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segunda-feira, 16 de abril de 2018

A literatura de autoria indígena no Brasil



Especialista em Literatura Indígena, Janice Thiel selecionou, a pedido de Carta Educação, 10 obras escritas por índios e não-índios. Pode ser um bom ponto de partida para trabalhar a temática indígena em sala de aula:
A Terra sem Males: Mito guarani
O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público infantojuvenil.
À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade do mito e sua relevância na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão sobre as especificidades da cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões indígenas. Questões diversas, como a história dos guarani, a resistência e diversidade indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas, servindo como propostas para pesquisa.
A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção Mistura Brasileira)
Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang
Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia. O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue, é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa, mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte da obra. O texto promove
a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão das diferenças sem preconceitos.Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção Um Dia na Aldeia)
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio
Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura.
O texto mostra o poder da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz)  
Câmera na Mão, o Guarani no Coração
Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de
O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha, porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor, não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais. O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.
Câmera na Mão, o Guarani no
Coração, de Moacyr Scliar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2008 
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia
De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados construídos na interação entre palavra e imagem.
Kurumi Guaré no Coração da
Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã
“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam a Palavra Criadora.” Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais desta obra, marca
o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru; Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões
Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas.
É o caso do romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael, ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações indígenas formam o contexto da obra.
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE, 2012 
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil
No romance
 O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado, com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim, constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade da colonização europeia e da escravidão.
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP.: Manole, 2010
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland
Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas,
os exploradores e cronistas europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida ainda pode ser salva.
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello.  SP:  Boccato, 2007
Maíra
O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios, dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna sacerdote cristão,
e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.
Maíra, de Darcy Ribeiro.
São Paulo: Global, 2014


Há uma longa tradição no Brasil de publicar por escrito, mitos e lendas indígenas, supostamente transcritos das ricas tradições orais, por toda sorte de autores desde viajantes estrangeiros até antropólogos renomados.
O que mais caracteriza essa aparição da voz indígena na escrita é a forma dada a essa voz. Muitos desses textos acabam sendo recriações (por autores não indígenas) de narrativas orais com graus variados de consciência, por parte de seus autores, das diferenças radicais entre a forma escrita e a forma original oral de uma narrativa. Para entender melhor esse processo de registrar narrativas orais no papel, é importante entender os conceitos de performatividade da narrativa oral, o conceito de autoria, de tempo mítico e o conceito da padronização ou homogeneização.
A escrita indígena
Alguns estudiosos definem a escrita como parte do comportamento comunicativo humano de transmitir e trocar informações; ou seja, a escrita pode ser vista como uma forma de interação pela qual uma ação das mãos (com ou sem um instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse sentido, a escrita pode ser concebida como uma forma não apenas alfabética para representar idéias, valores ou eventos. Entendido assim, a escrita sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização européia, e desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que pode ser chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos escritos por autores indígenas.
Performatividade
Na tradição oral de culturas sem escrita, uma narrativa contada oralmente é muito diferente do ato solitário de escrever e ler um texto numa cultura com escrita. Numa cultura oral, contar uma narrativa para uma platéia se trata de uma performance, um ato social complexo e altamente dinâmico. O contador da narrativa – apesar de acessar e fazer uso de uma série de técnicas para contar estórias, próprias de sua cultura e aprendidas ao longo de sua vida – conta muito com a presença de uma platéia, com a qual ele interage; por exemplo, de acordo com as reações da platéia presente, o contador escolhe uma ou outra técnica para o desenrolar da narrativa garantindo, assim, a possibilidade de prender o interesse de seu público.
Algumas dessas técnicas da performatividade oral incluem variações na impostação da voz, variações de entoação, o uso inesperado do silêncio e o uso da repetição. Sendo típicas da língua falada, tais técnicas desaparecem nas formas escritas das narrativas orais. Assim, os autores que dizem que estão simplesmente escrevendo (registrando no papel) narrativas indígenas tal qual foram contadas, na verdade estão deixando para fora do papel toda a complexidade e dinâmica do processo performativo de narrar oralmente.
Para isso, é bom entender o contraste entre o processo de transcrever e o de escrever: transcrever significa passar para a escrita o máximo possível das características orais (por exemplo, as mencionadas no parágrafo acima) de um processo oral de contar, enquanto escrever significa apenas registrar no papel informações consideradas relevantes. Ao dizer que está apenas escrevendo uma narrativa indígena tal qual ela existe e é contada na cultura indígena, muitos autores na verdade estavam apenas escrevendo ( e não transcrevendo) essas narrativas, deixando para fora da página escrita as complexidades, sofisticações e dinâmica da narrativa oral.
Dessa forma, ao dizer que está apenas escrevendo uma narrativa indígena, o escritor na verdade acaba transformando algo oral com características próprias em algo escrito com características muito diferentes, muitas vezes reduzindo a narrativa oral a apenas um enredo. Assim o escritor desse ‘enredo’ acaba na verdade se tornando o autor da narrativa, agora escrita, que nunca chegou a ser contada  (apresentada) oralmente. Assim, a performatividade da tradição oral que permeia a narrativa oral original, se perde totalmente, fazendo com que aquilo que nasceu como processo oral ou performance se torne um mero produto escrito.
Autoria
Dessa maneira, a questão da autoria se torna um aspecto crucial em todo fenômeno da escrita indígena. De fato, a questão da autoria na tradição oral difere fundamentalmente da do texto escrito. Numa cultura oral, as narrativas apresentadas em performances orais são vistas como sendo de propriedade coletiva da comunidade e herdadas dos antepassados; são aprendidas através da memória e passadas de geração em geração. O contador não se vê como criador da narrativa, e sim como uma espécie de transmissor; ou seja, ele é um elo numa cadeia infinita de repetidores e guardiões das narrativas ao longo das gerações. A cada ato de contar, não é apenas a narrativa em si que é repetida, mas também toda a tradição oral da comunidade é revivida.
Apesar desse conceito de o contador não ser o ‘criador’ (autor) mas apenas o ‘repetidor’ da narrativa tradicional pertencente à comunidade, na verdade ao seguir as regras da performatividade, interagindo com a platéia e lançando mão das várias técnicas de narrar, de acordo com as reações de sua platéia, o contador acaba usando essas técnicas de uma forma personalizada, para dar vida à narrativa. A comunidade por sua vez, apesar de apreciar as habilidades pessoais do contador, ainda assim considera que a narrativa contada não é propriedade do contador, mas sim da comunidade. O autor da narrativa, nessa visão, é a comunidade e não o contador individual. O exemplo de tal visão é a manifestação dos escritores indígenas do Brasil em sua Carta da Kari-Oca de 2004:

Os conhecimentos de nossos avós foram deixados para nossos netos de forma oral como uma teia que une o passado ao futuro. Esta fórmula pedagógica tem sustentado o céu no seu lugar e mantido os rios e as montanhas como companheiros de caminhada para nossos povos. Tais conhecimentos, em forma de narrativas – chamado mitos pelo ocidente – foram sendo apropriados por pesquisadores, missionários, aventureiros, viajantes que não levaram em consideração a autoria coletiva e divulgaram estas histórias não se preocupando com os seus verdadeiros donos.(2)

Tempo mítico e tempo histórico
O aspecto da autoria coletiva ou comunitária está ligado ao conceito de tempo mítico e tempo histórico nas culturas orais.
O antropólogo Da Matta3 (1987) aponta dois conceitos de tempo simultaneamente presentes nas culturas indígenas brasileiras: um ‘presente anterior’ e um ‘presente atual’. Enquanto o presente anterior se remete a um passado durante o qual o mundo tal como é hoje ainda não existia, o presente atual se refere ao estado de coisas no mundo de hoje em dia.
Outro escritor (Sullivan4 1988) chama esse presente anterior de “primordium”, descrevendo-o como um plano temporal primordial nas cosmologias indígenas sul-americanas, quando tudo estava sendo ainda criado, e quando as coisas e os seres possuíam formas instáveis capazes de se mudarem constantemente; nesse plano temporal, tudo podia se transformar em outra coisa, até que ocorreu um grande desastre primordial que criou uma ruptura no tempo e acabou gerando o plano do tempo ‘presente atual’. Nesse plano, os seres e as coisas pararam de  mudar de forma e se fixaram permanentemente nas formas que tinham no momento do grande desastre primordial.
Portanto, enquanto que no plano temporal do ‘presente anterior’ ou do ‘primordium’, todos os seres se intercomunicavam e mudavam de forma e por isso eram iguais, no plano temporal do ‘presente atual’ os seres passaram a ficar separados e isolados uns dos outros, em formas distintas.  Para muitas culturas indígenas, o plano do ‘presente anterior’ (diferentemente de nosso conceito de passado) continua existindo, e as transformações e intercomunicações entre os seres seguem um movimento cíclico, como se fosse de repetição; esse plano é chamado por muitos estudiosos do plano do ‘mito’. Por outro lado, no plano do ‘presente atual’, onde os seres ocupam formas fixas e estão isolados uns dos outros, tudo segue um processo linear; este  plano é chamado de plano da ‘História’. Dizem os especialistas que esses dois planos coexistem de forma paralela e se intercomunicam; portanto não são separados. Os xamãs ou pajés são capazes de viajar entre os dois planos na busca de curas, soluções e explicações para eventos e problemas cotidianos.  Grande parte das narrativas orais indígenas narram eventos que ocorreram e ocorrem nesse plano do ‘presente anterior’.
Dessa forma, pode-se dizer que as narrativas orais performáticas e míticas, acompanhadas pelo conceito de autoria coletiva, remetem-se ao conceito valorizado da coletividade e à inseparabilidade típica do ‘presente anterior’; em contraste, pode-se dizer de forma geral que uma narrativa escrita de autoria individual, contando sobre algo existente hoje, se remete ao plano do ‘presente atual’, do ‘hoje-em-dia’ da historicidade.
Em “Tuparis e Tarupas”, por exemplo, a autora Betty Mindlin faz questão de identificar os narradores das narrativas que ela reúne no livro, mas ao passar as narrativas para uma forma escrita, isto é, deixando de lado as formas performáticas do ato de narrar oral, pode-se dizer que ela acaba sendo a autora das narrativas, embora não seja a narradora. Veja o exemplo:
“O Dia”
“Antigamente, não existia o dia. Conta-se que na casa de Waledjat era sempre escuro, nunca amanhecia. Existia o sol, mas não passava o claro para cá”. (Narrador: Konkuat, 1989)

Em outros livros como “Wamrêmé Za’ra Nossa Palavra”, dos Xavante, há uma preocupação maior de manter as características da narrativa oral, e apesar de identificar os nomes dos narradores, deixa-se claro que a autoria do livro é do povo xavante.
História da Anta(8)
[...] O marido fica escondido, esperando... Prepara o arco e:
-Tummmm! Dá uma flechada na fêmea. Ela cai:
-Ôhr, ôhr, ôhr..
O macho se aproxima e o homem dá outra flechada:
-Tummmm!
A coexistência e possibilidade de comunicação entre os dois planos temporais indicam que pode haver uma conexão entre narrativas ‘míticas’ e narrativas ‘históricas’.  A antropóloga Gallois5 (1994) cita exemplos das narrativas dos Waiãpi nas quais os narradores chegam a atualizar as narrativas tidas como míticas de acordo com os fatos recentes ocorridos na história daquela comunidade e presentes em sua memória. Portanto, longe de ser apenas uma estória, esse tipo de narrativa oral constrói e reconstrói a história daquela comunidade. Essas atualizações ou variações porém, não são percebidas nessas comunidades como mudanças ou deturpações da narrativa oral original e o contador, conseqüentemente, não é visto como autor de seu texto (modificado ou atualizado) e sim como repetidor.
Padronização
Além de confundir autor e narrador, transcrição e escrita, outra violação comum na escrita indígena ocorre quando as “transcrições” de narrativas orais acabam inadvertidamente caindo em mais uma armadilha aberta no espaço entre a oralidade e a escrita, dessa vez a armadilha da padronização ou homogeneidade. Essa questão diz respeito ao fenômeno descrito acima de atualizar a narrativa oral – o que paradoxalmente mantém uma narrativa sempre a mesma, apesar de torná-la diferente a cada apresentação. Quando tal variação ou atualização de uma narrativa oral passa inadvertidamente a ser transcrita e publicada, ela adquire, através da escrita, a aparência de ser a forma única daquela narrativa; passar uma narrativa para a escrita acaba deslocando-a (o que acontece com qualquer texto escrito) do contexto temporal e local de sua apresentação oral perante uma platéia, fazendo com que aquilo que foi contado oralmente como uma variação/atualização de uma narrativa já existente, fique publicado/congelado no papel como a única forma invariante da narrativa, padronizando-a e homogeneizando-a para sempre. Isso acaba reduzindo a plenitude e complexidade da história indígena e das tradições orais numa mera estória.(9)

