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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

ORLANDO: VIRGÍNIA WOOLF EM CORPO E LETRA


(TRECHO DA PALESTRA CONFERIDA POR MOISÉS NETO)



Em Orlando (1928), livro de Virginia Woolf (1882-1941), que passamos agora a analisar, há traços realistas, mas ali se atinge principalmente os limites da consciência humana que tanto atormentaram a autora e temos uma  complicada para quem se apega à própria imagem; o destaque fica para a questão da androginia,  da vida em si e seu significado, a arte da poesia o e , claro, o amor.
Eis parte da obra de Virgínia Woolf: nove romances, mais de vinte cadernos de diários, sete volumes de ensaio, duas biografias e muitas cartas. Para esse estudo utilizamos a tradução de Cecília Meireles (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978).
Há mais esteticismo do que erotismo. Elabora a noção de gênero mais forte que a de sexo. Numa Ode à Literatura o texto retrabalha as noções de tempo e ação. Há que se destacar o olhar contemplativo que o narrador compartilha com Orlando e isso se dá em cada Sema (unidade mínima de significado). Poesia, enquanto metáfora levando o leitor à epifania é o que temos a cada página, praticamente. A narrativa posiciona-se bem além do posição positivismo e o que se tem nas linhas e entrelinhas é a descontinuidade  da “história” refletida num enredo. A técnica da narrativa é o ponto de vista de Orlando e a Literatura surge como um ritual, um espetáculo, simulando uma “biografia”.
É o ser humano bom, belo, corajoso; lembremo-nos que a Woolf padecia de  amor obsessivo, que idealizava alguém como Orlando: leal, forte, mas cheio de inocência  e pureza. Já afirmaram, com certa razão que ela inspirou-se em Vita Sackville-West. Há um questionamento do papel das mulheres na arte e no social como um todo. Haveria mesmo a igualdade entre sexos ou o que as mulheres querem é uma  superioridade?  Orlando é mulher, mãe, inteligente e consegue a felicidade no final do livro.
Orlando também foi um nobre e belo rapaz. Teve uma decepção amorosa com Sasha, uma princesa russa que o conquistou e partiu, a traição do poeta admirado que zombou dele num poema (satírico) e pelo fato de acreditar em felicidade só com a Natureza e a poesia.
Para alguns críticos, Orlando seria o único dos romances de Woolf  que se aproximaria da emoção sexual, ou melhor ainda, da homossexual; pois, enquanto o personagem passa por uma transformação física, antes um belo jovem e depois uma bela dama, a metamorfose psicológica é bem menos completa.
As invenções estilísticas e os recursos narrativos utilizados (pontuação, repetição de termos etc.) enquanto marcadores do texto e do fluxo mental dos personagens estão numa linguagem simples, para tornar palavra o discurso mental de Orlando. Mas há, sobretudo, uma espécie de transcendência que se dá em efusão lírica onde o corpo é usado como combustível que põe em ação uma máquina poética de alto potencial.
O intimismo, o mergulho na consciência, escrita refinada, o ritmo peculiar woolfiano, nos lembram as epifanias de Clarice Lispector, mas num nível diverso. Woolf dizia que o livro era uma espécie de anedota, mas não descartou tratar-se de carta de amor, onde o feminismo estaria numa das dobras em meio ao fantástico das suas intenções; não podemos esquecer a questão do humor aí embutido e mesclado (por que não dizer?) à poesia, num clima de vanguarda que põe em refinado cadinho o gênero da biografia e do romance. O  fenômeno da criação humana é aqui também sublimação diante da pulsão, a encher o lugar vazio do sujeito da enunciação, transformando o sexual pelo não sexual, ajudando o sujeito no combate à pulsão de morte aí então corpo e letra unem-se numa improvável busca de sublimação, diante de  imagens e formas traçadas à semelhança de um eu inconscientemente narcísico.
Orlando é alegoricamente um imortal, desde nobre a serviço do seu país, num determinado panorama histórico, mas também vai poder ser vários e viver outra vida.
