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domingo, 26 de junho de 2016

LITERATURA, SOCIEDADE E MEMÓRIA


por Moisés Monteiro de Melo Neto



O repertório do leitor interfere diretamente na recepção do material histórico/pessoal recomposto em forma literária.
Literatura é sempre memória e sociedade. O mais recluso e abstrato dos autores está ligado a sua obra num ciclo “inescapável” de produto. Produção-processo.
Aos cânones dominantes (do popular e do erudito) cabe a tarefa de expor como os textos se deixam interpretar pela experiência divina.
Os temas dominantes (e tema é sempre problema?) ou recorrentes e seus desdobramentos refletem algo da memória, pela tentativa de superar o esquecimento ou reconstruí-la. A memória que pode, na literatura, ser uma faculdade épica, tende a dialogar com outros gêneros literários também. O desenho da sociedade é executado, também, em palimpsesto, mimesis, espelho, imitação (em tosca tradução latina do Grego) já que compartilhar uma herança também significa história, busca de uma memória individual fundindo-se a uma coletiva (construção referida em obra artística) que conserva/altera imagens do passado em fusão, difusão, profusão.
As condições sociais sob quais uma obra é produzida e estudada posteriormente (em futuros horizontes de expectativa inclusive) tem sido objeto de estudo pela Academia. A demarcação dos territórios, literatura/memória/sociedade, vai além do aparato artístico dado na reelaboração das visões pessoais ou sociológicas.
E claro que a obra não é pretexto para denuncias sociais ou subjetivismo sufocantes. Mas há claro, correlações entre os aspectos reais e os que aparecem nos livros. Interessante observar, por exemplo, como a sociedade pernambucana está presente em “um sábado em 30” e “viva” o cordão encarnado” de Luiz Marinho: A quem esta obra foi destinada, sua aceitação e como se deu esta “reciprocidade”.
Poderíamos questionar aqui a função da literatura. Se encontrássemos algo de biográfico nos romances urbanos de Alencar, naquele reinado de época sobre o qual ele se debruçou: o fato de ter sido preterido por suas desavenças com Pedro II e a sua posterior crítica (à clef) ao imperador no romance “Guerra dos mascates” (cujo enredo é ambientado no século XVIII). A função social do escritor na formação da sociedade, algo tão discutido por intelectuais do porte de Gramsci e do húngaro Lukács. Faz-nos lembrar sempre que além de tudo o aspecto ideológico a construção artística (e suas respectivas regras) tem uma “economia interna”, no inesquecível dizer de Antonio Cândido, e qualquer mimese é uma relação arbitrária e deformante da realidade em nome da expressão artística. Os fatores sociais e os psíquicos são decisivos para literária que de modo algum dispensa a estética.
Se a sociedade patriarcal está refletida em “Dom Casmurro”, ou a crítica social e psicológica faz-nos pressentir o outro em “memórias do cárcere” de Graciliano, antes de mais nada, temos a discussão/revisão da memória na ficção e na realidade resgatada; por isso a visão da sociedade atua como fator estético, nos alertou, dentre outros, Lucien Goldmann.
Erich Auerbach fundiu processos estilísticos com métodos históricos/sociológicos  para investigar os fatos da literatura. O método estilístico-sociológico: o social filtrado na concepção estética.
Quando Nabuco revisita sua infância no Engenho Massangana, já com os olhos de um político/escritor, nos leva até aquela capela temos que levar em consideração o jogo de fatores que condicionaram e motivaram aquele livro. João Cabral, Bandeira, Drummond, usaram sua memória para contextualizar suas criações. Mas lembremos que o poeta possui o seu próprio escolho, não é resultante nem refletor simplesmente: ele combina, transforma e cria. Qual a influencia exercida pela obra de arte sobre o meio? (em complementação ao determinismo). As apóstrofes de Castro Alves ou textos de Martins Pena.
Fernando Monteiro reflete criticamente suas opiniões em “O grau Grauman” recriando determinada visão em relação à arte/literatura. Sartre em “A idade da razão” coloca em xeque alguns valores sociais e incita um determinado modo de ver a vida, atraído existencialismo, propondo renová-la. Há um jogo dialético em andamento: expressão grupal e as características individuais do artista (ambas indissoluvelmente ligadas).
A literatura como sistema simbólico de comunicação inter-humana pressupõe jogo permanente entre obra, autor e público: criação e reação.
A memória produz o objeto biográfico, refaz, faz reaparecer o feito e o ido, nunca será mera repetição. A memória não pode ser banida e faz-se necessário transcrevê-la noutras linguagens e usá-la como matéria-prima para novas reflexões que dialoguem com o presente, e, é com a inteligência deste que ela deve Sr evocada. A memória alarga as margens do presente. A literatura (e a sociedade) também se tecem como os fios da lembrança. Se a ciência às vezes simplifica e generaliza, a memória vai buscar densidades, vai buscar origens (matéria prima) no “agir-lembrar”. A atividade mnêmica deve evocar, mas não ser simples repetição. A sociedade se repensa pela memória. A literatura elabora esteticamente a memória é instrumento socializador, sua abordagem pela academia exige método.

