Marcondes Lima e André Brasileiro: Nossos (ossos)
por Moisés Monteiro de Melo Neto
Neon-barroquismo? Trompe-l´oeil? A estreia da peça Nossos foi durante a celebração do São João, na terra do forró, do xaxado, das quadrilhas. NOSSOS é, dentre outros aspectos que poderíamos destacar, uma peça sobre encontros e
desencontros. Os personagens-urubus rodam os personagens "humanos" e se vangloriam de só comerem mortos,
não matarem ninguém, enquanto nossa raça é assassina por natureza.
O personagem central, Heleno, vive em São Paulo, é escritor nordestino já amante de certos aspectos da cidade brasileira mais cosmopolita do país; ele é dramaturgo, ou pelo menos diz entender da linguagem do teatro.
Começa então um jogo da metalinguagem com vários elementos teatrais, na montagem do romance Nossos Ossos, pelo Coletivo Angu de Teatro, no Recife (Teatro Apolo, 24 de junho de 2016), rebatizada, simplesmente de Nossos.
No elenco, afinado, dois talentos chamam atenção por suas performances: Arilson Lopes e Ivo Barreto. André Brasileiro e Marcondes Lima encarnam dois personagens desafiadores e é com desenvoltura que eles tantalizam a plateia. A direção e concepção geral do último, trazem no seu bojo outros Ossos, os nossos. Fantasmas da memória coletiva de um Recife (coisas que já nem existem como o a questão sexual nos antigos cinemas da cidade, como o Moderno, o Veneza, o Trianon, Astor, Ritz), e a menção a pessoas e coisas que só encontramos agora nos espaços da memória ou se as alavancarmos de um mangue, ou de um sertão distante: o esquecimento. Tudo nessa diegese é fragmentado, desconstruído, exibido em cenas com tendências cubo-expressionistas, e a peça vai se tecendo como um quebra-cabeças, espécie de bric-à-brac com direito a golpes de teatro.
Do mesmo modo que o personagem Heleno retrabalha
a verdade ao seu modo, o espetáculo trabalha a questão da densidade
psicológica, o clima de cabaré, e mesmo a questão cultural (as referências a Carmem
Miranda e Fafá de Belém merecem especial atenção) é abordada de um jeito que é peculiar nas montagens dos
artistas deste grupo (já vi algumas delas e elas obtiveram sempre
sucesso), como na revelação final do motorista (em Nossos).
Às vezes algo (do texto) nos lembra Plínio Marcos, mas o estilo de Marcelino tem voz própria (ou busca a polifonia, com certa angústia) e logo algumas luzes são direcionadas para algo que logo nos chama a atenção pela sua importância e peculiaridade: a literatura (pernambucana, ufa!) que quer ser "vida", quer se mostrar "carne", fricção; e não estou falando aqui só no fato de ser um espetáculo teatral e de teatro ser (?) ação.
A voz pernambucana explode, estridente, rascante, como vinho que deixa travo na garganta, a tal cabralina faca só lâmina. A loucura dança com a razão, Eros e Tânatos se beijam, sodomizam-se, para melhor dizer.
Senti falta da música de Henrique Macedo, presente em todas as composições anteriores que temperaram o Coletivo Angu de Teatro. Agora temos Juliano Holanda (gostei muito do trabalho que ele fez em A gloriosa vida e o triste fim de Zumba sem dente, montagem do conto de Hermilo Borba Filho O traidor), que vem de outros trabalhos aplaudidos.
O personagem central, Heleno, vive em São Paulo, é escritor nordestino já amante de certos aspectos da cidade brasileira mais cosmopolita do país; ele é dramaturgo, ou pelo menos diz entender da linguagem do teatro.
Começa então um jogo da metalinguagem com vários elementos teatrais, na montagem do romance Nossos Ossos, pelo Coletivo Angu de Teatro, no Recife (Teatro Apolo, 24 de junho de 2016), rebatizada, simplesmente de Nossos.