Flagramos Orlando pela primeira vez no final dos mil e quinhentos a cortar cabeças mumificadas de mouros trazidos por parentes deles de várias “conquistas”. Estamos na Inglaterra e sabemos logo da sua  beleza e sensibilidade. Corpo e Letra já se confundem. O belo jovem é também poeta e está a escrever um poema chamado O Carvalho. Muito luxo e riqueza o envolvem. A rainha “Bess” (Elizabeth I) é descrita assim: “mão cheia de anéis (...) fina (...) dedos longos sempre arqueados (...) nervosa, frenética, mórbida mão (...) ligada a um velho corpo que recendia como um armário onde há peles conservadas em cânfora” (p. 12). A ideia que se passa do poeta é a do “homem que não nos vê, que está vendo ogros, sátiros ou talvez o fundo do mar” (p.12). A tradução de Cecília acentua ainda mais a Letra, representando o espírito, em relação ao corpo do juízo e da razão num devaneio que atravessa séculos. Da rainha Elizabeth I vai-se direto à coroação do rei Jaime, uma festa carnavalesca misturando classes e gêneros rodeados por humor e esplendor poético (p.23). A figura da princesa russa Sacha (a “flor do perigo crescendo numa fresta” -p.22) com olhos que parecem “pescados no fundo do mar” (p.21) encanta-nos num passeio de patins sobre o congelado rio Tâmisa, em êxtase e intimidade com nosso herói que causou escândalo à época. Orlando desfaz um noivado para entregar-se a esse  seu amor. “seus outros amores (...) comparados àquele, tinham sido de pau, estopa e cinzas (...) [mas] entre a felicidade e a melancolia não medeia mais espessura que a de uma lâmina de uma faca” (p.25). Em Sacha algo parecia escondido, como uma chama parece oculta numa esmeralda, “ou o sol aprisionado numa colina” (p.26). O que não é inglês é visto como exótico (Orientalismo nos moldes de Edward Said?), num determinado trecho chega-se a falar da “sociedade dos macacos nos trópicos” (p.101). Os russos são descritos como seres que partiam carne com as mãos, as russas usariam barbas e eles viveriam em “cabanas” (p.27). Londres é mostrada em sua “assombrosa beleza contra as nuvens do ocaso” (p.29). Sacha e Orlando planejam uma fuga (ideia dele) e no meio do caminho assistem a trecho de “Otelo”: “um negro sacudia os braços e vociferava (...) acho que deveria haver um eclipse do sol e da lua e que o mundo assustado deveria bocejar” (p.32).  No final do primeiro dos seis longos capítulos da obra, Orlando é abandonado por Sacha e conclui seu idílio em meio a uma das mais belas alegorias da história da literatura (o descongelamento do Tâmisa após uma madrugada chuvosa e um amanhecer apocalíptico). Virginia expressa o sexo não tanto com indiferença, mas com certa  incompreensão; detecta-se em sua personalidade e em sua arte uma representação, diga-se assim,  etérea, parece  mais amar o cérebro que o corpo do outro.
No capítulo 2 Orlando dorme sete dias seguidos (isso acontecerá duas vezes , na segunda haverá o fenômeno da mudança de sexo). Sobre isso o narrador expressa: é “sombrio, misterioso e indocumentado” (p.37): “de que natureza são os sonos assim? (...) devemos receber diariamente a morte em pequenas doses, para podermos prosseguir na empresa da vida? (...) teria Orlando ressuscitado?” (p.39). Na grande solidão do artista entre os ossos dos antepassados, os fantasmas da sua mansão imensa, seus livros, a paixão pela literatura o dilacera, esse projeto de transformar corpo em Letras, onde “nem todo o ouro do Peru pode pagar o tesouro de uma frase bem torneada (...) passar pelas portas da morte e conhecer o inferno” (p.43). A poesia, essa feiticeira, a ânsia de glória, essa rameira, de mãos dadas faziam no coração de Orlando o “terreiro das suas danças” (p.46). ele sentia-se mais um escritor do que um aristocrata, “a lutar com a língua inglesa”. É ridicularizado pelo crítico Nicholas Greene e queima todos os seus escritos em holocausto pessoal, menos o poema O Carvalho, que poderá ser sua expressão maior.
