Especialista em Literatura Indígena,
Janice Thiel selecionou, a pedido de Carta Educação, 10 obras escritas por
índios e não-índios. Pode ser um bom ponto de partida para trabalhar a temática
indígena em sala de aula:
A Terra sem Males: Mito guarani
O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público infantojuvenil. À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade do mito e sua relevância na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão sobre as especificidades da cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões indígenas. Questões diversas, como a história dos guarani, a resistência e diversidade indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas, servindo como propostas para pesquisa.
A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção Mistura Brasileira)
O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público infantojuvenil. À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade do mito e sua relevância na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão sobre as especificidades da cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões indígenas. Questões diversas, como a história dos guarani, a resistência e diversidade indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas, servindo como propostas para pesquisa.
A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção Mistura Brasileira)
Das Crianças Ikpeng para o Mundo
Marangmotxíngmo Mïrang
Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia. O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue, é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa, mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte da obra. O texto promove a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão das diferenças sem preconceitos.Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção Um Dia na Aldeia)
Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia. O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue, é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa, mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte da obra. O texto promove a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão das diferenças sem preconceitos.Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção Um Dia na Aldeia)
A Terra dos Mil Povos: História indígena
do Brasil contada por um índio
Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura. O texto mostra o poder da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz)
Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura. O texto mostra o poder da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz)
Câmera na Mão, o Guarani no
Coração
Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha, porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor, não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais. O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.
Câmera na Mão, o Guarani no Coração, de Moacyr Scliar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2008
Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha, porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor, não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais. O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.
Câmera na Mão, o Guarani no Coração, de Moacyr Scliar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2008
Kurumi Guaré no Coração da
Amazônia
De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados construídos na interação entre palavra e imagem.
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007
De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados construídos na interação entre palavra e imagem.
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e
história do povo xavante, de Sereburã
“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam a Palavra Criadora.” Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais desta obra, marca o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru; Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998
“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam a Palavra Criadora.” Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais desta obra, marca o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru; Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das
Missões
Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas. É o caso do romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael, ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações indígenas formam o contexto da obra.
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE, 2012
Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas. É o caso do romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael, ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações indígenas formam o contexto da obra.
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE, 2012
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil
No romance O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado, com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim, constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade da colonização europeia e da escravidão.
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP.: Manole, 2010
No romance O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado, com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim, constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade da colonização europeia e da escravidão.
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP.: Manole, 2010
Amazonas: Pátria da água = Water
Heartland
Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas, os exploradores e cronistas europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida ainda pode ser salva.
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello. SP: Boccato, 2007
Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas, os exploradores e cronistas europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida ainda pode ser salva.
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello. SP: Boccato, 2007
Maíra
O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios, dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna sacerdote cristão, e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.
Maíra, de Darcy Ribeiro. São Paulo: Global, 2014
O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios, dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna sacerdote cristão, e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.
Maíra, de Darcy Ribeiro. São Paulo: Global, 2014
Há uma longa tradição no Brasil de publicar por escrito,
mitos e lendas indígenas, supostamente transcritos das ricas tradições orais,
por toda sorte de autores desde viajantes estrangeiros até antropólogos
renomados.
O que mais caracteriza essa aparição da voz indígena na
escrita é a forma dada a essa voz. Muitos desses textos acabam sendo recriações
(por autores não indígenas) de narrativas orais com graus variados de
consciência, por parte de seus autores, das diferenças radicais entre a forma
escrita e a forma original oral de uma narrativa. Para entender melhor esse
processo de registrar narrativas orais no papel, é importante entender os
conceitos de performatividade da narrativa oral, o conceito de autoria, de
tempo mítico e o conceito da padronização ou homogeneização.
A escrita indígena
Alguns estudiosos definem a escrita como parte do
comportamento comunicativo humano de transmitir e trocar informações; ou seja,
a escrita pode ser vista como uma forma de interação pela qual uma ação das
mãos (com ou sem um instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse
sentido, a escrita pode ser concebida como uma forma não apenas alfabética para
representar idéias, valores ou eventos. Entendido assim, a escrita sempre
esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos
em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro
lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no papel a fala e o som,
foi introduzida no Brasil pela colonização européia, e desde o século XVI está
presente de formas variadas nas comunidades indígenas; porém, foi apenas nas
duas últimas décadas que surgiu o que pode ser chamado de fenômeno da escrita
indígena no sentido do aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos
escritos por autores indígenas.
Performatividade
Na tradição oral de culturas sem escrita, uma narrativa
contada oralmente é muito diferente do ato solitário de escrever e ler um texto
numa cultura com escrita. Numa cultura oral, contar uma narrativa para uma
platéia se trata de uma performance, um ato social complexo e altamente
dinâmico. O contador da narrativa – apesar de acessar e fazer uso de uma série
de técnicas para contar estórias, próprias de sua cultura e aprendidas ao longo
de sua vida – conta muito com a presença de uma platéia, com a qual ele
interage; por exemplo, de acordo com as reações da platéia presente, o contador
escolhe uma ou outra técnica para o desenrolar da narrativa garantindo, assim,
a possibilidade de prender o interesse de seu público.
Algumas dessas técnicas da performatividade oral incluem
variações na impostação da voz, variações de entoação, o uso inesperado do
silêncio e o uso da repetição. Sendo típicas da língua falada, tais técnicas
desaparecem nas formas escritas das narrativas orais. Assim, os autores que
dizem que estão simplesmente escrevendo (registrando no papel) narrativas
indígenas tal qual foram contadas, na verdade estão deixando para fora do papel
toda a complexidade e dinâmica do processo performativo de narrar oralmente.
Para isso, é bom entender o contraste entre o processo de
transcrever e o de escrever: transcrever significa passar para a escrita o
máximo possível das características orais (por exemplo, as mencionadas no
parágrafo acima) de um processo oral de contar, enquanto escrever significa
apenas registrar no papel informações consideradas relevantes. Ao dizer que
está apenas escrevendo uma narrativa indígena tal qual ela existe e é contada
na cultura indígena, muitos autores na verdade estavam apenas escrevendo ( e
não transcrevendo) essas narrativas, deixando para fora da página escrita as
complexidades, sofisticações e dinâmica da narrativa oral.
Dessa forma, ao dizer que está apenas escrevendo uma
narrativa indígena, o escritor na verdade acaba transformando algo oral com
características próprias em algo escrito com características muito diferentes,
muitas vezes reduzindo a narrativa oral a apenas um enredo. Assim o escritor
desse ‘enredo’ acaba na verdade se tornando o autor da narrativa, agora
escrita, que nunca chegou a ser contada (apresentada) oralmente. Assim, a
performatividade da tradição oral que permeia a narrativa oral original, se
perde totalmente, fazendo com que aquilo que nasceu como processo oral ou
performance se torne um mero produto escrito.
Autoria
Dessa maneira, a questão da autoria se torna um aspecto
crucial em todo fenômeno da escrita indígena. De fato, a questão da autoria na
tradição oral difere fundamentalmente da do texto escrito. Numa cultura oral,
as narrativas apresentadas em performances orais são vistas como sendo de
propriedade coletiva da comunidade e herdadas dos antepassados; são aprendidas
através da memória e passadas de geração em geração. O contador não se vê como
criador da narrativa, e sim como uma espécie de transmissor; ou seja, ele é um
elo numa cadeia infinita de repetidores e guardiões das narrativas ao longo das
gerações. A cada ato de contar, não é apenas a narrativa em si que é repetida,
mas também toda a tradição oral da comunidade é revivida.
