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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Lançamento : Dezembro de 2015

O Épico Brasileiro no Século XXI
Moisés Monteiro de Melo Neto

O Brasil está escancarado?

Esta pergunta está me inquietando.
A mídia vem tocando o terror ou realmente o que estamos sentindo nos bolsos é um esvaziamento descontrolado?
às vezes dá vontade de participar mais ativamente deste descontrole no sentido de ajudar nossos governantes a resolver este quebra -cabeças em que estamos metidos, mas: como?

Tenho me articulado com grupos interessados em fóruns de debate.

Vamos lá?

domingo, 25 de outubro de 2015

Haicai de Moisés Monteiro de Melo Neto




Coração batendo em torvelinho
em imersão estática
pasta o bode expiatório da crueldade

Os 50 anos de MARAT-SADE, do alemão Peter Weiss (Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade

Já dizia Edwin Piscator: “a arte deve tornar suportável o insuportável e, ao mesmo tempo, ir além do insuportável”.
 MARAT-SADE (Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade), do alemão Peter Weiss (que já tratou do drama de Angola, enquanto colônia portuguesa, da guerra do Vietnã,  de Trotski e mais...) nos lembra  desvendar o que se encontra  o que se esconde atrás dos “fatos”, suas relações e significados...
MARAT-SADE é teatro dentro do teatro: Sade, 15 anos depois da morte de Marat, está trancado num manicômio, e monta uma peça de teatro sobre Marat.

Antonin Artaud no papel de Marat, à esquerda


Pesquisas apontam: Marat como   jornalista radical e político na Revolução Francesa, caráter impetuoso, atitude questionadora em relação  ao novo governo. 

Artaud como Marat

No seu jornal (L'Ami du peuple ,O Amigo do Povo, Marat pedia reformas básicas para as camadas até então tidas como inferiores pela sociedade da época. Sua persistente perseguição), ele tinha voz consistente, grande inteligência e seu incomum poder preditivo o levaram à confiança do povo e fizeram-no a principal ponte entre eles e o grupo radical os jacobinos, que compartilhou o  poder em 1793, derrubando a facção Girondina tornou-se uma das três figuras de destaque na França, ao lado de Robespierre (jacobino) e Danton (dos Cordeliers)
Marat foi assassinado por Charlotte Corday,  simpatizante dos girondinos.
Vamos dar um mergulho nas relações regidas pela ambição, poder, riqueza... e para isso usaremos a revolução francesa como eixo em grandes obras da dramaturgia. Haverá o cotejo com a peça A MORTE DE DANTON  (1835), de Georg Büchner.
Para mais informações não perca o debate desta segunda – feira no CIT SESC PIEDADE.
Ainda sobre a História abordada em Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade:

GIRONDINOS E JACOBINOS (do site  do CIC)

Os Girondinos representavam a alta burguesia e queriam evitar uma participação maior dos trabalhadores urbanos e rurais na política.
Os Jacobinos representavam a baixa burguesia e defendiam uma maior participação popular no governo. Liderados por Robespierre e Saint-Just, os jacobinos eram radicais e defendiam também profundas mudanças na sociedade que beneficiassem os mais pobres. Os jacobinos eram o grupo político mais radical da Convenção
Em 1795, os girondinos assumem o poder e começam a instalar um governo burguês na França. Uma nova Constituição é aprovada, garantindo o poder da burguesia e ampliando seus direitos políticos e econômico. 
Robespierre, foi o mais radical dos deputados jacobinos. Em 1794, foi executado junto com 21 de seus seguidores.

  
 










ÓPERA DO MALANDRO, texto de Chico Buarque e direção de João Falcão


por Moisés Monteiro de Melo Neto



Assisti ontem à repreentação de  ÓPERA DO MALANDRO, texto de Chico Buarque e direção de João Falcão (que quem trabalhei há alguns anos atrás).
A platei estava cheia no 1º ato. Presença da família de Eduardo Campos, João, Renata e mais. Ficaram lá pelas primeiras filas.
O espetáculo atrasou em meia hora  o seu início.

Eu havia trabalhado numa adaptação de texto buarquiano com os meus alunos na disciplina de dramaturgia.
Ontem (re)vi como certas coisas no texto tanto envelheceram quanto renovaram-se, no sentido barthesiano. Outras carnavalizaram a realidade nacional ainda mais numa espécie de sátira menipeia  nos moldes bakhtinianos.
O espetáculo é de grande apelo popular. Marcação mais para posicionar o ator na cena, propositalmente mecânicas (?)