Permeia o livro a reflexão sobre o tempo, a passagem das horas e como ela é relativa, o “extraordinário desacordo entre o tempo do relógio e o tempo do espírito” (p.55), que é mais desconhecido e deveria ser melhor estudado. “Um segundo pode ser dilatado até doze vezes seu tamanho natural” e Orlando “coloria-o com mil cores e enchia-o com todos os resíduos do universo” (p.56).  Os 365 dormitórios do palácio de Orlando ele os ocupa com hóspedes certa vez (p.61). Mas nada preenche seu vazio: “ o amor tem duas faces: uma branca outra negra; dois corpos: um liso outro peludo (...) impossível separá-los (...) [é] um abutre (...) ave-do-paraíso” (p.64); assim decide partir para a Turquia a serviço do governo inglês e naquele ácido e penetrante cheiro das ruas de lá, ele é obrigado a conviver com a hipocrisia das relações diplomáticas, a que atende com tanto sucesso que é condecorado duque inglês em Constantinopla. Há um golpe e ele, depois de um affair com uma dançarina, adormece por mais sete dias e acorda mulher no terceiro capítulo, vai viver com os ciganos, ser pastor, mas esses se acham mais nobres que os ingleses, pois são milenares enquanto o povo de Orlando não passava de “noveau riche” (apenas alguns séculos de tradição familiar). Logo percebem a falha de Orlando que eles não podem perdoar (é nociva aos ciganos): ele é contemplativo, metafórico por demais. Pensam em matá-lo, nesse meio tempo Orlando, sem papel nem tinta continua a escrever o poema O Carvalho, utilizando pequenos espaços no papel e usando vinho e suco de cerejas esmagadas como tinta. Orlando conclui com o narrador: “nenhuma paixão é mais forte, no peito humano, que o desejo de impor aos demais a própria crença” (p.83)
De volta a Inglaterra, agora mulher, Orlando luta para recuperar o que lhe era de direito e logo percebe vantagens e desvantagens da condição feminina, suas belas pernas continuam as mesmas, mas agora os homens enlouquecem só de ver seus tornozelos. Virginia mostra o homem  dentro do corpo de mulher: “como somos loucas!”, “”graças a Deus sou mulher!”, “o choro assenta bem nas mulheres”(p.88-92). Historicamente essa parte do livro é a época do grande incêndio e da peste em Londres e ela admira o trabalho do arquiteto Christopher Wren. Os empregados estranham à primeira vista; “Milord... Milady” (p.94), mas no geral todos desconfiavam de algo (andrógino?) que a justiça selaria oficialmente: mulher. Nem a mudança de sexo nem a passagem do tempo são empecilhos a uma narrativa que se estrutura liricamente na visão introspectiva.
Orlando também não tinha nenhum “comércio” com  o “Deus habitual”, tem “fé própria” e reflete sobre seus “pecados” e “imperfeições”, pois, e aí vem mais um aforismo do livro, “uma simples canção de Shakespeare tem feito mais  pelos pobres e malvados que todos os pregadores e filantropos do mundo” (p.96).
Corpo e letra? Nuances entre os gêneros, fusão de corpo e espírito, reflexo da literatura de um país e seus escritores, tendo a passagem dos séculos como pano de fundo. Refletido, o corpo de Orlando no espelho vira poesia: “tudo em redor do espelho eram campos nevados, tudo em redor era como fogo e ela era como fogo, uma sarça ardente (...) o espelho era uma água verde e ela era uma sereia recamada de pérolas, uma sereia numa gruta” (p.63).
Damos destaque também para a metalinguagem na narrativa, por exemplo: “ como o leitor pode verificar lançando os olhos à pág. 71-73” (p. 104). Também merece destaque a questão das roupas: “às vezes só as roupas conservam a aparência masculina ou feminina, quando interiormente o sexo está em completa oposição” (p.105). Orlando se atrapalha um pouco com os trajes femininos no início da sua transformação. Quanto ao humor em Virginia: “esse negro humor que corre nas veias de toda sua raça” (p.108) é intrincado e busca as entrelinhas, numa espécie de crítica amarga, muitas vezes sutil, por exemplo:  “a vida é um sonho e o despertar nos mata” (p.113).
As menções dos relacionamentos de Orlando com escritores da época como Pope e Swift resultam em debates em torno da criação literária, por exemplo: “a parte mais importante do estilo, que é o curso natural da voz ao falar” (p. 118).
