(TRECHO
DA PALESTRA CONFERIDA POR MOISÉS NETO)
Em Orlando (1928), livro de Virginia
Woolf (1882-1941), que passamos agora a analisar, há traços realistas,
mas ali se atinge principalmente os limites da consciência humana que tanto
atormentaram a autora e temos uma
complicada para quem se apega à própria imagem; o destaque fica para a
questão da androginia, da vida em si e
seu significado, a arte da poesia o e , claro, o amor.
Eis parte da
obra de Virgínia Woolf: nove romances, mais de vinte cadernos de diários, sete
volumes de ensaio, duas biografias e muitas cartas. Para esse estudo utilizamos a tradução de Cecília Meireles (Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1978).
Há mais
esteticismo do que erotismo. Elabora a noção de gênero mais forte que a de
sexo. Numa Ode à Literatura o texto retrabalha as noções de tempo e ação. Há
que se destacar o olhar contemplativo que o narrador compartilha com Orlando e
isso se dá em cada Sema (unidade mínima de significado). Poesia, enquanto
metáfora levando o leitor à epifania é o que temos a cada página, praticamente.
A narrativa posiciona-se bem além do posição positivismo e o que se tem nas
linhas e entrelinhas é a descontinuidade
da “história” refletida num enredo. A técnica da narrativa é o ponto de
vista de Orlando e a Literatura surge como um ritual, um espetáculo, simulando
uma “biografia”.
É o ser
humano bom, belo, corajoso; lembremo-nos que a Woolf padecia de amor obsessivo, que idealizava alguém como
Orlando: leal, forte, mas cheio de inocência
e pureza. Já afirmaram, com certa razão que ela inspirou-se em Vita
Sackville-West. Há um questionamento do papel das mulheres na arte e no social
como um todo. Haveria mesmo a igualdade entre sexos ou o que as mulheres querem
é uma superioridade? Orlando é mulher, mãe, inteligente e consegue
a felicidade no final do livro.
Orlando
também foi um nobre e belo rapaz. Teve
uma decepção amorosa com Sasha, uma princesa russa que o conquistou e partiu, a
traição do poeta admirado que zombou dele num poema (satírico) e pelo fato de
acreditar em felicidade só com a Natureza e a poesia.
Para alguns
críticos, Orlando seria o único dos romances de Woolf que se aproximaria da emoção sexual, ou melhor
ainda, da homossexual; pois, enquanto o personagem passa por uma transformação
física, antes um belo jovem e depois uma bela dama, a metamorfose psicológica é
bem menos completa.
As invenções estilísticas e os recursos narrativos
utilizados (pontuação, repetição de termos etc.) enquanto marcadores do texto e
do fluxo mental dos personagens estão numa linguagem simples, para tornar
palavra o discurso mental de Orlando. Mas há, sobretudo, uma espécie de
transcendência que se dá em efusão lírica onde o corpo é usado como combustível
que põe em ação uma máquina poética de alto potencial.
O intimismo,
o mergulho na consciência, escrita refinada, o ritmo peculiar woolfiano, nos
lembram as epifanias de Clarice Lispector, mas num nível diverso. Woolf dizia
que o livro era uma espécie de anedota, mas não descartou tratar-se de carta de
amor, onde o feminismo estaria numa das dobras em meio ao fantástico das suas
intenções; não podemos esquecer a questão do humor aí embutido e mesclado (por que não dizer?) à poesia, num
clima de vanguarda que põe em refinado cadinho o gênero da biografia e do
romance. O fenômeno da criação humana é aqui também
sublimação diante da pulsão, a encher o lugar vazio do sujeito da enunciação,
transformando o sexual pelo não sexual, ajudando o sujeito no combate à pulsão
de morte aí então corpo e letra unem-se numa improvável busca de sublimação,
diante de imagens e formas
traçadas à semelhança de um eu inconscientemente narcísico.
Orlando é
alegoricamente um imortal, desde nobre a serviço do seu país, num determinado
panorama histórico, mas também vai poder ser vários e viver outra vida.
Flagramos
Orlando pela primeira vez no final dos mil e quinhentos a cortar cabeças
mumificadas de mouros trazidos por parentes deles de várias “conquistas”.
