As duas mortes de Miguel Rovisco
por Rui Gustavo
Foi premiado em 1987 como o melhor
dramaturgo português. Recusou o dinheiro, protestou de corda ao pescoço e
suicidou-se aos 27 anos. Morreu o homem e desapareceu a obra. E a memória?
O despertador
tocou à hora do costume, ainda antes das cinco da manhã, ele fez a cama
impecavelmente e saiu sozinho para o passeio habitual das madrugadas. Costumava
percorrer as ruas de Lisboa ainda desertas porque gostava de ver “a beleza do
fumo a evaporar”. Cinco horas depois, o telefone da casa das Amoreiras tocou e
a mãe atendeu. “É da casa de Nuno Miguel Rovisco Garcia Pedroso? É para dizer
que esse indivíduo se atirou à linha.”
Caía
assim o pano sobre a vida de Miguel Rovisco, o último grande prodígio da
dramaturgia portuguesa, considerado um génio por personalidades tão díspares
como Mário Viegas ou Filipe La Féria. Matou-se na estação de comboios de Belém,
a 3 de outubro de 1987. Tinha 27 anos, a idade mitificada do fim de vida de
artistas como Jimi Hendrix e Jim Morrison, antes dele, Amy Winehouse ou Kurt
Cobain depois. Quase nada resta dele, a obra é inacessível, a memória pública
perdeu-se, resta um saco de plástico cheio de folhas.
Sobre
os lençóis bem dobrados da cama feita deixou uma carta para a mãe em que
garantia partir “tranquilo”, um envelope 200 contos (mil euros) para o sobrinho
e afilhado bebé e um cartão escrito à mão para o ator e encenador Mário Viegas,
o amigo “imensíssimo”. No bolso, levava a carteira com a identificação
completa, a morada e o telefone de casa, um crucifixo e uma Bíblia que ficaria
destruída no embate com o comboio. Este final sangrento não surpreendeu a
família nem os poucos amigos do dramaturgo que tinha planeado matar-se antes
dos 30 anos “num sábado chuvoso”. “Queria ser ele a decidir quando e como
morreria”, explica a irmã, Graça Pedroso, na sala com vista para o Tejo junto
ao Jardim da Estrela. “Conseguiu.”
O
primeiro ato tinha sido encenado sete meses antes, em março de 1987, no foyer
do Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa. Miguel Rovisco, então um jovem
completamente desconhecido, ganhou o Prémio Garrett para a melhor peça original
de 1986, com “Trilogia Portuguesa”, que tinha escrito fechado no quarto de
casa. O prémio foi atribuído por unanimidade por um júri nomeado pela
Secretaria de Estado da Cultura. “Julgo que foi a primeira vez que isso
aconteceu”, recorda Maria Manuel Pinto Barbosa, então chefe da divisão de
teatro da SEC e a quem “Trilogia Portuguesa” seria dedicada quando foi editada
em livro. “As pessoas concorriam anonimamente e quando fomos ver quem era o
verdadeiro autor da peça ficámos a olhar uns para os outros. Quem é este Miguel
Rovisco?” Duarte Barroso, alto funcionário da Secretaria de Estado, telefonou
ao premiado, que foi chamado ao gabinete de Maria Manuel. “Lembro-me do ar de
rapaz bem comportado, magro, de fato e gravata e muito educado. Não parecia
nada surpreendido por ter ganhado. Tinha uma grande autoestima, quase
arrogante. Disse que ia escrever mais umas peças e que depois se matava. Claro
que não lhe liguei nenhuma. Falámos mais de uma hora e meia e ele disse que as
mulheres é que costumavam confessar-se, mas que naquele caso tinha sido ele.”