Apesar desse conceito de o contador não ser o ‘criador’
(autor) mas apenas o ‘repetidor’ da narrativa tradicional pertencente à
comunidade, na verdade ao seguir as regras da performatividade, interagindo com
a platéia e lançando mão das várias técnicas de narrar, de acordo com as
reações de sua platéia, o contador acaba usando essas técnicas de uma forma
personalizada, para dar vida à narrativa. A comunidade por sua vez, apesar de
apreciar as habilidades pessoais do contador, ainda assim considera que a
narrativa contada não é propriedade do contador, mas sim da comunidade. O autor
da narrativa, nessa visão, é a comunidade e não o contador individual. O
exemplo de tal visão é a manifestação dos escritores indígenas do Brasil em sua
Carta da Kari-Oca de 2004:
Os conhecimentos de nossos avós foram deixados para nossos
netos de forma oral como uma teia que une o passado ao futuro. Esta fórmula
pedagógica tem sustentado o céu no seu lugar e mantido os rios e as montanhas
como companheiros de caminhada para nossos povos. Tais conhecimentos, em forma
de narrativas – chamado mitos pelo ocidente – foram sendo apropriados por
pesquisadores, missionários, aventureiros, viajantes que não levaram em
consideração a autoria coletiva e divulgaram estas histórias não se preocupando
com os seus verdadeiros donos.(2)
Tempo mítico e tempo histórico
O aspecto da autoria coletiva ou comunitária está ligado ao
conceito de tempo mítico e tempo histórico nas culturas orais.
O antropólogo Da Matta3 (1987) aponta dois conceitos de
tempo simultaneamente presentes nas culturas indígenas brasileiras: um
‘presente anterior’ e um ‘presente atual’. Enquanto o presente anterior se
remete a um passado durante o qual o mundo tal como é hoje ainda não existia, o
presente atual se refere ao estado de coisas no mundo de hoje em dia.
Outro escritor (Sullivan4 1988) chama esse presente anterior
de “primordium”, descrevendo-o como um plano temporal primordial nas
cosmologias indígenas sul-americanas, quando tudo estava sendo ainda criado, e
quando as coisas e os seres possuíam formas instáveis capazes de se mudarem
constantemente; nesse plano temporal, tudo podia se transformar em outra coisa,
até que ocorreu um grande desastre primordial que criou uma ruptura no tempo e
acabou gerando o plano do tempo ‘presente atual’. Nesse plano, os seres e as
coisas pararam de mudar de forma e se fixaram permanentemente nas formas
que tinham no momento do grande desastre primordial.
Portanto, enquanto que no plano temporal do ‘presente
anterior’ ou do ‘primordium’, todos os seres se intercomunicavam e mudavam de
forma e por isso eram iguais, no plano temporal do ‘presente atual’ os seres
passaram a ficar separados e isolados uns dos outros, em formas
distintas. Para muitas culturas indígenas, o plano do ‘presente anterior’
(diferentemente de nosso conceito de passado) continua existindo, e as
transformações e intercomunicações entre os seres seguem um movimento cíclico,
como se fosse de repetição; esse plano é chamado por muitos estudiosos do plano
do ‘mito’. Por outro lado, no plano do ‘presente atual’, onde os seres ocupam
formas fixas e estão isolados uns dos outros, tudo segue um processo linear; este
plano é chamado de plano da ‘História’. Dizem os especialistas que esses dois
planos coexistem de forma paralela e se intercomunicam; portanto não são
separados. Os xamãs ou pajés são capazes de viajar entre os dois planos na
busca de curas, soluções e explicações para eventos e problemas
cotidianos. Grande parte das narrativas orais indígenas narram eventos
que ocorreram e ocorrem nesse plano do ‘presente anterior’.
Dessa forma, pode-se dizer que as narrativas orais
performáticas e míticas, acompanhadas pelo conceito de autoria coletiva,
remetem-se ao conceito valorizado da coletividade e à inseparabilidade típica
do ‘presente anterior’; em contraste, pode-se dizer de forma geral que uma
narrativa escrita de autoria individual, contando sobre algo existente hoje, se
remete ao plano do ‘presente atual’, do ‘hoje-em-dia’ da historicidade.
Em “Tuparis e Tarupas”, por exemplo, a autora Betty
Mindlin faz questão de identificar os narradores das narrativas que ela reúne
no livro, mas ao passar as narrativas para uma forma escrita, isto é, deixando
de lado as formas performáticas do ato de narrar oral, pode-se dizer que ela
acaba sendo a autora das narrativas, embora não seja a narradora. Veja o
exemplo:
“O Dia”
“Antigamente, não existia o dia. Conta-se que na casa de
Waledjat era sempre escuro, nunca amanhecia. Existia o sol, mas não passava o
claro para cá”. (Narrador: Konkuat, 1989)
Em outros livros como “Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra”,
dos Xavante, há uma preocupação maior de manter as características da narrativa
oral, e apesar de identificar os nomes dos narradores, deixa-se claro que a
autoria do livro é do povo xavante.
História da Anta(8)
[...] O marido fica escondido, esperando... Prepara o arco
e:
-Tummmm! Dá uma flechada na fêmea. Ela cai:
-Ôhr, ôhr, ôhr..
O macho se aproxima e o homem dá outra flechada:
-Tummmm!
A coexistência e possibilidade de comunicação entre os dois
planos temporais indicam que pode haver uma conexão entre narrativas ‘míticas’
e narrativas ‘históricas’. A antropóloga Gallois5 (1994) cita exemplos
das narrativas dos Waiãpi nas quais os narradores chegam a atualizar as
narrativas tidas como míticas de acordo com os fatos recentes ocorridos na
história daquela comunidade e presentes em sua memória. Portanto, longe de ser
apenas uma estória, esse tipo de narrativa oral constrói e reconstrói a
história daquela comunidade. Essas atualizações ou variações porém, não são
percebidas nessas comunidades como mudanças ou deturpações da narrativa oral
original e o contador, conseqüentemente, não é visto como autor de seu texto
(modificado ou atualizado) e sim como repetidor.
Padronização
Além de confundir autor e narrador, transcrição e escrita,
outra violação comum na escrita indígena ocorre quando as “transcrições” de
narrativas orais acabam inadvertidamente caindo em mais uma armadilha aberta no
espaço entre a oralidade e a escrita, dessa vez a armadilha da padronização ou
homogeneidade. Essa questão diz respeito ao fenômeno descrito acima de
atualizar a narrativa oral – o que paradoxalmente mantém uma narrativa sempre a
mesma, apesar de torná-la diferente a cada apresentação. Quando tal variação ou
atualização de uma narrativa oral passa inadvertidamente a ser transcrita e
publicada, ela adquire, através da escrita, a aparência de ser a forma única
daquela narrativa; passar uma narrativa para a escrita acaba deslocando-a (o
que acontece com qualquer texto escrito) do contexto temporal e local de sua
apresentação oral perante uma platéia, fazendo com que aquilo que foi contado
oralmente como uma variação/atualização de uma narrativa já existente, fique
publicado/congelado no papel como a única forma invariante da narrativa,
padronizando-a e homogeneizando-a para sempre. Isso acaba reduzindo a plenitude
e complexidade da história indígena e das tradições orais numa mera estória.(9)
A história reescrita
Embora haja muitos relatos da percepção entre as comunidades
indígenas da importância e do poder da escrita,(10) foi apenas recentemente que
a escrita passou a ser vista de fato como uma ferramenta importante para o
resgate de suas culturas e de suas identidades, ameaçadas pela sociedade
envolvente.
A constituição de 1988, que oficialmente reconheceu a
existência das línguas indígenas no Brasil, abriu o caminho para a educação
bilíngüe indígena e levou à criação da nova instituição da escola indígena,
reforçando assim o esforço dessas comunidades para a recuperação de suas
culturas, muito embora cada comunidade sempre tivesse seus próprios meios para
a transmissão de suas tradições orais.
Essa política nova de educação indígena no Brasil deu um
impulso nunca antes visto para o surgimento de uma nova escrita indígena, seja
através da necessidade de criar novos materiais didáticos com conteúdos
indígenas para alimentar as escolas indígenas, seja através da formação de um
novo público leitor formado pelo alunado dessas escolas pelo país afora, ou
seja, ainda por causa dos vários programas de autoria indígena que surgiram em
vários cursos de formação de professores indígenas para estimular a escrita e a
produção de novos materiais didáticos para as escolas indígenas.