A história reescrita
Embora haja muitos relatos da percepção entre as comunidades indígenas da importância e do poder da escrita,(10) foi apenas recentemente que a escrita passou a ser vista de fato como uma ferramenta importante para o resgate de suas culturas e de suas identidades, ameaçadas  pela sociedade envolvente.
A constituição de 1988, que oficialmente reconheceu a existência das línguas indígenas no Brasil, abriu o caminho para a educação bilíngüe indígena e levou à criação da nova instituição da escola indígena, reforçando assim o esforço dessas comunidades para a recuperação de suas culturas, muito embora cada comunidade sempre tivesse seus próprios meios para a transmissão de suas tradições orais.
Essa política nova de educação indígena no Brasil deu um impulso nunca antes visto para o surgimento de uma nova escrita indígena, seja através da necessidade de criar novos materiais didáticos com conteúdos indígenas para alimentar as escolas indígenas, seja através da formação de um novo público leitor formado pelo alunado dessas escolas pelo país afora, ou seja, ainda por causa dos vários programas de autoria indígena que surgiram em vários cursos de formação de professores indígenas para estimular a escrita e a produção de novos materiais didáticos para as escolas indígenas.
A nova escrita indígena que nasce de e para a nova escola indígena aparece especialmente quando surge o desejo e a necessidade de reescrever a história indígena, e por que não, de reescrever até mesmo as estórias indígenas, numa tentativa desenfreada de arrancar o poder de autoria das mãos dos tradicionais e históricos tutores das comunidades indígenas:
Eu sou índio porque nós temos costume de falar nossa língua. E também nós temos costume de dançar a festa do mariri.[...] Por isso é que nós queremos continuar a ser índio. É pelos costumes de nossa aldeia que todo pessoal já conhece. Então não adianta a gente negar a nossa língua e dizer que não é índio. O índio não pode virar cariu, porque é de outro jeito e chama de índio. O índio também é gente. Nós somos índios Caxinauás do Jordão e queremos aprender a língua de português, ler, escrever e tirar conta para não ser roubado pelo cariu


Curiosamente, essa escrita nasce na forma de livro didático, escrito, na maioria das vezes coletivamente por grupos de professores indígenas em cursos de formação de professores para escolas indígenas. Tais livros procuram disseminar os conhecimentos culturais da tradição oral na forma de livros escritos especificamente para o currículo da escola indígena.
Porém, como ocorreu com as “transcrições” das narrativas orais, as armadilhas  que separam a cultura oral da cultura escrita são muitas; a primeira aparece já na definição de fronteiras disciplinares: qual deveria ser a diferença entre narrativas num livro didático para o ensino da língua (seja ela materna ou português) e outras em livros para o ensino de história e de ciências? Surge novamente o espectro da indistinguibilidade entre ficção e realidade ou entre história e estória.(12)
Alguns livros procuram contrapor as narrativas da tradição oral já existentes com narrativas (“memórias”) pessoais biográficas redigidas especialmente pelos professores/autores, como se aquelas fossem “mitos” com menor grau de veracidade, e portanto menos científicas, enquanto estas são vistas como documentos testemunhais tendo maior grau de veracidade e cientificidade:
Quando Deus (13) andava no mundo, para ver quem era bom e quem era ruim, ele encontrou no meio da mata uma aldeia e ficou pra saber se os índios eram bons ou ruins. Então Deus virou tamanduá que era manso e eles o levaram pra casa. O tamanduá ficou lá [...] Na década de 30 (14), a Companhia do Vale Rio Doce executa o projeto de construção da EFVM. A vale cortou o território Krenak em 1905 sob protesto dos Burúm. Estes nunca foram indenizados pelos prejuízos. A companhia trouxe as fazendas de café, a exploração de minérios, a poluição sonora para a região [...] Várias vezes, á sua maneira os Burum reagiram, bloqueando a estrada colocando pedras e paus nas trilhas para impedir passagem. [...] Vários morreram ali atropelados. O último a morrer foi Humberto, em 1984, quando voltava de um congresso indígena realizado em B.H.
Outros livros ainda contêm narrativas ditas ficcionais e até mesmo poesias escritas especialmente para esses livros pelos professores/autores, às vezes de autoria coletiva, outras vezes de autoria individual, criando uma nova modalidade de, ou talvez confundindo para sempre, o conceito de “autor”:
Sinto que sou índio porque não tenho cara de branco, meu corpo é diferente, meu jeito de caminhar é diferente. Meu cabelo é liso, Não tenho muita barba E nem pêlo enrolado no braço e na perna. Índio tem pêlo liso no suvaco e na canela. Somos iguais e diferentes. Diferentes na língua, jeito e costume. Igual no corpo, na inteligência, no respeito. Somos todos iguais: índios, negros, brancos.

