por moisesmonteirodemeloneto*
moisesmonteirodemeloneto entre o diretorRaimundo Venâncio, de BILLIE HOLLIDAY, A CANÇÃO, e a atriz Tânia Maria que interpreta a cantora americana
foto: Telma Virginia
"Às vezes, é pior ganhar uma luta do que perdê-la"
(Billie Holiday)
Pois é: Quanto mais puxamos a
borracha do estilingue para trás, mais longe vai a pedra e Eleanora Fagan, vulgo
Billie Holiday, a Lady Day, que está no
Recife na pele de uma sergipana talentosa e pode ser vista e ouvida ao vivo, no espaço O POSTE, rua da Aurora, 529, Boa Vista,
bairro boêmio.
Tânia Maria (Billie Hiliday) em memorável performance
foto: Pedro Fontes
Ela parece estar em casa e apossou-se do corpo de Tânia Maria (o autor
foi assistir a um show dela e prometeu o monólogo sobre Billie, quando estreou ele
disse posso ir em paz, e morreu, como um strage fruit que deve ter sido). O texto é
visceral e extremamente poético; a carpintaria é de uma delicada e feroz
simplicidade, com recursos que através da direção de Raimundo Evêncio,
transforma-se em transformadora interpretação do blues melancólico que pode ser
a vida humana, ou mesmo a intuitiva melancolia de todos os seres numa fase do
estar aqui nesse mundo. Não é fácil
tratar do blues, da tristeza profunda num espetáculo assim. Gostaria de saber
que que os nova-iorquinos vão achar desse espetáculo. Já viajei muito pelo mundo
e tenho estudado o teatro profundamente; algumas vezes vi atrizes como Elaine
Page, Glenn Close, Tereza Rachel, Maria Della Costa, Marília Pera, a Montenegro,
Diná de Oliveira (em A morte do caixeiro
viajante, por exemplo), devastando os corações de uma plateia com uma
interpretação magistral, gosto muito disso,e vi agora Tânia Maria, interpretando
uma grande diva do blues, com essa dramaturgia ácida de Hunald de Alencar
(premiado dramaturgo) num espetáculo permeado por peculiar mundividência, que
vem de Sergipe. Eles ensaiaram durante um ano e quatro meses, diariamente. Há
um CD e um DVD à venda por 20 reais. COMPREM.
Espancada, filha de um casal de adolescentes sem grana, violentada e quase estuprada aos 10, parar num reformatório por isso. Billie foi estuprada aos 12, prostituída, presa, caiu nas drogas, exemplo da bondade norte-americana: o racismo, que ela denuncia na icônica canção Strange Fruit, de Allan Lewis, que ninguém queria gravar e muitos dizem que aquilo bloqueou a carreira dela, um trecho fala dos negros enforcados e queimados por brancos e deixados apodrecer em árvores à vista de todos:
Espancada, filha de um casal de adolescentes sem grana, violentada e quase estuprada aos 10, parar num reformatório por isso. Billie foi estuprada aos 12, prostituída, presa, caiu nas drogas, exemplo da bondade norte-americana: o racismo, que ela denuncia na icônica canção Strange Fruit, de Allan Lewis, que ninguém queria gravar e muitos dizem que aquilo bloqueou a carreira dela, um trecho fala dos negros enforcados e queimados por brancos e deixados apodrecer em árvores à vista de todos:
[...] Pastoral scene
of the gallant South
The bulgin' eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias sweet and fresh
Then the sudden smell of burnin' flesh
[...]
Quem está a sofrer, por não poder amar como
quer, ou por qualquer outra razão que nos angustia tanto, deve assistir a Billie
Holiday, a canção.
Uma das canções mais tocantes de Billie é interpretada com um fervor contagiante por Tânia: Gloomy sunday (dizem que o autor matou-se depois de compô-la, e que sua amada ao ouvi-la também se suicidou!)...
Uma das canções mais tocantes de Billie é interpretada com um fervor contagiante por Tânia: Gloomy sunday (dizem que o autor matou-se depois de compô-la, e que sua amada ao ouvi-la também se suicidou!)...
Sunday is gloomy
My hours are slumberless
Dearest the shadows
I live with are numberless
Little white flowers will
Never awaken you
Not where the black coach
Of sorrow has taken you
Angels have no thought of
Ever returning you
Would they be angry
If I thought of joining you
Gloomy Sunday
Gloomy is sunday
With shadows I spend it all
My heart and I have
Decided to end it all
Soon there'll be candles
And prayers that are sad
I know, let them not weep
Let them know
That I'm glad to go
Death is no dream
For in death I'm caressing you...