João com o elenco


A presença de Thomás Aquino,com quem trabalhei personagens de Fernando Pessoa e Tomás Antônio Gonzaga, ao lado de Adriano Cabral, é marcante. Seu registro de voz é incrível e o trabalho com as vozes em geral é muito bom.
O cenário lembra várias encenações e filmes. Andaimes, desta vez prateados, o que cria efeitos bons.
A adaptação de João Falcão tomou certas liberdades, que tem acompanhado sua obra deve entender muito bem a origem de certa malícia. 
3 horas de duração, meia hora de atraso: na entrada o encontro com  Pollyana Diniz (site de teatrao Satisfeita Yolanda?), Clenira Bezerra, atriz, Dione Barreto, poeta, e muita gente dos queridos ou detestáveis na nossa província, Recife.
João volta ao seu estilo? Inova? Homens vestidos de mulheres? Parece uma homenagem a Chico, a quem João já usou como referência outrras vezes, desde o início da sua carreira, este escritor de Tiúma que desde o final dos anos 1970 vem tabalhando com o palco.
Quando vi João a primeira vez ele estava interpretando um personagem de Os Filhos de Kennedy, dirigido por Romildo Moreira, depois vi o Cupido que ele interpretou em O Extrato de Formosura, e também o Serginho, de Toda Nudez Será Castigada, dirigido por Antonio Edson Cadengue. Eu frequentava o DCE da UFPE na rua do Hospício, eu também estava tendo aulas de teatro com Luiz Maurício Cavalheira. Havia no DCE o grupo do TUBA (teastro universitário Boca Aberta, com Magdale Alves, Fátima Barreto, Paulo Barros, Jujuba, Alberto Amaral e tantos outros que eu amava, amo); João , numa sala ao lado dirigia o grupo Balaio de Gato); logo tivemos a apresentação de Flicts, no Teatro do parque, ele e seu grupo mostravam vigor , irreverência e alegria, força. 
Isso eu também senti ontem, na montagem da Ópera do Malandro. Não é a primeira vez que João trabalha com Chico Buarque.
A gente sabe o que pode esperar de João.
É bom ver um artista como ele no vigor do seu exercício.
O modo como ele trabalhou as personagens Geni e Vitória, tornando-as quase um eixo no transcorrer do espetáculo, é bem interessante.
E para encerrarmos há um fato que deve ser mencionado. já dissemos que havia gente do PSB na audiência (Renata, João Campos...), pois bem, não sei o que pensaram quando houve uma quebra (brechtiana?) no espetáculo e durante a uma fictícia marcha das "vadias" surge uma bandeira com os seguintes dizeres: #OCUPE ESTELITA. A plateia aplaudiu inrtensamente.
lembremo-nos da peça original de John Gay e da adaptação de Brecht.
O épico, o documental, a crítica jocosa.... 


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A volta do Legião Urbana: decadência?

Seria a volta do Legião Urbana uma forma de decadência?
As fotos dos dois componentes que sobreviveram aos 19 anos da morte de renato denotam uma espécie de tormento pessoal quase inegável?
Eu não gostyei do tom de divulgação desta "novidade".
Acho que se Renato tivesse sobrevivido aos dois não cometeria uma tolice (?) dessas...
O negócio que o Queen faz parece mais, não sei bem , glamourizado.
Mas no caso do Legião...
O negócio merece uma análise após assistir a uma apresentação.
Dá para farejar oportunismo?
Paulo Miklos está apoiando.
Eles qurrem lançar um box, mas o fuilho de Renato está botando areia.
Há uma música inédita "1977" (que os outros dois dizem ter composto com Renato), mas o filhote do nosso Rimbaud dos anos 80, diz que é só do papai dele.
Quanta chateação, não?

AVENTURAS DE UM PINGUIM NO BRASIL


Dirigindo um elenco que gosto por demais... 

Próximo domingo será nossa estreia. 
Convido todos vocês a conhecer e curtir as Aventuras de um Pinguim no Brasil. 
  Com Raul Elvis e Adriano Cabral.


AVENTURAS DE UM PINGUIM NO BRASIL
(dramaturgia: Moisés Monteiro de Melo Neto e Rosália Calsavara)

Estreia neste domingo, às 17h, Recife

Joaquim Cardozo por Moisés Monteiro de Melo Neto

Joaquim Cardozo. Poeta e dramaturgo pernambucano (autor, dentre outras obras,  da peça O CAPATAZ DE SALEMA). 
 

Poesia simbolista, metafísica, experimental. Joaquim é terno e profundamente impregnado de um lirismo que reflete sua alma recifense e ao mesmo tempo simplesmente cósmica. Foi engenheiro de Niemeyer na construção de Brasília e estabeleceu sem querer vínculos concretistas.
Leia o início da peça  O Capataz de Salema
 O Capataz de Salema

Personagens: O Mar (os seus rumores devem ser gravados e combinados segundo as circunstâncias), o Capataz de Salema, Luzia, Sinhá Ricarda  (sua avó e madrinha) Um pescador

  A cena se passa numa praia do Nordeste brasileiro,próximo à cidade de Olinda.
  Numa pequena casa de pescador, de taipa rebocada, coberta de palha e de zinco; a casa dá a frente para o mar. Nesta casa moram sinhá Ricarda e Luzia, sua neta; sinhá Ricarda é mulher velha e doente, está sempre deitada num jirau baixo que lhe serve de leito, situado próximo à janela na sala da frente; e esta sala se comunica com o interior por um corredor que vai dar a pequena cozinha e por uma porta que dá acesso ao quarto de Luzia. Ambas já se encontraram recolhidas, pois já é quase meia-noite. Ouve-se próximo o rumor do mar exprimindo sonoridades como as de alguém que chorasse ou cantasse um canto alegre ou ninar de meninos, às vezes também rugidos, latidos, rumores de coisas arrastadas, derrubadas, rumor de rolar de dinheiro, de rodas girando muito longe, etc. Tudo produzido pela ação do vento que vem do mar.
  O mar como personagem nessa peça intervém sempre, nos momentos adequados, com esses rumores.
  A ação começa com alguém que bate à porta. Luzia levanta-se e vem até a porta.