 No caso do texto acima, a autoria é atribuída coletiva e anonimamente a um “Grupo de professores indígenas do Acre”, (15) que diferentemente das narrativas de autoria coletiva que surgem dentro de uma mesma etnia e grupo social, essa narrativa foi elaborada por sujeitos de várias etnias reunidos num curso de formação de professores indígenas do Acre. As três narrativas apresentadas imediatamente acima atestam duas questões que permeiam as novas narrativas indígenas: a questão de gênero textual e a questão do sujeito. Dada a complexidade da situação do surgimento dessas narrativas no espaço problemático entre a oralidade e a escrita, é de se esperar que os gêneros textuais das narrativas reflitam tal complexidade, dificultando a sua identificação em termos dos gêneros da cultura escrita, tais como ‘poesia’, ‘conto’ ou ‘crônica’. Muitas vezes, são os editores não-indígenas dos textos que formatam os manuscritos atribuindo-lhes o gênero textual que mais lhes parece cabível nas circunstâncias, sem que os próprios autores tenham escolhido intencionalmente tais gêneros. Como se sabe, ‘poesia’, ‘conto’ e ‘crônica’ são gêneros da cultura escrita e têm mais a ver com a disposição do texto verbal no espaço bidimensional da página do que com o aspecto da performatividade e a interação narrador-audiência, mais característica da tradição oral, cujas distinções de gênero textual são menos definidas e mais situacionais.
A antropóloga Tonkin (1992) aponta, por exemplo, a dificuldade de distinguir, na narrativa oral, entre uma narrativa pessoal, subjetiva e auto-biográfica e uma narrativa supostamente mais objetiva que representa uma história da vida da comunidade; ou seja quando uma estória passa a ser história? Quando uma ficção passa a ser fato? Como esclarece Tonkin, nessas situações, uma narrativa, seja oral ou escrita, contém eventos organizados seqüencialmente de forma a apresentar um tipo de enredo; a seleção dos eventos e seu ordenamento ajudam a criar uma ‘ordem moral’ que elimina a sensação de desordem e falta de sentido, e afasta a possibilidade de representar um mundo em estado de caos.
Esse ordenamento dos eventos é feito de acordo com uma experiência de vida de um sujeito; porém, esse sujeito da experiência, seja ele expresso explicitamente na narrativa ou não, mais do que um sujeito individual, é um sujeito social(16) e coletivo. Esse ‘sujeito social’ não deixa de ser um indivíduo, mas reflete o processo de formação de identidades de sua cultura onde a dinâmica individual-social é diferente da do sujeito individual numa cultura ocidental; nas culturas indígenas, cada sujeito é visto em termos de suas relações com os outros sujeitos da comunidade, e nunca de uma forma independente ou individualista.
Esse conceito de sujeito está intimamente relacionado com os conceitos temporais das culturas indígenas, conforme discutimos acima, que estabelecem o diálogo entre o ‘tempo anterior’ mítico e coletivo (gerador do sujeito coletivo) e o ‘tempo presente’ atual, histórico e social (gerador do sujeito separado, aparentemente indivíduo.
A visualidade na escrita indígena
Outra característica marcante dos livros de escrita indígena é seu grande apelo visual. A grande maioria deles é altamente ilustrada com desenhos em cores vivas feitos pelos próprios autores individual e/ou coletivamente, levando alguns a considerá-los até como um fenômeno novo da arte indígena.(17)
Na maioria das vezes, porém, sendo tutelados por pessoas de fora das comunidades indígenas, o processo de editoração desses livros, incluindo o tratamento gráfico final que lhes é dado, muitas vezes é controlado por pessoas que acabam também vítimas inocentes das armadilhas que separam a cultura oral da escrita. Como no caso dos gêneros textuais, muitas vezes esses “editores”  desconhecem o papel e o valor do texto ou elemento visual naquela cultura indígena e, partindo de uma cultura escrita que dá primazia à palavra escrita, acabam confundindo-se e atribuem ao texto escrito (que para algumas comunidades indígenas apenas “ilustra” ou complementa um texto visual) maior importância do que ao texto visual.18 Aliás, o diálogo elaborado entre os textos visuais e escritos presente na nova escrita indígena ainda merece ser estudado como um fenômeno à parte.19
Tendo em vista que o objetivo principal do surgimento desses livros, dentro do contexto da nova escola indígena, é de resgatar as culturas indígenas, o que mais se vê nesse fenômeno da recente escrita indígena  é o surgimento de uma nova cultura indígena atravessando e confundindo as fronteiras tênues entre a cultura escrita e a cultura oral.
Essa nova escrita indígena, especialmente a que é escrita em português,  nasce paradoxal e simultaneamente local e nacional, marginal e canônica: local, porque cada comunidade com projetos para uma escola indígena se torna produtor/autor e consumidor/leitor de seus próprios textos; nacional, porque a política da escola indígena é federal, e isso faz com que surja um público consumidor/leitor potencial da escrita indígena em todas as escolas indígenas do país, fazendo com que esses livros possam circular para fora de suas comunidades produtoras, tornando as tradicionais sabedorias e valores das culturas indígenas (nas suas novas formas transformadas escritas) numa nova espécie de capital cultural transcomunitário; marginal, porque essa escrita embora já prolífica e de grande abrangência, ainda não mereceu o interesse das academias e instituições literárias nacionais que, quando muito, a vêem como uma espécie de literatura popular ou de massas, sem grande valor literário (quando alguns desses livros encontram o caminho para o mercado externo das livrarias nos grandes centros urbanos do país, não é incomum encontrá-los na seção de Literatura Infantil);e finalmente canônica porque trata-se de uma escrita que já nasce no bojo da instituição escolar, com seus mecanismos de inclusão e exclusão curriculares que em várias culturas formam a base para a construção, destruição ou transformação dos cânones literários. (20)
Não deixa de haver uma certa ironia no fato de que a escrita indígena, produto de um setor historicamente marginalizado como sendo ‘primitivo’, já esteja formando, em menos de uma geração, seus próprios cânones da escrita.
Mais do que reescrever a sua estória/história, as comunidades indígenas parecem já estar escrevendo sua história. De forma diferente das literaturas pós-coloniais de língua inglesa e francesa, que antes de tudo buscaram “escrever de volta” aos antigos centros colonizadores metropolitanos, para serem ouvidos e lidos (21), as comunidades indígenas brasileiras parecem ter se contentado em reescrever a sua história escrevendo para eles mesmos, construindo assim uma nova identidade indígena, ambígua e híbrida, ao mesmo tempo local (como vimos acima, “Kashinawa do Acre”, por exemplo) e nacional (“índio brasileiro”). Resta saber o resultado a longo prazo dessa relação fascinante e um tanto incestual da nova escrita indígena com a escola indígena.
A estória escrita
Um terceiro grupo de escrita indígena é aquele que inclui os escritores declaradamente de origem indígena (Daniel Munduruku, Kaká Werá Jecupé e Olívio Jekupé), mas que migraram para os centros urbanos nacionais, e conviveram com a cultura dominante, escrevendo de e para a cultura dominante não indígena. Longe dos fenômenos mencionados da tutelagem dos intermediadores e da escola indígena, esses autores ou publicam suas próprias obras ou são publicados por editoras não indígenas, e até de prestígio, como foi o caso de Daniel Munduruku.22 Longe também da performatividade da tradição oral, e portanto de suas platéias indígenas, esses autores seguem,com algumas exceções, a tradição escrita e seus gêneros (Souza 2001,2002).(23)
Com esse distanciamento de suas origens e de um público leitor indígena, esses autores, embora procurem reescrever a versão dominante da história indígena para não indígenas,(24) acabam sujeitos aos processos de exclusão e marginalização do mercado editorial dominante, conseguindo no máximo, ser lidos como autores de estórias escritas, ajudando, porém, à sua maneira, a prestar visibilidade, embora restrita, à problemática do processo de construção da(s) identidade(s) indígena(s) e à questão indígena. Mas essa é uma outra história...
Março de 2006