O DIA DOS
SORRISOS AMARELOS
No
dia da entrega dos Prémios Garrett, os mais importantes do mundo teatral
português, que consagraram, por exemplo, Eunice Muñoz como a melhor atriz
daquele ano e Amélia Rey Colaço com o prémio carreira, Miguel Rovisco apareceu
todo vestido de preto, descalço e com uma corda com um nó de enforcado à volta
do pescoço. “Foi um choque”, lembra o encenador Norberto Barroca. “Imagine o
ambiente solene e institucional, de Teatro Nacional, com governantes e grandes
atores, era só sorrisos amarelos.” Recebeu o troféu das mãos da secretária de
Estado da Cultura, Teresa Patrício Gouveia, beijou-lhe a mão solenemente e
começou a discursar. “Nem só de snobismo e patine vive o teatro português”,
proclamou o premiado perante o espanto geral. Aceitava o troféu, que ainda está
guardado na casa de Graça Pedroso, mas recusava-se a receber os 300 contos
(1500 euros) do prémio.
Na
altura, era escriturário da Câmara de Lisboa e ganhava menos de 50 contos por
mês. “A minha mãe estava presente e ficou danada. ‘Que horror. Fazer-me isto,
quando sabe que sofro do coração’”, recorda a irmã. “Eu achei a maior graça.”
Foi o marido, Alberto Mallaguerra, quem preparou o adereço principal. “O Nuno
trouxe a corda e pediu-me para lhe fazer um nó de enforcado. Não disse para o
que era, mas como já tinha falado em suicídio várias vezes, fiz um nó tosco que
jamais funcionaria para se enforcar, mas para o efeito serviu.”
Na
carta de recusa que enviou à Secretaria de Estado, Rovisco declarava: “Se tudo
quanto o teatro português tem para me oferecer se resume a dinheiro, nesse caso
não só nunca mais escreverei uma linha para os palcos como votarei ao silêncio
das cinzas as obras dramáticas que em minha casa aguardam quem as leia.” Não
cumpriu a ameaça (ainda escreveu mais peças e só queimou parte do espólio), mas
nunca aceitou receber um centavo do Estado: “Onde estaria a virtude de uma
ética que não primasse pela teimosia?”, perguntava-se na carta.
A
razão da indisponibilidade (e da indisposição) era concreta: além dos 300
contos, o prémio previa que a obra fosse encenada na íntegra numa sala do
Teatro Nacional. A trilogia de Rovisco — um conjunto de três peças históricas,
“O Bicho”, sobre o Marquês de Pombal, “O Tempo Feminino”, sobre D. Maria I; e
“A Infância de Leonor de Távora”, sobre a família chacinada pelo Marquês —
tinha perto de seis horas, não poderia ser representada na íntegra como o autor
queria e não foi programada para os meses seguintes à entrega do troféu, como
também Rovisco pretendia. A peça seria encenada no início de 1988 por Norberto
Barroca. Rovisco nunca a veria em palco.
VINTE PEÇAS EM
TRÊS ANOS
Ainda
sem ter qualquer peça encenada, o dramaturgo era notícia por causa do
espetacular protesto e pela própria história de vida. Em três anos, entre 1984
e 1987, escreveu 20 peças, oito livros de poesia e romances que seriam
reduzidos a cinzas. Era um funcionário burocrático da Câmara, cargo que só
abandonou depois de ter recebido o Prémio Garrett para se poder dedicar “por
inteiro” à escrita. Era conservador, católico, monárquico, não tinha qualquer
curso superior (andou umas semanas em Direito, mas desistiu) e só se
interessava por teatro histórico numa altura em que o teatro experimental
estava em voga. “Faz falta um verdadeiro teatro nacional”, escreveu. “A
História de Portugal está completamente esquecida, quer no nosso teatro quer na
nossa televisão. E então passamos pela vergonha, chamo vergonha, de vermos
excelentes trabalhos sobre personagens históricas inglesas.”
Apesar
de nunca ter feito parte do “meio teatral” e de nem sequer ser espectador
assíduo de teatro, o nome de Miguel Rovisco começou a ser falado entre atores e
encenadores e foram editados três dos seus livros: “Trilogia Portuguesa”,
“Retrato de Uma Família Portuguesa” e “A História de Tobias”, todos pelas
Edições Rolim. Mário Viegas, que o considerava “um génio” pegou numa peça de
outra trilogia então inédita, “Os Heróis” — “Um Homem para qualquer Pátria”,
sobre a restauração da independência de 1640, e encenou-a no Teatro Experimental
do Porto. Foi a única peça da sua autoria que Rovisco veria, a 10 de junho de
1986. “Odiou tudo”, conta Graça Pedroso. “A encenação e o Porto. Tudo.”