Estampa-se em várias passagens o preconceito da sociedade inglesa do momento em relação à mulher: “mulheres são apenas crianças grandes... um homem inteligente apenas se diverte com elas , agrada-as e adula-as” (p.119), o tom é meio caricato em frase assim pinçada de chofre, mas o livro está repleto delas mixadas ao discurso de  Orlando  que “olhava, sentia, falava como homem, embora tenha sido ela mesma mulher tão tarde” (p.121); e ele pergunta: mulheres? Sempre “tagarelando” para “distrair seus amantes” (p.121). Se elas têm liberdade? “psiu!”, só se tiverem “cuidado de verificar se as portas estão fechadas e nenhuma de suas palavras vai ser impressa” (p.122); a visão é caótica e ambígua? Nem tanto. Orlando mudava de sexo muito mais frequentemente do que podem imaginar os que só usavam uma espécie de roupa” (p.123), isso numa época em que se acabava o século XVIII  e iniciava-se o século XIX (fim do capítulo quatro).
Uma grande nuvem cobre as Ilhas Britânicas e tudo fica úmido, fechado, escuro no século XIX: a Era Vitoriana prenuncia-se; da metáfora da umidade que a tudo estraga (p.127) surge o nascimento do Império Britânico (p.128), o que se dá na narrativa junto a páginas de alegorias, enumeração caótica, stream of consciousness, passagens delirantes (p.129-131), o espírito da época sopra sua face e Orlando continua trabalhando seu poema (desde 1586), nesse tempo ele foi melancólico, enamorado da morte, amoroso, exuberante, animado e satírico, mas ficado “fundamentalmente” a “mesma” (amor pelos animais, natureza, o campo, as estações) conforme constatamos (p.132). Eis alguns dos versos que ela chama insípidos versos:”sou apenas um elo desprezível/ na cadeia da vida fatigada/ mas pronunciei palavras sacrossantas/ ah, não digas que não valeram nada!” (p.133)
O que é a inspiração ou mesmo a poesia para Orlando? “sentiu-se percorrida por um estanho tinido e uma vibração como se fora feita de milhares de arames sobre os quais a brisa ou errantes dedos estivessem executando escalas”, eis como o corpo recebe as letras.
Há brincadeiras sobre a simbologia dos anéis de ouro dos casados. E os dedos? “não escrevemos só com os dedos, mas com  a pessoa inteira. O nervo que governa a pena enrola-se em cada fibra do nosso ser, amarra-nos o coração, atravessa-nos o fígado” (p.136). A exigência vitoriana de uma aliança de casamento também tomava todo o seu corpo, naquele “antipático” (p.137)  século XIX. “Devia ser um consolo (sentia) apoiar-se, sentar-se, sim, deitar-se, nunca, nunca, nunca mais se levantar” (p.137). Daí correr para a natureza e lá, abraçar-se com a terra. Aí ela encontra, vindo a cavalo, seu amor e marido: Shelmerdine: “és mulher, Shel”, “és homem, Orlando!” (eis o encontro dela com o casamento, dias depois). Ele é aventureiro navegante, gera-lhe um filho e parte, ela enfrenta o novo século, XX, fica-lhe dele o gosto de geleia de morango, pastilhas de hortelã (p.141). O narrador deixa um pequeno espaço em branco para que o leitor tire suas conclusões. Orlando conclui seu poema O carvalho e comenta-se a transação do escritor  com o espírito da época, que deve ser de infinita delicadeza, pois dessa concordância depende a sorte das suas obras (p.150), como está no último capítulo do romance, capítulo seis.
Na página 150, a editora de Virginia e Leonardo, a Hogarth Press, é mencionada metalinguisticamente (“o dinheiro que ela cobra por esse livro”). E a s reflexões continuam: v”ida e pensamento são como polos opostos (p. 150), vida nada tem a ver com ficar sentado numa cadeira, e mais uma vez, sobre as mulheres, e o texto ironiza: contanto que sejam “bilhetes”, ninguém se opõe que uma mulher escreva.