........ Especialista em Literatura Indígena, Janice Thiel selecionou, a pedido de Carta Educação, 10 obras escritas por índios e não-índios. Pode ser um bom ponto de partida para trabalhar a temática indígena em sala de aula:
A Terra sem Males: Mito guarani
O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público infantojuvenil. À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade do mito e sua relevância na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão sobre as especificidades da cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões indígenas. Questões diversas, como a história dos guarani, a resistência e diversidade indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas, servindo como propostas para pesquisa.
A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção Mistura Brasileira)
Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang
Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia. O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue, é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa, mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte da obra. O texto promove a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão das diferenças sem preconceitos.Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção Um Dia na Aldeia)
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio
Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura. O texto mostra o poder da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.
A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz)  
Câmera na Mão, o Guarani no Coração
Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha, porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor, não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais. O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.
Câmera na Mão, o Guarani no Coração, de Moacyr Scliar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2008 
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia
De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados construídos na interação entre palavra e imagem.
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã
“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam a Palavra Criadora.” Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais desta obra, marca o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.
Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru; Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões
Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas. É o caso do romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael, ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações indígenas formam o contexto da obra.
Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE, 2012 
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil
No romance O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado, com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim, constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade da colonização europeia e da escravidão.
O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP.: Manole, 2010
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland
Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas, os exploradores e cronistas europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida ainda pode ser salva.
Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello.  SP:  Boccato, 2007
Maíra
O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios, dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna sacerdote cristão, e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.
Maíra, de Darcy Ribeiro. São Paulo: Global, 2014

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Literatura Indigena / Guatiaçáwa tapuya
                              
                LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA E SEUS AUTORES
Por Yaguarê Yamã
              
                   A "LINBRA" -  Literatura Indígena Brasileira deixou de ser unicamente uma literatura oral para ser uma literatura escrita, e contradizendo a muitos intelectuais, existe e está ativa já a algumas décadas.  O que no inicio vingou com professores de aldeias e comunidades ajudados por entidades para publicação nas linguas maternas, evoluiu para uma literatura sofisticada, apurada e rentavel no mercado literario nacional, num constexto até pouco tempo inimaginavel, visto que era tido como uma literatura inesistente e cujos autores nunca poderiam se destacar no cenario nacional e internacional.
                O movimento "Nova Literatura Indigena"  baseado no mercado editorial teve seu processo iniciado a partir dos primeiros livros de Daniel Munduruku, o qual se seguiriam autores como Olivio Jekupé, Kaká Werá Jekupé, Yaguarê Yamã, Kanatio Pataxó, Rene Kithaulu, Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Marcos Terena e posteriomente Roni Wasiry Guará, Tiago Haki'y, Cristrino Wapixana, Elias Yaguakãg, Graça Grauna, Sulamy Katy, Kerexu Mirim, Lia Minapoty, Ely Makuxi entre outros.  Assim como ilustradores de destaque como Uziel Guaynê, Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Cleomar Tahuare e Sbel.
                Esse movimento tem tido seu cenario brasileiro dentro da entidade artistica-literaria NEARIN - Nucleo de Escritores e Artistas Indigena do Brasil, sediada no Rio de Janeiro cujo evento de encontro de escritores e artistas está em sua setima edição
                 É um movimento real e bem difundido graças a produção de qualidade valorizada pelas varias editoras no Rio, Rio Grande do Sul, São Paulo e Amazonas, e seus leitores fieis.
                 Cada vez mais angariando adeptos, fãs e colaboradores, o movimento da "Nova Literatura Indigena" tem como objetivo levar o mundo ou os mundos indígenas para dentro da sociedade brasileira de uma meneira crescente e influente, mas sem o perigo do preconceito. A valorização das culturas e das maneiras de pensar o mundo é fundamental para que o Brasil evolua sem o esterioptipos ainda usados mas que tendem a desaparecer.
                  Se vê nesse movimento um outro movimento, que não é o politico nem o de militancia radical, mas que acredita na paz e num Brasil de culturas polarizadas, valorizando os povos nativos e dando a eles voz e vez na sociedade atraves da literatura e de palestras onde os temas mais apreciados são a paz, o convio igual e a valorização das culturas indigenas.
                 Assim, o movimento conquista não só uma parte da sociedade, como o Brasil num todo, inserindo o conhecimento e o pensamento indigena na alma dos leitores não-indigenas, e o que não se conhecia, era tipo esteriotipado, tratado com preconceito, entre outras faltas de conhecimento, passa a ser valorizado, enraizado e vinculado a sociedade. Os povos Indígenas passam a ser conhecidos da melhor maneira: sem medo e sem preconceito.
               
                                            Esta é a cara da literatura indigena brasileira. 
                                      LISTA DE ESCRITORES INDÍGENAS NO BRASIL

AILTON KRENAK
Lider do povo Krenak, o escritor Ailton é um dos iniciadores do
chamado Movimento Indigena Brasileiro de tematica politica.

TIAGO HAKI'Y
Nascido na vila Freguesia do Andirá, as margens do rio Andirá, o poeta e escritor Carlos Tiago
Haki'y é tataraneto do tuxawa Crispim de Leão, o maior heroi Sateré da guerra da Cabanagem.
Mora atualmente em Barreirinha ond trabalha como subsecretario de cultura.

DANIEL MUNDURUKU
Natural de Belem do Pará, Daniel é o principal representante do seguimento
literario indigena brasileiro. Autor de dezenas de livros, é escritor premiado
nacional e internacionalmente. Vive na cidade de Lorena, SP.



ELIANE POTIGUAR
Escritora de origem paraibana, vive a muito tempo no Rio de Janeiro, uma das mais atuantes mulheres indigena no movimento. Autora do livro: Metade cara, metade mascara.


ELY MACUXI
Filho do povo indigena Makuxi, Eli mora e trabalha em Manaus-AM. Professor, atua na politica local e um dos mais destacados oradores indigenas na atualidade.