Luzia                  Quem é que bate? Quem é?
                            É muito tarde, não posso
                            Abrir.
Capataz              Mas...Sou eu, João,
                            O capataz. Cheguei tarde.
                            Quero ver-te; abre, Luzia.

 Luzia (reconhecendo a voz do capataz)
                             Por que tão tarde chegaste?
                             É tarde...tarde demais.
                             Por quanto tempo ficaste
                             Ausente.

Capataz               Bem desiguais
                             Têm sido os nossos destinos.
                             Há muitas horas navego,
                             Pois isso a minha demora,
                             Em bater à tua porta
                             - Escuro bater de cego.



Luzia (Abrindo a parte de cima da porta. Um pouco aflita)
                           Que queres de nós? Que queres
                           Nos informar a estas horas?

Capataz             Não tenho tempo a perder...
                           E o que quero de ti já sabes.
                           Vim tentar a última vez.
                            Não posso me convencer
                            Dessa triste realidade.


quarta-feira, 21 de outubro de 2015

ARCADISMO OU NEOCLASSICISMO: A EUROPA SETECENTISTA REFLETIDA NO BRASIL COLONIAL


Razão, verdade e natureza

Por Moisés Monteiro de Melo Neto





O Arcadismo surge como conseqüência da saturação do Barro­co, do fato de ter se esgotado, de não corresponder mais às necessidades da expressão.
Foi uma luta entre o “velho” (mentalidade medieval) e o “novo” (mentalidade classicista) o “conservadorismo” — feudal e a inquietação “revolucionária” da burguesia. Foi o momen­to de tensão que antecedeu o momento de distensão, o momento de construção minuciosa das bases intelectuais que garantiriam vitória.

Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver-vos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis, musa, entoa a voz candente.
Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente.

(Cláudio Manuel da Costa — Obras Poéticas)

No poema acima identifica­mos o cenário favorito do Arcadismo: um mundo campestre, pastoril, bucólico, caracterizado pela leveza dos sentimentos, pela suavi­dade dos elementos, pela presença da musa mitológi­ca (Fílis) entoando em voz candente um canto de paz, de serenidade, de reencon­tro com a natureza...

Iluminismo, ilustração, enciclopedismo
Neste contexto, podemos entender a distância entre estilo barroco e estilo neoclássico: o primeiro, como vimos, é crivado de incertezas, de desajustes, de descompassos. O segundo, por sua vez, instaura-se através da retomada dos princípios artísticos da tradição clássica: o raciona­lismo, a mimese (“imitação” dos grandes autores classicistas), a ânsia de perfeição formal obtida pelo respeito às convenções apolíneas, dentre as quais ressaltamos a presença da mitologia clás­sica, o decoro e a simplicidade.



Arcádia:  originalmente, re­gião mitológica onde viviam as musas, os pastores, os deuses. No século XVIII, deu-se o nome de Arcádias às Academias Literárias.

Sendo assim, observamos que há uma coesão, uma coerência entre a literatura neoclássica e os valores racionalistas que se impuseram na Europa definitivamente a partir da segunda meta­de do século XVIII, o que dá ao estilo neoclássico um tom pedagógico, uma preocupação de servir aos ideais burgueses.
Em comparação com este seu aspecto, devemos ressaltar o bucolismo presente no poema que lemos. Se de um lado a literatura neoclássica se compromete com a “utilidade” das mensa­gens que expressa, de outro ela se utiliza do “artifício” da vida rústica, campestre, pastoril, para se tornar “agradável” ao leitor, para lhe proporcionar o prazer da fantasia, longe da agitação da vida urbana.


Esquematizando, trata-se de “unir o útil ao agradável”, como queria o mestre latino Horácio, ou de “unir a razão à natureza”, a preocupação francesa com o caráter Iluminista da arte (o útil, a razão), somada à preocupação italiana com o seu caráter “prazeroso” (o agradável, a natureza). As principais convenções ou posturas literárias do Neoclassicismo ou Arcadismo:
• aurea mediocritas: viver harmoniosa e medianamente, sem cometer excessos
• fugere urbem: fugir da cidade, preferindo a vida simples, ingênua e inocente, em contacto com o campo (daí o bucolismo, o cenário campestre, e o pastoralismo: os poetas usando pseudôni­mos de pastores antigos e idealizando pastoras da mitologia clássica como musas de seus poemas)
• inutilia truncat: cortar o que é inútil, ou seja, realizar as sugestões clássicas de pureza de ex­pressão, correção, simplicidade, contra os excessos do Barroco.

O belo é o verdadeiro por­que este é o natural filtrado pela razão. Razão, verdade, natureza são portanto uma só coisa, baseada no amor e no res­peito da natureza.


