maria Elvira – ocorreu na rua da Constituição (será que poderemos remeter aos
crimes, assassinatos na época da ditadura?). Maria representa a gente do povo e
Misael trabalha para o governo – Ministério da Fazenda. Metaforicamente ele é o
Governo e ela é a prostituta (Bandeira tem admiração especial pelas
prostituídas – por ser uma excluída?). Para José de Nicola, Misael, num gesto
populista, comprou Maria Elvira (= povo) com algumas coisas (pseudo-paternalismo),
o mesmo que fez Getúlio Vargas antes de preparar o golpe de Estado (governo
populista), comprou o povo a fim de garantir-se no poder. Vale destacar que
quando o crime ocorreu, Maria Elvira
morava na Rua da Constituição e Misael já era um sujeito, “privado de
sentimentos e inteligência”. Na Constituição estariam algumas contradições?
Como esse poema foi escrito na década de ‘30 – a
era Vargas – talvez a Tragédia
Brasileira tenha uma ligação com o momento político em que vivíamos.
Vale destacar que Bandeira mexeu com a estrutura da
tragédia à maneira dos gregos, pois os personagens pertencem a uma classe que
não é dominante, ou seja, é gente do povo.
Já em Rondó dos Cavalinhos o poeta se mostra mais
irônico, sarcástico ao falar (indiretamente) do Brasil político, um Brasil
distante do elemento sensível: “O Brasil politicando, / Nossa! A poesia
morrendo...”.
A metrificação curta e o ritmo leve aparecem
principalmente em Cantiga
(pentassílabos – redondilha menor). O ritmo leve das brincadeiras infantis é
exibo também com Boca de Forno (intertexto)
e Trem de Ferro. Neste último,
podemos perceber a língua errada do povo’, ‘língua certa do povo’, ou seja, o
jeito de o brasileiro falar, como falamos, como somos. O recurso da polifonia a
permitir a voz do outro no texto: “Oô... / Quando me prendero / no canaviá /
Cada pé de cana / Era um oficiá / Oô ... / menina bonita / Do vestido verde / me
dá tua boca / Pra matá minha sede / Oô ... / Vou mimbora vou mimbora / não
gosto daqui / nasci no sertão / sou de Ouricuri / Oô ...”
Além dos temas desenvolvidos por Bandeira (a
família, a morte, a infância no Recife, o Rio Capibaribe) podemos destacar a preocupação
do poeta com os outros: os mendigos, os meninos carvoeiros, as prostitutas, os
carregadores de feira-livre, as ‘pálidas crianças, tristes, asiladas, os
meninos sem amor de mãe e que viviam de caridade, em vestes tristes como
mortalha. As Irenes pretas, os Joões gostosos, as flores muchas da vida a
cobrar do eu-poético esperanças. Flores
Murchas é um poema que funciona como um canto de solidariedade ao povo, um
povo que também precisa da Estrela da Manhã.
Bandeira é ainda o poeta das lembranças: a
infância, o Recife, Juiz de Fora e
suas manhãs, suas “jabuticabeiras cansada de doçura, o cineminha namoriqueiro,
o parque senhorial, os bondes dando sem pressa voltas vadias, o primeiro
sorriso da doce província de Minas Gerais. O poeta em Declaração de Amor lembra o poeta Mauro Mota na busca do tempo na
Farmácia, um tempo “tão de dentro deste Brasil”.
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