Orlando reflete sobre invenções modernas junto a outros personagens do romance tão imortais quanto ele; fala também  de críticos “a soldo de livreiros” (p.156). Greene, crítico que o arrasara trezentos anos antes, resurge e lendo O carvalho, vê ali genialidade, publica o poema de Orlando e consegue boas críticas (p.157).
“Vida? Literatura?” Corpo e letra? Converter uma coisa na outra? “Mas que monstruosa dificuldade!” (p.160). “Crítico? (...) vá tudo para o inferno!”, diz Orlando (p.161), esse burguês fidalgo intelectual em corpo de mulher.
Ela deu à luz um menino, numa terça-feira 20 de março, às três da madrugada (p.166), essa é a única menção à criança. Vem a invenção da luz elétrica e como ela afetou as pessoas. O século XX também tornou difícil chorar (p.167). “Pois que revelação mais terrível que a de sentir que este é o momento presente? Se sobrevivemos ao choque, é apenas porque o passado nos ampara de um lado e o futuro do outro (...) a verdadeira substância da vida agora é mágica (...) estou mortalmente cansada desse eu. Preciso de outro”. (p.168-173); mas o eu que Orlando necessitava pode não vir, os eus para o narrador são como pratos empilhados na mão do copeiro, têm predileções e simpatias  e têm certas predileções: dia de chuva, quarto com cortinas verdes, “se a Sra. Jones não estiver lá”, se tiver um bom copo de vinho etc. “o eu verdadeiro, é, dizem, a concentração de todos os outros que possam existir em nós, comandados e aprisionados pelo eu-capitão, o eu-chave que a todos controla. Orlando estava procurando decerto esse eu” (p.174). Ele estava com trinta e seis anos e o romance aproxima-se do final. A diegese vai misturando épocas convulsivamente. Elevadores, automóveis, Londres... o campo... era como se o espírito de Orlando tivesse se transformado em líquido, “ela não acreditava em nenhuma imortalidade, não poderia deixar de sentir que sua alma estaria para sempre indo e vindo” (p.178); às vezes sentia-se “fora do presente”, “seu espírito começou a balançar-se como o mar (...) começou a viver de novo”, e pensou:  “estou quase compreendendo”. De volta ao campo tenta enterrar  (a Letra e não o corpo) seu livro publicado aos pés do grande carvalho. Anoitece e a duodécima pancada da meia-noite soa. É quinta-feira “onze de outubro de 1928”, assim corpo e letra irmanam-se encerrando narrativa.



















Biografia
Em 1941, numa  manhã de sexta-feira, 28 de março, dia frio, Virginia escreveu duas cartas, atravessou os campos até o rio.  Deixou a bengala na margem, pôs uma grande pedra no bolso do casaco e  encaminhou-se para a morte; morreu assim,  aos 59 anos, jogando-se no Rio Ouse.Ela era da alta classe média inglesa e aprendeu a falar depois dos 3 anos. Aos 6 anos, falava bem e contava estórias deliciosas. Ainda jovenzinha, foi bolinada pelo meio-irmão George. Pode ter sido a causa de sua permanente frigidez sexual. Em 1904, Virginia tenta se matar, pulando de uma janela, mas não consegue. A janela era baixa e ela se machucou muito pouco.
Em 1905, começam as noites de quinta-feira, no famoso bairro de Bloomsbury, com a presença de Saxon Sydney-Tuner, Leonard Woolf, Lytton Strachey (irmão do grande tradutor de Freud, James Strachey), Clive Bell e Desmond MacCarthy. Jack Pollock, E. M. Forster, Bertrand Russell e John Maynard Keynes também participavam da “farra” intelectual. Henry James, amigo do pai de Virginia, não gostou do grupo de Bloomsbury, que achava de baixo nível. Rebelde, o grupo usava roupas esdrúxulas e falava palavrão.
Em 1912, Leonard Woolf e Virginia se casam. Leonard se apaixonou por Virginia. Doce e perdidamente. A união com Leonard aumentou o seu equilíbrio emocional e a sua segurança como escritora. O curioso é que a família Stephen não avisou Leonard dos problemas de saúde de Virginia. Tudo indica que a família procurou esconder que Virginia era “meio louca” com medo que Leonard desistisse do casamento.