(Antônio Cândido — Formação da Literatura Brasileira —vol. 1)



Professor Moisés Monteiro de Melo Neto
 temporada em Ouro Preto-antiga Vila Rica(MG) terra dos poetas Inconfidentes
foto: Professora Fátima Amaral



Início de nossa vida literária

A valorização da rusticidade serviu admiravelmente à situação do intelectual de cultura europeia num país semibárbaro, permitindo-lhe justificar de certo modo o seu papel. Ela foi aqui mais natura! e justificada, pois dava ex­pressão a um diálogo por vezes angustiosamente travado entre civilização e primitivismo. Valorização simultânea do componente local, que aspirava à ex­pressão literária, e dos cânones da Europa, matriz e forma da civilização a que o intelectual brasileiro pertencia, e a cujo patrimônio desejava incorporar a vida espiritual de seu país.
(Antônio Cândido — Formação da literatura brasileira — vol 1)

A nosso ver, este diálogo, “angustiosamente travado”, continua existindo até hoje no Brasil. Por isso, podemos considerá-lo uma espécie de “espinha dorsal” de nossa trajetória sócio-econômica-política e cultural.
Para Antônio Cândido, a valorização da rusticidade que caracteriza o Arcadismo serviu como “ponte” entre os dois lados da moeda — leia-se a colônia: isto porque o lado primitivo, ao se transfigurar literariamente, adquire “dignidade”, isto é, aproxima-se da civilização.





Poesia lírica

Vamos analisar a maior contribuição da poesia lírica produzida pelos nossos mais famosos poetas árcades, os participantes da “Plêia­de Mineira”: Tomás Antônio Gonzaga (autor das Liras de MARÍLIA DE DIRCEU e da poesia satírica CARTAS CHILENAS), Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto. Os dois primeiros também foram militantes da Inconfidência Mineira, ambos tiveram formação europeia (Cláudio e Gonzaga cursaram Direito em Coimbra, exercendo advocacia em Vila Rica. Gonzaga, além de advogado, foi ouvidor e procurador na mesma cidade) e ambos obedeciam às convenções arcádicas em seus poemas, ao mesmo tem­po em que as associavam ao Brasil. Entretanto, cada um o fez de forma específica, com peculiaridades poéticas que poderemos ob­servar lendo e comparando alguns textos.
Na poesia épica temos Santa Rita Durão (Caramuru) e Basílio da Gama (O Uraguai).

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos e sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas o velhinhas tiro o leite
e as mais finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela.
graças à minha estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos inda não está cortado;
os pastores que habitam este monte
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste,
nem canto letra que não seja minha.
            Graça, Marília bela,
            graça à minha estrela!

Mas tendo tantos dotes de ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
            Graça, Marília bela,
            graça à minha estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o céu, gentil pastora,
Para glória de amor igual tesouro!
            Graça, Marília bela,
            graça à minha estrela!
 (Tomás Antônio Gonzaga – MARÍLIA DE DIRCEU)


E essa Carta Chilena? 

E essa Carta Chilena?

