O AMOR BRUTAL
Conto de Edgar Mendes Nunes
“Por que o amor, aparentemente tão doce, é tão
prepotente e tão brutal quando posto à prova?” William Shakespeare A história
que vou lhes contar ouvi quase toda saindo da boca da protagonista. Começo
falando a verdade para obter isenção de qualquer mal-estar porventura provocado
por esta narrativa perturbadora. Ela é uma mulher igual a tantas. Nos
conhecemos na Taverna Vila do Conde, beira-rio, ponto de encontro predileto de
amigos que temos em comum e, por coincidência, no dia do seu aniversário de 30
anos. Foi a primeira vez que a vi e não foi difícil reparar o ar de tristeza
que vazava dos seus olhos embora abrisse com facilidade um sorriso encantador.
Decidi prestar mais atenção na aniversariante, o que fiz sem despertar suspeitas
de quem quer que seja diante da algazarra dos festejos que saíram do final da
tarde noite a dentro. Não, ela não sorria. Pelo menos não sorria com a alma. A
beleza do rosto que emoldurava os lábios alinhados semiabertos a revelar dentes
regulares muito brancos, ofuscava o que diziam os olhos. Olhos pretos, pretos,
que a medida do passar do tempo pareciam mais e mais misturar todas as dores.
Foi assim que conclui minha observação: os seus olhos pretos eram a mistura de
todas as dores que ela escondia no sorriso de contração muscular. Quis o ocaso
que dias depois nos encontrássemos no mesmo local, porém em circunstâncias
diferentes. Vazias as mesas da taverna menos a que ela ocupava. Parou de
escrever num caderno sem pautas quando me aproximei. Pediu para juntar-me a ela
e compor o quadro de dois solitários fregueses num fim de tarde, sentados à
beira do rio que parecia dormir. Sobre o que escrevia? Eu certamente me
enfadaria, coisas da sua vida, inclusive pouco agradáveis de ouvir. Disse-lhe
que não, em absoluto, quisesse falar, falasse. Para o meu espanto, falou com
voz gave. “Eis a minha história: Meu nome é Amora. A minha mãe chamava-se
Núria, uma mulher muito pobre que chegou a mendigar e, por isso, sem teto, sem
afeto, tornou-se dura, seca, vingativa. De encanto carregava apenas o sorriso,
diziam todos. O meu pai, não conheci, mas sei que de origem nobre, dos
engenhos, de quem a minha mãe aproveitou-se de uma bebedeira na festa de
nascimento de uma menina da casa em que ela trabalhava. Dele tenho notícias de
ter sido um homem belo, bom, sensível, bravo, impetuoso, amante da verdade. A
menina da casa onde minha mãe trabalhava chamava-se Ditinha, de beleza
inigualável, diziam ser protegida dos deuses. Cresci na sua companhia num misto
de amiga e criada, mas sempre à sombra de seus dotes. Vi de perto a crueldade
dos homens por ela ser tão bela; senti a crueldade dos homens por eu ser das
sombras. Sou, assim, testemunha e vítima do destino ingrato das mulheres. Desde
cedo tomei a decisão de não ter filhos. Homem que fosse engrossaria as fileiras
dos opressores; mulher, estaria fadada a sofrer as humilhações naturais deste
mundo masculino. Não fiz disso nenhum segredo. Muitos pretendentes desistiram
ao conhecer esse meu lado do qual não abro mão. Tenho o direito de não ser mãe.
E ponto final. Téo não se importou com isso. Namoramos, nos apaixonamos,
casamos. Eu o amo. Sim. Amo meu marido mais do que qualquer mulher pode amar o
seu homem. Nele me completei. Vivemos um para o outro em felicidade plena. Nada
desafia o nosso amor. Ou pelo menos, desafiava, até a viuvez de Gertrudes,
minha sogra. Filho único, Téo foi convencido a me convencer a morar com ela.