Estamos na Inglaterra e sabemos logo da sua beleza e sensibilidade. Corpo e Letra já se
confundem. O belo jovem é também poeta e está a escrever um poema chamado O Carvalho. Muito luxo e riqueza o
envolvem. A rainha “Bess” (Elizabeth I) é descrita assim: “mão cheia de anéis
(...) fina (...) dedos longos sempre arqueados (...) nervosa, frenética, mórbida
mão (...) ligada a um velho corpo que recendia como um armário onde há peles
conservadas em cânfora” (p. 12). A ideia que se passa do poeta é a do “homem
que não nos vê, que está vendo ogros, sátiros ou talvez o fundo do mar” (p.12).
A tradução de Cecília acentua ainda mais a Letra, representando o espírito, em
relação ao corpo do juízo e da razão num devaneio que atravessa séculos. Da
rainha Elizabeth I vai-se direto à coroação do rei Jaime, uma festa
carnavalesca misturando classes e gêneros rodeados por humor e esplendor
poético (p.23). A figura da princesa
russa Sacha (a “flor do perigo crescendo numa fresta” -p.22) com olhos que
parecem “pescados no fundo do mar” (p.21) encanta-nos num passeio de patins
sobre o congelado rio Tâmisa, em êxtase e intimidade com nosso herói que causou
escândalo à época. Orlando desfaz um noivado para entregar-se a esse seu amor. “seus outros amores (...) comparados
àquele, tinham sido de pau, estopa e cinzas (...) [mas] entre a felicidade e a
melancolia não medeia mais espessura que a de uma lâmina de uma faca” (p.25). Em
Sacha algo parecia escondido, como uma chama parece oculta numa esmeralda, “ou
o sol aprisionado numa colina” (p.26). O que não é inglês é visto como exótico
(Orientalismo nos moldes de Edward
Said?), num determinado trecho chega-se a falar da “sociedade dos macacos nos
trópicos” (p.101). Os russos são descritos como seres que partiam carne com as
mãos, as russas usariam barbas e eles viveriam em “cabanas” (p.27). Londres é
mostrada em sua “assombrosa beleza contra as nuvens do ocaso” (p.29). Sacha e
Orlando planejam uma fuga (ideia dele) e no meio do caminho assistem a trecho
de “Otelo”: “um negro sacudia os braços e vociferava (...) acho que deveria
haver um eclipse do sol e da lua e que o mundo assustado deveria bocejar”
(p.32). No final do primeiro dos seis
longos capítulos da obra, Orlando é abandonado por Sacha e conclui seu idílio
em meio a uma das mais belas alegorias da história da literatura (o
descongelamento do Tâmisa após uma madrugada chuvosa e um amanhecer
apocalíptico). Virginia expressa o sexo não tanto com
indiferença, mas com certa incompreensão; detecta-se em sua personalidade
e em sua arte uma representação, diga-se assim, etérea, parece
mais amar o cérebro que o corpo do outro.
No capítulo
2 Orlando dorme sete dias seguidos (isso acontecerá duas vezes , na segunda
haverá o fenômeno da mudança de sexo). Sobre isso o narrador expressa: é
“sombrio, misterioso e indocumentado” (p.37): “de que natureza são os sonos
assim? (...) devemos receber diariamente a morte em pequenas doses, para
podermos prosseguir na empresa da vida? (...) teria Orlando ressuscitado?” (p.39).
Na grande solidão do artista entre os ossos dos antepassados, os fantasmas da
sua mansão imensa, seus livros, a paixão pela literatura o dilacera, esse
projeto de transformar corpo em Letras, onde “nem todo o ouro do Peru pode
pagar o tesouro de uma frase bem torneada (...) passar pelas portas da morte e
conhecer o inferno” (p.43). A poesia, essa feiticeira, a ânsia de glória, essa
rameira, de mãos dadas faziam no coração de Orlando o “terreiro das suas
danças” (p.46). ele sentia-se mais um escritor do que um aristocrata, “a lutar
com a língua inglesa”. É ridicularizado pelo crítico Nicholas Greene e queima
todos os seus escritos em holocausto pessoal, menos o poema O Carvalho, que poderá ser sua expressão
maior.
