por Moisés Neto
Reunidos em lugares como o Cantinho
das Graças, na lendária Soparia do Pina ou do Bar do Caranguejo em Candeias,
alguns amigos trançaram os rumos que abalariam os alicerces das concepções
artísticas no Recife no início dos anos 90. O termo Manguebeat logo seria conhecido pelo Brasil inteiro e viraria marca
registrada de artistas que dentre outras coisas admiravam a Geração Beat principalmente os autores
como Ginsberg, Kerouac e William S. Burroughs. O livro “On The Road” tivera sua
1ª ed. em português nos anos 80 e a editora Brasiliense havia relançado vários
autores da Geração Beat, que voltavam a influenciar os autores brasileiros.
“Pergunte ao Pó”, de John Fante, mostra um herói que tem tudo a ver com os
personagens marginais que pululam nas letras de Chico Science e Fred Zero
Quatro, dois poetas, líderes do Manguebeat, Fante foi um avatar. Science vinha
desde os anos 80 “Antenado” com a cultura Underground norte–americana. Rap/
hip hop/ funk faziam a cabeça
daquele rapaz que aqui no Recife não esquecia suas raízes culturais, como o
Maracatu, por exemplo, mas percebeu que alguns artistas ianques da classe menos
favorecida, que ficava às margens do mainstream, aprenderam a transformar em
poemas, e no caso dos beatniks,
também em romances, as aventuras das ruas, dos bares, dos guetos. O momento
chegou para a Geração Mangue quando,
em 93, há 20 anos, Science assina com a Sony Music e os mangueboys invadem São Paulo. Se o movimento, que havia lançado seu 1º
manifesto – release em 1991 e já se articulava bem com a mídia e com os
produtores independentes mundiais, a partir do lançamento do CD “Da Lama ao
Caos”, a geração Manguebeat dava seu passo mais largo em direção à batida
perfeita que eles perseguiam. Do mesmo modo como nos romances “Pergunte ao Pó”
de Fante, o herói do mangue vive o universo dos bares, dos esquecidos da
sociedade, da busca da emoção mais verdadeira, da vida bandida que Bukowsky
mostraria nos seus textos. Do mesmo modo que “Beat Generation” foi inventada
por Kerouac em 1948 e foi apresentada ao público no artigo que o amigo dele
John Clellon Holmes escreveu para o The
New York Times Magazine em 1952 (“This
Beat Generation”), Fred e Science contaram com o apoio do Jornal do
Commercio do Recife para começar o “Movimento Manguebeat”, que evoluiria em
muitas direções durante uma década. O Manguebeat,
nos moldes da Beat Generation (que
tinha este nome porque, dentre outras coisas, por significar “derrotado, ou,
como queriam alguns, beatitude), usava palavras que normalmente só eram usadas
por pessoas das classes menos favorecidas. Por exemplo, na letra da música
“Banditismo por uma questão de classe”, o poeta Science usa a palavra “Fodido”,
só para citar um pequeno exemplo. A
“Batida” (Beat) se espalhou entre aqueles que buscavam a critica social e
desprezavam as afetações burguesas. Então, nos moldes dos beathiks, a geração
mangue usou criminosos, como Lampião, Biu do Olho Verde, Galeguinho do
Coque e outros, como modelos a serem incorporados ao eu–lírico. Como os
marginais do romance “Almoço Nu” de Burroughs, as barbaridades são sublimadas
em nome da doidice generalizada da sociedade. Para o Mangue recifense chegaram com os anos 90: Os CD’s. A MTV, a
McDonald’s e a Internet traziam o estilo americano para o seio de Recife. O Grunge explodia como movimento em
Seattle(EUA). Começava a última década de um século que presenciou grandes
transformações. Os mangueboys
ergueram mais uns copos de cerveja e começaram algo que a poeira do
esquecimento nunca encobrirá totalmente. Ficção ou poesia, o drama social de
homens que buscaram descrever o cotidiano da estrada, da rua, com sua linguagem
dura, sua falta de dinheiro. Em livros ou em CDs, que importa? Era Manguebeatnik! Pronto. Trocar
idéias, discos, revistas e livros faziam partido Grupo Mangue (Fred, Chico,
Renato L, Mabuse, Helder Aragão, Hilton Lacerda e Jorge du Peixe). Algo que lembrava os tempos do Village, onde os