A nova escrita indígena que nasce de e para a nova escola indígena aparece especialmente quando surge o desejo e a necessidade de reescrever a história indígena, e por que não, de reescrever até mesmo as estórias indígenas, numa tentativa desenfreada de arrancar o poder de autoria das mãos dos tradicionais e históricos tutores das comunidades indígenas:
A nova escrita indígena que nasce de e para a nova escola indígena aparece especialmente quando surge o desejo e a necessidade de reescrever a história indígena, e por que não, de reescrever até mesmo as estórias indígenas, numa tentativa desenfreada de arrancar o poder de autoria das mãos dos tradicionais e históricos tutores das comunidades indígenas:
Eu sou índio porque nós temos costume de falar nossa língua.
E também nós temos costume de dançar a festa do mariri.[...] Por isso é que nós
queremos continuar a ser índio. É pelos costumes de nossa aldeia que todo
pessoal já conhece. Então não adianta a gente negar a nossa língua e dizer que
não é índio. O índio não pode virar cariu, porque é de outro jeito e chama de
índio. O índio também é gente. Nós somos índios Caxinauás do Jordão e queremos
aprender a língua de português, ler, escrever e tirar conta para não ser
roubado pelo cariu
Curiosamente, essa escrita nasce na forma de livro didático, escrito, na maioria das vezes coletivamente por grupos de professores indígenas em cursos de formação de professores para escolas indígenas. Tais livros procuram disseminar os conhecimentos culturais da tradição oral na forma de livros escritos especificamente para o currículo da escola indígena.
Porém, como ocorreu com as “transcrições” das narrativas orais, as armadilhas que separam a cultura oral da cultura escrita são muitas; a primeira aparece já na definição de fronteiras disciplinares: qual deveria ser a diferença entre narrativas num livro didático para o ensino da língua (seja ela materna ou português) e outras em livros para o ensino de história e de ciências? Surge novamente o espectro da indistinguibilidade entre ficção e realidade ou entre história e estória.(12)
Alguns livros procuram contrapor as narrativas da tradição
oral já existentes com narrativas (“memórias”) pessoais biográficas redigidas
especialmente pelos professores/autores, como se aquelas fossem “mitos” com
menor grau de veracidade, e portanto menos científicas, enquanto estas são
vistas como documentos testemunhais tendo maior grau de veracidade e
cientificidade:
Quando Deus (13) andava no mundo, para ver quem era bom e
quem era ruim, ele encontrou no meio da mata uma aldeia e ficou pra saber se os
índios eram bons ou ruins. Então Deus virou tamanduá que era manso e eles o
levaram pra casa. O tamanduá ficou lá [...] Na década de 30 (14), a Companhia
do Vale Rio Doce executa o projeto de construção da EFVM. A vale cortou o
território Krenak em 1905 sob protesto dos Burúm. Estes nunca foram indenizados
pelos prejuízos. A companhia trouxe as fazendas de café, a exploração de
minérios, a poluição sonora para a região [...] Várias vezes, á sua maneira os
Burum reagiram, bloqueando a estrada colocando pedras e paus nas trilhas para
impedir passagem. [...] Vários morreram ali atropelados. O último a morrer foi
Humberto, em 1984, quando voltava de um congresso indígena realizado em B.H.
Outros livros ainda contêm narrativas ditas ficcionais e até
mesmo poesias escritas especialmente para esses livros pelos
professores/autores, às vezes de autoria coletiva, outras vezes de autoria
individual, criando uma nova modalidade de, ou talvez confundindo para sempre,
o conceito de “autor”:
Sinto que sou índio porque não tenho cara de branco, meu
corpo é diferente, meu jeito de caminhar é diferente. Meu cabelo é liso, Não
tenho muita barba E nem pêlo enrolado no braço e na perna. Índio tem pêlo liso
no suvaco e na canela. Somos iguais e diferentes. Diferentes na língua, jeito e
costume. Igual no corpo, na inteligência, no respeito. Somos todos iguais:
índios, negros, brancos.
No caso do texto acima, a autoria é atribuída coletiva
e anonimamente a um “Grupo de professores indígenas do Acre”, (15) que diferentemente
das narrativas de autoria coletiva que surgem dentro de uma mesma etnia e grupo
social, essa narrativa foi elaborada por sujeitos de várias etnias reunidos num
curso de formação de professores indígenas do Acre. As três narrativas
apresentadas imediatamente acima atestam duas questões que permeiam as novas
narrativas indígenas: a questão de gênero textual e a questão do sujeito. Dada
a complexidade da situação do surgimento dessas narrativas no espaço
problemático entre a oralidade e a escrita, é de se esperar que os gêneros
textuais das narrativas reflitam tal complexidade, dificultando a sua
identificação em termos dos gêneros da cultura escrita, tais como ‘poesia’,
‘conto’ ou ‘crônica’. Muitas vezes, são os editores não-indígenas dos textos que
formatam os manuscritos atribuindo-lhes o gênero textual que mais lhes parece
cabível nas circunstâncias, sem que os próprios autores tenham escolhido
intencionalmente tais gêneros. Como se sabe, ‘poesia’, ‘conto’ e ‘crônica’ são
gêneros da cultura escrita e têm mais a ver com a disposição do texto verbal no
espaço bidimensional da página do que com o aspecto da performatividade e a
interação narrador-audiência, mais característica da tradição oral, cujas
distinções de gênero textual são menos definidas e mais situacionais.
A antropóloga Tonkin (1992) aponta, por exemplo, a
dificuldade de distinguir, na narrativa oral, entre uma narrativa pessoal,
subjetiva e auto-biográfica e uma narrativa supostamente mais objetiva que
representa uma história da vida da comunidade; ou seja quando uma estória passa
a ser história? Quando uma ficção passa a ser fato? Como esclarece Tonkin,
nessas situações, uma narrativa, seja oral ou escrita, contém eventos
organizados seqüencialmente de forma a apresentar um tipo de enredo; a seleção
dos eventos e seu ordenamento ajudam a criar uma ‘ordem moral’ que elimina a
sensação de desordem e falta de sentido, e afasta a possibilidade de
representar um mundo em estado de caos.
Esse ordenamento dos eventos é feito de acordo com uma experiência de vida de um sujeito; porém, esse sujeito da experiência, seja ele expresso explicitamente na narrativa ou não, mais do que um sujeito individual, é um sujeito social(16) e coletivo. Esse ‘sujeito social’ não deixa de ser um indivíduo, mas reflete o processo de formação de identidades de sua cultura onde a dinâmica individual-social é diferente da do sujeito individual numa cultura ocidental; nas culturas indígenas, cada sujeito é visto em termos de suas relações com os outros sujeitos da comunidade, e nunca de uma forma independente ou individualista.
Esse ordenamento dos eventos é feito de acordo com uma experiência de vida de um sujeito; porém, esse sujeito da experiência, seja ele expresso explicitamente na narrativa ou não, mais do que um sujeito individual, é um sujeito social(16) e coletivo. Esse ‘sujeito social’ não deixa de ser um indivíduo, mas reflete o processo de formação de identidades de sua cultura onde a dinâmica individual-social é diferente da do sujeito individual numa cultura ocidental; nas culturas indígenas, cada sujeito é visto em termos de suas relações com os outros sujeitos da comunidade, e nunca de uma forma independente ou individualista.
Esse conceito de sujeito está intimamente relacionado com os
conceitos temporais das culturas indígenas, conforme discutimos acima, que
estabelecem o diálogo entre o ‘tempo anterior’ mítico e coletivo (gerador do
sujeito coletivo) e o ‘tempo presente’ atual, histórico e social (gerador do
sujeito separado, aparentemente indivíduo.
