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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A ficção de Edgar Mendes Nunes e as imbricações do amor

O AMOR BRUTAL
Conto de Edgar Mendes Nunes



 “Por que o amor, aparentemente tão doce, é tão prepotente e tão brutal quando posto à prova?” William Shakespeare A história que vou lhes contar ouvi quase toda saindo da boca da protagonista. Começo falando a verdade para obter isenção de qualquer mal-estar porventura provocado por esta narrativa perturbadora. Ela é uma mulher igual a tantas. Nos conhecemos na Taverna Vila do Conde, beira-rio, ponto de encontro predileto de amigos que temos em comum e, por coincidência, no dia do seu aniversário de 30 anos. Foi a primeira vez que a vi e não foi difícil reparar o ar de tristeza que vazava dos seus olhos embora abrisse com facilidade um sorriso encantador. Decidi prestar mais atenção na aniversariante, o que fiz sem despertar suspeitas de quem quer que seja diante da algazarra dos festejos que saíram do final da tarde noite a dentro. Não, ela não sorria. Pelo menos não sorria com a alma. A beleza do rosto que emoldurava os lábios alinhados semiabertos a revelar dentes regulares muito brancos, ofuscava o que diziam os olhos. Olhos pretos, pretos, que a medida do passar do tempo pareciam mais e mais misturar todas as dores. Foi assim que conclui minha observação: os seus olhos pretos eram a mistura de todas as dores que ela escondia no sorriso de contração muscular. Quis o ocaso que dias depois nos encontrássemos no mesmo local, porém em circunstâncias diferentes. Vazias as mesas da taverna menos a que ela ocupava. Parou de escrever num caderno sem pautas quando me aproximei. Pediu para juntar-me a ela e compor o quadro de dois solitários fregueses num fim de tarde, sentados à beira do rio que parecia dormir. Sobre o que escrevia? Eu certamente me enfadaria, coisas da sua vida, inclusive pouco agradáveis de ouvir. Disse-lhe que não, em absoluto, quisesse falar, falasse. Para o meu espanto, falou com voz gave. “Eis a minha história: Meu nome é Amora. A minha mãe chamava-se Núria, uma mulher muito pobre que chegou a mendigar e, por isso, sem teto, sem afeto, tornou-se dura, seca, vingativa. De encanto carregava apenas o sorriso, diziam todos. O meu pai, não conheci, mas sei que de origem nobre, dos engenhos, de quem a minha mãe aproveitou-se de uma bebedeira na festa de nascimento de uma menina da casa em que ela trabalhava. Dele tenho notícias de ter sido um homem belo, bom, sensível, bravo, impetuoso, amante da verdade. A menina da casa onde minha mãe trabalhava chamava-se Ditinha, de beleza inigualável, diziam ser protegida dos deuses. Cresci na sua companhia num misto de amiga e criada, mas sempre à sombra de seus dotes. Vi de perto a crueldade dos homens por ela ser tão bela; senti a crueldade dos homens por eu ser das sombras. Sou, assim, testemunha e vítima do destino ingrato das mulheres. Desde cedo tomei a decisão de não ter filhos. Homem que fosse engrossaria as fileiras dos opressores; mulher, estaria fadada a sofrer as humilhações naturais deste mundo masculino. Não fiz disso nenhum segredo. Muitos pretendentes desistiram ao conhecer esse meu lado do qual não abro mão. Tenho o direito de não ser mãe. E ponto final. Téo não se importou com isso. Namoramos, nos apaixonamos, casamos. Eu o amo. Sim. Amo meu marido mais do que qualquer mulher pode amar o seu homem. Nele me completei. Vivemos um para o outro em felicidade plena. Nada desafia o nosso amor. Ou pelo menos, desafiava, até a viuvez de Gertrudes, minha sogra. Filho único, Téo foi convencido a me convencer a morar com ela. Mudamos para o sobrado da Rua Dom Afonso. Naquele tempo meu martírio começou. Téo passou a comportar-se como as lembranças da mãe quando menino. Gostava de comer isso, de sobremesa aquilo… em dias quentes vestir-se dessa roupa, nos dias frios daqueloutra… nos finais de semana visitar fulano, beltrano, sicrano… último domingo do mês almoço com a família… o apelido de Nino que a mãe lhe pusera ainda no berço... Eu ia estranhando um Téo de outros apetites, outros estilos, outros hábitos, outro nome. Um Téo cada vez mais parecido com as imagens rotas das antigas fotografias em preto e branco dos álbuns que a mãe insistia em me apresentar e que guardava no móvel sob o grande relógio fixado na parede da sala de estar. As manhãs traziam outro homem a medida que o tempo estreitava nossa convivência com Gertrudes. Ele cada vez menos marido do que filho. Ela juntavase a mim com ares de mãe e não de sogra. Falsa. Estando nós três, apresentava-se com ar angelical mais que a verdade, assim a fazer de conta ser bondosa. A sós comigo a maldade invadia o seu interior, por fora tinha o ar frio das víboras, olhos fixos a queimar almas. Ávida para transformar Téo em Nino. Não demorou para que assunto indigesto viesse a tona: ela queria netos e não escondia a preferência por uma menina; aliás, duas; queria duas princesas para chamar de suas. Ele, num rompante, alardeou que também era esse seu desejo do qual eu fazia pouco-caso. Pouco-caso? Jamais ouvira isso dele. Sim, insistiu. Pouco ou nenhum caso, porque desde sempre tentamos engravidar e eu não atendia seus apelos de nos socorrer da medicina. Mas, nós nunca falamos sobre isso, retruquei. Nunca falamos por que você não quis ouvir, disse um Téo definitivamente desconhecido para mim. Estarrecida engoli a seco a opinião dela: pobre do homem que finca suas raízes em solo infértil; onde já se viu família sem filhos? Franzi o sobrolho de reprovação pela sentença e esperei guarida em qualquer palavra do meu marido. Cabisbaixo e silente ele se escondeu na cor amarga daquele fim de tarde e a minha alma foi invadida de profunda tristeza. A noite não nos encontrou no mesmo leito, no mesmo quarto, na mesma casa, no mesmo mundo. O sol da manhã tinha a luz apagada como um dia de verão arrependido. Aturdida de pouco dormir, morta de loucura por ele, levantei da cama com a solução: ele tinha que ficar órfão. Sim. Queria-o destituído de mãe porque nunca mais tão grande dor se repetiria e eu daria conta de todas as outras dores menores. Dor de orfandade é dor permanente, que não cessa, e clama por amparo eterno. Órfão de Gertrudes, Téo nunca deixaria de precisar do meu amor; nada do que sofresse seria maior do que o amor que lhe tinha. Desaparecida a mãe, socorridos pela morte, seríamos felizes para sempre. E eu choraria a sua morte com sorriso nos lábios, o sorriso que herdei da minha mãe. Bastaria passar da imaginação à ação, o que ainda não ocorreu por impedimento da porção do meu pai que habita em mim. Vou encerrar afirmando que a minha história não é história de fatos e sim história de almas; não é caso de morte de uma mulher e sim de uma mãe a menos neste mundo homem.” Amora terminou a fala com um longo suspiro. A voz, mais aguda; menos pretos, os olhos. Naquele momento a nossa atenção foi desviada para um pescador que juntou-se a nós na solidão da Vila do Conde. Sentou-se na mureta que separava o rio das mesas postas em fileiras e lançou anzol às águas serenas, quase mortas. Enxerguei o movimento da água em círculos concêntricos e me perguntei aonde iriam, a quem atingiriam aquelas ondas. Acaso não seria assim o amor?

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