Aliás: na França, até 1564, o ano novo
era celebrado de 25 de março a 1º de abril (origem desse dia como dia da
mentira). Na China: o Ano do Carneiro (o ano de
2015) só começará dia 19 de fevereiro. Na mística Índia: o ano-novo só em 21 de
Março. Em Isarael, o Rosh Hashana (hebraico), inicia-se em 13 de setembro. Na Arábia Saudita (1
Muharram) em 15 de outubro. E La Nave va...
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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
domingo, 28 de dezembro de 2014
É sexo em toda a parte no Recife: explodem as relações homoafetivas e o novo jeito de ser e amar
As complicadas relações de amor e sexo parecem finalmente terem sido intensificadas em toda a parte no Recife: explodem as relações homoafetivas e o novo jeito de ser e amar. travestis há menos, talvez porque essa batalha já tenha sido vencida; mas o que se vê é uma dessexualização erótica e ao mesmo tempo seca, intensa e firme.
Os abraços e beijos, mãos dadas e atitudes em tudo anunciam que cairá uma forte chuva por aqui.
A Selfie Generation articula-se como um carinhoso monstrinho.
Filmes nacionais refletem tendência de um novo tipo de família e de sociedade
A Selfie Generation articula-se como um carinhoso monstrinho.
Som da Rural e a ocupação do Recife: a nova fauna urbana apresenta suas armas...
É a ocupação do Recife: a nova fauna urbana apresenta suas armas...
Hoje na Pracinha do
Diário, na verdade Praça da
Independência, houve mais uma sessão de O SOM DA RURAL, projeto de Roger de
Renor que vem agitando o recife nos últimos tempos. Aliás, Recife em dois anos
transformou-se bruscamente em algo que nem a nova geração sabe explicar, muito
menos a anterior. Pois bem: hoje teve show de China e sua banda, El também
levou uma mesinha (com ajuda de um amigo) conseguiu vender 150 dos seus CDs, fato que ele
alardeou como algo extremamente positivo e que também justificaria a ocupação
de praças como aquele ali. No show o ex-
Sheik Tosado agitou os cabelos e o corpo franzino em performance notável. Houve
também apresentações do grupo LOUCOS E OPRIMIDOS DA MACIEL e muito mais. O
Recife Antigo também estava em ponto de bala (literalmente)
sábado, 27 de dezembro de 2014
Madonna finaliza CD
A estadunidense Madonna, no ar desde o início dos 80 vem ao Rio de Janeiro para romper ano aqui.
O Brasil já a recebeu outras vezes. Enquanto isso ela divulga músicas do seu novo álbum (das que "vazaram" no mês passado)
Acho que a pequena notável, American bomb shell, está planejando algo surpeendente. Ela não quer perder o posto e vai ter que arregaçar as mangas e descascar o abacaxi desse ano que promete!
Na foto acima ela estava divulgando o seu perfume...
E a leoa ruge!
O Brasil já a recebeu outras vezes. Enquanto isso ela divulga músicas do seu novo álbum (das que "vazaram" no mês passado)
Acho que a pequena notável, American bomb shell, está planejando algo surpeendente. Ela não quer perder o posto e vai ter que arregaçar as mangas e descascar o abacaxi desse ano que promete!
Na foto acima ela estava divulgando o seu perfume...
E a leoa ruge!
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
ESTILO
(Herberto
Helder)
- Se
eu quisesse enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita
coisa, contaram-me coisas extraordinárias, eu próprio... Enfim, às vezes já não
consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num
quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo
levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um
volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira,
está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito
depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é
um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental
de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a
desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três
tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual,
dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou
da Morte. Percebe? Uma dessas abstrações que servem para tudo. O cigarro
consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isso todas as
noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
-
Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
-
Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas,
homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor e receitou-me
barbitúricos.
-
Não preciso de remédios – disse eu, - Sei histórias tenebrosas acerca da vida.
De que me servem barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado
o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem
velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito
velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem
velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No
meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar
um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na
televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo se não quer dar em pantanas.
Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. – João
Sebastião Bach. Conhece o concerto Brandeburguês número 5? Conhece com certeza
essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema a três
equações a três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações.
Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às
quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes
sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se
faz nas pontas dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do
sangue com a sua voz obscura... Começo a fazer o meu estilo. Admirável
exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe come é? Pego
uma palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra
fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes.
Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. Veja agora esta artimanha:
As crianças enlouqueceram em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as
acolhe
enquanto
gritam e gritam.
(...)
- E nada mais temos do que o Poema onde as
crianças
se
distanciam loucamente.
Trata-se
do excerto de uma poesia. Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da
poesia? Tem o demoníaco júbilo da poesia?
Pois
veja, é também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.
Está
a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na eternidade?
Note: somos o Poema onde elas se distanciam. Como? Loucamente. Quem suportaria
esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo.
Perdão,
seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem que não
estou louco. :Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta
um estilo.
Sabe
do que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o
senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o
gênero. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimônia: não a
poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na
posse de um estilo. Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa
loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande
segredo da nossa humanidade?
Talvez
o senhor seja mais inteligente do que eu.
domingo, 21 de dezembro de 2014
Juan Guimarães: Por um Fio!
Assisti ao espetáculo de dança (solo) POR UM FIO!, no Espaco Experimental, Rua Tomazina, 199, Recife Antigo. É muito bom.
"POR UM FIO" traz o ser e sua existência a partir da sua concepção.
É um espetáculo sobre sentimentos, sonhos, perspectivas – reais ou não – e a fé naquilo que se crê.
O aborto e as polêmicas geradas a partir do tema surgem como iniciadores de um processo que vai muito além da consciência humana. Na cena, não há bandeiras a se levantar, mas questionamentos ao se... sentir. O fio que conduz o espectador é tão visível quanto o pensamento, tão intenso quanto o vazio e claramente pleno como a dúvida. Um novelo da vida que aborta em si mesmo sua própria existência.
É um espetáculo sobre sentimentos, sonhos, perspectivas – reais ou não – e a fé naquilo que se crê.
O aborto e as polêmicas geradas a partir do tema surgem como iniciadores de um processo que vai muito além da consciência humana. Na cena, não há bandeiras a se levantar, mas questionamentos ao se... sentir. O fio que conduz o espectador é tão visível quanto o pensamento, tão intenso quanto o vazio e claramente pleno como a dúvida. Um novelo da vida que aborta em si mesmo sua própria existência.
FICHA TÉCNICA
CRIAÇÃO E INTERPRETAÇÃO: Juan Guimarães
TRILHA SONORA ORIGINAL: Henrique Macedo
FIGURINO : Paulina Albuquerque
DESENHO DE LUZ: Martiniano Almeida
OPERAÇÃO DE LUZ: Mariana Cavalcante e Gabriela Lira
SONOPLASTIA: Tatyane Cardoso
COMUNICAÇÃO VISUAL: Juan Guimarães
FOTOGRAFIA: Thomas de Aquino Leal
REGISTRO AUDIOVISUAL: Paula Alencastro
REVISÃO TEXTUAL: Rafael Barros
ASSESSORIA DE IMPRENSA: RABIXCO - Comunicação e Produção Criativa
PRODUÇÃO: Juan Guimarães e Thomas de Aquino Leal
INFORMAÇÕES: www.juanguimaraes.com / 81 - 8832 7600
TRILHA SONORA ORIGINAL: Henrique Macedo
FIGURINO : Paulina Albuquerque
DESENHO DE LUZ: Martiniano Almeida
OPERAÇÃO DE LUZ: Mariana Cavalcante e Gabriela Lira
SONOPLASTIA: Tatyane Cardoso
COMUNICAÇÃO VISUAL: Juan Guimarães
FOTOGRAFIA: Thomas de Aquino Leal
REGISTRO AUDIOVISUAL: Paula Alencastro
REVISÃO TEXTUAL: Rafael Barros
ASSESSORIA DE IMPRENSA: RABIXCO - Comunicação e Produção Criativa
PRODUÇÃO: Juan Guimarães e Thomas de Aquino Leal
INFORMAÇÕES: www.juanguimaraes.com / 81 - 8832 7600
sábado, 20 de dezembro de 2014
Moisés reencontra Ramses
Moisés parece um cavaleiro das Cruzadas?
Não é fácil inovar uma história como essa; vi Ramsés II no Cairo (a múmia, é lógico), cabelos, dentes, nada mal para quem está com mais de 3 mil anos. Então Moisés reencontrou Ramsés no mesmo lugar de antes. Risos e sisos à parte.