A visualidade na escrita indígena
Outra característica marcante dos livros de escrita indígena
é seu grande apelo visual. A grande maioria deles é altamente ilustrada com
desenhos em cores vivas feitos pelos próprios autores individual e/ou
coletivamente, levando alguns a considerá-los até como um fenômeno novo da arte
indígena.(17)
Na maioria das vezes, porém, sendo tutelados por pessoas de
fora das comunidades indígenas, o processo de editoração desses livros,
incluindo o tratamento gráfico final que lhes é dado, muitas vezes é controlado
por pessoas que acabam também vítimas inocentes das armadilhas que separam a
cultura oral da escrita. Como no caso dos gêneros textuais, muitas vezes esses
“editores” desconhecem o papel e o valor do texto ou elemento visual
naquela cultura indígena e, partindo de uma cultura escrita que dá primazia à
palavra escrita, acabam confundindo-se e atribuem ao texto escrito (que para
algumas comunidades indígenas apenas “ilustra” ou complementa um texto visual)
maior importância do que ao texto visual.18 Aliás, o diálogo elaborado entre os
textos visuais e escritos presente na nova escrita indígena ainda merece ser
estudado como um fenômeno à parte.19
Tendo em vista que o objetivo principal do surgimento desses
livros, dentro do contexto da nova escola indígena, é de resgatar as culturas
indígenas, o que mais se vê nesse fenômeno da recente escrita indígena é
o surgimento de uma nova cultura indígena atravessando e confundindo as
fronteiras tênues entre a cultura escrita e a cultura oral.
Essa nova escrita indígena, especialmente a que é escrita em
português, nasce paradoxal e simultaneamente local e nacional, marginal e
canônica: local, porque cada comunidade com projetos para uma escola indígena
se torna produtor/autor e consumidor/leitor de seus próprios textos; nacional,
porque a política da escola indígena é federal, e isso faz com que surja um
público consumidor/leitor potencial da escrita indígena em todas as escolas
indígenas do país, fazendo com que esses livros possam circular para fora de
suas comunidades produtoras, tornando as tradicionais sabedorias e valores das
culturas indígenas (nas suas novas formas transformadas escritas) numa nova
espécie de capital cultural transcomunitário; marginal, porque essa escrita
embora já prolífica e de grande abrangência, ainda não mereceu o interesse das
academias e instituições literárias nacionais que, quando muito, a vêem como
uma espécie de literatura popular ou de massas, sem grande valor literário
(quando alguns desses livros encontram o caminho para o mercado externo das
livrarias nos grandes centros urbanos do país, não é incomum encontrá-los na
seção de Literatura Infantil);e finalmente canônica porque trata-se de uma
escrita que já nasce no bojo da instituição escolar, com seus mecanismos de
inclusão e exclusão curriculares que em várias culturas formam a base para a
construção, destruição ou transformação dos cânones literários. (20)
Não deixa de haver uma certa ironia no fato de que a escrita
indígena, produto de um setor historicamente marginalizado como sendo
‘primitivo’, já esteja formando, em menos de uma geração, seus próprios cânones
da escrita.
Mais do que reescrever a sua estória/história, as
comunidades indígenas parecem já estar escrevendo sua história. De forma
diferente das literaturas pós-coloniais de língua inglesa e francesa, que antes
de tudo buscaram “escrever de volta” aos antigos centros colonizadores
metropolitanos, para serem ouvidos e lidos (21), as comunidades indígenas
brasileiras parecem ter se contentado em reescrever a sua história escrevendo
para eles mesmos, construindo assim uma nova identidade indígena, ambígua e
híbrida, ao mesmo tempo local (como vimos acima, “Kashinawa do Acre”, por
exemplo) e nacional (“índio brasileiro”). Resta saber o resultado a longo prazo
dessa relação fascinante e um tanto incestual da nova escrita indígena com a
escola indígena.
A estória escrita
Um terceiro grupo de escrita indígena é aquele que inclui os
escritores declaradamente de origem indígena (Daniel Munduruku, Kaká Werá
Jecupé e Olívio Jekupé), mas que migraram para os centros urbanos nacionais, e
conviveram com a cultura dominante, escrevendo de e para a cultura dominante
não indígena. Longe dos fenômenos mencionados da tutelagem dos intermediadores
e da escola indígena, esses autores ou publicam suas próprias obras ou são
publicados por editoras não indígenas, e até de prestígio, como foi o caso de
Daniel Munduruku.22 Longe também da performatividade da tradição oral, e
portanto de suas platéias indígenas, esses autores seguem,com algumas exceções,
a tradição escrita e seus gêneros (Souza 2001,2002).(23)
Com esse distanciamento de suas origens e de um público
leitor indígena, esses autores, embora procurem reescrever a versão dominante
da história indígena para não indígenas,(24) acabam sujeitos aos processos de
exclusão e marginalização do mercado editorial dominante, conseguindo no
máximo, ser lidos como autores de estórias escritas, ajudando, porém, à sua
maneira, a prestar visibilidade, embora restrita, à problemática do processo de
construção da(s) identidade(s) indígena(s) e à questão indígena. Mas essa é uma
outra história...
Março de 2006
........ Especialista em Literatura Indígena, Janice Thiel
selecionou, a pedido de Carta Educação, 10 obras escritas por índios e
não-índios. Pode ser um bom ponto de partida para trabalhar a temática indígena
em sala de aula:
A Terra sem Males: Mito guarani
O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público infantojuvenil. À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade do mito e sua relevância na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão sobre as especificidades da cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões indígenas. Questões diversas, como a história dos guarani, a resistência e diversidade indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas, servindo como propostas para pesquisa.
A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção Mistura Brasileira)
O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público infantojuvenil. À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade do mito e sua relevância na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão sobre as especificidades da cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões indígenas. Questões diversas, como a história dos guarani, a resistência e diversidade indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas, servindo como propostas para pesquisa.
A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção Mistura Brasileira)
Leia também: Lendas indígenas para crianças
Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang
Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia. O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue, é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa, mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte da obra. O texto promove a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão das diferenças sem preconceitos.Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção Um Dia na Aldeia)
Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia. O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue, é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa, mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte da obra. O texto promove a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão das diferenças sem preconceitos.Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção Um Dia na Aldeia)
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada
por um índio
Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura. O texto mostra o poder da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz)
Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura. O texto mostra o poder da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz)
Câmera na Mão, o Guarani no
Coração
Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha, porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor, não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais. O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.
Câmera na Mão, o Guarani no Coração, de Moacyr Scliar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2008
Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha, porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor, não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais. O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.
Câmera na Mão, o Guarani no Coração, de Moacyr Scliar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2008
Leia também: Mitos indígenas para crianças
Kurumi Guaré no Coração da
Amazônia
De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados construídos na interação entre palavra e imagem.
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007
De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados construídos na interação entre palavra e imagem.
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo
xavante, de Sereburã
“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam a Palavra Criadora.” Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais desta obra, marca o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru; Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998
“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam a Palavra Criadora.” Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais desta obra, marca o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru; Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões
Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas. É o caso do romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael, ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações indígenas formam o contexto da obra.
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE, 2012
Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas. É o caso do romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael, ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações indígenas formam o contexto da obra.
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE, 2012
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil
No romance O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado, com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim, constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade da colonização europeia e da escravidão.
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP.: Manole, 2010
No romance O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado, com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim, constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade da colonização europeia e da escravidão.
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP.: Manole, 2010
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland
Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas, os exploradores e cronistas europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida ainda pode ser salva.
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello. SP: Boccato, 2007
Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas, os exploradores e cronistas europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida ainda pode ser salva.
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello. SP: Boccato, 2007
Maíra
O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios, dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna sacerdote cristão, e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.
Maíra, de Darcy Ribeiro. São Paulo: Global, 2014
O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios, dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna sacerdote cristão, e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.
Maíra, de Darcy Ribeiro. São Paulo: Global, 2014
.............