Permeia o
livro a reflexão sobre o tempo, a passagem das horas e como ela é relativa, o
“extraordinário desacordo entre o tempo do relógio e o tempo do espírito” (p.55),
que é mais desconhecido e deveria ser melhor estudado. “Um segundo pode ser
dilatado até doze vezes seu tamanho natural” e Orlando “coloria-o com mil cores
e enchia-o com todos os resíduos do universo” (p.56). Os 365 dormitórios do palácio de Orlando ele
os ocupa com hóspedes certa vez (p.61). Mas nada preenche seu vazio: “ o amor
tem duas faces: uma branca outra negra; dois corpos: um liso outro peludo (...)
impossível separá-los (...) [é] um abutre (...) ave-do-paraíso” (p.64); assim
decide partir para a Turquia a serviço do governo inglês e naquele ácido e
penetrante cheiro das ruas de lá, ele é obrigado a conviver com a hipocrisia
das relações diplomáticas, a que atende com tanto sucesso que é condecorado
duque inglês em Constantinopla. Há um golpe e ele, depois de um affair com uma dançarina, adormece por
mais sete dias e acorda mulher no terceiro capítulo, vai viver com os ciganos,
ser pastor, mas esses se acham mais nobres que os ingleses, pois são milenares
enquanto o povo de Orlando não passava de “noveau riche” (apenas alguns séculos
de tradição familiar). Logo percebem a falha de Orlando que eles não podem
perdoar (é nociva aos ciganos): ele é contemplativo, metafórico por demais.
Pensam em matá-lo, nesse meio tempo Orlando, sem papel nem tinta continua a
escrever o poema O Carvalho,
utilizando pequenos espaços no papel e usando vinho e suco de cerejas esmagadas
como tinta. Orlando conclui com o narrador: “nenhuma paixão é mais forte, no
peito humano, que o desejo de impor aos demais a própria crença” (p.83)
De volta a
Inglaterra, agora mulher, Orlando luta para recuperar o que lhe era de direito
e logo percebe vantagens e desvantagens da condição feminina, suas belas pernas
continuam as mesmas, mas agora os homens enlouquecem só de ver seus tornozelos.
Virginia mostra o homem dentro do corpo
de mulher: “como somos loucas!”, “”graças a Deus sou mulher!”, “o choro assenta
bem nas mulheres”(p.88-92). Historicamente essa parte do livro é a época do
grande incêndio e da peste em Londres e ela admira o trabalho do arquiteto
Christopher Wren. Os empregados estranham à primeira vista; “Milord... Milady”
(p.94), mas no geral todos desconfiavam de algo (andrógino?) que a justiça
selaria oficialmente: mulher. Nem a mudança de sexo nem a passagem do tempo são
empecilhos a uma narrativa que se estrutura liricamente na visão introspectiva.
Orlando
também não tinha nenhum “comércio” com o
“Deus habitual”, tem “fé própria” e reflete sobre seus “pecados” e
“imperfeições”, pois, e aí vem mais um aforismo do livro, “uma simples canção
de Shakespeare tem feito mais pelos
pobres e malvados que todos os pregadores e filantropos do mundo” (p.96).
Corpo e
letra? Nuances entre os gêneros, fusão de corpo e espírito, reflexo da
literatura de um país e seus escritores, tendo a passagem dos séculos como pano
de fundo. Refletido, o corpo de Orlando no espelho vira poesia: “tudo em redor
do espelho eram campos nevados, tudo em redor era como fogo e ela era como
fogo, uma sarça ardente (...) o espelho era uma água verde e ela era uma sereia
recamada de pérolas, uma sereia numa gruta” (p.63).
Damos
destaque também para a metalinguagem na narrativa, por exemplo: “ como o leitor
pode verificar lançando os olhos à pág. 71-73” (p. 104). Também merece destaque
a questão das roupas: “às vezes só as roupas conservam a aparência masculina ou
feminina, quando interiormente o sexo está em completa oposição” (p.105).
Orlando se atrapalha um pouco com os trajes femininos no início da sua transformação. Quanto ao humor em
Virginia: “esse negro humor que corre nas veias de toda sua raça” (p.108) é
intrincado e busca as entrelinhas, numa espécie de crítica amarga, muitas vezes
sutil, por exemplo: “a vida é um sonho e
o despertar nos mata” (p.113).
As menções
dos relacionamentos de Orlando com escritores da época como Pope e Swift
resultam em debates em torno da criação literária, por exemplo: “a parte mais
importante do estilo, que é o curso natural da voz ao falar” (p. 118).