Por que então os convido a assistir ao filme? Repito: é dirigido por um mestre. Ele deve ter pedido tantas mudanças no roteiro e pode ter sido "vítima" do que houve antes com o seu Blade runner, que a Warner, na primeira versão, a do cinema, introduziu um final feliz, com cena de O Iluminado, de Kubrik, se bem me lembro.
Tirando onda (1º brasileiro campeão mundial de surf)
Gabriel Medina 1º do Brasil a ser campeão mundial de surf (foi no Havaí, ah, meu tempo de surfista!). E daí? Brasileiro só vive tirando onda, mesmo. Brincadeira: prata da casa, ouro do mundo.
E viva Medina!
Peguei um trem no Recife: Museu na Estação Central reabre
A reabertura do Museu do Trem na Estação
Central (construída de 1850 a 1856), no bairro de São José, Recife, é motivo para celebração, numa época em que a lei é botar
abaixo em nome da ocupação urbana do solo, reabrir um centro cultural num
prédio histórico tão belo, é uma lufada de ar puro. Lembro quando eu pegava o
trem e ia a Sanharó, visitar o meu avô Moisés Monteiro de Melo, músico, poeta,
barbeiro, filho de um
latifundiário daquela bacia leiteira no interior de Pernambuco. Eu, que lia
aqueles romances russos, ingleses, franceses ou mesmo os nacionais que
envolviam personagens às voltas com trem, adorava aquele clima tenso das estações
ferroviárias. Quando depois tomei um trem em Paris que me levou a Londres,
confesso que uni as pontas do tempo. O nosso recifense Museu do Trem foi o
primeiro inaugurado no Brasil (1972).
Mas agora esse prédio da nossa antiga
Estação Central volta depois de quase uma década, a exibir um acervo
distribuído pelos dois pavimentos do prédio tem até escafandrista (capacete de
ferro, traje usado para execução de obras de engenharia dentro da água, como a
construção das pontes), aferidor de pressão, chaminé de caldeira, além de
sinos, relógio de ponto, balança, prataria dos vagões-restaurantes, faróis,
louça, ferramentas (pá de caldeira, imensas chaves de fenda e de boca), bancos
gerador a vapor e também placas.
Há uma sala chamada A Máquina, onde o visitante vê
e ouve como funcionava um trem movido a vapor, através de recursos diversos:
infográfico (exibindo os compartimentos de uma locomotiva etc.), vídeo,
fotografias. Já a sala didática, diz Aluizio Câmara, foi pensada para se
adaptar às necessidades do público.
Que tal assistir ali a um vídeo com
chegadas e partidas de trens acompanhado por músicas ligadas ao tema, ou dar
uma olhada na placa de sinalização das estradas de ferro (Pare, Olhe,
Escute...) tema até foto com o primeiro trem de passageiros partindo da saudosa
Estação de Cinco Pontas (bairro de São José, Recife) para o Cabo, em 9 de
fevereiro de 1858; tal viagem iniciou-se às 12h, com 400 pessoas. Ah, esse
trem! Na minha adolescência, eu morava em Boa Viagem e pegava este trem na
estação de Setubal, junto com os meus amigos, no sábado ao amanhecer para ir
passar o fim de semana em Gaibu, colônia de pescadores paradisíaca, paraíso dos
surfistas do Recife, eu era um deles. Íamos com as pranchas e mochilas, gaitas
e violões, eu sabia cantar umas músicas de Janis Joplin e o negócio era
animado, pegávamos uma estrada onde havia pastos em meio a uma paisagem
deslumbrante, velhas fazendas e casas antigas, povoados de sapé, era incrível.
Em Boa Viagem eu escutava o barulho do trem em dias de silêncio.
O Museu fica na Praça Barão de Mauá, perto
da Casa da Cultura, foi requalificado pela Fundarpe, está aberto de terça a
sexta-feira, das 9h às 17h, e aos sábados e domingos, das 10h às 17h.
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
CUBA SEJA AQUI
Achano boa a reaproximação de Cuba com os Estados Unidos? Vamos fazer um texto sobre isso. Quando estive na Ilha, em 2004, ela ainda estava sob o comando de fidel Castro e a era Bush estava a todo vapor. Os Republicanos não estão satisfeitos com as novas medidas, tão pouco alguns cubanos nos EUA.