Virginia “considerava o sexo não tanto com horror, mas com incompreensão; havia em sua personalidade e em sua arte uma qualidade estranhamente etérea, e, quando as necessidades literárias a compeliam a considerar o prazer sexual, ela se afastava ou nos revelava algo tão distante de bolinas e empolgações quanto a chama de uma vela é distante de seu sebo”.
Virginia conclui “The Voyage Out” e o entrega à editora. Doente, pensa que a libertação (a cura) está no suicídio. Toma 6,5 gramas de veronal e quase morre. Virginia não se interessava muito por Freud. Mas Leonard achava que o conhecimento das ideias de Freud poderia ser útil no seu tratamento.
Junto com Leonard Woolf, Virginia foi dona da Hogarth Press, que editou grandes escritores e poetas, como Katherine Mansfield e T.S. Eliot, além do psicanalista Freud.
O manuscrito de “Ulysses”, de James Joyce, foi oferecido à editora de Virginia, que não pôde ou não quis publicá-lo. Quentin Bell tenta explicar: “Era uma obra que Virginia não podia rejeitar nem aceitar. O poder e a sutileza da obra eram evidentes o bastante para despertar a admiração dela e, sem dúvida, inveja. Parecia-lhe ter uma espécie de beleza, mas também um brilho rude, arguto, de sala de fumantes. Joyce usava instrumentos parecidos com os dela, e isso era doloroso, pois era como se a pena, sua própria pena, tivesse sido arrancada de suas mãos e alguém rabiscasse com ela. Mesmo assim foi perspicaz o bastante para ver que era algo digno de ser publicado; era claro, também, que estava absolutamente além da capacidade técnica da Hogarth Press. Para mim, era o lado mundano de Joyce que não agradava Virginia. Ao contrário de Joyce e de Proust, não sacava muito do lado “sujo” da vida.
O leitor pode ler mais sobre o assunto na admirável biografia de James Joyce escrita pelo americano Richard Ellmann. “Os Woolfs disseram-lhe (à emissária de Joyce) que não poderiam imprimir (‘Ulysses’) porque levaria dois anos na sua impressora manual, embora dissessem que estavam muito interessados nos quatro primeiros episódios que leram. Na verdade parecem tê-lo considerado ‘vulgar’, embora Katherine Mansfield, que deu uma olhada no manuscrito certo dia enquanto os visitara, tenha começado ridicularizando-o e depois de repente tenha dito: ‘Mas há qualquer coisa nisso: uma cena que deveria figurar, suponho, na história da literatura’.”
A história de Virginia Woolf escritora é tão interessante como a de Virginia Woolf editora. T.S. Eliot foi amigo de Virginia e a Hogarth Press editou seus primeiros poemas e o mais famoso, “A Terra Estéril”. Virginia tentou tirar T.S. Eliot do emprego em um banco. Mas não conseguiu. Mais tarde, ficou irada porque Eliot se tornou editor de uma casa rival, The Criterion.
Em 1919, Virginia publica “Noite e Dia”. A crítica não gostou. E.M. Forster (1879-1970) e Katherine Mansfield (1888-1923) odiaram. Mas Forster, amigo, foi elegante e discreto. Disse que o livro não era melhor que “The Voyage Out”. (Forster mais tarde ficou chateado com algumas críticas ferinas de Virginia.) Mansfield foi dura: “Noite e Dia” era “uma mentira da alma. Falando sobre esnobismo intelectual — o livro dela fede a isso. (Mas não posso dizê-lo.) É muito longo e cansativo”. Virginia, que não sabia assimilar criticas, ficou abalada.
Entre 1925 e 1928, Virginia lança “Passeio ao Farol” e concebe “As Ondas”. Nesse período ela conhece Vita, a sua grande paixão. Vita era lésbica, mas casada, como Virginia. Quentin Bell é discreto e diz pouco sobre o assunto. Tudo indica que as duas não chegaram a ter um caso no sentido moderníssimo. Vita escreveu para Virginia: Você gosta mais das pessoas pelo cérebro do que pelo coração. Fosse hoje, o texto de Vita teria acréscimo: Você gosta mais das pessoas pelo cérebro do que pelo coração e pelo corpo.