Estampa-se
em várias passagens o preconceito da sociedade inglesa do momento em relação à
mulher: “mulheres são apenas crianças grandes... um homem inteligente apenas se
diverte com elas , agrada-as e adula-as” (p.119), o tom é meio caricato em
frase assim pinçada de chofre, mas o livro está repleto delas mixadas ao discurso
de Orlando que “olhava, sentia, falava como homem,
embora tenha sido ela mesma mulher tão tarde” (p.121); e ele pergunta:
mulheres? Sempre “tagarelando” para “distrair seus amantes” (p.121). Se elas
têm liberdade? “psiu!”, só se tiverem “cuidado de verificar se as portas estão
fechadas e nenhuma de suas palavras vai ser impressa” (p.122); a visão é
caótica e ambígua? Nem tanto. Orlando mudava de sexo muito mais frequentemente
do que podem imaginar os que só usavam uma espécie de roupa” (p.123), isso numa
época em que se acabava o século XVIII e
iniciava-se o século XIX (fim do capítulo quatro).
Uma grande
nuvem cobre as Ilhas Britânicas e tudo fica úmido, fechado, escuro no século
XIX: a Era Vitoriana prenuncia-se; da
metáfora da umidade que a tudo estraga (p.127) surge o nascimento do Império Britânico (p.128), o que se dá
na narrativa junto a páginas de alegorias, enumeração caótica, stream of consciousness, passagens
delirantes (p.129-131), o espírito da época sopra sua face e Orlando continua
trabalhando seu poema (desde 1586), nesse tempo ele foi melancólico, enamorado
da morte, amoroso, exuberante, animado e satírico, mas ficado
“fundamentalmente” a “mesma” (amor pelos animais, natureza, o campo, as
estações) conforme constatamos (p.132). Eis alguns dos versos que ela chama insípidos
versos:”sou apenas um elo desprezível/
na cadeia da vida fatigada/ mas pronunciei palavras sacrossantas/ ah, não digas que não valeram nada!” (p.133)
O que é a
inspiração ou mesmo a poesia para Orlando? “sentiu-se percorrida por um estanho
tinido e uma vibração como se fora feita de milhares de arames sobre os quais a
brisa ou errantes dedos estivessem executando escalas”, eis como o corpo recebe
as letras.
Há
brincadeiras sobre a simbologia dos anéis de ouro dos casados. E os dedos? “não
escrevemos só com os dedos, mas com a
pessoa inteira. O nervo que governa a pena enrola-se em cada fibra do nosso
ser, amarra-nos o coração, atravessa-nos o fígado” (p.136). A exigência
vitoriana de uma aliança de casamento também tomava todo o seu corpo, naquele
“antipático” (p.137) século XIX. “Devia
ser um consolo (sentia) apoiar-se, sentar-se, sim, deitar-se, nunca, nunca,
nunca mais se levantar” (p.137). Daí correr para a natureza e lá, abraçar-se
com a terra. Aí ela encontra, vindo a cavalo, seu amor e marido: Shelmerdine:
“és mulher, Shel”, “és homem, Orlando!” (eis o encontro dela com o casamento,
dias depois). Ele é aventureiro navegante, gera-lhe um filho e parte, ela
enfrenta o novo século, XX, fica-lhe dele o gosto de geleia de morango,
pastilhas de hortelã (p.141). O narrador deixa um pequeno espaço em branco para
que o leitor tire suas conclusões. Orlando conclui seu poema O carvalho e comenta-se a transação do
escritor com o espírito da época, que
deve ser de infinita delicadeza, pois dessa concordância depende a sorte das
suas obras (p.150), como está no último capítulo do romance, capítulo seis.
Na página
150, a editora de Virginia e Leonardo, a Hogarth Press, é mencionada metalinguisticamente
(“o dinheiro que ela cobra por esse livro”). E a s reflexões continuam: v”ida e
pensamento são como polos opostos”
(p. 150), vida nada tem a ver com ficar sentado numa cadeira, e mais uma vez,
sobre as mulheres, e o texto ironiza:
contanto que sejam “bilhetes”, ninguém se opõe que uma mulher escreva.