Literatura Indigena / Guatiaçáwa tapuya
LITERATURA
INDÍGENA BRASILEIRA E SEUS AUTORES
Por Yaguarê Yamã
A "LINBRA" - Literatura Indígena
Brasileira deixou de ser unicamente uma literatura oral para ser uma
literatura escrita, e contradizendo a muitos intelectuais, existe e está
ativa já a algumas décadas. O que no inicio vingou com
professores de aldeias e comunidades ajudados por entidades para
publicação nas linguas maternas, evoluiu para uma literatura sofisticada,
apurada e rentavel no mercado literario nacional, num constexto até pouco tempo
inimaginavel, visto que era tido como uma literatura inesistente e cujos
autores nunca poderiam se destacar no cenario nacional e internacional.
O movimento "Nova Literatura
Indigena" baseado no mercado editorial teve seu processo
iniciado a partir dos primeiros livros de Daniel Munduruku,
o qual se seguiriam autores como Olivio Jekupé, Kaká Werá
Jekupé, Yaguarê Yamã, Kanatio
Pataxó, Rene Kithaulu, Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Marcos
Terena e posteriomente Roni Wasiry Guará, Tiago
Haki'y, Cristrino Wapixana, Elias Yaguakãg, Graça
Grauna, Sulamy Katy, Kerexu Mirim, Lia Minapoty, Ely
Makuxi entre outros. Assim como ilustradores de destaque
como Uziel Guaynê, Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Cleomar
Tahuare e Sbel.
Esse movimento tem tido seu cenario brasileiro dentro da entidade
artistica-literaria NEARIN -
Nucleo de Escritores e Artistas Indigena do Brasil, sediada no Rio de Janeiro
cujo evento de encontro de escritores e artistas está em sua setima edição
É um movimento real e bem difundido graças a produção de qualidade
valorizada pelas varias editoras no Rio, Rio Grande do Sul, São Paulo e
Amazonas, e seus leitores fieis.
Cada
vez mais angariando adeptos, fãs e colaboradores, o movimento da "Nova
Literatura Indigena" tem como objetivo levar o mundo ou os mundos indígenas
para dentro da sociedade brasileira de uma meneira crescente e influente, mas
sem o perigo do preconceito. A valorização das culturas e das maneiras de
pensar o mundo é fundamental para que o Brasil evolua sem o esterioptipos ainda
usados mas que tendem a desaparecer.
Se
vê nesse movimento um outro movimento, que não é o politico nem o de
militancia radical, mas que acredita na paz e num Brasil de culturas
polarizadas, valorizando os povos nativos e dando a eles voz e vez na sociedade
atraves da literatura e de palestras onde os temas mais apreciados são a paz, o
convio igual e a valorização das culturas indigenas.
Assim, o movimento conquista não só uma parte da sociedade, como o Brasil num
todo, inserindo o conhecimento e o pensamento indigena na alma dos leitores
não-indigenas, e o que não se conhecia, era tipo esteriotipado, tratado com
preconceito, entre outras faltas de conhecimento, passa a ser valorizado,
enraizado e vinculado a sociedade. Os povos Indígenas passam a ser conhecidos
da melhor maneira: sem medo e sem preconceito.
Esta é a cara da literatura indigena
brasileira.
LISTA DE ESCRITORES INDÍGENAS NO BRASIL
AILTON KRENAK
Lider do povo Krenak, o escritor Ailton é um dos iniciadores do chamado Movimento Indigena Brasileiro de tematica politica. |
TIAGO HAKI'Y
Nascido na vila Freguesia do Andirá, as margens do rio Andirá, o poeta e escritor Carlos Tiago Haki'y é tataraneto do tuxawa Crispim de Leão, o maior heroi Sateré da guerra da Cabanagem. Mora atualmente em Barreirinha ond trabalha como subsecretario de cultura. |
DANIEL MUNDURUKU
Natural de Belem do Pará, Daniel é o principal representante do seguimento literario indigena brasileiro. Autor de dezenas de livros, é escritor premiado nacional e internacionalmente. Vive na cidade de Lorena, SP. |
ELIANE POTIGUAR
Escritora de origem paraibana, vive a muito tempo no Rio de Janeiro, uma das mais atuantes mulheres indigena no movimento. Autora do livro: Metade cara, metade mascara. |
ELY MACUXI
Filho do povo indigena Makuxi, Eli mora e trabalha em Manaus-AM. Professor, atua na politica local e um dos mais destacados oradores indigenas na atualidade. |
CRISTINO WAPIXANA
Mora atualmente no Rio de Janeiro, onde atua como coodenador do NEARIN - nucleo de escritores e artistas indigenas. É autor de "A onça e o fogo" |
RONY WASIRY GUARÁ
Filho do povo indigena Maraguá. Wasiry é escritor, ilustrador e artesão indigena. Mora atualmente em Boa Vista do Ramos-AM, onde é professor. É casado com Neide com quem tem dois filhos. |
UZIEL GUAYNÊ
Maraguá nascido na aldeia Yãbetue'y, Guaynê é ilustrador e artista plastico. Ativista indigena. Tambem fez enfermagem. É ilustrador dos livros: As pegadas do Kurupyra, Wirapurus e Muirakitãs, Formigueiro de Mirakãwéra e Historinhas Marupiaras |
ELIAS YAGUAKÃG
Nasceu na aldeia Yabetue'y do povo Maraguá. Elias, alem de escritor, é grande artesão e ilustrador de grafismos maraguá. Grande incentivador da cultura do seu povo, Elias é autor de Historinhas Marupiaras, e As aventuras do menino Kawã. |
LIA MINAPOTY
Nascida na ladeia Yãbetue'y, Minapoty é uma das jovens lideranças das mulheres maraguás. Lia Minapoty é autora do livro "Com a noive veio o sono" pela editora LEYA e de "A arvore de carne" da editora Tordesilhas. |
OZIAS YAGUARÊ YAMÃ
Maraguá por parte de mãe e Sateré por parte de Pai, Yaguarê nasceu na aldeia Yãbetue'y, no Amazonas. Escritor, Geografo, professor e Ilustrador, Yaguarê é autor de dezessete livros sendo um dos pricipais escritores indigenas na atualidade. |
OLIVIO JEKUPÉ
Natural do Paraná, Jekupé é indigena Guarani. Um dos principais escritores da literatura indigena brasileira. Autor de diversos livros. Mora atualmente com a familia na aldeia Kurukutu, SP |
GRAÇA GRAUNA
Escritora e doutora em educação, Graça Grauna é indigena do povo Potiguar do estado da Paraiba. Mora em Pernambuco e atua como importante vinculo a luta das mulheres indigenas no Brasil |
CREOMAR TAHUARE
Indigena das Etnias Umutina e Irantxe, Tahuare é artista plastico e ilustrador. Mora no Mato Grosso e é uma das personalidade atuantes no NEARIN, o nucleo de escritores e artistas indigenas. KAKA WERÁ É escritor e ativista indígena de origem tapuya. Nasceu em São Paulo e atualmente, após morar com os guaranis, vive atualmente na cidade de Itapecerica da Serra. SP, onde atua como presidente do Instituto Arapoty. Conhecido em nível nacional e internacional. É autor de vários livros de temática indígena e ambiental. MARCELO MANHUARI MUNDURUKU O mais novo escritor indígena conhecido no Brasil. Lançou o livro "A cidade das águas profundas" no Salão do Livro Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro, em 2013. É uma das lideranças do povo mundurucu em Mato Grosso. JUVENAL PAYAYÁ Lider indigena do povo Payayá, da Bahia. Nasceu em Utinga. Mora atualmente em Salvador. É autor de Romances. ELY MACUXI Eli Ribeiro Macuxi é professor e ativista indigena e sidicalista do estado do Amazonas. Descendente do povo Macuxi, de Roraima, é autor de dezenas de textos e participação de revistas e jornais. Escreveu "Ypaty, o curumim da selva", pela editora Paulinas. LUCIANA VÃNGRI KAINGÁNG Morando atualmente no Rio de Janeiro e casada, Luciana é filha do povo Kãingang, nascida no Rio Grande do Sul. Artista plastica e especialista de grafismos de seu povo, luciana tambem é escritora, coautora junto com Mauricio Negro, do livro Joty, o tamanduá, pela editora Global. RENE KITHAULU Indio dos mais capacitados na arte da construção de casas tipicas. Rene Kithaulu nasceu em Mato Grosso em 1971. Por algum tempo viveu longe de seu povo Nambikwara, época em que morou em Sao Paulo, mais precisamente entre os indios guaranis, onde casou-se e tornou-se pai de sete filhos. De volta ao Mato Grosso, desde entao pouco teve contato com o mundo exterior e com o movimento da literatura indigena, movimento este que ajudou a criar no tempo que vivia em São Paulo, na companhia de Daniel Munduruku e Yaguarê Yamã. É autor de Iraksu, o menino criador. |
Literatura Indígena
Autor: Carlos Augusto Novais,
Instituição: Universidade
Federal de Minas Gerais-UFMG / Faculdade de Educação / Centro de Alfabetização,
Leitura e Escrita-CEALE,
Ainda não há consenso sobre o uso da
expressão Literatura Indígena. Afinal, sob o conceito de “indígena”
reconhecem-se, atualmente, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), 305 grupos étnicos, com culturas e histórias
próprias, falando 274 línguas. Portanto, encontrar uma denominação de
referência geral não é muito simples. Outras expressões, embora menos usadas,
vêm se apresentando na tentativa de caracterizar esse campo de interesse, como
Literatura Nativa, Literatura das Origens, Literatura Ameríndia e Literatura
Indígena de Tradição Oral. Próxima a essas, mas já com significado e alcance
próprio, ainda contamos com Literatura Indianista, para se referir à produção
do Romantismo brasileiro do século XIX de temática indígena, como os versos
de Primeiros Cantos (1846) e de Os Timbiras (1857), de
Gonçalves Dias, e os romances O Guarani (1857)
e Iracema (1865), de José de Alencar. Diante desse quadro, quando
usamos, hoje, a expressão Literatura Indígena, uma questão,
necessariamente, ainda se apresenta: quais objetos ela incorpora ou para quais
aponta ou tem apontado?