CRISTINO WAPIXANA
Mora atualmente no Rio de Janeiro, onde atua como coodenador do NEARIN - nucleo de escritores e artistas indigenas. É autor de "A onça e o fogo"

RONY WASIRY GUARÁ
Filho do povo indigena Maraguá. Wasiry é escritor, ilustrador e artesão indigena. Mora atualmente em Boa Vista do Ramos-AM, onde é professor. É casado com Neide com quem tem dois filhos.

UZIEL GUAYNÊ
Maraguá nascido na aldeia Yãbetue'y, Guaynê é ilustrador e artista plastico. Ativista indigena. Tambem fez enfermagem. É ilustrador dos livros: As pegadas do Kurupyra, Wirapurus e Muirakitãs, Formigueiro de Mirakãwéra e Historinhas Marupiaras

ELIAS YAGUAKÃG
Nasceu na aldeia Yabetue'y do povo Maraguá. Elias, alem de escritor, é grande artesão e ilustrador de grafismos maraguá. Grande incentivador da cultura do seu povo, Elias é autor de Historinhas Marupiaras, e As aventuras do menino Kawã.

LIA MINAPOTY
Nascida na ladeia Yãbetue'y, Minapoty é uma das jovens lideranças das mulheres maraguás. Lia Minapoty é autora do livro "Com a noive veio o sono" pela editora LEYA e de "A arvore de carne" da editora Tordesilhas.

OZIAS YAGUARÊ YAMÃ
Maraguá por parte de mãe e Sateré por parte de Pai, Yaguarê nasceu na aldeia Yãbetue'y, no Amazonas. Escritor, Geografo, professor e Ilustrador, Yaguarê é autor de dezessete livros sendo um dos pricipais escritores indigenas na atualidade.

OLIVIO JEKUPÉ
Natural do Paraná, Jekupé é indigena Guarani. Um dos principais
escritores da literatura indigena brasileira. Autor de diversos livros.
Mora atualmente com a familia na aldeia Kurukutu, SP

GRAÇA GRAUNA
Escritora e doutora em educação, Graça Grauna é indigena do povo Potiguar
do estado da Paraiba. Mora em Pernambuco e atua como importante vinculo
a luta das mulheres indigenas no Brasil

CREOMAR TAHUARE
Indigena das Etnias Umutina e Irantxe, Tahuare é artista plastico e ilustrador.
Mora no Mato Grosso e é uma das personalidade atuantes no
NEARIN,  o nucleo de escritores e artistas indigenas.





KAKA WERÁ
É escritor e ativista indígena de origem tapuya. Nasceu em São Paulo e atualmente, após morar com os guaranis, vive atualmente na cidade de Itapecerica da Serra. SP, onde atua como presidente do Instituto Arapoty. Conhecido em nível nacional e internacional. É autor de vários livros de temática indígena e ambiental.
  


MARCELO MANHUARI MUNDURUKU

O mais novo escritor indígena conhecido no Brasil. Lançou o livro "A cidade das águas profundas" no Salão do Livro Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro, em 2013. É uma das lideranças do povo mundurucu em Mato Grosso.



JUVENAL PAYAYÁ

Lider indigena do povo Payayá, da Bahia. Nasceu em Utinga. Mora atualmente em Salvador. É autor de Romances.


ELY MACUXI

Eli Ribeiro Macuxi é professor e ativista indigena e sidicalista do estado do Amazonas.
Descendente do povo Macuxi, de Roraima, é autor de dezenas de textos e participação de revistas e jornais.
Escreveu "Ypaty, o curumim da selva", pela editora Paulinas. 


LUCIANA VÃNGRI KAINGÁNG

Morando atualmente no Rio de Janeiro e casada, Luciana é filha do povo Kãingang, nascida
 no Rio Grande do Sul.
Artista plastica e especialista de grafismos de seu povo, luciana tambem é escritora, coautora junto
com Mauricio Negro, do livro Joty, o tamanduá, pela editora Global.


RENE KITHAULU

Indio dos mais capacitados na arte da construção de casas tipicas. Rene Kithaulu
nasceu em Mato Grosso em 1971. Por algum tempo viveu longe de seu
povo Nambikwara, época em que morou em Sao Paulo, mais precisamente
entre os indios  guaranis, onde casou-se e tornou-se pai de sete filhos. De volta ao Mato Grosso,
 desde entao pouco teve contato com o mundo exterior e com o movimento da literatura indigena,
movimento este que ajudou a criar no tempo que vivia em São Paulo, na companhia de
Daniel Munduruku e Yaguarê Yamã. É autor de Iraksu, o menino criador.