Orlando
reflete sobre invenções modernas junto a outros personagens do romance tão
imortais quanto ele; fala também de
críticos “a soldo de livreiros” (p.156). Greene, crítico que o arrasara
trezentos anos antes, resurge e lendo O carvalho, vê ali genialidade, publica o
poema de Orlando e consegue boas críticas (p.157).
“Vida?
Literatura?” Corpo e letra? Converter uma coisa na outra? “Mas que monstruosa
dificuldade!” (p.160). “Crítico? (...) vá tudo para o inferno!”, diz Orlando
(p.161), esse burguês fidalgo intelectual em corpo de mulher.
Ela deu à
luz um menino, numa terça-feira 20 de março, às três da madrugada (p.166), essa
é a única menção à criança. Vem a invenção da luz elétrica e como ela afetou as
pessoas. O século XX também tornou difícil chorar (p.167). “Pois que revelação
mais terrível que a de sentir que este é o momento presente? Se sobrevivemos ao
choque, é apenas porque o passado nos ampara de um lado e o futuro do outro
(...) a verdadeira substância da vida agora é mágica (...) estou mortalmente
cansada desse eu. Preciso de outro”. (p.168-173); mas o eu que Orlando
necessitava pode não vir, os eus para
o narrador são como pratos empilhados na mão do copeiro, têm predileções e
simpatias e têm certas predileções: dia
de chuva, quarto com cortinas verdes, “se a Sra. Jones não estiver lá”, se
tiver um bom copo de vinho etc. “o eu verdadeiro, é, dizem, a concentração de
todos os outros que possam existir em nós, comandados e aprisionados pelo
eu-capitão, o eu-chave que a todos controla. Orlando estava procurando decerto
esse eu” (p.174). Ele estava com trinta e seis anos e o romance aproxima-se do
final. A diegese vai misturando épocas convulsivamente. Elevadores, automóveis,
Londres... o campo... era como se o espírito de Orlando tivesse se transformado
em líquido, “ela não acreditava em nenhuma imortalidade, não poderia deixar de
sentir que sua alma estaria para sempre indo e vindo” (p.178); às vezes
sentia-se “fora do presente”, “seu espírito começou a balançar-se como o mar (...)
começou a viver de novo”, e pensou:
“estou quase compreendendo”. De volta ao campo tenta enterrar (a Letra
e não o corpo) seu livro publicado aos pés do grande carvalho. Anoitece e a
duodécima pancada da meia-noite soa. É quinta-feira “onze de outubro de 1928”,
assim corpo e letra irmanam-se encerrando narrativa.
Biografia
Em 1941,
numa manhã de sexta-feira, 28 de março,
dia frio, Virginia escreveu duas cartas, atravessou os campos até o rio.
Deixou a bengala na margem, pôs uma grande pedra no bolso do casaco
e encaminhou-se para a morte;
morreu assim, aos 59 anos, jogando-se no
Rio Ouse.Ela era da alta classe média inglesa e aprendeu a
falar depois dos 3 anos. Aos 6 anos, falava bem e contava estórias deliciosas.
Ainda jovenzinha, foi bolinada pelo meio-irmão George. Pode ter sido a causa de
sua permanente frigidez sexual. Em 1904, Virginia tenta se matar, pulando de
uma janela, mas não consegue. A janela era baixa e ela se machucou muito pouco.
Em 1905, começam as noites de quinta-feira, no famoso bairro de
Bloomsbury, com a presença de Saxon Sydney-Tuner, Leonard Woolf, Lytton
Strachey (irmão do grande tradutor de Freud, James Strachey), Clive Bell e
Desmond MacCarthy. Jack Pollock, E. M. Forster, Bertrand Russell e John Maynard
Keynes também participavam da “farra” intelectual. Henry James, amigo do pai de
Virginia, não gostou do grupo de Bloomsbury, que achava de baixo nível.
Rebelde, o grupo usava roupas esdrúxulas e falava palavrão.
Em 1912, Leonard Woolf e Virginia se casam. Leonard se apaixonou por
Virginia. Doce e perdidamente. A união com Leonard aumentou o seu equilíbrio
emocional e a sua segurança como escritora. O curioso é que a família Stephen
não avisou Leonard dos problemas de saúde de Virginia. Tudo indica que a família
procurou esconder que Virginia era “meio louca” com medo que Leonard desistisse
do casamento.