beats se reuniam para “segurar a onda” uns dos outros, ler seus novos textos,
fazer performances (Como o grupo recifense que elegeu o Espaço Oásis, em
Olinda, o Arteviva e a Soparia do Pina, Recife, para exibir seus
trabalhos), encontrar novas pessoas e se
interessar por elas, fortalecendo assim uma corrente de pensamento, uma atitude
grupal. É claro que, como Burroughs, haveria mangueboys de primeira instância
que negariam no futuro qualquer ligação maior com o movimento. Mas isto é outra
história. O Manguebeat desponta no Brasil no final dos anos de chumbo, do mesmo
modo que os Beatniks enfrentaram o McCarthismo pós–guerra nos EUA e abrir as
portas para novas percepções. A psicodelia, que Ginsberg e Timothy Leary
propagaram já nos anos 60, influenciou Chico de tal forma que ele criou a
estética afrociberdélica, letras psicodélicas, cibernéticas, estética afro,
diluída num som cheio de efeitos. O desconforto, a ruptura com a velha
realidade e a criação de um novo modo de ver as coisas desnudando-as. Era o
espírito dos rapazes que queriam aventuras e se posicionavam contra aqueles que
queriam roubar dos pobres seu bem mais precioso: a liberdade. Artistas criando seu próprio universo: os beats mostravam que não eram só as
grades das prisões que mereciam uma revisão. Os valores sociais precisavam de
novo padrão, este fatalmente iria de encontro ao consumismo, não o respeitando,
mas negociando numa dialética bem particular, nova, diferente. Havia muita
gente sem trabalho, sem segurança e sem felicidade, tanto nos EUA Beatnik quanto no Recife
Manguebeat. Mas tanto a águia americana quanto o gigante deitado
eternamente em berço esplendido (Brasil) na terra dos altos coqueiros
(Pernambuco) fincados no mangue (Recife) tinham no seu colo alguns artistas
desvalidos que pediam uma vida menos bandida, logo! E foram buscar na música
negra, quer fosse o jazz dos beatniks ou no maracatu, funk, rap, soul
dos manguebeats. Queriam a chance de gritar poesia e clamar por liberdade.
Andar num mundo mais livre. Valia a pena para isso correr vários riscos.
“Freedom is just another word for nothing left to lose” disse Kristoferson na
letra de “Me and Bob Mcgee”,
interpretada por Janis Joplin no seu álbum – testamento (Pearl), uma canção pra lá de beat. Janis
que levara às últimas consequências os ideais de sua geração beat/hippie. Viajar, em todos os
sentidos, é o que propuseram os manguebeatniks, também. E o esforço anárquico
manteve a chama acesa excitando e aquecendo quem deles se aproximar até hoje. Tanto
quanto Allen Ginsberg, no outubro de 1955, em San Francisco, quando pela primeira vez fez uma leitura pública do
“Uivo”, a geração manguebeat, também enfrentavam o problema de toda e qualquer
nova geração: provar que tinha algo novo e eficiente para mostrar. Tornar–se
independente. Na intrigante expressão facial de Chico Science, no seu jeito de
cantar, no que ele dizia sobre a malandragem e o trabalho, sobre a condição de
vida na Manguetown (modo como a geração manguebeat chamava Recife) e dos
mangueboys, vemos estampada a atitude, o desafio. Rotular “Mangue”, ou
“Beat”, uma geração é fazer dela parâmetro, farol. Conseguir transformar um
conjunto de comportamentos, num adjetivo. Uma poesia crua, nua, apostando a última ficha numa juke box de um bar como foi
a lendária Soparia do
Pina, de Roger de Renor,
onde a geração manguebeat se
encontrou, naquele início dos 90. Viver na boemia e ser ágil como um caranguejo.
Não ter medo do excêntrico, do tedioso, do ceticismo, do cinismo, de reconhecer
que a paz nas ruas era apenas para disfarçar o cansaço diante da injustiça
social transformada em máquina de explorar pobre é que um cara pobre desses
tinha, ou poderia expressar, sua visão diferente do mundo. Uma idéia na cabeça
e um bom canal de expressão à mão eram o bastante para começar. Se o beco não
tinha saída, o lance seria dar meia volta e cair na estrada novamente.
