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domingo, 12 de junho de 2016

A noite do Gato. Um conto invernoso de Moisés Monteiro de Melo Neto




Recife, início do século XXI. Os limpadores dispersavam a água do vidro. Ela atravessou a Ponte Giratória no meio da neblina. Fumaça dentro do carro, lágrimas nos olhos. Um retrato rasgado sobre o assento do passageiro. Tocava “Holding back the years”, do Simply Red, no potente e suave som do carro. Uma ilha: o Recife Antigo. Um revólver no porta- luvas, pílulas, uma garrafinha de prata. Uma retocada básica na maquiagem e no cabelo, uma ajeitada nos anéis, no colarzinho, no sutiã. Um perfume, Dolce & Gabanna. Uma mulher respira fundo. É hoje.
O flanelinha com imenso guarda-chuva até a porta da boate. Sorriso do porteiro, abraço do promoter. Faíscas de luz vinham do primeiro dancing. Direto para o Mexican bar. Tequila. Olhos ansiosos. Bebeu a dose de um gole só. Classe média recifense. Poucos ricos à meia-noite. Partiu uma unha quando meteu a mão na bolsa em busca de um cigarro. E meu benzinho? Cadê o meu gato? O garçom não soube explicar. Diz pro Fred que eu já volto. A senhora manda. Cruzou o lounge como um espírito e saiu entorpecida.
Uma rajada de vento frio deu-lhe um arrepio na nuca. Num dos velhos casarões duas prostitutas velhas gargalharam na varanda Alguns vagabundos trocavam insultos numa birosca suja. Ao longe o barulho do show. Olhou à direita para a praça do Marco Zero. A Torre de cristal, arquitetada por Brennand, espécie de culto ao falo, cintilava esverdeada, meio translúcida, e uma criança dançava alucinadamente, enquanto outros jovens patinavam na lama.
Na Rua do Bom Jesus as folhas das árvores balançavam e as calçadas dos bares estavam vazias. Lá dentro alguns buscavam calor. Ela entrou numa espécie de pub. Sentou-se. Pediu mais tequila e ligou para o seu Gato. Muito barulho. Mandou uma mensagem por escrito: no Panquecas, em 15 minutos, que logo passaram. Quando ele chegou, ela tinha tomado mais uma dose. Queria ver o resto do show... na Praça do Arsenal. Show do Manu Chao.  Eu sou o show! Ou vai me trocar também por aquele toin oin oin do Manu Chao? Você não merece uma mulher como eu! Gato, sinceramente! Olhe: o que você fez, tirando tudo que é seu do apartamento e jogando a chave por debaixo da porta...  depois de tudo... é im-per-do-á-vel! E comigo! Quem você pensa que é? Hein? Eu acabo com você! Foi aquela cachorra, não foi? Vamos diga! Se você não se acalmar, eu vou embora. Pois vá! Você não tem jeito. Vamos andando. Pague esta porcaria. Eu lhe espero na esquina. Levantou-se. Ela deixou uma nota de 50 e disse que depois pegava o troco. Seguiu-o.
A chuva havia parado e uma lua cheia ensaiava iluminar as ruas lamacentas. Ela alcançou-o. Gato, seu canalha! Vou denunciar vocês todos. Pensa que não tenho provas? Eles matam você. Sem você, é melhor morrer! Eu te amo demais. E sei que você me ama. Ninguém manda em mim. Ela segurou o rosto dele e deu-lhe um prolongado beijo na boca. Parecia querer sugar-lhe a alma. Ele desvencilhou-se e continuou a andar em direção ao cais. Passaram uns rapazes vestidos de preto e com caras de mortos-vivos. Um deles pediu um cigarro. Ela disse que não. Pegou um e acendeu. Isso ainda vai te dar um câncer. Que feio! E o seu vício é tão bonitinho... Escute: semana que vem estou indo para Londres. Não! Me deixe ir! O Recife está me sufocando. Uma nuvem passou rápida pela lua. Eles chegaram na frente do prédio enorme do Ministério da Fazenda. Ela encostou-se numa das colunas. Olhou para um navio que estava atracado. Observou o nome. Parecia russo. Vai largar a faculdade? Vai trancar? E o dinheiro que eu gastei? Ele não respondeu. O telefone dele tocou. Ele se afastou pra atender. Estou com ela agora... Sua vagabunda! Deixe o meu homem em paz! Não estrague o futuro dele! Pare! Depois eu falo com você! Ai, meu Deus. Você está me destruindo. Depois de tudo que eu fiz por você! Saiu andando cambaleante em direção ao envidraçado Armazém 12; ele a seguiu.
Um trem de carga se aproximava. As lágrimas atrapalhavam a visão e ela imaginou-se estraçalhada sobre os trilhos. Desistiu.
Pois vá! Vá mesmo. Vá logo.
Ele afastou-se indeciso, olhou para trás, cheio de outras vidas, e foi embora. Talvez para sempre. 
Ela pensou: era forte. Já aguentara muita coisa e venceu na vida, sozinha. Maldito desmantelo blue! A lua brilhou intensamente. Ela esboçou um sorriso. Olhou para os prédios da Praça do Marco Zero. O chão molhado, as avenidas. Sozinha naquela ilha! Encaminhou-se para o carro. Morrer não adiantava. Tinha que continuar lutando e tentar ficar mais forte e mais... bonita...





arte: Ricardo Soares, sobre fotos de Gustavo Túlio

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