Moisés Neto em Havana
Eis um texto que escrevi quando voltei:
Queridos colegas,
Acabo de chegar de Cuba
onde estive hospedado em Havana durante uma semana.
Conseguimos graças aos esforços
dos companheiros Marlos e Mousinho realizar um sonho que acalentávamos havia
tanto tempo que era participar um pouco da experiência cubana.
Através de Centro Gregório
Bezerra (Recife) conseguimos inclusive que o avião pousasse em Recife na escala
de volta(Empresa Cubana)
Bom: Visitamos as universidades onde brasileiros e
estudantes de outros países, inclusive EUA, recebem bolsas de estudos, tivemos
encontros com a Assembléia Nacional do
Poder Popular, fomos homenageados na Casa da Amizade do Instituto Cubano de
Amizade com os Povos (ICAP), nos encontramos com representantes do Comitê
Central do Partido Comunista de Cuba e
visitamos dentre outras coisas algumas cooperativas e tivemos contatos com
programas de assistência médica; com a federação das mulheres cubanas e com o
Comitê de Defesa da Revolução, um sistema que muito me impressionou.
Tenho assistido a filmes cubanos
como “Morango e Chocolate” e mais recentemente “Lista de Espera”, “Mel para
Oxum” (em cartaz agora em Havana) ESTÃO EM CARTAZ COM ELENCO LOCAL TAMBÉM , no
teatro, “A Ratoeira” de Agatha Christie(no El Sótano que fica na calle
K e/ 25 y 27, Vedado, onde também estão em cartaz peças infantis com textos
cubanos). Já no Gran Teatro de La
Habana (Prado y San José,Centro Habana)
na Sala García Lorca) o grupo Teatro Lírico Nacional está levando uma
montagem de Madame Butterfly com direção do maestro Giovanny Duarte. Também em
Vedado, um bairro de Havana temos outro espetáculo infantil o Juega sin Parar com Zulema Del Prado.
Fui a museu Casa de Hemingway, vi o iate Granma,
de onde Fidel desembarcou com outros revolucionários, a casa onde nasceu o
incomparável José Martí. Cuba e suas praias, mesmo no inverno me encantaram.
É um povo que tem pouco e divide
o que tem. São humanos e cheios de falhas como nós que vivemos no mundo
capitalista sob o signo ianque e europeu, mas depois de alguns mojitos e
da comida crioula, tendemos a escutar e
nos envolver com a música com o estupendo conjunto arquitetônico que compõe a
cidade, algo que se continuar a ser restaurado do jeito que está sendo vai
deixar muitas cidades belas do mundo para trás.
Passei um dia em Varadero
e pude gastar os escassos dólares que pude juntar com sacrifício. Os cubanos
estão azeitados pelo turismo, sua principal fonte de renda no momento. Há que
se conhecer Cuba: sua miséria e sua gloriosa Revolução. Tomar um sorvete na Copelia,
entrar em seus cinemas, conversar como eu fiz, com homens que estiveram sob as
ordens de Che Guevara, mito onipresente aonde se vá naquela ilha. Há que se
respirar aquela natureza estonteante. Há que se querer voltar a Havana. São 500
anos de história e lá estão: espanhóis, ingleses e norte-americanos: no
urbanismo, na organização.
Cuba, ilha em forma de jacaré,
ronda o mundo e persegue o Capitão Gancho bem de perto.
Viva a Revolução! Viva Cuba
livre!
Que bom que eu pude ver isto de
perto e gastando tão pouco. Ir a La Bodegita, ver o pôr-do-sol aos pés
da monumental estátua em mármore de Carrara, sobre toda Havana .
Obrigado Cuba, mesmo com os
apuros que os mais atrevidos que ousam entrar nos improvisados ônibus, chamados
camelos, ou nos cabarés e são ludibriados, mesmo com o monte de turistas
deslumbrados como num imenso parque temático a espalhar sua grana pela velha
cidade. Há no ar muita vibração e mistério.
Um abraço
Moises Neto
AGORA UMA CRÍTICA MINHA AO ROMANCE DE UM DOS ESCRITORES CUBANOS QUE ADMIRO:
“Não brinques comigo/que eu como fogo”, diz uma canção cubana. Sim, os personagens do livro O Rei de Havana (224 páginas, 32 reais, Ed. Cia das Letras, SP) do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez parecem inflamados por este mote. Segundo um depoimento do autor, ao seu povo só resta “rum, salsa e sexo”. Juan não é publicado em seu país por apresentar Cuba como um inferno miserável, como por exemplo, em sua primeira obra em prosa Trilogia Suja de Havana. Segundo nota da editora dele no Brasil, a Companhia das Letras, alguns dos seus leitores vêem no romance uma metáfora apaixonada da atual situação cubana, mas a literatura dele não é engajada e “passa longe de toda intenção política doutrinária”.
