Recife, início do
século XXI. Os limpadores dispersavam a água do vidro. Ela atravessou a Ponte
Giratória no meio da neblina. Fumaça dentro do carro, lágrimas nos olhos. Um
retrato rasgado sobre o assento do passageiro. Tocava
“Holding back the years”, do Simply Red, no potente e suave som do carro. Uma ilha: o Recife
Antigo. Um revólver no porta- luvas, pílulas, uma garrafinha de prata. Uma
retocada básica na maquiagem e no cabelo, uma ajeitada nos anéis, no
colarzinho, no sutiã. Um perfume, Dolce & Gabanna. Uma mulher respira
fundo. É hoje.
O flanelinha com imenso
guarda-chuva até a porta da boate. Sorriso do porteiro, abraço do promoter.
Faíscas de luz vinham do primeiro dancing. Direto para o Mexican bar. Tequila.
Olhos ansiosos. Bebeu a dose de um gole só. Classe média recifense. Poucos
ricos à meia-noite. Partiu uma unha quando meteu a mão na bolsa em busca de um
cigarro. E meu benzinho? Cadê o meu gato? O garçom não soube explicar. Diz pro
Fred que eu já volto. A senhora manda. Cruzou o lounge como um espírito e saiu entorpecida.
Uma rajada de vento
frio deu-lhe um arrepio na nuca. Num dos velhos casarões duas prostitutas
velhas gargalharam na varanda Alguns vagabundos trocavam insultos numa birosca
suja. Ao longe o barulho do show. Olhou à direita para a praça do Marco Zero. A
Torre de cristal, arquitetada por Brennand, espécie de culto ao falo, cintilava
esverdeada, meio translúcida, e uma criança dançava alucinadamente, enquanto
outros jovens patinavam na lama.
Na Rua do Bom Jesus as
folhas das árvores balançavam e as calçadas dos bares estavam vazias. Lá dentro
alguns buscavam calor. Ela entrou numa espécie de pub. Sentou-se. Pediu mais
tequila e ligou para o seu Gato. Muito barulho. Mandou uma mensagem por
escrito: no Panquecas, em 15 minutos,
que logo passaram. Quando ele chegou, ela tinha tomado mais uma dose. Queria
ver o resto do show... na Praça do Arsenal. Show do Manu Chao. Eu sou o show! Ou vai me trocar também por
aquele toin oin oin do Manu Chao? Você
não merece uma mulher como eu! Gato, sinceramente! Olhe: o que você fez,
tirando tudo que é seu do apartamento e jogando a chave por debaixo da porta... depois de tudo... é im-per-do-á-vel! E
comigo! Quem você pensa que é? Hein? Eu acabo com você! Foi aquela cachorra,
não foi? Vamos diga! Se você não se acalmar, eu vou embora. Pois vá! Você não
tem jeito. Vamos andando. Pague esta porcaria. Eu lhe espero na esquina. Levantou-se.
Ela deixou uma nota de 50 e disse que depois pegava o troco. Seguiu-o.
A chuva havia parado e
uma lua cheia ensaiava iluminar as ruas lamacentas. Ela alcançou-o. Gato, seu canalha!
Vou denunciar vocês todos. Pensa que não tenho provas? Eles matam você. Sem
você, é melhor morrer! Eu te amo demais. E sei que você me ama. Ninguém manda
em mim. Ela segurou o rosto dele e deu-lhe um prolongado beijo na boca. Parecia
querer sugar-lhe a alma. Ele desvencilhou-se e continuou a andar em direção ao
cais. Passaram uns rapazes vestidos de preto e com caras de mortos-vivos. Um
deles pediu um cigarro. Ela disse que não. Pegou um e acendeu. Isso ainda vai
te dar um câncer. Que feio! E o seu vício é tão bonitinho... Escute: semana que
vem estou indo para Londres. Não! Me deixe ir! O Recife está me sufocando. Uma
nuvem passou rápida pela lua. Eles chegaram na frente do prédio enorme do
Ministério da Fazenda. Ela encostou-se numa das colunas. Olhou para um navio
que estava atracado. Observou o nome. Parecia russo. Vai largar a faculdade?
Vai trancar? E o dinheiro que eu gastei? Ele não respondeu. O telefone dele
tocou. Ele se afastou pra atender. Estou com ela agora... Sua vagabunda! Deixe
o meu homem em paz! Não estrague o futuro dele! Pare! Depois eu falo com você! Ai,
meu Deus. Você está me destruindo. Depois de tudo que eu fiz por você! Saiu
andando cambaleante em direção ao envidraçado Armazém 12; ele a seguiu.
Um trem de carga se
aproximava. As lágrimas atrapalhavam a visão e ela imaginou-se estraçalhada
sobre os trilhos. Desistiu.
Pois vá! Vá mesmo. Vá
logo.
Ele afastou-se
indeciso, olhou para trás, cheio de outras vidas, e foi embora. Talvez para sempre.
Ela pensou: era forte. Já aguentara muita coisa e venceu na vida, sozinha. Maldito desmantelo blue! A lua brilhou intensamente. Ela esboçou um sorriso. Olhou para os prédios da Praça do Marco Zero. O chão molhado, as avenidas. Sozinha naquela ilha! Encaminhou-se para o carro. Morrer não adiantava. Tinha que continuar lutando e tentar ficar mais forte e mais... bonita...
arte: Ricardo Soares, sobre fotos de Gustavo Túlio
Ela pensou: era forte. Já aguentara muita coisa e venceu na vida, sozinha. Maldito desmantelo blue! A lua brilhou intensamente. Ela esboçou um sorriso. Olhou para os prédios da Praça do Marco Zero. O chão molhado, as avenidas. Sozinha naquela ilha! Encaminhou-se para o carro. Morrer não adiantava. Tinha que continuar lutando e tentar ficar mais forte e mais... bonita...
Contemporâneo por demais.
ResponderExcluirtoday is the last day I´m usingo words... (Bjork)
ExcluirMuito boa a retratação do nosso Recife.
ResponderExcluirgrato
Excluir