Numa
das muitas cartas que trocou com Mário Viegas e que o ator, também já
desaparecido, publicou na “Auto-photo Biografia (Não Autorizada)”, Rovisco
avisa que “a carta lhe será de leitura desagradável, como está a ser
escrevê-la”. Critica a encenação que transformou “uma farsa numa comédia” e pôs
as pessoas “a rirem em vez de pensarem” e conta a história de um pintor que
conseguiu que uma importante galeria “expusesse um quadro no lugar mais
importante” do espaço mas estragou tudo quando “pendurou o quadro ao
contrário”. Viegas resume a zanga num comentário manuscrito que também publicou
na autobiografia: “O Rovisco não aguentou ver a sua peça em cena e bebia, bebia
todas as noites. Perdão, Nuno.” Ainda assim, considerava “um crime não se
publicar a sua obra” e confessava que a morte do amigo foi “um dos maiores
choques” que sofreu. “Acho que o Rovisco estava apaixonado por mim, embora não
tenha a menor prova que fosse homossexual.”
“NÃO QUEIRAS
SER REI”
A
peça esteve em cena durante uma edição do FITEI — Festival Internacional de
Teatro de Expressão Ibérica, no Porto, e foi considerada um êxito. Miguel Rovisco
seria então convidado para escrever o guião de uma serie de televisão,
“Cobardias”, uma produção para a RTP que seria a última grande obra do autor e
foi escrita em cerca de um mês. Contava a história de uma família, e
principalmente das suas mulheres, ao longo de várias gerações. As personagens
aparecem com 20, 40 e 60 anos. 13 episódios de 50 minutos cada escritos em 30
dias. O livro das Edições Ática está esgotado e é impossível de encontrar, a
produtora da série faliu e a RTP não tem qualquer cópia da obra.
“Escreveu
tudo nesta máquina”, diz Graça Pedroso a apontar para uma Hermes Baby em bom
estado de conservação. “Até estes poemas que escreveu para o sobrinho.” E
mostra uns pequenos dossiês de argolas feitos à mão com desenhos de animais e
pequenos poemas. “O leão é rei. Nas cidades vive atrás das grades. Não queiras
ser rei.”
“Conheci-o
no primeiro dia de filmagens”, conta Carmen Dolores, protagonista de
“Cobardias”. “Já o tinha visto no foyer do Dona Maria II quando foi aquele
episódio extravagante da corda e lembro-me dos olhos grandes, muito
impressionantes. Falámos muito, especialmente sobre o meu papel. Era muito bom.
Acho que o escreveu a pensar na mãe”, conta a atriz, que ainda guarda dois
livros do autor. “Depois de ele morrer, a mãe contactou-me e fui muitas vezes à
casa deles. Ela queria que eu conhecesse o ambiente onde ele vivia.”
Rovisco
viveu sempre com a mãe na casa do bairro das Amoreiras. A família tinha criadas
internas, e casa outra na Ericeira. “Éramos de classe média alta”, descreve
Graça. Nuno Miguel era um miúdo como os outros. “Éramos próximos, andávamos sempre
com outros dois primos e ele esfolava os joelhos. Era muito rapazola. Só aos 16
anos é que começou a isolar-se. Passava o tempo a ler e a escrever e a ter
alguns comportamentos extravagantes, como ir de roupão para a escola.” O fim da
harmonia veio com o fim do casamento. “Os meus pais divorciaram-se, a minha mãe
teve de começar a trabalhar e o meu irmão nunca aceitou muito bem a separação.
Dava-se mal com o pai.” “O meu pai desejava galhardamente que eu fosse um
menino e essa foi a única alegria que eu lhe dei. (Fi-lo sem querer)”, escreveu
o próprio Rovisco na “Pequena Autobiografia” que acompanhava a edição do Teatro
Dona Maria II da “Trilogia Portuguesa”.
