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quarta-feira, 15 de junho de 2016

Carta de Londres




Um conto de moisesmonteirodemeloneto



Caro amigo,

Você bem o sabe, nunca consegui fitar a morte; para mim é a mesma coisa que tentar fitar o sol fixamente. Desculpe-me por não ter escrito antes, mas tudo foi tão repentino que, confesso, fiquei horrorizado. Não se deve ter saudades de como as coisas boas eram nem rancor pelos maus momentos, não é? A imagem da mulher que amei (enquanto estava com ela eu não sabia disso), morta daquele modo tão... tão... bárbaro, eu vi as fotos, devastou minha estabilidade emocional; só agora, não posso mais estar com ela novamente em meus braços, começa a vê tudo que aconteceu conosco por um ângulo mais sóbrio.
Antes, a maneira covarde como os amigos se omitiram, do mesmo modo como alguns bandearam para o lado dela, com seus interesses mais escusos em evidência, ou mesmo do modo fortuito, aleatoriamente... tudo isso somado a uma falta de fé cada vez maior, quase me levou à depressão.
Você deve estar estranhando uma carta, em vez de um telefonema. Eu havia jurado evitar qualquer narrativa escrita. Prometi abandonar de vez a literatura. Mas... aqui está: bem na sua frente, o meu primeiro desabafo depois da maior dor da minha vida (ainda dói). A traição dela foi uma coisa tão perfeita que até agora me pergunto como pude ser tão idiota e não prever que ela estava alimentando aquela vingança. Não imaginava a espécie de feitiço que me aguardava nem, muito menos, nada parecido com o que a vitimou, pobre mulher.  Ela nunca foi feliz. Eis a verdade. Sempre tramando, manipulando as pessoas. Sem contar o caso de abuso na infância, tudo fazia dela uma mulher marcada. Brigamos muito, mas eu nutria um sentimento profundo por nossa falecida. Pobrezinha. Fosse eu um tipo especial de cardiologista, pronto para operar aquele coração doentio dela... eu o teria feito.
Ela tinha 57 anos, mas era como se tivesse começando a viver naquele momento, tal era a vitalidade dos gestos, que até hoje se debatem na minha memória, desde que fugi do Recife e vim para cá.
Os mortos falam? Será que existe vida após a Morte? Talvez sim, mas muito provavelmente só através das mentes dos vivos.
Tento lembrar dos momentos com ela, lá em Notting Hill, mas é inútil, há coisas que não podem ser refeitas nem nos labirintos do cérebro humano. Ontem, passeando por Portobello Road, prestei mais atenção ao som do reggae, discordante e ao mesmo tempo harmônico, na letra e na música. Distraí-me, com jornais e revistas de um bar, tentava, naquele lugar, fugir do palácio mal assombrado onde parte das minhas lembranças moram. Pensei nos cabelos da morta, lembrei-me da propaganda de tintura barata.
Uma noite, recordo como se fosse hoje, ela me disse mais ou menos assim: sinto-me como Satã, sendo condenado a vagar, em sua condição de anjo, num tipo de império de água e ar. Parte de sua punição era não ter local fixo onde pudesse descansar os pés. Também eu, agora, não tenho lugar fixo para colocar os pés. Londres, Nova York; minha trajetória tem sido assim: bom humor, mistério, fábulas, alegorias, jogo de palavras, amor e... provocação. E essa minha sede de ver a vida como mistura da unidade e continuidade da cultura ocidental é condimentada com tempero do Oriente. Às vezes eu me sinto como num romance à clef, numa história codificada, onde personagens reais aparecem com nomes falsos e transfiguradas, e, bem sabemos, eu tenho essa minha ideia sobre nossas almas.]
 Eu não gosto da cultura animalesca que domina o planeta Terra. Essa cachorrada com a qual ela se envolveu, eu sabia que não ia acabar bem. Eu procurei lidar com moderação nos casos dela de amoralidade, ironia, violência cômica, sadismo, mas não deu certo;  ela era muito atrevida, mas nem nos sonhos mais selvagens eu a imaginei trucidada por alguém a quem ela desgraçou, ou pelo menos tentou isso.
No fundo eu achava que ela era uma mulher, digamos assim, boa. Como uma atriz dramática que queria se especializar em comédias do tipo Almodóvar, uma espécie de anti-heroína, mas ela se metamorfoseou num demônio típico, na mente de muitos dos seus inimigos, de pêlos, chifres e rabo. Depois que recebi a notícia do crime, imaginei, com horror profundo que sinto pela violência, um narrador a estilhaçar a trama da nossa existência, em várias unidades e voyeuristicamente observando tudo com uma sensualidade lambuzada de malícia obsessiva. 
Eu continuo o mesmo, meus defeitos continuam intactos. Preciso sair desta letargia, rápido. Meu espírito busca a paz. Estou disposto a pagar o que for necessário por isso. Detesto me sentir preso ao que já passou.
A lembrança dela cruza a minha memória. Se o Grande Arquiteto do Universo fosse um narrador, sua conversa com o leitor, com certeza, dinamizaria toda a narrativa,  na qual nossa maliciosa leitura reescreve, através da percepção, tiradas cômicas.
Não volto tão cedo à nossa cidade. Há muito tempo eu tirei da minha mente o sonho de um retorno glorioso.
Hoje veio uma frase na minha cabeça: “Que artista teria sido Disney se não tivesse coração. Esta foi sua falha trágica." Mas o erro dela foi justamente a frieza, a dissimulação.
Como disse à sua irmã, tenho ido a todos os lugares que visitamos juntos, eu e ela, há alguns anos atrás. Tudo parece agora puro acaso, o amor, a fala, o pensamento, eu como escritor não consigo reproduzir, não. Por mais que eu tente. Também não vou lançar meu barco ébrio num rio de lágrimas. Isso, não. O tempo recriado é como um castelo de cartas. O que é o nada? É tudo que está do lado de cá do espelho. Eu vou me fundindo com o que não consigo compreender, nessa sonolência hipnótica que toma conta de mim, na busca da “verdade” desta estranha situação, contra a qual eu quase nada posso, além do exercício repetitivo desta carta que lhe mando.
Agora vamos falar de outra coisa. Certo?
O meu amigo, com quem estou dividindo as despesas de uma casa aqui na Inglaterra, ensina Literatura e tem contatos que você nem imagina. Temos conversado muito. Ele é budista, é tudo tão surpreendente e tão possível que eu, de certa forma, estou superando esta minha maldita ansiedade e encontrando um caminho para remendar meu coração partido e ensiná-lo a ser feliz novamente, neste quase verão londrino.
Há uma atitude que não depende da sorte. É uma espécie de escolha que parece nos destinar às grandes causas. Como um prêmio que damos a nós mesmos; algo que nos faz assumir as diferenças dos outros, e que, às vezes nos coloca num patamar superior, não superior ao outro, mas a nós mesmos enquanto seres de angústia.
Sei que perdi dinheiro com a venda do apartamento. Mas, somando tudo, tenho grana para passar dois anos sem trabalhar, penso em fazer o meu pós-doc  por aqui, você sabe. As coisas são mais fáceis do que pensávamos. Tem também aquele lance de passar seis meses no Tibet. Ah, caríssimo! O exílio é um país sem alma.
E o Recife, como está?

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