Pedro nasceu em Matanzas, Cuba, em 1950. Mora em Havana. Começou a trabalhar aos onze anos, como vendedor de sorvete e jornal. Foi soldado, instrutor de natação e caiaque, trabalhador rural, técnico em construção, desenhista técnico e locutor de rádio. Trabalhou como jornalista durante 26 anos. Dedica-se à escultura e à pintura e é autor de vários livros de poesia.
Reynaldo, o “Rei” do título, trocadilho com seu apelido “Rey” (rei em espanhol), é um adolescente de 13 anos que mora num quarto sujo com a mãe prostituta, com o irmão e com a avó, num subúrbio sujo de Havana em plena crise de 1994, passam fome e convivem com a miséria. Rey, de tanto repetir a mesma série, desiste de estudar. Vai aí já uma crítica de Gutiérrez a uma das mais proclamadas instituições do regime cubano: a escola. O narrador afirma que os professores trabalham com má vontade e que o sistema está podre.
Longe da igualdade socialista pregada pela propaganda castrista, o que jorram no texto são a miséria monocórdica e a denúncia do enriquecimento ilícito praticado por muitos. O foco do autor é o sexo, o sexo pervertido, diga-se de passagem.
É bem estranho para quem visitou a ilha como eu, junto com um grupo político, e conversou com os comitês de Defesa da Revolução e outros grupos ligados ao governo, e teve oportunidade de visitar museus e outras casas ligadas ao lazer e à cultura (ver matéria em anexo) se deparar com uma visão tão radical quanto esta do autor. É claro, que ficar em Havana por uma semana e desfrutar de alguns dólares não dá a ninguém o direito de dizer que conhece aquele lugar. Vi gente ser roubada, vi pessoas proibidas de ir à praia incomodar os turistas. Vi pedintes, garotos sendo treinados para enfrentar o império ianque, vi o cambalacho comercial praticado a torto e à direita. Mas principalmente Havana é um patrimônio dos cubanos e jamais eles teriam conseguido arranca-la das mãos dos americanos se não fosse porGuevara, Fidel e Camilo Cienfuegos, para citar somente três dos líderes da revolução que surpreendeu o mundo no dia 1º de janeiro de 1959.
Gutiérrez passa bem longe da cartilha dos companheiros. Devemos observar que a desgraça que ele expõe, de certa forma poderia acontecer em boa parte do mundo capitalista e não ter como cenário a esplendorosa Havana.
Mas vamos lá: é um texto bem perverso. No início da trama, com linguagem bem suja e apelativa, o narrador expõe o drama do seu anti-herói: Rey presencia o suicídio do irmão, sabe do repentino assassinato da mãe e vê a avó ter um ataque fulminante. É levado para um reformatório onde tentam sodomizá-lo e onde ele briga para sodomizar, disputando as bichas às tapas com outros detentos enquanto elas se divertem vendo os “bofes” disputarem-nas entre si. Lá Rey aprende a fazer tatuagem e rouba um alfinete de um detento, ganha assim a simpatia de um cara da enfermaria que o presenteia com uma cirurgia que introduz na sua glande duas pequenas esferas que dali em diante farão a alegria das pessoas que transam com ele na narrativa, o que inclui várias mulheres e homens. Ao fugir daquela instituição, que de educativa não exibe nada, Rey se depara com um mundo mais cão do que já enfrentara no seu “lar” miserável. Cocaína, rum, maconha, travestis, prostitutas, fome, doenças e muita, muita sujeira é o que o espera.: “Pra que a gente nasce? Pra morrer depois? Se não tem nada pra fazer, não entendo para que passar por todo esse trabalho. Viver, disputar com os outros para não foderem você, e no fim de tudo a merda. Ahh, tanto faz estar aqui fora como lá dentro” (p. 23), pensa quando foge do reformatório. Poderia isso ser o que pensa o autor da relação de Cuba com o resto do mundo? “ Ter filho pra quê?Aqui? Pra sofrer e passar fome os dois[...] se algum dia tiver filho vai ter de ser de um homem muito especial, e fora de Cuba”, diz a jovem prostituta Yamilê, amiga do travesti Sandra (p. 77). O niilismo do autor não poupa ninguém: "Gente que tem dinheiro é mais filha da puta que a gente” (p. 83)
O romance é impregnado de lirismo e crítica a Havana, mas poderia como já dissemos acontecer em qualquer lugar, como numa narrativa beatnik, por exemplo. Quando um bêbado oferece rum a Rey contra o sofrimento, ele diz que não sofre: tem fome (p. 28). Aliás : “A única propriedade do pobre é a fome” (p.88). Ele é um errante, dorme pelas ruas e quando entra pela primeira vez numa igreja sua observação é a seguinte: “tinha uns bonecos grandes colocados aqui e ali. As pessoas não falavam nada. Se ajoelhavam, sentavam , iam acender umas velas, falavam em voz baixa” (p. 30).