Pois estar na estrada é não estar perdido, é estar procurando. On the road o Manguebeat procurava era a atitude certa,
coisa que a passividade recifense havia esquecido de fazer desde os anos 70,
quando grupos como Ave Sangria,
capitaneados pelo poeta Marco Pólo, e os escritores publicados pela “Edições
Piratas”, como o poeta Manuel Constantino, criavam novas perspectivas nos meios intelectuais dos bares, das ruas,
da mídia. O mergulho no álcool, na brincadeira, e até mesmo a visão das drogas,
o trabalho alternativo, ou nenhum, a produção independente ou o respaldo de uma
grande editora, uma gravadora, tudo ia circulando ao redor dos manguebitniks. A desilusão se
transformando na vontade de curtir uma nova experiência, psicodélica, africana,
cibernética, existencialista, uma viagem para dentro da própria sua condição e
curtir várias possibilidades do ser. Como no filme “The Wild One”, com Marlon Brando, onde um motoqueiro beat e sua turma chegam para tomar
cerveja e agitam numa cidade americana. Ele tem até um troféu, mas a vontade de
desafiar o sistema é bem mais importante. Foi assim com Jim Morrison, com James
Dean (ícone beat), com Cazuza e
Renato Russo (rock dos 80) e com Chico Science e Fred Zero Quatro, sua virada cultural. “Only the most bitter among them would call their reality a nightmare
and protest that they have been indeed lost something, the future”. Disse John
Clellon Holmes no artigo “This is the beat generation”, no New York Times Magazine 16/nov/52. Artigo que introduziu a expressão “Beat Generation” para o mundo onde ele
afirmava que para eles era mais importante “como” viver do que “por quê”. Não
era falar sobre o cansaço e sim em como se tornar mais ativo e ativista: o
manguebeat foi o plano que todos
esperavam. Nem se conformar nem destruir: antenar-se e relaxar, parecia
ser o melhor caminho para ambas as “gerações”. Se a guerrilha que Zeroquatro e Chico exaltavam não podia
ser uma revolução armada, então seriam poesia e som com “gosto de gás” (com
toda vontade) como “Bala que já cheira a sangue” (Trecho de uma letra de
Science). Zeroquatro parecia com o narrador do romance “On The Road” (“Pé na
estrada” na tradução para o Brasil), Sal Paradise, que parte de New Jersey para
San Francisco, antes parando na casa de um amigo, Dean Moriarty uma espécie de
Chico Science, que mora em Denver, e curte a vida. (Dean é inspirado no Beatnik
Neal Cassady). Em Dever ele encontra Dean e Carlo Marx (inspirado em Allen Ginsberg ) que
poderia ser qualquer outro mangueboy como Renato L ou Jorge du Peixe, ou
Hélder Aragão (DJ Dolores). Os três curtem Denver, como os caranguejos com cérebro (os jovens do
mangue), curtiram Recife. Dean e Sal precisavam de um lugar para ficar e ainda
pensam dar um salto para a Itália. Mas a estrada americana era tudo que a
realidade lhes oferece. Chico, Fred, Renato, Helder, du Peixe e Mabuse aqui no
Recife armavam as estratégias de ataque. O manifesto em 91, o CD e o lançamento
do movimento em São Paulo
e no Rio de Janeiro em 93. O Jazz que Sal curte com Duke Ellington em Chicago,
era o som de Nick Cave e tantos outros que
Chico curtia em Recife. Carne preta seca em pó da lacraia aquática gigante
brasileira, citada por Burroughs em “Naked Lunch”, a interzona que
este autor sugeriu neste romance. Americanos gostam de viajar, mas só querem
encontrar humor afrodisíaco: agente interzonal. Esporádicas alucinações?
Bem–vindo ao clube! Ele está cheio de máquinas escrever mutantes e dopadas.
Penitência? Ansiedade? Psicodelicanálise? Há em tudo isso um paradoxo ético
(étnico)? Transestético! Todos saem do ar na interzona. É algo assim que eu
quero dizer aqui nesta GAZETA, comparando Manguebeat
com Beatnik.
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