Carta 3ª
Em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio.
Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!
Assopra o vento sul, e densa nuvem
Os horizontes cobre; a grossa chuva,
Caindo das biqueiras dos telhados
Forma regatos, que os portais inundam.
Rompem os ares colubrinas fachas
De fogo devorante e ao longe soa,
De compridos trovões, o baixo estrondo.
Agora, Doroteu, ninguém passeia,
- Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza, que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.
O velho Altimidonte, certamente,
Tem postas nos narizes as cangalhas
- E revolvendo os grandes, grossos livros.
C'os dedos inda sujos de tabaco,
Ajunta ao mau processo muitas folhas
De vãs autoridades carregadas.
O nosso bom Dirceu, talvez que esteja.
- Com os pés escondidos no capacho,
Metido no capote, a ler gostoso
O seu Vergílio o seu Camões e Tasso.
O termo Floridoro, a estas horas,
No mole espreguiceiro se reclina
- A ver brincar, alegres, os filhinhos,
Um já montado na comprida cana
E outro pendurado no pescoço
Da mãe formosa, que risonho abraça.
O gordo Josefino está deitado,
- Nada lhe importa, nem do mundo sabe,
Ao som do vento, dos trovoes e chuva,
Como em noite tranquila, dorme e ronca;
O nosso Damião, enfim, abana
Ao lento fogo com que, sábio, tira
- Os úteis sais da terra e o teu Critilo,
Que não encontra, aqui, com quem murmure,
Quando só murmurar lhe pede o gênio,
Pega na pena e desta sorte voa,
De cá, tão longe, a murmurar contigo.
- Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,
Apenas principia a governar-nos,
Nos pretende mostrar que tem um peito
Muito mais terno e brando, do que pedem
Os severos ofícios do seu cargo.
- Agora, cuidarás, prezado amigo,
Que as chaves das cadeias já não abrem,
Comidas da ferrugem ? Que as algemas,
Como trastes inúteis, se furtaram?
Que o torpe executor das graves penas
- Liberdade ganhou ? Que já não temos
Descalços guardiães, que à fonte levem,
Metidos nas correntes, os forçados?
Assim, prezado amigo, assim devia
Em Chile acontecer, se o nosso chefe
- Tivesse, em governar, algum sistema.
Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios
As folhas dos olmeiros se comparam:
São como o leve fumo, que se move
Para partes diversas, mal os ventos
- Começam a apontar, de partes várias.
Ora, pois, doce amigo, atende o como
No seu contrário vicio, degenera
A falsa compaixão do nosso chefe,
Qual o sereno mar, que, num instante,
- As ondas sobre as ondas encapela.
Pertende, Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da torre de Babel e mais dos grandes,
- Custosos edifícios que fizeram,
Para sepulcros seus, os reis do Egito.
Talvez, prezado amigo, que imagine
Que neste monumento se conserve
Eterna, a sua glória, bem que os povos
- Ingratos não consagrem ricos bustos
Nem montadas estátuas ao seu nome.
Desiste, louco chefe, dessa empresa:
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
- Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.
Desenha o nosso chefe, sobre a banca,
Desta forte cadeia o grande risco,
A proporção do gênio e não das forças
- Da terra decadente, aonde habita.
Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te
Ao menos o formoso frontispício.
Verás se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os grandes
- Moram em casas de madeira a pique.
Em cima de espaçosa escadaria
Se forma do edifício a nobre entrada
Por dois soberbos arcos dividida;
Por fora destes arcos se levantam
- Três jônicas colunas, que se firmam
Sobre quadradas bases e se adornam
De lindos capitéis, aonde assenta
Uma formosa, regular varanda;
Seus balaústres são das alvas pedras
Que brandos ferros cortam sem trabalho.
Debaixo da cornija, ou projetura,
Estão as armas deste reino abertas
No liso centro de vistosa tarja.
Do meio desta frente sobe a torre
E pegam desta frente, para os lados,
Vistosas galerias de janelas
A quem enfeitam as douradas grades.
E sabes, Doroteu, quem edifica
Esta grande cadeia? Não, não sabes.
Pois ouve, que eu t'o digo: um pobre chefe
Que, na corte, habitou em umas casas
Em que já nem abriam as janelas.
E sabes para quem? Também não sabes.
Pois eu também t'o digo: para uns negros
Que vivem, (quando muito), em vis cabanas,
Fugidos dos senhores, lá nos matos.
Eis aqui, Doroteu, ao que se pode
Muito bem aplicar aquela mofa
Que faz o nosso mestre, quando pinta
Um monstro meio peixe e meio dama.
Na sabia proporção é que consiste
A boa perfeição das nossas obras.
Não pede, Doroteu, a pobre aldeia
Os soberbos palácios, nem a corte
Pode, também, sofrer as toscas choças.
Para haver de suprir o nosso chefe
Das obras meditadas as despesas,
Consome do senado os rendimentos
E passa a maltratar ao triste povo,
Com estas nunca usadas violências:
Quer cópia de forçados que trabalhem
Sem outro algum jornal, mais que o sustento
E manda a um bom cabo que lhe traga
A quantos quilombotas se apanharem
Em duras gargalheiras. Voa o cabo,
Agarra a um e outro e num instante
Enche a cadeia de alentados negros.
Não se contenta o cabo com trazer-lhe
Os negros que têm culpas, prende e manda
Também, nas grandes levas, os escravos
Que não têm mais delitos que fugirem
Às fomes e aos castigos, que padecem
No poder de senhores desumanos.
Ao bando dos cativos se acrescentam
Muitos pretos já livres e outros homens
Da raça do país e da européia
Que, diz ao grande chefe, são vadios
Que perturbam dos povos o sossego.