Billie morreu com
somente 750 dólares escondidos numa meia de seda. Direitos autorais? Pelas gravadoras e recebia de 15 a 75 dólares por sessão! Solitária ela vendia sua performance
por míseros dólares (cerca de 50 discos bem vendidos); sua estrada cheia de penumbra e blues era o que
lhe restava e buscava matar a fome, no sentido mais polissêmico da palavra. “Quanto
mais eu morra, mais meu corpo me pertence e me prostituo também, aos vermes”,
diz a canção final composta especialmente para o espetáculo que estou comentando, que se encerra
numa espécie de abissal anticlímax, deixando os espectadores sem fôlego. Vi
Bibi Ferreira interpretando Piaf, mas fico especialmente encantado com Tânia, que parece mais uma irmã nossa, como se fosse nossa amiga; e o fato dessa encenação
ter sido no espaço O Poste, transforma-a em algo ainda mais significativo e icônico. Ouvir
e ver Tânia Maria, ali, com sua voz única, ideal àquele momento e ao que estava
sendo retratado pelo teatro que assim cumpre uma das suas mais nobres funções:
a catarse, foi extasiante. Sentia-se na pele O ALIMENTO DA ARTE.
Billie nasceu sob o maldito signo de Áries, em 07 de abril de 1915, na Filadélfia, mas foi em Baltimore, lugar que Edgar Alan Poe planejou outro ícone da melancolia ocidental, o poema O Corvo, que aquela garota descendente de uma escrava (de 13 anos!) e um irlandês (15 anos). A bisavó irlandesa morreu nos seus braços. Uma tia malvada fez o que podia para machucá-la (a mãe foi para Nova York). Restou àquela mestiça o bordel da esquina. Aos 14 já estava no Harlem, onde morreu também. Arranjou uma cafetina que a vendia por centavos aos brancos, também; La Holiday foi denunciada e presa por prostituição. Quis ser dançarina de boate mudou o nome de Eleanora na para Billie Holiday (férias, feriado!) começou a extravasar seu pathos, e isso Tânia Maria parece ter absorvido desse texto teatral permeado por estranha mistura de vida e arte. No debate que houve após a apresentação eu quis perguntar à sergipana como era conviver com um personagem como esse tão peculiar; perguntei se ela já tinha sido assombrada por Billie. Ela contou a história da borboleta negra que invadiu sua casa, parou e voou lentamente em sua direção, sumiu momentaneamente e no outro dia apareceu morta. Lembrei do conselho que Jack Nicholson deu a Heath Ledger, que interpretaria o Coringa (num filme comercial): “Cuidado com esse personagem”. Recentemente interpretei Kafka e também Pilatos, senti na pele o que é olhar o mundo por uma ótica tão controversa, por assim dizer.
Lady sings the blues
She's got them bad
She feels so sad
Wants the world to know
Just what the blues is all about
Lady sings the blues
She tells her side
nothing to hide
Now the world will now
Just what the blues is all about
The blues ain't nothing but a pain in your heart
when you get a bad start [...]
Billie nasceu sob o maldito signo de Áries, em 07 de abril de 1915, na Filadélfia, mas foi em Baltimore, lugar que Edgar Alan Poe planejou outro ícone da melancolia ocidental, o poema O Corvo, que aquela garota descendente de uma escrava (de 13 anos!) e um irlandês (15 anos). A bisavó irlandesa morreu nos seus braços. Uma tia malvada fez o que podia para machucá-la (a mãe foi para Nova York). Restou àquela mestiça o bordel da esquina. Aos 14 já estava no Harlem, onde morreu também. Arranjou uma cafetina que a vendia por centavos aos brancos, também; La Holiday foi denunciada e presa por prostituição. Quis ser dançarina de boate mudou o nome de Eleanora na para Billie Holiday (férias, feriado!) começou a extravasar seu pathos, e isso Tânia Maria parece ter absorvido desse texto teatral permeado por estranha mistura de vida e arte. No debate que houve após a apresentação eu quis perguntar à sergipana como era conviver com um personagem como esse tão peculiar; perguntei se ela já tinha sido assombrada por Billie. Ela contou a história da borboleta negra que invadiu sua casa, parou e voou lentamente em sua direção, sumiu momentaneamente e no outro dia apareceu morta. Lembrei do conselho que Jack Nicholson deu a Heath Ledger, que interpretaria o Coringa (num filme comercial): “Cuidado com esse personagem”. Recentemente interpretei Kafka e também Pilatos, senti na pele o que é olhar o mundo por uma ótica tão controversa, por assim dizer.
A interpretação de Tânia Maria vem da alma, sua voz
tem a dureza da vida, a ternura sombria de uma lullaby, como no momento de
Porgy and Bess, que os negros cantam Summertime.
A Maria
torna-se assim diva que bem orquestrada passeia entre intérpretes como a
gigantesca Janis Joplin, que tanto admiro. Por sinal,a primeira peça que
escrevi para teatro foi sobre essa texana.
