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quarta-feira, 4 de março de 2015

Uma crônica para reflexão

Executiva no Céu
Max Gehringer


Foi tudo muito rápido.
A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou, cambaleou.
Deu um gemido e apagou.
Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso portal.
Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma miríade de pessoas.
Todas vestindo cândidos camisolões e caminhando despreocupadas.
Sem entender bem o que estava acontecendo, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes:
-Enfermeiro, eu preciso voltar urgente para o meu escritório, porque tenho um meeting importantíssimo. Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque meu convênio médico é classe A, e isto aqui está me parecendo mais um pronto-socorro. Onde é que nós estamos?
-No céu.
-No céu?...
-É. Tipo assim, o céu. Aquele com querubins voando e coisas do gênero.
-Certamente. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente.
Apesar das óbvias evidências (nenhuma poluição, todo mundo sorrindo, ninguém usando telefone celular), a executiva bem-sucedida custou um pouco a admitir que havia mesmo apitado na curva.
Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela situação era inaceitável. Porque, ponderou, dali a uma semana ela iria receber o bônus anual, além de estar fortemente cotada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa.
E foi aí que o interlocutor sugeriu:
-Talvez seja melhor você conversar com Pedro, o síndico.
-É? E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária?
-Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece.
-Assim? (...)
-Pois não?
A executiva bem-sucedida quase desaba da nuvem.
À sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro.
Mas, a executiva havia feito um curso intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu rapidinho:
-Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e...
-Executiva... Que palavra estranha. De que século você veio?
-Do 21. O distinto vai me dizer que não conhece o termo "executiva"?
-Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo.
Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight.
A máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero à esquerda em modernas técnicas de gestão empresarial. Logo, com seu brilhante currículo tecnocrático, a executiva poderia rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, celestial ali na organização.
-Sabe, meu caro Pedro. Se você me permite, eu gostaria de lhe fazer uma proposta. Basta olhar para esse povo todo aí, só batendo papo e andando à toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para dar um upgrade na produtividade sistêmica.
-É mesmo?
-Pode acreditar, porque tenho PHD em reengenharia. Por exemplo, não vejo ninguém usando crachá. Como é que a gente sabe quem é quem aqui, e quem faz o quê?
-Ah, não sabemos.
-Headcount, então, não deve constar em nenhum versículo, correto?
-Hã?
-Entendeu o meu ponto? Sem controle, há dispersão. E dispersão gera desmotivação. Com o tempo isto aqui vai acabar virando uma anarquia.
Mas nós dois podemos consertar tudo isso rapidinho implementando um simples programa de targets individuais e avaliação de performance.
-Que interessante. ..
-Depois, mais no médio prazo, assim que os fundamentos estiverem sólidos e o pessoal começar a reclamar da pressão e a ficar estressado, a gente acalma a galera bolando um sistema de stock option, com uma campanha motivacional impactante, tipo: "O melhor céu da América Latina".
-Fantástico!
-É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização de um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver.
-Aí, contrataríamos uma consultoria especializada para nos ajudar a definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do Grande Acionista... Ele existe,certo?
-Sobre todas as coisas.
-Ótimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing mix e investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto valor agregado. O mercado telestérico por exemplo, me parece extremamente atrativo.
-Incrível!
-É óbvio que, para conseguir tudo isso, nós dois teremos que nomear um board de altíssimo nível. Com um pacote de remuneração atraente, é claro. Coisa assim de salário de seis dígitos e todos os fringe benefits e mordomias de praxe. Porque, agora falando de colega para colega, tenho certeza de que você vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar em um turnaround radical.
-Impressionante!
-Isso significa que podemos partir para a implementação?
-Não. Significa que você terá um futuro brilhante... se for trabalhar com o nosso concorrente. Porque você acaba de descrever, exatamente, como funciona o Inferno... 

Vocabulário

1. leverage      alavancar
2. Os benefícios indiretos, conhecidos no meio empresarial como "fringe benefits", no dizer de Max Gehringer, "o enfeite que torna o conjunto mais atraente", é a parte do pacote de remuneração que complementa o salário e os benefícios legais de sócios, diretores, gerentes, administradores e funcionários vitais para a empresa.
3. Telestérico in ancient Greece) a building in which religious mysteries were celebrated.
4  Sinergia ou sinergismo (do grego συνεργία, συν- (syn-) "união" ou "junção" e -εργία (-ergía), "unidade de trabalho"), é definida como o efeito ativo e retroativo do trabalho ou esforço coordenado de vários subsistemas na realização de uma tarefa complexa ou função.
5. Sinergia Quando se tem a associação concomitante de vários dispositivos executores de determinadas funções que contribuem para uma ação coordenada, ou seja o somatório de esforços em prol do mesmo fim, tem-se sinergia. 
6 Downsizing (em português: achatamento ou diminuição de tamanho) é uma das técnicas da Administraçãocontemporânea,que  de acordo com Caldas (2000) surgiu nos Estados Unidos, na década de 70, seu objetivo era a diferenciação competitiva das organizações.  Após uma década chegou ao Brasil com a tentativa de reestruturar as organizações,  a fim de atingir a eficiência de custos e  a tentativa de  eliminação da  burocracia corporativa desnecessária, provocando assim um achatamento na piramide hierárquica. Segundo o autor argentino Rodolfo E. Biasca, o termo começou a vigorar cada vez mais no período de 1987-1989 . Outros termos empresariais em inglês sobre reestruturação empresarial também ficaram conhecidos internacionalmente nessa época tais como outplacement ("recolocação") e turnaround (algo como "dar a volta" no sentido de "revirar a empresa").
Stock Out - Número de vezes ou dias que determinado item controlado no estoque chega ao saldo zero
8 headcount (pessoas na equipe)





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