Na verdade, Virginia era de uma carência extremada e todo mundo que lhe dava atenção recebia alguma esperança, de sexo ou afeto. Só que, afeto, tudo bem, sexo, nada. Pelo menos, a se acreditar na versão do sobrinho.
Quem leu “Orlando” sabe que Vita é Orlando. Para Quentin Bell, Orlando é o único dos romances de Virginia que se aproxima da emoção sexual, ou antes, homossexual; pois, enquanto o herói/heroína sofre uma transformação física, sendo no começo um esplêndido jovem e depois uma linda dama, a metamorfose psicológica é muito menos completa. O livro vendeu bem. Mas Orlando, sabia Virginia, não era um grande livro. Julgamento que os leitores de hoje não partilham, sobretudo por que as questões sexuais se tornaram mais importantes, na avaliação do romance, do que as literárias.
Virginia não gostava da crítica acadêmica, que achava estéril. Talvez fosse uma vingança por não ter obtido educação universitária. Talvez fosse pela percepção de que, como denuncia Gore Vidal, muitos teóricos da literatura querem substituir a literatura pela teoria literária.
Na década de 30, alguns críticos atacam Virginia, deixando-a desequilibrada emocionalmente. O mais virulento, Wyndham Lewis, escreve: Ela é sobremodo insignificante. Ninguém mais a leva a sério. Os críticos de esquerda não atacavam Virginia. Stephen Spender e Cecil Day-Lewis (pai de Daniel Day-Lewis, ator de “A Insustentável Leveza do Ser” e “Meu Pé Esquerdo”) gostavam de sua obra.
Em 1937, Virgínia pública “Os Anos” e sente a loucura chegando. Leonard achou o livro ruim, mas ficou calado, ou melhor, temendo que Virginia se matasse, mentiu: Acho que é extraordinariamente bom. Virginia sabia que o livro era ruim. O economista Keynes gostou do livro, de forma irrestrita. Em 1939, Virginia foi ver Freud, que estava exilado em Londres. Ele teria impressionado Virginia como um homem alerta. Mas torto encarquilhado muito velho e a velha chama agora bruxuleante. Freud disse a Virginia e Leonard que seria necessária uma geração para eliminar aquele veneno [o nazismo de Hitler].
Por causa da Segunda Guerra Mundial, Leonard e Virginia Woolf chegaram a pensar em suicídio. Obtiveram até uma dose letal de morfina. Mas, com Londres bombardeada, Virginia deixou de falar em suicídio. Numa carta a Ethel Smyth, escreveu: … o que tocou e na verdade feriu o meu coração em Londres [durante os bombardeios dos nazistas] foi aquela velha mulher, suja de fuligem nos aposentos dos fundos, preparando-se, depois de um ataque aéreo, para enfrentar o próximo… E também a paixão da minha vida, a cidade de Londres — ver Londres em escombros, isso também atingiu meu coração.
No início de 1941, Virginia estava desesperada, louca. Mesmo assim tentou convencer a médica Octavia Wilberforce, uma amiga, de que não estava doente mentalmente. Mas confessou partes de seus medos. Medos de que o passado voltaria, de que nunca mais conseguiria escrever.
É triste e pungente como Quentin Bell fala do fim de sua tia escritora: Na manhã de sexta-feira, 28 de março, um dia claro, luminoso e frio, Virginia foi como de costume ao seu estúdio no jardim. Lá, escreveu duas cartas, uma para Leonard e outra para Vanessa — as duas pessoas que mais amava. Nas duas cartas explicava que vinha ouvindo vozes e acreditava que nunca mais ficaria boa; não podia continuar estragando a vida de Leonard. Ela colocou o bilhete sobre a lareira da sala de estar, e cerca de 11h30 esgueirou-se para fora, levando sua bengala de passeio; e atravessou os prados até o rio. Leonard acreditava que ela já havia feito uma tentativa para se afogar: assim, teria aprendido com o fracasso, e estava decidida a não falhar de novo. Deixando a bengala na margem, ela esforçou-se para pôr uma grande pedra no bolso do casaco. Depois encaminhou-se para a morte, ‘a única experiência’, dissera um dia a Vita, ‘que nunca descreverei’.










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