Revi pelos olhos de Rey alguns lugares que visitara em Havana: Casablanca, onde está a enorme estátua de Cristo, em mármore de Carrara e de onde se vislumbra boa parte da baía de Havana, Matanzas, onde está o balneário de Varadero, o Passeio do Prado, O Malecón, a cem metros da primeira “casa” (cubículo numa cobertura onde também se criava, outra prática cubana, animais para abate) do protagonista. No discurso do narrador, que às vezes se confunde com o do protagonista, Havana: “ continuava igual, bonita e maltratada, esperando ser maquiada”.
O narrador insiste em exaltar a virilidade de Rey: seu falo tem 22 cm e seu poder de ereção é quase infalível e alucinante para quem prova dele, daí seu título de “rei”. Logo o mulato vê-se envolvido no tráfico e na prostituição, assuntos tabus em Havana, hoje. É um rapaz pobre num país pobre “que só espera chegar a sua hora”(p. 37). Os turistas são tratados como idiotas que se iludem e querem se aproveitar de Havana. Muitas vezes são traficantes de órgãos que levam prostitutas para arrancarem o que puderem delas no exterior, o que aconteceu com uma ex- vizinha de Rey, que perdeu assim os olhos e retornou desgraçada para Cuba, vítima de um italiano que lhe propôs casamento, objetivo de tantos nativos. Segundo o narrador, quase ninguém “trabalha”: “Ganha-se mais com algum negocinho” (p. 44). Rey faz bicos: descarrega caminhões de bananas, trabalha numa cervejaria trambiqueira, dirige um triciclo, e não se detém nem diante de roubar uma pobre senhora que viajara com seus filhinhos durante 22 horas dentro de um desconfortável trem desde Santiago. Nosso anti-herói também pede esmola segurando um São Lázaro (que, ao lado de Santa Bárbara e A Virgem da Caridade do Cobre, são imagens quase onipresentes em Havana).
Às vezes a narrativa nos lembra algo de Jorge Amado: as amantes de Rey, algumas são velhas, uma delas, cartomante, quer fazer uma “limpeza” no seu corpo carregado, ele não deixa, outra de suas amante é Sandra, um travesti que incorpora uma entidade chamada “Rosa”, mas sua preferida é Magdalena, uma prostituta vendedora de amendoins, moram num prédio à beira do desabamento, o que ocorre depois de uma chuva torrencial, com quem pretende ter um filho e cujo caso termina em tragédia no final do livro. O sexo entre ele e esta última é permeado com requintes de podridão que inclui não se lavar, por falta de água e por “hábito” e usar isso como fetiche. Boa parte dos cubículos - onde transcorre a narrativa – é imunda. Defeca-se num papel e joga-se no telhado do vizinho. O narrador passa tanta fome que chega à beira da morte. Suas roupas vão se puindo com o uso e ele tem que roubar outras, muitas vezes dos turistas nos balneários. Rouba pão dos vendedores e ganha dólares em show pornô.
Os voyeurs merecem destaque, principalmente os que freqüentam o Parque Maceo, próximo ao Malecón, imenso calçadão que contorna boa parte da velha Havana. Alguns saíam “feito caranguejos”, escondendo o rosto, após a satisfação de suas necessidades.