Em perspectiva ampla, diríamos que essa produção cultural
assinala textos criativos em geral (orais ou escritos) produzidos pelos
diversos grupos indígenas, editados ou não, incluindo aqueles que não se
apresentam, em um primeiro momento, como constituídos a partir de um desejo
especificamente estético-literário intencional, como as narrativas, os
grafismos e os cantos em contextos próprios, ritualísticos e cerimoniais. Parte
dessa produção ganha visibilidade com os registros realizados por antropólogos
e pesquisadores em geral. Outra parte surge por meio de levantamentos
realizados por professores atuantes em cursos de licenciatura indígena e dos
próprios alunos desses cursos, oriundos de várias etnias. Estima-se que 1564
professores indígenas estavam em formação no ano de 2010, em cursos financiados
pelo Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais
Indígenas (PROLIND), do Ministério da Educação.
Em perspectiva restrita, a expressão Literatura
Indígena tem sido utilizada para designar aqueles textos editados e
reconhecidos pelo chamado sistema literário (autores, público, críticos,
mercado editorial, escolas, programas governamentais, legislação), como sendo
de autoria indígena. Um marco importante se dá em 1980, ano de publicação do
considerado primeiro livro de autoria indígena com tais características,
intitulado Antes o Mundo não Existia, de Umúsin Panlõn & Tolamãn
Kenhíri, pertencentes ao povo Desâna, do Alto Rio Negro/AM. A partir das
licenciaturas indígenas, assistimos, na década de 1990, ao incremento dessa
produção editorial.
Ainda nessa direção, em 2003, foi criado o Núcleo de
Escritores e Artistas Indígenas (NEArIn), vinculado ao Instituto Indígena
Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI). Em 2004, a Fundação Nacional
do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) lança dois concursos anuais associados aos
livros de autoria indígena, oTamoios e o Curumim. O segundo, por
exemplo, premia trabalhos e projetos de professores da Educação Básica
desenvolvidos com livros da literatura indígena. A escolarização da literatura
indígena se consolida com a Lei 11.645, de 08/03/2008, que institui a
obrigatoriedade do estudo das histórias e culturas indígenas no contexto
escolar brasileiro. Para os anos iniciais do Ensino Fundamental, apresentam-se
narrativas de temáticas brasileiras, que contemplam o imaginário infantil,
algumas já populares, em livros cada vez mais preocupados com a adequação dos
seus projetos gráfico-editoriais.
De modo geral, a Literatura Indígena, nessa
perspectiva, tem se apresentado em língua portuguesa ou bilíngue (em alguns
casos em que a língua indígena apresenta registro escrito), em gêneros variados
como relatos sobre a origem do mundo e atividades cerimoniais, histórias de
animais, narrativas sobre fatos gerais da vida, cantos diversos, poemas.
Encontramos nela desde a recolha e a escrita particular de narrativas
tradicionais coletivas, passando por trabalhos que se dedicam à recriação de
elementos da tradição oral (personagens, cenários, símbolos) até a criação
individual, propriamente dita. Três dimensões se evidenciam nessa produção: a
política (questões de identidade), a cognitiva (preservação de conhecimentos
tradicionais e da memória social) e a estética (configuração do sensível).
Verbetes associados: Leitura literária, Letramento Literário, Literatura e Diversidade Cultural, Literatura oral, Reconto
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, M. I. Ensaios sobre a Literatura Indígena Contemporânea no Brasil. (Tese de doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2000.
LUCIANO, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
NEArIn / INBRAPI. Pequeno Catálogo Literário de Obras de Autores Indígenas, São Paulo: Global Editora, 2008.
RISÉRIO, A. Textos e tribos – poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago, 1993. (Série Diversos).
ALMEIDA, M. I. Ensaios sobre a Literatura Indígena Contemporânea no Brasil. (Tese de doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2000.
LUCIANO, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
NEArIn / INBRAPI. Pequeno Catálogo Literário de Obras de Autores Indígenas, São Paulo: Global Editora, 2008.
RISÉRIO, A. Textos e tribos – poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago, 1993. (Série Diversos).
Os indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos:
as histórias de hoje e as histórias de antigamente. As histórias de hoje são
narrativas históricas, geralmente de autoria individual, que tratam de fatos e
acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela
demarcação de territórios. Já as histórias de antigamente são narrativas
originadas da oralidade performática e mítica, geralmente de autoria coletiva,
que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também
chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo informações de Souza
(s.d., on-line).
Na produção de obras indígenas de autoria individual, destacam-se os escritores: Daniel Munduruku, Álvaro Tukano, Graça Graúna, Ailton Krenak, Eliane Potiguara,Cássio Potiguara, Olívio Jekupé, Yagrarê Yamã, Darlene Taukane, Naine Terena, Edson Brito (kayapó), dentre muitos outros. Na produção de obras de autoria coletiva, podemos citar os povos: guarani, maxakali, yanomami, kiriri, desana-ware, satare-mawe, kaxinawá.
As comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 233). Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala.
A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).
Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004).
Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos, que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 205).
É nessa linha que se dá a publicação de Shenipabu Miyui, que constitui o corpus de minha pesquisa. Uma obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, composta por 12 narrativas de origem mítica e organizada pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá.
Na produção de obras indígenas de autoria individual, destacam-se os escritores: Daniel Munduruku, Álvaro Tukano, Graça Graúna, Ailton Krenak, Eliane Potiguara,Cássio Potiguara, Olívio Jekupé, Yagrarê Yamã, Darlene Taukane, Naine Terena, Edson Brito (kayapó), dentre muitos outros. Na produção de obras de autoria coletiva, podemos citar os povos: guarani, maxakali, yanomami, kiriri, desana-ware, satare-mawe, kaxinawá.
As comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 233). Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala.
A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).
Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004).
Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos, que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 205).
É nessa linha que se dá a publicação de Shenipabu Miyui, que constitui o corpus de minha pesquisa. Uma obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, composta por 12 narrativas de origem mítica e organizada pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá.