II
IDENTIDADE NACIONAL

A linguagem na literatura fundando uma nação: o projeto do romantismo desde suas raízes européias e o seu estabelecimento na França revolucionária no final do Séc. XIX. Alencar e Dias num projeto que, ufanismos à parte, trouxeram para a lista a missão de concretizar um caráter. A natureza, a memória a representação, a formação. Hoje que temos as velhas identidades em declínio e parecem deslocadas ou descentradas, este conceito que é tão complexo, parece afastar-se cada vez mais do sujeito do iluminismo, ou do sujeito sociológico, estabelece-se de forma mais intensa o contato com os mundos culturais exteriores e identidades que estes mundos oferecem.
A costura do sujeito à estrutura nacional vai se segurando ainda por antigos projetos como às criticas à cordialidade vida privada que vai à vida pública) ou a miscigenação. É claro que uma identidade plenamente unificada é uma fantasia. A tradição é apenas um meio de lidar com o tempo e o espaço. A experiência de continuidade, mostra-se frágil diante das transformações de tempo e esforço. Os tipos tradicionais de ordem social sofrem rupturas e fragmentações, há uma busca de pluralidade de centros de poder.
A estrutura da identidade permanece aberta. Esse deslocamento passa por um sistema de valores.
As faculdades de Direito instaladas no Brasil no século XIX aglutinam mentes que alicerçaram os princípios da identidade nacional. O projeto brasileiro no romantismo foi buscar nos documentos quinhentistas argumentos que justificassem um orgulho ancestral. Os poemas épicos do arcadismo prenunciavam a identidade que no pós-cristianismo se estabeleceria recorrendo ao índio e ao ambiente.
Castro Alves com seus poemas epolíricos plasmou a consciência da democracia, embora ainda idealizando certos aspectos de nossa sociedade. A expressão intelectual de um povo é uma das missões da literatura. Os recitativos, os discursos, obras literárias do século XIX fomentariam uma discussão maior no inicio do século XX quando esta questão de identidade tornaria-se central mais uma vez, só que então com uma consciência maior dos recursos vanguardísticos europeus. O prenúncio Pré-Modernista de Sertões,subúrbios e zona rural foi estrondoso. A busca das raízes parecia revelar dados estarrecedores e seu impacto foi notável. A teoria determinista apontava para um meio corrupto, de fanatismo religioso, hipócrita, decadente. A identidade nacional aparecia por trás da máscara Parnasiana de Bilac e logo se tornaria um poema – piada ou uma rapsódia urdida em moldes brasileiros. O projeto Modernista exigiu a identidade através da carnavalização e da aceitação dos erros. Esta blindagem do grupo de 22 propunha revisão/análise pondo em crise o conceito romântico de identidade miscigenada de branco com índio e introduziu o negro e outros elementos europeus.
O proletário, o caboclo, o intelectual(vanguarda ou não) todos em busca de desrecalque eram tema de intenso debate na criação literária. Parecia que os tristes tópicos do futuro estruturalismo apresentavam paradoxalmente a alegria como dogma. A ruptura não tardaria e o grupo Verde-amarelista exibia suas novas cores combinadas com o fascismo. A redenção da “mancha” da mensagem que vinha desde o séc XVIII sendo unida parecia ter chegado ao cume. O jardim das noticias reveria o progresso e a folia. Era a justificação do brasileiro, a consciência de sua individualidade, que não excluía de forma alguma seu caráter ambíguo.
A literatura cumpriu assim seu papel essencial de reorganizar o mundo (em termo) de arte escrita.
Mas a identidade nacional ainda seria posta em xeque pelo Regionalismo de 30; seca, desigualdade social, coronelismo, cangaço, comunismo, psicologia. O urbano e o não urbano, a cultura, os costumes. O imenso caleidoscópio continuava a exibir novas possibilidades e outros argumentos, para a questão identidade sua inter-relação dinâmica com a literatura (não necessariamente nessa ordem).
Parecendo então que a identidade de um ovo está expressa em sua literatura já que só podemos entendê-la fundindo texto e contexto. A identidade do autor e a maneira como ele vê o outro (o externo, no caso, o social, que se transforma/funde em interno – na estrutura da obra).
A geração 45 ao refletir o chamado Pós-Modernismo mergulhou na recriação da linguagem em busca da expressão da não-identidade, ou deslocamento das formas pré-estabelecidas de escrita.

A poesia de linguagem elíptica, a prosa de o Sertão-mundo, o fluxo de consciência em queda abissal projetam a imagem de uma identidade poética que, vivida entre rural e urbano e examinada, o psíquico e o social, a denuncia e o segredo-mistério concluindo-se em leminiscata. O enigma dos Quadernas posteriores, a volta ao ibérico refundido ao sertão místico, os nordestinos fragmentados nos vitrais/mosaicos de região nenhuma que Osman Lins desenha parece-nos menos de que anseia por uma identidade, mantê-la como reserva artística. A projeção dos antigos arquétipos sobre os novos modelos, a sombra severa, os rios turvos, patriarcalismo em crise, o capital, o religioso a identidade forjada as pressas num mundo que procura entender-se ansiosamente ocidental. A construção artística na economia do livro que pede uma critica além do sociológico, psicológico-linguístico, uma crítica que utilize livremente elementos capazes de conduzir a uma interpretação coerente (inclusive) sobre a questão da identidade nacional na literatura.             

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