É difícil falar sobre a miséria sem falar de zoomorfismo, mas Gutiérrez exagera. Os cubanos são comparados a porcos, macacos e por aí vai numa trajetória que inclui coveiros que roubam roupas e dentes de ouro de defuntos e esmagam cabeças dos concorrentes, necrofilia, masturbação, etc..
Uma das tradições de Havana é retratada no romance: o carnaval: “negros lutando por uma jarra de cerveja péssima, barata e avinagrada” (p. 84).
As transições do romance, que por sinal não é dividido em capítulos e tem sua narrativa quase em forma de fluxo de consciência, são bruscas e às vezes um pouco desconexas em meio à fome, trapaça e violência.
A saga de Rey parece água suja escoando lentamente numa pia engordurada e podre. Vai tomar banho de mar e sente um enorme peixe a lhe rondar e pensa que ele quer devora-lo. Aproxima-se um final nos moldes do grand guignol: medo, violência, assassinatos, horror, numa trama macabra.
Depois de perderem o quarto, Magda e Rey vão parar num container perto de um lixão onde, por ciúme, Rey e Magdalena protagonizam uma passagem cujos diálogos são violentos ao extremo. O desfecho do livro é para lê de chocante. Envolve lixo, ratos, urubus e necrofilia.
Não. Não é aquela ilha do Caribe com a qual revolucionários e turistas sonham. A Havana de Gutiérrez é pau, pedra, o fim do caminho.
AGORA UMA CRÍTICA MINHA AO ROMANCE DE UM DOS ESCRITORES CUBANOS QUE ADMIRO:
O Rei de Havana, romance de Pedro Juan Gutiérrez
por Moisés Neto
Rum, cigarros, sexo e música de rádio: Havana engana?
Pedro Juan Gutiérrez e Moisés Monteiro de Melo Neto
“Não brinques comigo/que eu como fogo”, diz uma canção cubana. Sim, os personagens do livro O Rei de Havana (224 páginas, 32 reais, Ed. Cia das Letras, SP) do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez parecem inflamados por este mote. Segundo um depoimento do autor, ao seu povo só resta “rum, salsa e sexo”. Juan não é publicado em seu país por apresentar Cuba como um inferno miserável, como por exemplo, em sua primeira obra em prosa Trilogia Suja de Havana. Segundo nota da editora dele no Brasil, a Companhia das Letras, alguns dos seus leitores vêem no romance uma metáfora apaixonada da atual situação cubana, mas a literatura dele não é engajada e “passa longe de toda intenção política doutrinária”.
Pedro nasceu em Matanzas, Cuba, em 1950. Mora em Havana. Começou a trabalhar aos onze anos, como vendedor de sorvete e jornal. Foi soldado, instrutor de natação e caiaque, trabalhador rural, técnico em construção, desenhista técnico e locutor de rádio. Trabalhou como jornalista durante 26 anos. Dedica-se à escultura e à pintura e é autor de vários livros de poesia.
Reynaldo, o “Rei” do título, trocadilho com seu apelido “Rey” (rei em espanhol), é um adolescente de 13 anos que mora num quarto sujo com a mãe prostituta, com o irmão e com a avó, num subúrbio sujo de Havana em plena crise de 1994, passam fome e convivem com a miséria. Rey, de tanto repetir a mesma série, desiste de estudar. Vai aí já uma crítica de Gutiérrez a uma das mais proclamadas instituições do regime cubano: a escola. O narrador afirma que os professores trabalham com má vontade e que o sistema está podre.
Longe da igualdade socialista pregada pela propaganda castrista, o que jorram no texto são a miséria monocórdica e a denúncia do enriquecimento ilícito praticado por muitos. O foco do autor é o sexo, o sexo pervertido, diga-se de passagem.
É bem estranho para quem visitou a ilha como eu, junto com um grupo político, e conversou com os comitês de Defesa da Revolução e outros grupos ligados ao governo, e teve oportunidade de visitar museus e outras casas ligadas ao lazer e à cultura (ver matéria em anexo) se deparar com uma visão tão radical quanto esta do autor. É claro, que ficar em Havana por uma semana e desfrutar de alguns dólares não dá a ninguém o direito de dizer que conhece aquele lugar. Vi gente ser roubada, vi pessoas proibidas de ir à praia incomodar os turistas. Vi pedintes, garotos sendo treinados para enfrentar o império ianque, vi o cambalacho comercial praticado a torto e à direita. Mas principalmente Havana é um patrimônio dos cubanos e jamais eles teriam conseguido arranca-la das mãos dos americanos se não fosse porGuevara, Fidel e Camilo Cienfuegos, para citar somente três dos líderes da revolução que surpreendeu o mundo no dia 1º de janeiro de 1959.
