Caro amigo,
Você bem o sabe, nunca consegui fitar a morte; para mim é a
mesma coisa que tentar fitar o sol fixamente. Desculpe-me por não ter escrito
antes, mas tudo foi tão repentino que, confesso, fiquei horrorizado. Não se
deve ter saudades de como as coisas boas eram nem rancor pelos maus momentos,
não é? A imagem da mulher que amei (enquanto estava com ela eu não sabia
disso), morta daquele modo tão... tão... bárbaro, eu vi as fotos, devastou
minha estabilidade emocional; só agora, não posso mais estar com ela novamente
em meus braços, começa a vê tudo que aconteceu conosco por um ângulo mais
sóbrio.
Antes, a maneira covarde como os amigos se omitiram, do mesmo
modo como alguns bandearam para o lado dela, com seus interesses mais escusos
em evidência, ou mesmo do modo fortuito, aleatoriamente... tudo isso somado a
uma falta de fé cada vez maior, quase me levou à depressão.
Você deve estar estranhando uma carta, em vez de um telefonema.
Eu havia jurado evitar qualquer narrativa escrita. Prometi abandonar de vez a
literatura. Mas... aqui está: bem na sua frente, o meu primeiro desabafo depois
da maior dor da minha vida (ainda dói). A traição dela foi uma coisa tão
perfeita que até agora me pergunto como pude ser tão idiota e não prever que
ela estava alimentando aquela vingança. Não imaginava a espécie de feitiço que
me aguardava nem, muito menos, nada parecido com o que a vitimou, pobre
mulher. Ela nunca foi feliz. Eis a
verdade. Sempre tramando, manipulando as pessoas. Sem contar o caso de abuso na
infância, tudo fazia dela uma mulher marcada. Brigamos muito, mas eu nutria um
sentimento profundo por nossa falecida. Pobrezinha. Fosse eu um tipo especial
de cardiologista, pronto para operar aquele coração doentio dela... eu o teria
feito.
Ela tinha 57 anos, mas era como se tivesse começando a viver
naquele momento, tal era a vitalidade dos gestos, que até hoje se debatem na
minha memória, desde que fugi do Recife e vim para cá.
Os mortos falam? Será que existe vida após a Morte? Talvez sim,
mas muito provavelmente só através das mentes dos vivos.
Tento lembrar dos momentos com ela, lá em Notting Hill, mas é
inútil, há coisas que não podem ser refeitas nem nos labirintos do cérebro
humano. Ontem, passeando por Portobello Road, prestei mais atenção ao som do
reggae, discordante e ao mesmo tempo harmônico, na letra e na música.
Distraí-me, com jornais e revistas de um bar, tentava, naquele lugar, fugir do
palácio mal assombrado onde parte das minhas lembranças moram. Pensei nos
cabelos da morta, lembrei-me da propaganda de tintura barata.
Uma noite, recordo como se fosse hoje, ela me disse mais ou menos
assim: sinto-me como Satã, sendo condenado a vagar, em sua condição de anjo, num
tipo de império de água e ar. Parte de sua punição era não ter local fixo onde
pudesse descansar os pés. Também eu, agora, não tenho lugar fixo para colocar
os pés. Londres, Nova York; minha trajetória tem sido assim: bom humor,
mistério, fábulas, alegorias, jogo de palavras, amor e... provocação. E essa
minha sede de ver a vida como mistura da unidade e continuidade da cultura
ocidental é condimentada com tempero do Oriente. Às vezes eu me sinto como num
romance à clef, numa história
codificada, onde personagens reais aparecem com nomes falsos e transfiguradas, e,
bem sabemos, eu tenho essa minha ideia sobre nossas almas.]
Eu não gosto da cultura
animalesca que domina o planeta Terra. Essa cachorrada com a qual ela se
envolveu, eu sabia que não ia acabar bem. Eu procurei lidar com moderação nos
casos dela de amoralidade, ironia, violência cômica, sadismo, mas não deu
certo; ela era muito atrevida, mas nem
nos sonhos mais selvagens eu a imaginei trucidada por alguém a quem ela
desgraçou, ou pelo menos tentou isso.
No fundo eu achava que ela era uma mulher, digamos assim, boa. Como
uma atriz dramática que queria se especializar em comédias do tipo Almodóvar,
uma espécie de anti-heroína, mas ela se metamorfoseou num demônio típico, na
mente de muitos dos seus inimigos, de pêlos, chifres e rabo. Depois que recebi
a notícia do crime, imaginei, com horror profundo que sinto pela violência, um
narrador a estilhaçar a trama da nossa existência, em várias unidades e voyeuristicamente observando
tudo com uma sensualidade lambuzada de malícia obsessiva.
Eu continuo o mesmo, meus defeitos continuam intactos. Preciso
sair desta letargia, rápido. Meu espírito busca a paz. Estou disposto a pagar o
que for necessário por isso. Detesto me sentir preso ao que já passou.
A lembrança dela cruza a minha memória. Se o Grande Arquiteto do
Universo fosse um narrador, sua conversa com o leitor, com certeza, dinamizaria
toda a narrativa, na qual nossa
maliciosa leitura reescreve, através da percepção, tiradas cômicas.
Não volto tão cedo à nossa cidade. Há muito tempo eu tirei da
minha mente o sonho de um retorno glorioso.
Hoje veio uma frase na minha cabeça: “Que artista teria sido Disney se
não tivesse coração. Esta foi sua falha trágica." Mas o erro dela foi
justamente a frieza, a dissimulação.
Como disse à sua irmã, tenho ido a todos os lugares que
visitamos juntos, eu e ela, há alguns anos atrás. Tudo parece agora puro acaso,
o amor, a fala, o pensamento, eu como escritor não consigo reproduzir, não. Por
mais que eu tente. Também não vou lançar meu barco ébrio num rio de lágrimas.
Isso, não. O tempo recriado é como um castelo de cartas. O que é o nada? É tudo
que está do lado de cá do espelho. Eu vou me fundindo com o que não consigo
compreender, nessa sonolência hipnótica que toma conta de mim, na busca da
“verdade” desta estranha situação, contra a qual eu quase nada posso, além do
exercício repetitivo desta carta que lhe mando.
Agora vamos falar de outra coisa. Certo?
O meu amigo, com quem estou dividindo as despesas de uma casa
aqui na Inglaterra, ensina Literatura e tem contatos que você nem imagina.
Temos conversado muito. Ele é budista, é tudo tão surpreendente e tão possível
que eu, de certa forma, estou superando esta minha maldita ansiedade e
encontrando um caminho para remendar meu coração partido e ensiná-lo a ser
feliz novamente, neste quase verão londrino.
Há uma atitude que não depende da sorte. É uma espécie de escolha
que parece nos destinar às grandes causas. Como um prêmio que damos a nós
mesmos; algo que nos faz assumir as diferenças dos outros, e que, às vezes nos
coloca num patamar superior, não superior ao outro, mas a nós mesmos enquanto
seres de angústia.
Sei que perdi dinheiro com a venda do apartamento. Mas, somando
tudo, tenho grana para passar dois anos sem trabalhar, penso em fazer o meu pós-doc
por aqui, você sabe. As coisas são mais fáceis do que pensávamos. Tem
também aquele lance de passar seis meses no Tibet. Ah,
caríssimo! O exílio é um país sem alma.
E o Recife, como está?
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