Não há, meu Doroteu, quem não se molde
Aos gestos e aos costumes dos maiores.
Brincando, os inocentes os imitam,
Se as tropas se exercitam, eles fingem
As hórridas batalhas. Se se fazem
Devotas procissões, também carregam
Aos ombros os andores e as charolas.
Os mesmos magistrados se revestem
Do gênio e das paixões de quem governa.
Se o rei é piedoso, são benignos
Os severos ministros, se é tirano
Mostram os pios corações de feras.
Por isso, Doroteu, um chefe indigno
É muito e muito mau, porque ele pode
A virtude estragar de um vasto império.
Os nossos comandantes, que conhecem
A vontade do chefe, também querem
Imitar deste cabo o ardente zelo.
Enviam para as pedras os vadios
Que. na forma das ordens, mandar devem
Habitar em desterro novas terras.
Ora, pois, doce amigo, já que falo
Nos nossos comandantes, será justo
Que te dê destes bichos uma ideia.
A gente, Doroteu, que não se alista
Nas tropas regulares forma corpos
De bisonha ordenança. Não há terra
Sem ter um corpo destes. Os seus chefes
Ao capitão maior estão sujeitos,
E são os que se chamam comandantes,
Porque as partes comandam destes terços.
Estes famosos chefes, quase sempre
Da classe dos tendeiros são tirados.
Alguns, inda depois de grandes homens,
Se lhe faltam os negros, a quem deixam
O governo das vendas, não entendem
Que infamam as bengalas, quando pesam
A libra de toucinho e quando medem
O frasco de cachaça. Agora atende,
Verás que desta escória se levanta
De magistrados uma nova classe.
Aos ricos taverneiros, disfarçados
Em ar de comandantes, manda o chefe
Que tratem da polícia e que não deixem
Viver, nos seus distritos, as pessoas
Que forem revoltosas. Quer que façam
A todos os vadios uns sumários
E que, sem mais processos, os remetam
Para remotas partes, sem que destas
Jurídicas sentenças, se faculte
Algum recurso para mor alçada.
Já viste, Doroteu, um tal desmancho?
As santas leis do reino não concedem
Ao magistrado régio, que execute,
No crime, o seu julgado e o nosso chefe
Quer que deem as sentenças sem apelo
Incultos comandantes, que nem sabem
Fazer um bom diário do que vendem!
Concedo, caro amigo, que estes homens
São uns grandes consultos, que meteram
Os corpos do direito nos seus cascos.
Ainda assim pergunto: e como pode
O chefe conceder-lhes esta alçada ?
Ignora a lei do reino, que numera
Entre os direitos próprios dos augustos
A criação dos novos magistrados?
O grande Salomão lamenta o povo
Que sobre o trono tem um rei menino;
Eu lamento a conquista a quem governa
Um chefe tão soberbo e tão estulto
Que, tendo já na testa brancas repas,
Não sabe, ainda, que nasceu vassalo.
Os néscios comandantes e o bom cabo,
Que fez o nosso herói geral meirinho,
Remetem, nas correntes, povo imenso.
Parece, Doroteu, que temos guerras;
Que, para recrutar as companhias,
De toda a parte vêm chorosas levas.
Aqui, prezado amigo, principia
Esta triste tragédia, sim, prepara,
Prepara o branco lenço, pois não podes
Ouvir o resto, sem banhar o rosto
Com grossos rios de salgado pranto.
Nas levas, Doroteu, não vêm somente
Os culpados vadios; vem aquele
Que a dívida pediu ao comandante;
Vem aquele, que pôs impuros olhos
Na sua mocetona e vem o pobre,
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.
Estes tristes, mal chegam, são julgados
Pelo benigno chefe a cem açoites.
Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino
Só mandam que se açoitem com a sola
Aqueles agressores, que estiverem.
Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.
Tu também não ignoras que os açoites
Só se dão, por desprezo, nas espáduas,
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
Os caseiros delitos dos escravos.
Pois todo este direito se pretere:
No pelourinho a escada já se assenta,
Já se ligam dos réus os pés e os braços,
Já se descem calções e se levantam
Das imundas camisas rotas fraldas,
Já pegam dois verdugos nos zorragues,
Já descarregam golpes desumanos,
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue.
Uns gritam que são livres, outros clamam
Que as sábias leis do rei os julgam brancos,
Este diz que não tem algum delito
Que tal rigor mereça, aquele pede
Do justo acusador, ao céu, vingança.
Não afrouxam os braços os verdugos,
Mas, antes, com tais queixas, se duplica
A raiva nos tiranos, qual o fogo
.Que aos assopros dos ventos ergue a chama
Às vezes, Doroteu, se perde a conta
Dos cem açoites, que no meio estava,
Mas outra nova conta se começa.
Os pobres miseráveis já nem gritam.
Cansados de gritar, apenas soltam
Alguns fracos suspiros, que enternecem.
Que é isso, Doroteu, tu já retiras
Os olhos do papel? Tu já desmaias?
Já sentes as moções, que alheios males
Costumam infundir nas almas ternas?
Pois és, prezado amigo, muito fraco,
Aprende a ter o valor do nosso chefe
Que à janela se pôs e a tudo assiste
Sem voltar o semblante para a ilharga.
E pode ser, amigo, que não tenha
Esforço, para ver correr o sangue,
Que em defesa do trono se derrama.
Aos pobres açoitados manda o chefe
Que, presos nas correntes dos forçados,
Vão juntos trabalhar. Então se entregam
Ao famoso tenente, que os governa
Como sábio inspetor das grandes obras.
Aqui, prezado amigo, principiam
Os seus duros trabalhos. Eu quisera
Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
Mas tu, prezado amigo, tens o peito,
Dos males que já leste, magoado,
Por isto é justo que suspenda a história,
Enquanto o tempo não te cura a chaga.




segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A ficção de Edgar Mendes Nunes e as imbricações do amor

O AMOR BRUTAL
Conto de Edgar Mendes Nunes



 “Por que o amor, aparentemente tão doce, é tão prepotente e tão brutal quando posto à prova?” William Shakespeare A história que vou lhes contar ouvi quase toda saindo da boca da protagonista. Começo falando a verdade para obter isenção de qualquer mal-estar porventura provocado por esta narrativa perturbadora. Ela é uma mulher igual a tantas. Nos conhecemos na Taverna Vila do Conde, beira-rio, ponto de encontro predileto de amigos que temos em comum e, por coincidência, no dia do seu aniversário de 30 anos. Foi a primeira vez que a vi e não foi difícil reparar o ar de tristeza que vazava dos seus olhos embora abrisse com facilidade um sorriso encantador. Decidi prestar mais atenção na aniversariante, o que fiz sem despertar suspeitas de quem quer que seja diante da algazarra dos festejos que saíram do final da tarde noite a dentro. Não, ela não sorria. Pelo menos não sorria com a alma. A beleza do rosto que emoldurava os lábios alinhados semiabertos a revelar dentes regulares muito brancos, ofuscava o que diziam os olhos. Olhos pretos, pretos, que a medida do passar do tempo pareciam mais e mais misturar todas as dores. Foi assim que conclui minha observação: os seus olhos pretos eram a mistura de todas as dores que ela escondia no sorriso de contração muscular. Quis o ocaso que dias depois nos encontrássemos no mesmo local, porém em circunstâncias diferentes. Vazias as mesas da taverna menos a que ela ocupava. Parou de escrever num caderno sem pautas quando me aproximei. Pediu para juntar-me a ela e compor o quadro de dois solitários fregueses num fim de tarde, sentados à beira do rio que parecia dormir. Sobre o que escrevia? Eu certamente me enfadaria, coisas da sua vida, inclusive pouco agradáveis de ouvir. Disse-lhe que não, em absoluto, quisesse falar, falasse. Para o meu espanto, falou com voz gave. “Eis a minha história: Meu nome é Amora. A minha mãe chamava-se Núria, uma mulher muito pobre que chegou a mendigar e, por isso, sem teto, sem afeto, tornou-se dura, seca, vingativa. De encanto carregava apenas o sorriso, diziam todos. O meu pai, não conheci, mas sei que de origem nobre, dos engenhos, de quem a minha mãe aproveitou-se de uma bebedeira na festa de nascimento de uma menina da casa em que ela trabalhava. Dele tenho notícias de ter sido um homem belo, bom, sensível, bravo, impetuoso, amante da verdade. A menina da casa onde minha mãe trabalhava chamava-se Ditinha, de beleza inigualável, diziam ser protegida dos deuses. Cresci na sua companhia num misto de amiga e criada, mas sempre à sombra de seus dotes. Vi de perto a crueldade dos homens por ela ser tão bela; senti a crueldade dos homens por eu ser das sombras. Sou, assim, testemunha e vítima do destino ingrato das mulheres. Desde cedo tomei a decisão de não ter filhos. Homem que fosse engrossaria as fileiras dos opressores; mulher, estaria fadada a sofrer as humilhações naturais deste mundo masculino. Não fiz disso nenhum segredo. Muitos pretendentes desistiram ao conhecer esse meu lado do qual não abro mão. Tenho o direito de não ser mãe. E ponto final. Téo não se importou com isso. Namoramos, nos apaixonamos, casamos. Eu o amo. Sim. Amo meu marido mais do que qualquer mulher pode amar o seu homem. Nele me completei. Vivemos um para o outro em felicidade plena. Nada desafia o nosso amor. Ou pelo menos, desafiava, até a viuvez de Gertrudes, minha sogra. Filho único, Téo foi convencido a me convencer a morar com ela. Mudamos para o sobrado da Rua Dom Afonso. Naquele tempo meu martírio começou. Téo passou a comportar-se como as lembranças da mãe quando menino. Gostava de comer isso, de sobremesa aquilo… em dias quentes vestir-se dessa roupa, nos dias frios daqueloutra… nos finais de semana visitar fulano, beltrano, sicrano… último domingo do mês almoço com a família… o apelido de Nino que a mãe lhe pusera ainda no berço... Eu ia estranhando um Téo de outros apetites, outros estilos, outros hábitos, outro nome. Um Téo cada vez mais parecido com as imagens rotas das antigas fotografias em preto e branco dos álbuns que a mãe insistia em me apresentar e que guardava no móvel sob o grande relógio fixado na parede da sala de estar. As manhãs traziam outro homem a medida que o tempo estreitava nossa convivência com Gertrudes. Ele cada vez menos marido do que filho. Ela juntavase a mim com ares de mãe e não de sogra. Falsa. Estando nós três, apresentava-se com ar angelical mais que a verdade, assim a fazer de conta ser bondosa. A sós comigo a maldade invadia o seu interior, por fora tinha o ar frio das víboras, olhos fixos a queimar almas. Ávida para transformar Téo em Nino. Não demorou para que assunto indigesto viesse a tona: ela queria netos e não escondia a preferência por uma menina; aliás, duas; queria duas princesas para chamar de suas. Ele, num rompante, alardeou que também era esse seu desejo do qual eu fazia pouco-caso. Pouco-caso? Jamais ouvira isso dele. Sim, insistiu. Pouco ou nenhum caso, porque desde sempre tentamos engravidar e eu não atendia seus apelos de nos socorrer da medicina. Mas, nós nunca falamos sobre isso, retruquei. Nunca falamos por que você não quis ouvir, disse um Téo definitivamente desconhecido para mim. Estarrecida engoli a seco a opinião dela: pobre do homem que finca suas raízes em solo infértil; onde já se viu família sem filhos? Franzi o sobrolho de reprovação pela sentença e esperei guarida em qualquer palavra do meu marido. Cabisbaixo e silente ele se escondeu na cor amarga daquele fim de tarde e a minha alma foi invadida de profunda tristeza. A noite não nos encontrou no mesmo leito, no mesmo quarto, na mesma casa, no mesmo mundo. O sol da manhã tinha a luz apagada como um dia de verão arrependido. Aturdida de pouco dormir, morta de loucura por ele, levantei da cama com a solução: ele tinha que ficar órfão. Sim. Queria-o destituído de mãe porque nunca mais tão grande dor se repetiria e eu daria conta de todas as outras dores menores. Dor de orfandade é dor permanente, que não cessa, e clama por amparo eterno. Órfão de Gertrudes, Téo nunca deixaria de precisar do meu amor; nada do que sofresse seria maior do que o amor que lhe tinha. Desaparecida a mãe, socorridos pela morte, seríamos felizes para sempre. E eu choraria a sua morte com sorriso nos lábios, o sorriso que herdei da minha mãe. Bastaria passar da imaginação à ação, o que ainda não ocorreu por impedimento da porção do meu pai que habita em mim. Vou encerrar afirmando que a minha história não é história de fatos e sim história de almas; não é caso de morte de uma mulher e sim de uma mãe a menos neste mundo homem.” Amora terminou a fala com um longo suspiro. A voz, mais aguda; menos pretos, os olhos. Naquele momento a nossa atenção foi desviada para um pescador que juntou-se a nós na solidão da Vila do Conde. Sentou-se na mureta que separava o rio das mesas postas em fileiras e lançou anzol às águas serenas, quase mortas. Enxerguei o movimento da água em círculos concêntricos e me perguntei aonde iriam, a quem atingiriam aquelas ondas. Acaso não seria assim o amor?