Destaque merecem
também os arranjos musicais (direção vocal de Lina Sousa), para os músicos. É
um espetáculo enxuto, com pequenas
quebras rítmicas e uma discussão sobre o fazer musical (ler ou não partituras?);bom
ver uma apresentação onde eu vi, naquele teatro contra o racismo, contra o
machismo, que enfrenta o jogo ideológico com a força da arte engajada e de
poderosa fé cênica. Billie conquistou o mundo; essa peça tem algo que a faz
representante de uma vertente dramática que daria orgulho se ela pudesse ir
ainda mais longe. Quem sabe na terra da Billie? Deve haver muita assim, mas
essa é nossa e a Holiday é universal. Mas
nem o estrelato lhe deu sossego do malho. Billie Tania Maria Holiday, passa
pelo recife como uma baronesa, planta que invade as águas do Capibaribe após
dias de muita chuva, como flor do mandacaru, como o canto do Acauã, como um
gole de uma cachaça boa, limpando a garganta. E sobre o autor? Ah! Parece que ele enfiou a agulha na pele e
tomou uma overdose de blues. Deixou que sua pena penetrasse o acetato, fez do
corpo da atriz uma partitura escandalosa, capaz de santificar uma marginalizada
cujo erro a ser punido foi nascer, como acontece com a maior parte dos artistas
visionários, artistas que fazem do corpo combustível.
Entre o amor não correspondido
nosso de cada dia, a miséria (vamos ver o sentido de misery em inglês, também?) do Brasil, essa população tão explorada,
roubada, enganada, abusada, agredida, chantageada, traída e mal amada como
Billie, nesse lugar onde ainda são os brancos que dão as cartas, e têm o apoio
(através da lavagem cerebral feita pela ideologia) dos mais pobres, dos
remediados e dos enfermos (risos e sisos) essa negra divinal surge como
pharmakon entorpecente.
Parabéns Samuel,
Agrinez, Nazaré pela perspicácia e eficácia em apoiar esse projetos que buscam
a encruzilhada mais teatral do Recife, a d´O Poste; a iluminar como farol
alternativo, o caminho principal, à sombra da casa-grande (o teatro "de" Santa
Isabel, do outro lado do rio Capibaribe) que parece alienada às nossas necessidades (como
pessoas de teatro) mais básicas. Que o
mundo conheça nossa Billie Holiday! E
enquanto raça, sexo, classe social servirem de argumento para destruir alguém é
porque o lugar está podre e o perfume que se sente encobre o veneno da
intolerância. Quanto às substâncias ilícitas consumidas por Billie? Ah! O resto
é silêncio, daqueles que precedem as tempestades...
E
viva Sergipe! Que nos manda esta peça que o Recife injeta nas veias ou traga com
olhos cheios d’água. Dá um arrepio olhar para essa atriz: garganta estourando,
pulmões atrás da nota, de interpretar essas músicas que vão nos matando
suavemente, nos estraçalhado, dilacerando Billie morreu, parece, com os 750
dólares enfiados num orifício qualquer. Tornou-se emblemática e agora está na
minha cidade, trazida por uma atriz tão importante. Obrigado, Tânia Maria,
obrigado a todos vocês, por tanta poesia derramada em (anti?)palco pernambucano.
* moisesmonteirodemeloneto é Douror em Letras (UFPE), pesquisador, professor, escritor e trabalha há mais de 30 anos no Teatro
Grato, pelo olhar sensível, pela sensibilidade.
ResponderExcluirGrato a vocês, que nos trazem essas soluções luminosas; grato à equipe de BILLIE HOLIDAY, A CANÇÃO
ResponderExcluirTexto maravilhoso crítica merecida ao belo espetáculo. Imperdível. Ainda tem hoje né? Não faltem.
ResponderExcluirDiz Humberto Eco que a "A Obra Aberta" se completa no universo com que é recebida pelo espectador. Quanto mais extenso for este universo, maior será a grandeza da obra artística apreciada. Cresci ainda mais como artista e como apreciador de "Billie Holiday, a canção" após ler este texto tão minucioso no blog de Moisés Neto! A grandeza deste espectador colocou este espetáculo no patamar para o qual todos nós da equipe de produção de "Billie Holiday, a canção" nos esforçamos para que ele alcançasse. Como figurinista e apreciador do trabalho primoroso da atriz Tania Maria agradeço a dedicação de Moisés Neto em escrever tão pertinentes palavras e conosco compartilha-las.
ResponderExcluirGrato a vocês por esta energia compartilhada com tanta intensidade na entrega, na troca de amor e dor que está e estará sempre na relação palco plateia: PLAY IT AGAIN
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