Mudamos para o sobrado da Rua Dom Afonso. Naquele tempo meu martírio começou.
Téo passou a comportar-se como as lembranças da mãe quando menino. Gostava de
comer isso, de sobremesa aquilo… em dias quentes vestir-se dessa roupa, nos
dias frios daqueloutra… nos finais de semana visitar fulano, beltrano, sicrano…
último domingo do mês almoço com a família… o apelido de Nino que a mãe lhe
pusera ainda no berço... Eu ia estranhando um Téo de outros apetites, outros
estilos, outros hábitos, outro nome. Um Téo cada vez mais parecido com as
imagens rotas das antigas fotografias em preto e branco dos álbuns que a mãe insistia
em me apresentar e que guardava no móvel sob o grande relógio fixado na parede
da sala de estar. As manhãs traziam outro homem a medida que o tempo estreitava
nossa convivência com Gertrudes. Ele cada vez menos marido do que filho. Ela
juntavase a mim com ares de mãe e não de sogra. Falsa. Estando nós três,
apresentava-se com ar angelical mais que a verdade, assim a fazer de conta ser
bondosa. A sós comigo a maldade invadia o seu interior, por fora tinha o ar
frio das víboras, olhos fixos a queimar almas. Ávida para transformar Téo em
Nino. Não demorou para que assunto indigesto viesse a tona: ela queria netos e
não escondia a preferência por uma menina; aliás, duas; queria duas princesas
para chamar de suas. Ele, num rompante, alardeou que também era esse seu desejo
do qual eu fazia pouco-caso. Pouco-caso? Jamais ouvira isso dele. Sim,
insistiu. Pouco ou nenhum caso, porque desde sempre tentamos engravidar e eu
não atendia seus apelos de nos socorrer da medicina. Mas, nós nunca falamos
sobre isso, retruquei. Nunca falamos por que você não quis ouvir, disse um Téo
definitivamente desconhecido para mim. Estarrecida engoli a seco a opinião
dela: pobre do homem que finca suas raízes em solo infértil; onde já se viu
família sem filhos? Franzi o sobrolho de reprovação pela sentença e esperei
guarida em qualquer palavra do meu marido. Cabisbaixo e silente ele se escondeu
na cor amarga daquele fim de tarde e a minha alma foi invadida de profunda
tristeza. A noite não nos encontrou no mesmo leito, no mesmo quarto, na mesma
casa, no mesmo mundo. O sol da manhã tinha a luz apagada como um dia de verão
arrependido. Aturdida de pouco dormir, morta de loucura por ele, levantei da
cama com a solução: ele tinha que ficar órfão. Sim. Queria-o destituído de mãe
porque nunca mais tão grande dor se repetiria e eu daria conta de todas as
outras dores menores. Dor de orfandade é dor permanente, que não cessa, e clama
por amparo eterno. Órfão de Gertrudes, Téo nunca deixaria de precisar do meu
amor; nada do que sofresse seria maior do que o amor que lhe tinha.
Desaparecida a mãe, socorridos pela morte, seríamos felizes para sempre. E eu
choraria a sua morte com sorriso nos lábios, o sorriso que herdei da minha mãe.
Bastaria passar da imaginação à ação, o que ainda não ocorreu por impedimento
da porção do meu pai que habita em mim. Vou encerrar afirmando que a minha
história não é história de fatos e sim história de almas; não é caso de morte
de uma mulher e sim de uma mãe a menos neste mundo homem.” Amora terminou a
fala com um longo suspiro. A voz, mais aguda; menos pretos, os olhos. Naquele
momento a nossa atenção foi desviada para um pescador que juntou-se a nós na
solidão da Vila do Conde. Sentou-se na mureta que separava o rio das mesas
postas em fileiras e lançou anzol às águas serenas, quase mortas. Enxerguei o
movimento da água em círculos concêntricos e me perguntei aonde iriam, a quem
atingiriam aquelas ondas. Acaso não seria assim o amor?
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