Literatura Indígena
Ainda não há consenso sobre o uso da expressão Literatura Indígena. Afinal, sob o conceito de “indígena” reconhecem-se, atualmente, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 305 grupos étnicos, com culturas e histórias próprias, falando 274 línguas. Portanto, encontrar uma denominação de referência geral não é muito simples. Outras expressões, embora menos usadas, vêm se apresentando na tentativa de caracterizar esse campo de interesse, como Literatura Nativa, Literatura das Origens, Literatura Ameríndia e Literatura Indígena de Tradição Oral. Próxima a essas, mas já com significado e alcance próprio, ainda contamos com Literatura Indianista, para se referir à produção do Romantismo brasileiro do século XIX de temática indígena, como os versos de Primeiros Cantos (1846) e de Os Timbiras (1857), de Gonçalves Dias, e os romances O Guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar. Diante desse quadro, quando usamos, hoje, a expressão Literatura Indígena, uma questão, necessariamente, ainda se apresenta: quais objetos ela incorpora ou para quais aponta ou tem apontado?
Em perspectiva ampla, diríamos que essa produção cultural assinala textos criativos em geral (orais ou escritos) produzidos pelos diversos grupos indígenas, editados ou não, incluindo aqueles que não se apresentam, em um primeiro momento, como constituídos a partir de um desejo especificamente estético-literário intencional, como as narrativas, os grafismos e os cantos em contextos próprios, ritualísticos e cerimoniais. Parte dessa produção ganha visibilidade com os registros realizados por antropólogos e pesquisadores em geral. Outra parte surge por meio de levantamentos realizados por professores atuantes em cursos de licenciatura indígena e dos próprios alunos desses cursos, oriundos de várias etnias. Estima-se que 1564 professores indígenas estavam em formação no ano de 2010, em cursos financiados pelo Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (PROLIND), do Ministério da Educação.
Em perspectiva restrita, a expressão Literatura Indígena tem sido utilizada para designar aqueles textos editados e reconhecidos pelo chamado sistema literário (autores, público, críticos, mercado editorial, escolas, programas governamentais, legislação), como sendo de autoria indígena. Um marco importante se dá em 1980, ano de publicação do considerado primeiro livro de autoria indígena com tais características, intitulado Antes o Mundo não Existia, de Umúsin Panlõn & Tolamãn Kenhíri, pertencentes ao povo Desâna, do Alto Rio Negro/AM. A partir das licenciaturas indígenas, assistimos, na década de 1990, ao incremento dessa produção editorial.
Ainda nessa direção, em 2003, foi criado o Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (NEArIn), vinculado ao Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI). Em 2004, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) lança dois concursos anuais associados aos livros de autoria indígena, oTamoios e o Curumim. O segundo, por exemplo, premia trabalhos e projetos de professores da Educação Básica desenvolvidos com livros da literatura indígena. A escolarização da literatura indígena se consolida com a Lei 11.645, de 08/03/2008, que institui a obrigatoriedade do estudo das histórias e culturas indígenas no contexto escolar brasileiro. Para os anos iniciais do Ensino Fundamental, apresentam-se narrativas de temáticas brasileiras, que contemplam o imaginário infantil, algumas já populares, em livros cada vez mais preocupados com a adequação dos seus projetos gráfico-editoriais.
De modo geral, a Literatura Indígena, nessa perspectiva, tem se apresentado em língua portuguesa ou bilíngue (em alguns casos em que a língua indígena apresenta registro escrito), em gêneros variados como relatos sobre a origem do mundo e atividades cerimoniais, histórias de animais, narrativas sobre fatos gerais da vida, cantos diversos, poemas. Encontramos nela desde a recolha e a escrita particular de narrativas tradicionais coletivas, passando por trabalhos que se dedicam à recriação de elementos da tradição oral (personagens, cenários, símbolos) até a criação individual, propriamente dita. Três dimensões se evidenciam nessa produção: a política (questões de identidade), a cognitiva (preservação de conhecimentos tradicionais e da memória social) e a estética (configuração do sensível).


Os indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos: as histórias de hoje e as histórias de antigamente. As histórias de hoje são narrativas históricas, geralmente de autoria individual, que tratam de fatos e acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela demarcação de territórios. Já as histórias de antigamente são narrativas originadas da oralidade performática e mítica, geralmente de autoria coletiva, que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo informações de Souza (s.d., on-line).

Na produção de obras indígenas de autoria individual, destacam-se os escritores: Daniel Munduruku, Álvaro Tukano, Graça Graúna, Ailton Krenak, Eliane Potiguara,Cássio Potiguara, Olívio Jekupé, Yagrarê Yamã, Darlene Taukane, Naine Terena, Edson Brito (kayapó), dentre muitos outros. Na produção de obras de autoria coletiva, podemos citar os povos: guarani, maxakali, yanomami, kiriri, desana-ware, satare-mawe, kaxinawá.

As comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 233). Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala.

A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).

Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004).

Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos, que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 205).

É nessa linha que se dá a publicação de Shenipabu Miyui, que constitui o corpus de minha pesquisa. Uma obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, composta por 12 narrativas de origem mítica e organizada pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá.
Shenipabu Miyui, ou História dos Antigos, é o resultado de uma pioneira pesquisa realizada durante seis anos por um grupo de professores Kaxinawá sobre parte da história oral do seu povo autodenominado Huni Kui, ou “Gente Verdadeira”. Foi primeiramente gravado por esses jovens pesquisadores junto aos velhos, mestres da tradição, em Terras indígenas do Brasil e Peru. E depois foi transcrito e escrito por eles em língua Kaxinawá, Hãtxa Kui, ou “língua verdadeira”, uma das nove línguas da família lingüística Pano existentes no Acre, e em português (KAXINAWÁ, 2008, p. 9).

Os kaxinawá compõem hoje a população indígena Pano mais numerosa do Acre, com cerca de 5000 índios. Destes, 1500 estão distribuídos por nove aldeias no Alto Rio Purus e seu afluente, o Rio Curanja, no Peru. Outros 3500 vivem em onze territórios indígenas localizados no Brasil, ao longo do Rio Purus e de afluentes do Rio Juruá.

O povo indígena Kaxinawá entrou em contato com o “homem branco” no final do século passado, quando foram incorporados como mão-de-obra dos seringais. Tentando compreender as relações econômicas com os patrões, os índios seringueiros passaram a se interessar pela escrita (alfabética e numérica), já que, até então, constituíam uma sociedade de tradição predominantemente oral. A dominação do sistema escrito dos brancos serviu para que a cooperativa dos trabalhadores indígenas tentasse garantir a legitimidade dos seus direitos.

Em 1983 foi criada a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/ AC), uma das primeiras organizações não-governamentais de apoio à questão indígena no país. Essa organização foi responsável pelo início do programa de formação de professores indígenas na região. Através do projeto “Uma Experiência de Autoria” com o I Curso de Formação de Monitores e Agentes de Saúde Indígenas, teve início o primeiro processo de formação profissional de jovens indígenas no Acre, não só com o povo Kaxinawá, mas também com os outros grupos Pano.
Deste trabalho educacional com a formação de professores indígenas resultou o livro Shenipabu Miyui, além de muitos outros, escritos pelos professores indígenas Kaxinawá sozinhos, ou com outros professores de outras etnias do Estado, para seu uso e difusão em suas escolas e em outras escolas brasileiras (KAXINAWÁ, 2008, p. 15).

Para a elaboração do livro Shenipabu Miyui, um dos professores dos primeiros anos do projeto de formação profissional viajou para as aldeias Kaxinawá peruanas, coletando as narrativas dos antigos e gravando-as em fitas K-7. Ao voltar para o Brasil, apresentou o material coletado aos outros professores Kaxinawá do projeto. A partir daí, todo o grupo passou a trabalhar em conjunto na confecção do livro, coordenados pelo professor Joaquim Mana. Uma segunda parte do processo consistiu em coletar mais versões das narrativas, agora dos mestres antigos das aldeias brasileiras.