Shenipabu Miyui, ou História dos Antigos, é o resultado de
uma pioneira pesquisa realizada durante seis anos por um grupo de professores
Kaxinawá sobre parte da história oral do seu povo autodenominado Huni Kui, ou
“Gente Verdadeira”. Foi primeiramente gravado por esses jovens pesquisadores
junto aos velhos, mestres da tradição, em Terras indígenas do Brasil e Peru. E
depois foi transcrito e escrito por eles em língua Kaxinawá, Hãtxa Kui, ou
“língua verdadeira”, uma das nove línguas da família lingüística Pano
existentes no Acre, e em português (KAXINAWÁ, 2008, p. 9).
Os kaxinawá compõem hoje a população indígena Pano mais numerosa do Acre, com cerca de 5000 índios. Destes, 1500 estão distribuídos por nove aldeias no Alto Rio Purus e seu afluente, o Rio Curanja, no Peru. Outros 3500 vivem em onze territórios indígenas localizados no Brasil, ao longo do Rio Purus e de afluentes do Rio Juruá.
O povo indígena Kaxinawá entrou em contato com o “homem branco” no final do século passado, quando foram incorporados como mão-de-obra dos seringais. Tentando compreender as relações econômicas com os patrões, os índios seringueiros passaram a se interessar pela escrita (alfabética e numérica), já que, até então, constituíam uma sociedade de tradição predominantemente oral. A dominação do sistema escrito dos brancos serviu para que a cooperativa dos trabalhadores indígenas tentasse garantir a legitimidade dos seus direitos.
Em 1983 foi criada a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/ AC), uma das primeiras organizações não-governamentais de apoio à questão indígena no país. Essa organização foi responsável pelo início do programa de formação de professores indígenas na região. Através do projeto “Uma Experiência de Autoria” com o I Curso de Formação de Monitores e Agentes de Saúde Indígenas, teve início o primeiro processo de formação profissional de jovens indígenas no Acre, não só com o povo Kaxinawá, mas também com os outros grupos Pano.
Os kaxinawá compõem hoje a população indígena Pano mais numerosa do Acre, com cerca de 5000 índios. Destes, 1500 estão distribuídos por nove aldeias no Alto Rio Purus e seu afluente, o Rio Curanja, no Peru. Outros 3500 vivem em onze territórios indígenas localizados no Brasil, ao longo do Rio Purus e de afluentes do Rio Juruá.
O povo indígena Kaxinawá entrou em contato com o “homem branco” no final do século passado, quando foram incorporados como mão-de-obra dos seringais. Tentando compreender as relações econômicas com os patrões, os índios seringueiros passaram a se interessar pela escrita (alfabética e numérica), já que, até então, constituíam uma sociedade de tradição predominantemente oral. A dominação do sistema escrito dos brancos serviu para que a cooperativa dos trabalhadores indígenas tentasse garantir a legitimidade dos seus direitos.
Em 1983 foi criada a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/ AC), uma das primeiras organizações não-governamentais de apoio à questão indígena no país. Essa organização foi responsável pelo início do programa de formação de professores indígenas na região. Através do projeto “Uma Experiência de Autoria” com o I Curso de Formação de Monitores e Agentes de Saúde Indígenas, teve início o primeiro processo de formação profissional de jovens indígenas no Acre, não só com o povo Kaxinawá, mas também com os outros grupos Pano.
Deste trabalho educacional com a formação de professores
indígenas resultou o livro Shenipabu Miyui, além de muitos outros, escritos
pelos professores indígenas Kaxinawá sozinhos, ou com outros professores de
outras etnias do Estado, para seu uso e difusão em suas escolas e em outras
escolas brasileiras (KAXINAWÁ, 2008, p. 15).
Para a elaboração do livro Shenipabu Miyui, um dos professores dos primeiros anos do projeto de formação profissional viajou para as aldeias Kaxinawá peruanas, coletando as narrativas dos antigos e gravando-as em fitas K-7. Ao voltar para o Brasil, apresentou o material coletado aos outros professores Kaxinawá do projeto. A partir daí, todo o grupo passou a trabalhar em conjunto na confecção do livro, coordenados pelo professor Joaquim Mana. Uma segunda parte do processo consistiu em coletar mais versões das narrativas, agora dos mestres antigos das aldeias brasileiras.
Várias versões foram ouvidas e foi necessário realizar comparações, análises, escolhas até chegarem ao grupo de doze narrativas de antigamente, que compõem a obra.
Inicialmente, os Kaxinawá optaram por publicar o livro apenas com as versões das histórias escritas na língua indígena Hãtxa Kui, sem colocá-lo em contato com a língua portuguesa. Entretanto, após várias discussões, compreenderam que deveriam dar a oportunidade a outros leitores, de outras etnias, de conhecerem as histórias Kaxinawá. Assim, iniciou-se mais um processo, o de coletar entre os mestres da tradição, que dominassem a língua dos brancos, versões das narrativas selecionadas para o livro, mas agora em português. Portanto, Shenipabu Miyui é uma obra bilíngüe, porém não se trata de traduções dos mitos Kaxinawá, mas sim de versões em língua portuguesa. São apenas as versões em português que formam o corpus de trabalho de nossa pesquisa.
A primeira edição do livro, em 1995, aconteceu por meio do projeto da CPI/AC, com o apoio financeiro da Unicef e da Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do Ministério de Educação e Desportos. A tiragem foi de 3000 exemplares, visando à difusão principalmente entre os próprios Kaxinawá. Diz Joaquim Mana:
Para a elaboração do livro Shenipabu Miyui, um dos professores dos primeiros anos do projeto de formação profissional viajou para as aldeias Kaxinawá peruanas, coletando as narrativas dos antigos e gravando-as em fitas K-7. Ao voltar para o Brasil, apresentou o material coletado aos outros professores Kaxinawá do projeto. A partir daí, todo o grupo passou a trabalhar em conjunto na confecção do livro, coordenados pelo professor Joaquim Mana. Uma segunda parte do processo consistiu em coletar mais versões das narrativas, agora dos mestres antigos das aldeias brasileiras.
Várias versões foram ouvidas e foi necessário realizar comparações, análises, escolhas até chegarem ao grupo de doze narrativas de antigamente, que compõem a obra.
Inicialmente, os Kaxinawá optaram por publicar o livro apenas com as versões das histórias escritas na língua indígena Hãtxa Kui, sem colocá-lo em contato com a língua portuguesa. Entretanto, após várias discussões, compreenderam que deveriam dar a oportunidade a outros leitores, de outras etnias, de conhecerem as histórias Kaxinawá. Assim, iniciou-se mais um processo, o de coletar entre os mestres da tradição, que dominassem a língua dos brancos, versões das narrativas selecionadas para o livro, mas agora em português. Portanto, Shenipabu Miyui é uma obra bilíngüe, porém não se trata de traduções dos mitos Kaxinawá, mas sim de versões em língua portuguesa. São apenas as versões em português que formam o corpus de trabalho de nossa pesquisa.
A primeira edição do livro, em 1995, aconteceu por meio do projeto da CPI/AC, com o apoio financeiro da Unicef e da Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do Ministério de Educação e Desportos. A tiragem foi de 3000 exemplares, visando à difusão principalmente entre os próprios Kaxinawá. Diz Joaquim Mana:
Só agora nos últimos anos é que estamos com os direitos de
ter uma comunicação através da escrita na nossa língua própria. Sendo um
processo novo para os índios e para os assessores, encontramos várias
interrogações no ar. Como se fôssemos andorinhas voando para pegar as moscas de
sua alimentação numa tarde de temporal de chuva. Mas o túnel do futuro mostra
que somos capazes de realizar os sonhos que sempre tivemos como povos
diferentes, valorizados dentro de nós mesmos e espiritualmente (KAXINAWÁ, 2008,
p. 5).