No elenco, afinado, dois talentos chamam atenção por suas performances: Arilson Lopes e Ivo Barreto. André Brasileiro e Marcondes Lima encarnam dois personagens desafiadores e é com desenvoltura que eles tantalizam a plateia. A direção e concepção geral do último, trazem no seu bojo outros Ossos, os nossos. Fantasmas da memória coletiva de um Recife (coisas que já nem existem como o a questão sexual nos antigos cinemas da cidade, como o Moderno, o Veneza, o Trianon, Astor, Ritz), e a menção a pessoas e coisas que só encontramos agora nos espaços da memória ou se as alavancarmos de um mangue, ou de um sertão distante: o esquecimento. Tudo nessa diegese é fragmentado, desconstruído, exibido em cenas com tendências cubo-expressionistas, e a peça vai se tecendo como um quebra-cabeças, espécie de bric-à-brac com direito a golpes de teatro.
Às vezes algo (do texto) nos lembra Plínio Marcos, mas o estilo de Marcelino tem voz própria (ou busca a polifonia, com certa angústia) e logo algumas luzes são direcionadas para algo que logo nos chama a atenção pela sua importância e peculiaridade: a literatura (pernambucana, ufa!) que quer ser "vida", quer se mostrar "carne", fricção; e não estou falando aqui só no fato de ser um espetáculo teatral e de teatro ser (?) ação.
A voz pernambucana explode, estridente, rascante, como vinho que deixa travo na garganta, a tal cabralina faca só lâmina. A loucura dança com a razão, Eros e Tânatos se beijam, sodomizam-se, para melhor dizer.
Senti falta da música de Henrique Macedo, presente em todas as composições anteriores que temperaram o Coletivo Angu de Teatro. Agora temos Juliano Holanda (gostei muito do trabalho que ele fez em A gloriosa vida e o triste fim de Zumba sem dente, montagem do conto de Hermilo Borba Filho O traidor), que vem de outros trabalhos aplaudidos.
O jogo com uma possível reificação dá-se de forma discreta e quase inquietante. A AIDS é mostrada, no modo como o texto a trabalha, como fronteira que se cruza com viés quase maniqueísta. As cenas de sexo entre dois homens, ou mesmo a questão da homoafetividade (um senhor sentado na fileira da frente disse: "saudade de Fassbinder"),
tentam escapar do óbvio e do meramente simbólico para contextualizar um afeto
rizomático, sem centro, sem começo nem fim, amor colhido na marginalidade, nas encruzilhadas das almas com o dinheiro, do corpo com algo que poderia ser espírito,
mas este só resplandece em sentido metafórico quando um personagem, o motorista
do carro funerário faz o jogo que você só vai entender no final, quando obra
busca mais poesia e enigma, o que a faz construção em abismo.
Moreno Tropicano, assim ele o chamava
André Brasileiro e Daniel Barros, em cena da peça
A trama tem cheiro de verdade. O autor tenta convencer o espectador de
que aquilo é verdade: são citados nomes como o de Ilza Cavalcanti, a quem tive
o prazer de conhecer quando trabalhei com Leandro Filho, a pedido de Geninha da
Rosa Borges, num oratório dramático.
O professor (UFPE) Marcondes Lima, metteur en scène, surge na pele de uma mulher que nasceu
homem. Usa modelos deslumbrantes e canta, sim, há vários momentos para exibição dos dotes musicais do elenco; eles, os atores, estão imersos num palco seminu, a
iluminação do veterano Jathyles Miranda cria um clima que tanto exibe quanto
esconde os personagens, num Fort-Da excitante; a sutil elegância da coreografia de Lilli Rocha e Paulo
Henrique Ferreira é pepita que dá prazer olhar; a grife amorosa de figuras encantadoras como Nínive Caldas, tem charme
ímpar. E ver lá atrás, em cena, espetáculo já concluído, a camareira Irani
Galdino (lembrou-me o ponto de fuga do quadro que apreciei no Museu do Prado, em Madri, "As Meninas", de Diego Velázquez, que como Marcondes, incluiu-se na obra), me trouxe inusitado conforto, nessa época de vacas magras do teatro no Recife. Robério
Lucado e Daniel Barros não deixam de ser promissores, sendo que este último (vi o seu vigor cênico em outra peça, dirigido por Carlos Carvalho, posso afirmar que é o mais brilhante da nova geração de atores em Recife).
Parabéns, então a Ceronha Pontes, assistência de direção, Tadeu Gondim,
Gheuza Sena, Jades Sales, Arquimedes Amaro e à equipe do Teatro Apolo, sempre gentil e
eficiente.
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