Andou
no Liceu Charles Lepierre, no Manuel da Maia e no Pedro Nunes. Falava francês e
espanhol. E não se sabe muito bem de onde veio o amor pela literatura e pelo
teatro. “Não tínhamos propriamente uma grande biblioteca e a única experiência
de teatro acontecia no Natal, quando a minha avó nos fazia representar umas
peças que ela própria escrevia”, explica Graça. Rovisco foi bom aluno, “sempre
no quadro de honra”, mas apesar de ter notas suficientemente altas, não quis
seguir um curso universitário. “Experimentou Filosofia e Direito, mas desistiu
ao fim de um mês ou de uma semana, achava que eram todos burros.” Foi trabalhar
para a Câmara, a atender pessoas e a receber projetos porque “queria o trabalho
mais estúpido possível”.
“O
ambiente que se criava à volta dele não era bom. Não sei se era culpa dele ou
dos outros, mas havia uma energia estranha. Nunca percebi porquê”, conta Carmen
Dolores. “Cobardias” é entregue ao realizador veterano Herlânder Peyroteo, que
faz as alterações que julga necessárias. Rovisco discorda, discute e desaparece
de cena. “Apareceu no ensaio e nunca mais o vimos”, conta Carmen Dolores.
“Odiou tudo”, confirma a irmã.
Só
vê um ou dois episódios. Na carta de despedida que deixou a Mário Viegas é
bastante claro: “Meu imensíssimo Mário, nem tenho palavras para te agradecer
tudo: os momentos teatrais mais bonitos — verdadeiramente dramáticos alguns —,
os bons conselhos e a tua amizade constante. Bem que tu me dizias para eu não
me meter com os tipos da televisão: alteraram tudo, nem respeito ao menos pelo
começo e fim de cada episódio, é de fugir de péssimo.” Mário Viegas resume: “O
Rovisco precipitou o seu suicídio ao ver a merda que o Herlânder Peyroteo fez
da sua série.” Já depois de morto, Rovisco ganharia mais dois Garrett. Um para
“História de Tobias” (melhor texto para a juventude) e outro para a “História
de Uma Família Portuguesa (melhor texto original).
ESCRITO NA
ÁGUA
O
que Miguel Rovisco deixou “não ficou escrito na pedra”, mas sim “na água”. A
metáfora é de José Mendes, jornalista do Expresso que escreveu em fevereiro de
88 sobre a segunda vida de Miguel Rovisco no palco do Dona Maria II. A
encenação da “Trilogia Portuguesa” seria entregue a Norberto Barroca, convidado
quando Rovisco ainda era vivo. “Já depois de ter aceitado o convite do diretor
do teatro e quando quis reunir com o autor, soube pelo jornal que se suicidou”,
escreveu o encenador num diário que faz parte de uma tese de doutoramento sobre
Miguel Rovisco da professora da universidade de São Paulo, Virgínia de Jesus.
Rogério
Paulo, um dos mais conceituados atores da época, foi escolhido para o papel de
Marquês, o protagonista de “O Bicho”. “Foi muito difícil porque o Rovisco nem
sempre respeitava o rigor histórico e o Rogério Paulo não percebia porquê. Por
exemplo, porque é que se chamava Sebastião Júlio e não Sebastião José, como na
realidade? Passava o tempo a dizer: isto não foi assim.” Norberto Barroca quis
usar um leão enjaulado para a cena final da peça e chegou a trazer o animal
para o teatro, o que provocou um motim “entre as senhoras do elenco”, lembra
Barroca. “Ficaram com pena do animal e contra mim. Estragou um bocado o
ambiente.” O leão não foi usado porque “na única noite que passou no teatro
fartou-se de rugir (as feras rugem à noite) e teve de ser devolvido ao Jardim
Zoológico”.
A
peça estaria dois meses em cena e seria um êxito moderado de público e de
crítica. “O Rovisco era um prodígio na escrita, mas não era um prodígio do
teatro. Um dramaturgo tem de ver o que escreve em cena, para perceber o que
funciona e o que não funciona e ele não teve tempo para isso”, explica Norberto
Barroca, que não voltaria a encenar ou a ler uma peça de Rovisco. “Não tive
essa curiosidade.”
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