Em 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais realizou a segunda edição do livro e incluiu a obra na lista de leituras exigidas para o Vestibular 2001 da instituição. Acreditamos que medidas como essa são extremamente significativas, pois representam um estímulo para a valorização da cultura indígena – que integra o leque cultural brasileiro – e para o enriquecimento da literatura brasileira contemporânea.
Em Shenipabu Miyui, os kaxinawá escrevem seus mitos, apresentando-os como narrativas que explicam o mundo, os seres, os valores, integrando o real/cotidiano com o suprareal, mágico, fabuloso, divino. Há, nos textos, a representação da visão integradora de mundo dos índios kaxinawá, que amplia a realidade, apresentando, por exemplo, personagens de caráter híbrido, ou seja, a linha que separa homem e natureza é muito tênue e as metamorfoses são constantes, sendo corrente a transformação de um ser em outro. Esse hibridismo que se manifesta sob forma das características físicas dos seres vivos e inanimados também se reflete em suas peculiaridades interiores, éticas e morais. No momento das histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado e os seres não têm uma forma definida, podendo se metamorfosear constantemente, de acordo com Souza (s.d., on-line).
Por fim, outra característica importante da escrita indígena é seu grande apelo visual. Praticamente todas as histórias são ilustradas com desenhos feitos pelos próprios índios, estabelecendo um significativo diálogo entre os textos verbais e não-verbais, processo denominado por Souza (s.d., on-line) de narrativas multimodais. As produções narrativas escritas dos Kaxinawá são freqüentemente acompanhadas de dois tipos de desenhos: kenê e dami. Os desenhos kenê compõem um conjunto altamente codificado de traçados geométricos; são desenhos geralmente em preto e branco que podem aparecer sozinhos (em um dos cantos ou no final da página na qual está escrita uma narrativa) ou junto com os desenhos dami. Os traços kenê possuem um significado mítico, pois representam metonimicamente a pele da anaconda-Yube, uma figura central da mitologia Kaxinawá, responsável por trazer a cultura, a sabedoria e o conhecimento a esse povo. A reprodução das formas geométricas que cobrem pele do anfíbio tem caráter mimético, acompanhando o desenho que integra o tecido “vivo”. Souza (s.d., on-line) diz também que esses grafismos kenê seriam usados como marcadores de veracidade, funcionando assim como fatores de legitimação das histórias contadas pelos Kaxinawá.
Já os desenhos dami, são desenhos figurativos, coloridos ou não, que acompanham as histórias, sugerindo uma cena narrativa. Eles podem representar animais, objetos, seres humanos ou sobrenaturais e não há, nesse tipo de desenho, preocupação com perspectiva ou com a reprodução fiel (imitativa), pois misturam, em um mesmo plano, personagens e espaços de naturezas diferentes. Em Shenipabu Miyui, esses textos não-verbais dialogam com os textos verbais e intensificam a representação da visão integradora de mundo indígena.
Diz Almeida sobre as narrativas Kaxinawá:
Em 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais realizou a segunda edição do livro e incluiu a obra na lista de leituras exigidas para o Vestibular 2001 da instituição. Acreditamos que medidas como essa são extremamente significativas, pois representam um estímulo para a valorização da cultura indígena – que integra o leque cultural brasileiro – e para o enriquecimento da literatura brasileira contemporânea.
Em Shenipabu Miyui, os kaxinawá escrevem seus mitos, apresentando-os como narrativas que explicam o mundo, os seres, os valores, integrando o real/cotidiano com o suprareal, mágico, fabuloso, divino. Há, nos textos, a representação da visão integradora de mundo dos índios kaxinawá, que amplia a realidade, apresentando, por exemplo, personagens de caráter híbrido, ou seja, a linha que separa homem e natureza é muito tênue e as metamorfoses são constantes, sendo corrente a transformação de um ser em outro. Esse hibridismo que se manifesta sob forma das características físicas dos seres vivos e inanimados também se reflete em suas peculiaridades interiores, éticas e morais. No momento das histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado e os seres não têm uma forma definida, podendo se metamorfosear constantemente, de acordo com Souza (s.d., on-line).
Por fim, outra característica importante da escrita indígena é seu grande apelo visual. Praticamente todas as histórias são ilustradas com desenhos feitos pelos próprios índios, estabelecendo um significativo diálogo entre os textos verbais e não-verbais, processo denominado por Souza (s.d., on-line) de narrativas multimodais. As produções narrativas escritas dos Kaxinawá são freqüentemente acompanhadas de dois tipos de desenhos: kenê e dami. Os desenhos kenê compõem um conjunto altamente codificado de traçados geométricos; são desenhos geralmente em preto e branco que podem aparecer sozinhos (em um dos cantos ou no final da página na qual está escrita uma narrativa) ou junto com os desenhos dami. Os traços kenê possuem um significado mítico, pois representam metonimicamente a pele da anaconda-Yube, uma figura central da mitologia Kaxinawá, responsável por trazer a cultura, a sabedoria e o conhecimento a esse povo. A reprodução das formas geométricas que cobrem pele do anfíbio tem caráter mimético, acompanhando o desenho que integra o tecido “vivo”. Souza (s.d., on-line) diz também que esses grafismos kenê seriam usados como marcadores de veracidade, funcionando assim como fatores de legitimação das histórias contadas pelos Kaxinawá.
Já os desenhos dami, são desenhos figurativos, coloridos ou não, que acompanham as histórias, sugerindo uma cena narrativa. Eles podem representar animais, objetos, seres humanos ou sobrenaturais e não há, nesse tipo de desenho, preocupação com perspectiva ou com a reprodução fiel (imitativa), pois misturam, em um mesmo plano, personagens e espaços de naturezas diferentes. Em Shenipabu Miyui, esses textos não-verbais dialogam com os textos verbais e intensificam a representação da visão integradora de mundo indígena.
Diz Almeida sobre as narrativas Kaxinawá:
As doze histórias de Shenipabu Miyui formam, portanto, um
conjunto, um livro, em cujo interior as narrativas ilustradas com desenhos
mantêm um padrão narrativo, um nível coerente de legibilidade, uma sistemática
textual, própria da organização livresca. Os temas são variados, os desenhos
são figurações da variedade de situações e personagens, mas o fato de serem
elaboradas e organizadas em conjunto, com a intenção de configurarem um livro,
coloca-as definitivamente no âmbito da cultura letrada, na perspectiva do mundo
editorial contemporâneo. Mesmo que o dado fundamental desta literatura seja sua
inserção na tradição oral kaxinawá, a sua presença em livro desloca-a para o
campo da história da literatura brasileira, mesmo porque seus textos tiveram
seu momento de criação em língua portuguesa. O bilingüismo explícito dos
autores kaxinawá, por estar escrito nas páginas do livro, garante o começo da
história da literatura kaxinawá, ainda que esta se insira na brasileira
(ALMEIDA, 1999, p.137).
A riqueza literária e pedagógica das narrativas indígenas escritas é imensa e merece um novo olhar acadêmico. Na contemporaneidade, a literatura escrita indígena alia-se à tradição oral para expressar toda a riqueza estética e milenar contida no legado mítico de cada comunidade. Termino citando novamente a professora Maria Inês de Almeida que diz que:
A riqueza literária e pedagógica das narrativas indígenas escritas é imensa e merece um novo olhar acadêmico. Na contemporaneidade, a literatura escrita indígena alia-se à tradição oral para expressar toda a riqueza estética e milenar contida no legado mítico de cada comunidade. Termino citando novamente a professora Maria Inês de Almeida que diz que:
Contar o mito é batalhar pela sobrevivência do próprio povo.
Superior à História, o sentido do mito existe na utilização repetitiva por
grupos sociais que fundam sua unidade através de ritos que reencenam, de
maneira intangível, o acontecimento da origem (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p.
251).
Escrevendo seus mitos, os índios assumem justamente sua
dimensão estética, entendida como vontade de fazer obra de arte (ALMEIDA E
QUEIROZ, 2004, p. 254).
Nenhum comentário:
Postar um comentário