Otelo (fragmento)
William Shakespeare
ATO V. Cena II
Um quarto de dormir, no
castelo. Desdêmona dorme, no leito. Uma candeia acesa. Entra Otelo.
OTELO
- Esta é a causa, minha alma. Oh! Esta é a causa! Não vo-la nomearei, castas
estrelas! Esta é a causa! Não quero verter sangue, nem ferir-lhe a epiderme
ainda mais branca do que neve e mais lisa que o alabastro. Mas é fatal que
morra; do contrário, virá ainda a enganar mais outros homens. Apaga a luz!
Depois... Apaga a luz! Se te apagar, ministro flamejante, poderei restituir-te
a luz primeira, se vier a arrepender-me. Mas extinta que seja tua luz, ó tu, modelo
primoroso da excelsa natureza! de onde o fogo trazer de Prometeu, para dar nova
luz à tua chama? Se tua rosa colher, é-me impossível o vital crescimento
restituir-lhe: fatal é que feneça. Vou aspirá-la no próprio galho. (Beija-a.) O
hálito perfumado, que quase a convencer chegaste a própria Justiça a espedaçar
a sua espada! Mais um! Mais um! Se assim ficares, morta, quero tirar-te a vida,
e, após, amar-te. Mais outro; será o último; um tão doce jamais foi tão fatal.
Chorar preciso lágrimas impiedosas; é celeste meu sofrimento, pois castiga ao
que ama. Vai acordar!
DESDÊMONA
- Quem está aí? Otelo?
OTELO
- Sim, Desdêmona.
DESDÊMONA
- Não vindes para o leito, meu senhor?
OTELO - Desdêmona, rezastes esta noite?
DESDÊMONA
- Oh, decerto, senhor!
OTELO
- Se vos lembrardes de alguma falta não perdoada ainda pelo céu e sua graça,
cuidai logo de tê-la redimida.
DESDÊMONA
- O meu senhor! Que pretendeis dizer com isso?
OTELO
- Bem; fazei o que vos disse e sede breve. Passarei nesse em meio; não desejo
trucidar-vos o espírito manchado. Não pelo céu! Não vos matarei a alma.
DESDÊMONA
- Quê! Falais em matar?
OTELO
- Sim, é isso mesmo.
DESDÊMONA
- Então que o céu de mim tenha piedade.
OTELO
- Amém, de coração.
DESDÊMONA
- Se assim falais, é que não pretendeis matar-me agora.
OTELO
- Hum!
DESDÊMONA
- Contudo, sinto medo, pois terrível sois sempre, quando revirais os olhos
dessa maneira. A causa desse medo, não sei dizê-lo, pois não sou culpada; porém
sinto que tenho muito medo.
OTELO
- Pensa nos teus pecados.
DESDÊMONA
- Só consistem no amor que vos dedico.
OTELO
- Pois por ele vais agora morrer.
DESDÊMONA
- É contra a natureza dar a morte a alguém por ter amor. Ah! Por que causa
mordeis o lábio assim? Toda a postura tendes ora abalada, por alguma
sanguinária paixão. E mau agouro; contudo espero, espero que nenhuma ameaça me
comine.
OTELO
- Paz e aquieta-te.
DESDÊMONA
- Estou quieta. Que é que há?
OTELO
- O lenço que te dei, que eu tanto amava, a Cássio o deste?
DESDÊMONA
- Não, por minha vida, por minha alma, não o dei. Mandai chamá-lo e
interrogai-o.
OTELO
- Juízo, querida alma, não jures falso, pois estás agora no teu leito de morte.
DESDÊMONA
- Sim, no leito, mas não para morrer.
OTELO
- Sim, neste instante. Assim, confessa francamente a culpa, pois se com
juramentos contestasses ponto por ponto, em nada isso alterara ou sustara o
propósito em que me acho e que gemer me faz. Urge que morras.
DESDÊMONA
- Que Deus de mim tenha piedade.
OTELO - Digo amém.
DESDÊMONA
- Sede também piedoso. Em toda a vida jamais vos ofendi. Nunca amei Cássio, só
lhe tendo dedicado essa amizade que o céu permite, e nunca o presenteei.
OTELO
- Pelo céu, vi meu lenço na mão dele. Mulher perjura, em pedra me transmudas o
coração e o nome dás de crime ao que eu pensava ser um sacrifício. Vi o lenço!
Eu mesmo!
DESDÊMONA
- Então, é que ele o achou. Nunca lho dei. Mandai chamá-lo, para vir confessar
o que há.
OTELO
- Já confessou.
DESDÊMONA
- Confessou quê, senhor?
OTELO
- Que te possuiu.
DESDÊMONA
- Como? Ilicitamente?
OTELO
- Sim.
DESDÊMONA
- Absurdo! Não dirá isso.
OTELO
- Não, porque tapada já tem a boca, pois o honesto Iago tomou suas
providências.
DESDÊMONA
- Oh! Meu medo tinha razão de ser! Então, morreu?
OTELO
- Se seus cabelos todos vivos fossem, minha grande vingança os devorara.
DESDÊMONA
- Ai de mim! Foi traído e estou perdida!
OTELO - Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo
na minha frente?
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