Várias versões foram ouvidas e foi necessário realizar comparações, análises, escolhas até chegarem ao grupo de doze narrativas de antigamente, que compõem a obra.

Inicialmente, os Kaxinawá optaram por publicar o livro apenas com as versões das histórias escritas na língua indígena Hãtxa Kui, sem colocá-lo em contato com a língua portuguesa. Entretanto, após várias discussões, compreenderam que deveriam dar a oportunidade a outros leitores, de outras etnias, de conhecerem as histórias Kaxinawá. Assim, iniciou-se mais um processo, o de coletar entre os mestres da tradição, que dominassem a língua dos brancos, versões das narrativas selecionadas para o livro, mas agora em português. Portanto, Shenipabu Miyui é uma obra bilíngüe, porém não se trata de traduções dos mitos Kaxinawá, mas sim de versões em língua portuguesa. São apenas as versões em português que formam o corpus de trabalho de nossa pesquisa.

A primeira edição do livro, em 1995, aconteceu por meio do projeto da CPI/AC, com o apoio financeiro da Unicef e da Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do Ministério de Educação e Desportos. A tiragem foi de 3000 exemplares, visando à difusão principalmente entre os próprios Kaxinawá. Diz Joaquim Mana:
Só agora nos últimos anos é que estamos com os direitos de ter uma comunicação através da escrita na nossa língua própria. Sendo um processo novo para os índios e para os assessores, encontramos várias interrogações no ar. Como se fôssemos andorinhas voando para pegar as moscas de sua alimentação numa tarde de temporal de chuva. Mas o túnel do futuro mostra que somos capazes de realizar os sonhos que sempre tivemos como povos diferentes, valorizados dentro de nós mesmos e espiritualmente (KAXINAWÁ, 2008, p. 5).

Em 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais realizou a segunda edição do livro e incluiu a obra na lista de leituras exigidas para o Vestibular 2001 da instituição. Acreditamos que medidas como essa são extremamente significativas, pois representam um estímulo para a valorização da cultura indígena – que integra o leque cultural brasileiro – e para o enriquecimento da literatura brasileira contemporânea.

Em Shenipabu Miyui, os kaxinawá escrevem seus mitos, apresentando-os como narrativas que explicam o mundo, os seres, os valores, integrando o real/cotidiano com o suprareal, mágico, fabuloso, divino. Há, nos textos, a representação da visão integradora de mundo dos índios kaxinawá, que amplia a realidade, apresentando, por exemplo, personagens de caráter híbrido, ou seja, a linha que separa homem e natureza é muito tênue e as metamorfoses são constantes, sendo corrente a transformação de um ser em outro. Esse hibridismo que se manifesta sob forma das características físicas dos seres vivos e inanimados também se reflete em suas peculiaridades interiores, éticas e morais. No momento das histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado e os seres não têm uma forma definida, podendo se metamorfosear constantemente, de acordo com Souza (s.d., on-line).

Por fim, outra característica importante da escrita indígena é seu grande apelo visual. Praticamente todas as histórias são ilustradas com desenhos feitos pelos próprios índios, estabelecendo um significativo diálogo entre os textos verbais e não-verbais, processo denominado por Souza (s.d., on-line) de narrativas multimodais. As produções narrativas escritas dos Kaxinawá são freqüentemente acompanhadas de dois tipos de desenhos: kenê e dami. Os desenhos kenê compõem um conjunto altamente codificado de traçados geométricos; são desenhos geralmente em preto e branco que podem aparecer sozinhos (em um dos cantos ou no final da página na qual está escrita uma narrativa) ou junto com os desenhos dami. Os traços kenê possuem um significado mítico, pois representam metonimicamente a pele da anaconda-Yube, uma figura central da mitologia Kaxinawá, responsável por trazer a cultura, a sabedoria e o conhecimento a esse povo. A reprodução das formas geométricas que cobrem pele do anfíbio tem caráter mimético, acompanhando o desenho que integra o tecido “vivo”. Souza (s.d., on-line) diz também que esses grafismos kenê seriam usados como marcadores de veracidade, funcionando assim como fatores de legitimação das histórias contadas pelos Kaxinawá.

Já os desenhos dami, são desenhos figurativos, coloridos ou não, que acompanham as histórias, sugerindo uma cena narrativa. Eles podem representar animais, objetos, seres humanos ou sobrenaturais e não há, nesse tipo de desenho, preocupação com perspectiva ou com a reprodução fiel (imitativa), pois misturam, em um mesmo plano, personagens e espaços de naturezas diferentes. Em Shenipabu Miyui, esses textos não-verbais dialogam com os textos verbais e intensificam a representação da visão integradora de mundo indígena.

Diz Almeida sobre as narrativas Kaxinawá:
As doze histórias de Shenipabu Miyui formam, portanto, um conjunto, um livro, em cujo interior as narrativas ilustradas com desenhos mantêm um padrão narrativo, um nível coerente de legibilidade, uma sistemática textual, própria da organização livresca. Os temas são variados, os desenhos são figurações da variedade de situações e personagens, mas o fato de serem elaboradas e organizadas em conjunto, com a intenção de configurarem um livro, coloca-as definitivamente no âmbito da cultura letrada, na perspectiva do mundo editorial contemporâneo. Mesmo que o dado fundamental desta literatura seja sua inserção na tradição oral kaxinawá, a sua presença em livro desloca-a para o campo da história da literatura brasileira, mesmo porque seus textos tiveram seu momento de criação em língua portuguesa. O bilingüismo explícito dos autores kaxinawá, por estar escrito nas páginas do livro, garante o começo da história da literatura kaxinawá, ainda que esta se insira na brasileira (ALMEIDA, 1999, p.137).

A riqueza literária e pedagógica das narrativas indígenas escritas é imensa e merece um novo olhar acadêmico. Na contemporaneidade, a literatura escrita indígena alia-se à tradição oral para expressar toda a riqueza estética e milenar contida no legado mítico de cada comunidade. Termino citando novamente a professora Maria Inês de Almeida que diz que:
Contar o mito é batalhar pela sobrevivência do próprio povo. Superior à História, o sentido do mito existe na utilização repetitiva por grupos sociais que fundam sua unidade através de ritos que reencenam, de maneira intangível, o acontecimento da origem (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 251).
Escrevendo seus mitos, os índios assumem justamente sua dimensão estética, entendida como vontade de fazer obra de arte (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 254).








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