Virginia “considerava o sexo não tanto
com horror, mas com incompreensão; havia em sua personalidade e em sua arte uma
qualidade estranhamente etérea, e, quando as necessidades literárias a
compeliam a considerar o prazer sexual, ela se afastava ou nos revelava algo
tão distante de bolinas e empolgações quanto a chama de uma vela é distante de
seu sebo”.
Virginia conclui “The Voyage Out” e o entrega à editora. Doente, pensa
que a libertação (a cura) está no suicídio. Toma 6,5 gramas de veronal e quase
morre. Virginia não se interessava muito por Freud. Mas Leonard achava que o
conhecimento das ideias de Freud poderia ser útil no seu tratamento.
Junto com Leonard Woolf, Virginia foi dona da Hogarth Press, que editou
grandes escritores e poetas, como Katherine Mansfield e T.S. Eliot, além do
psicanalista Freud.
O
manuscrito de “Ulysses”, de James Joyce, foi oferecido à editora de Virginia,
que não pôde ou não quis publicá-lo. Quentin Bell tenta explicar: “Era uma obra
que Virginia não podia rejeitar nem aceitar. O poder e a sutileza da obra eram
evidentes o bastante para despertar a admiração dela e, sem dúvida, inveja.
Parecia-lhe ter uma espécie de beleza, mas também um brilho rude, arguto, de
sala de fumantes. Joyce usava instrumentos parecidos com os dela, e isso era
doloroso, pois era como se a pena, sua própria pena, tivesse sido arrancada de
suas mãos e alguém rabiscasse com ela. Mesmo assim foi
perspicaz o bastante para ver que era algo digno de ser publicado; era claro,
também, que estava absolutamente além da capacidade técnica da Hogarth Press.
Para mim, era o lado mundano de Joyce que não agradava Virginia. Ao contrário
de Joyce e de Proust, não sacava muito do lado “sujo” da vida.
O leitor pode ler mais sobre o assunto na admirável biografia de James
Joyce escrita pelo americano Richard Ellmann. “Os Woolfs disseram-lhe (à
emissária de Joyce) que não poderiam imprimir (‘Ulysses’) porque levaria dois anos
na sua impressora manual, embora dissessem que estavam muito interessados nos
quatro primeiros episódios que leram. Na verdade parecem tê-lo considerado
‘vulgar’, embora Katherine Mansfield, que deu uma olhada no manuscrito certo
dia enquanto os visitara, tenha começado ridicularizando-o e depois de repente
tenha dito: ‘Mas há qualquer coisa nisso: uma cena que deveria figurar,
suponho, na história da literatura’.”
A história de Virginia Woolf escritora é tão interessante como a de
Virginia Woolf editora. T.S. Eliot foi amigo de Virginia e a Hogarth Press
editou seus primeiros poemas e o mais famoso, “A Terra Estéril”. Virginia
tentou tirar T.S. Eliot do emprego em um banco. Mas não conseguiu. Mais tarde,
ficou irada porque Eliot se tornou editor de uma casa rival, The Criterion.
Em 1919, Virginia publica “Noite e Dia”. A crítica não gostou. E.M.
Forster (1879-1970) e Katherine Mansfield (1888-1923) odiaram. Mas Forster,
amigo, foi elegante e discreto. Disse que o livro não era melhor que “The
Voyage Out”. (Forster mais tarde ficou chateado com algumas críticas ferinas de
Virginia.) Mansfield foi dura: “Noite e Dia” era “uma mentira da alma. Falando
sobre esnobismo intelectual — o livro dela fede a isso. (Mas não posso
dizê-lo.) É muito longo e cansativo”. Virginia, que não sabia assimilar
criticas, ficou abalada.
Entre 1925 e 1928, Virginia lança “Passeio ao Farol” e concebe “As
Ondas”. Nesse período ela conhece Vita, a sua grande paixão. Vita era lésbica,
mas casada, como Virginia. Quentin Bell é discreto e diz pouco sobre o assunto.
Tudo indica que as duas não chegaram a ter um caso no sentido moderníssimo.
Vita escreveu para Virginia: Você gosta mais das pessoas pelo cérebro do que
pelo coração. Fosse hoje, o texto de Vita teria acréscimo: Você gosta mais das
pessoas pelo cérebro do que pelo coração e pelo corpo.