Brecht e os tubarões...

Se os tubarões fossem homens...


Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentis com os peixes pequenos?
Certamente, se os tubarões fossem homens, fariam construir resistentes gaiolas no mar para os peixes pequenos, com todo o tipo de alimento, tanto animal como vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e adotariam todas as providências sanitárias. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nas aulas, os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo, a usar a geografia para localizar os grandes tubarões deitados preguiçosamente por aí. A aula principal seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. A eles seria ensinado que o ato mais grandioso e mais sublime é o sacrifício alegre de um peixinho e que todos deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando estes dissessem que cuidavam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência.
Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos seria condecorado com uma pequena Ordem das Algas e receberia o título de herói.

BRECHT, B. Histórias do Sr. Keuner

Relembrando: FUNÇÕES DA LINGUAGEM



Toda linguagem tem um objetivo. A linguagem verbal, por sua vez, tem alguns objetivos muito claros e por isso devem ser estudados para que possamos melhor entendê-la e utilizá-la.
Vejamos primeiramente como funciona o sistema de comunicação, utilizando a linguagem verbal.
- Aquele que emite a mensagem, codificando-a em palavras chama-se EMISSOR.
- Quem recebe a mensagem de a decodifica, ou seja, apreende a idéia, é chamado de RECEPTOR.
- Aquilo que é comunicado, o conteúdo da comunicação é chamado de MENSAGEM.
- CÓDIGO é o sistema linguístico escolhido para a transmissão e recepção da mensagem.
- REFERENTE, por sua vez, é o contexto em que se encontram o emissor e o receptor.
- O meio pelo qual esta mensagem é transmitida é nomeado CANAL.

São seis as funções básicas da linguagem verbal:

FUNÇÃO EMOTIVA / EXPRESSIVA
É centralizada no emissor. Como o próprio nome já diz, tem o papel de exprimir emoções, impressões pessoais a respeito de determinado assunto. Por esse motivo ela normalmente vem escrita em primeira pessoa e de forma bem subjetiva. Em textos que utilizam a função emotiva há uma presença marcante de figuras de linguagem, mensagens subentendidas, elementos nas entrelinhas, etc.
Os textos que mais comumente se utilizam desse tipo de linguagem são as cartas, as poesias líricas, as memórias, as biografias, entre outros.

FUNÇÃO REFERENCIAL / DENOTATIVA
Contrariamente à emotiva, esse tipo de linguagem é centralizada no receptor. Como seu foco seja transmitir a mensagem da melhor maneira possível, a linguagem utilizada é objetiva, recorrendo a conceitos gerais, vocabulário simples e claro, ou, dependendo do público alvo, vocabulário que melhor se adeque a ele. É chamada de denotativa devido à objetividade das informações, à clareza das idéias. Há uma prevalência do uso da terceira pessoa, o que torna o texto ainda mais impessoal.
Os textos que normalmente fazem uso dessa função são os textos jornalísticos e os científicos.

FUNÇÃO APELATIVA / CONATIVA
Como sugere a nomenclatura, essa função serve para fazer apelos, pedidos, para comover ou convencer alguém a respeito do que se diz. Centralizada no receptor, procura influenciá-lo em seus pensamentos ou ações. É bastante frequente o uso da segunda pessoa, dos vocativos e dos imperativos.
Essa função é aplicada particularmente nas propagandas ou outros textos publicitários, e também em campanhas sociais, com o objetivo de comover o leitor.

FUNÇÃO FÁTICA
Centraliza-se no canal. Tem o objetivo de estabelecer um contato ou comunicação, não necessariamente com uma carga semântica aparente.
É utilizada em saudações, cumprimentos do dia a dia, expressões idiomáticas, marcas orais, etc.

FUNÇÃO POÉTICA
Caracteriza-se basicamente pelo uso de linguagem figurada, metáforas e demais figuras de linguagem, rima, métrica, etc. É semelhante à linguagem emotiva, sendo que não necessariamente revela sentimentos ou impressões a respeito do mundo.
Como pode-se constatar essa função é aplicada em poesias, músicas e algumas obras literárias.

FUNÇÃO METALINGÜÍSTICA
Esta última função está presente principalmente em dicionários. Caracteriza-se por trazer consigo uma explicação da própria língua. Pode ocorrer também em poesias, obras literárias, etc.