Na verdade, Virginia era de uma carência extremada e todo mundo que lhe
dava atenção recebia alguma esperança, de sexo ou afeto. Só que, afeto, tudo
bem, sexo, nada. Pelo menos, a se acreditar na versão do sobrinho.
Quem leu “Orlando” sabe que Vita é Orlando. Para Quentin Bell, Orlando
é o único dos romances de Virginia que se aproxima da emoção sexual, ou antes,
homossexual; pois, enquanto o herói/heroína sofre uma transformação física,
sendo no começo um esplêndido jovem e depois uma linda dama, a metamorfose
psicológica é muito menos completa. O livro vendeu bem. Mas Orlando, sabia
Virginia, não era um grande livro. Julgamento que os leitores de hoje não
partilham, sobretudo por que as questões sexuais se tornaram mais importantes,
na avaliação do romance, do que as literárias.
Virginia não gostava da crítica acadêmica, que achava estéril. Talvez
fosse uma vingança por não ter obtido educação universitária. Talvez fosse pela
percepção de que, como denuncia Gore Vidal, muitos teóricos da literatura
querem substituir a literatura pela teoria literária.
Na década de 30, alguns críticos atacam Virginia, deixando-a
desequilibrada emocionalmente. O mais virulento, Wyndham Lewis, escreve: Ela é
sobremodo insignificante. Ninguém mais a leva a sério. Os críticos de esquerda
não atacavam Virginia. Stephen Spender e Cecil Day-Lewis (pai de Daniel
Day-Lewis, ator de “A Insustentável Leveza do Ser” e “Meu Pé Esquerdo”)
gostavam de sua obra.
Em 1937, Virgínia pública “Os Anos” e sente a loucura chegando. Leonard
achou o livro ruim, mas ficou calado, ou melhor, temendo que Virginia se
matasse, mentiu: Acho que é extraordinariamente bom. Virginia sabia que o livro
era ruim. O economista Keynes gostou do livro, de forma irrestrita. Em 1939,
Virginia foi ver Freud, que estava exilado em Londres. Ele teria impressionado
Virginia como um homem alerta. Mas torto encarquilhado muito velho e a velha
chama agora bruxuleante. Freud disse a Virginia e Leonard que seria necessária
uma geração para eliminar aquele veneno [o nazismo de Hitler].
Por causa da Segunda Guerra Mundial, Leonard e Virginia Woolf chegaram a
pensar em suicídio. Obtiveram até uma dose letal de morfina. Mas, com Londres
bombardeada, Virginia deixou de falar em suicídio. Numa carta a Ethel Smyth,
escreveu: … o que tocou e na verdade feriu o meu coração em Londres [durante os
bombardeios dos nazistas] foi aquela velha mulher, suja de fuligem nos
aposentos dos fundos, preparando-se, depois de um ataque aéreo, para enfrentar
o próximo… E também a paixão da minha vida, a cidade de Londres — ver Londres
em escombros, isso também atingiu meu coração.
No início de 1941, Virginia estava desesperada, louca. Mesmo assim
tentou convencer a médica Octavia Wilberforce, uma amiga, de que não estava
doente mentalmente. Mas confessou partes de seus medos. Medos de que o passado
voltaria, de que nunca mais conseguiria escrever.
É triste e pungente como Quentin Bell fala do fim de sua tia escritora:
Na manhã de sexta-feira, 28 de março, um dia claro, luminoso e frio, Virginia
foi como de costume ao seu estúdio no jardim. Lá, escreveu duas cartas, uma
para Leonard e outra para Vanessa — as duas pessoas que mais amava. Nas duas
cartas explicava que vinha ouvindo vozes e acreditava que nunca mais ficaria
boa; não podia continuar estragando a vida de Leonard. Ela colocou o bilhete
sobre a lareira da sala de estar, e cerca de 11h30 esgueirou-se para fora,
levando sua bengala de passeio; e atravessou os prados até o rio. Leonard acreditava
que ela já havia feito uma tentativa para se afogar: assim, teria aprendido com
o fracasso, e estava decidida a não falhar de novo. Deixando a bengala na
margem, ela esforçou-se para pôr uma grande pedra no bolso do casaco. Depois
encaminhou-se para a morte, ‘a única experiência’, dissera um dia a Vita, ‘que
nunca descreverei’.
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