Gutiérrez passa bem longe da cartilha dos companheiros. Devemos observar que a desgraça que ele expõe, de certa forma poderia acontecer em boa parte do mundo capitalista e não ter como cenário a esplendorosa Havana.
Mas vamos lá: é um texto bem perverso. No início da trama, com linguagem bem suja e apelativa, o narrador expõe o drama do seu anti-herói: Rey presencia o suicídio do irmão, sabe do repentino assassinato da mãe e vê a avó ter um ataque fulminante. É levado para um reformatório onde tentam sodomizá-lo e onde ele briga para sodomizar, disputando as bichas às tapas com outros detentos enquanto elas se divertem vendo os “bofes” disputarem-nas entre si. Lá Rey aprende a fazer tatuagem e rouba um alfinete de um detento, ganha assim a simpatia de um cara da enfermaria que o presenteia com uma cirurgia que introduz na sua glande duas pequenas esferas que dali em diante farão a alegria das pessoas que transam com ele na narrativa, o que inclui várias mulheres e homens. Ao fugir daquela instituição, que de educativa não exibe nada, Rey se depara com um mundo mais cão do que já enfrentara no seu “lar” miserável. Cocaína, rum, maconha, travestis, prostitutas, fome, doenças e muita, muita sujeira é o que o espera.: “Pra que a gente nasce? Pra morrer depois? Se não tem nada pra fazer, não entendo para que passar por todo esse trabalho. Viver, disputar com os outros para não foderem você, e no fim de tudo a merda. Ahh, tanto faz estar aqui fora como lá dentro” (p. 23), pensa quando foge do reformatório. Poderia isso ser o que pensa o autor da relação de Cuba com o resto do mundo? “ Ter filho pra quê?Aqui? Pra sofrer e passar fome os dois[...] se algum dia tiver filho vai ter de ser de um homem muito especial, e fora de Cuba”, diz a jovem prostituta Yamilê, amiga do travesti Sandra (p. 77). O niilismo do autor não poupa ninguém: "Gente que tem dinheiro é mais filha da puta que a gente” (p. 83)
O romance é impregnado de lirismo e crítica a Havana, mas poderia como já dissemos acontecer em qualquer lugar, como numa narrativa beatnik, por exemplo. Quando um bêbado oferece rum a Rey contra o sofrimento, ele diz que não sofre: tem fome (p. 28). Aliás : “A única propriedade do pobre é a fome” (p.88). Ele é um errante, dorme pelas ruas e quando entra pela primeira vez numa igreja sua observação é a seguinte: “tinha uns bonecos grandes colocados aqui e ali. As pessoas não falavam nada. Se ajoelhavam, sentavam , iam acender umas velas, falavam em voz baixa” (p. 30).
Revi pelos olhos de Rey alguns lugares que visitara em Havana: Casablanca, onde está a enorme estátua de Cristo, em mármore de Carrara e de onde se vislumbra boa parte da baía de Havana, Matanzas, onde está o balneário de Varadero, o Passeio do Prado, O Malecón, a cem metros da primeira “casa” (cubículo numa cobertura onde também se criava, outra prática cubana, animais para abate) do protagonista. No discurso do narrador, que às vezes se confunde com o do protagonista, Havana: “ continuava igual, bonita e maltratada, esperando ser maquiada”.
O narrador insiste em exaltar a virilidade de Rey: seu falo tem 22 cm e seu poder de ereção é quase infalível e alucinante para quem prova dele, daí seu título de “rei”. Logo o mulato vê-se envolvido no tráfico e na prostituição, assuntos tabus em Havana, hoje. É um rapaz pobre num país pobre “que só espera chegar a sua hora”(p. 37). Os turistas são tratados como idiotas que se iludem e querem se aproveitar de Havana. Muitas vezes são traficantes de órgãos que levam prostitutas para arrancarem o que puderem delas no exterior, o que aconteceu com uma ex- vizinha de Rey, que perdeu assim os olhos e retornou desgraçada para Cuba, vítima de um italiano que lhe propôs casamento, objetivo de tantos nativos. Segundo o narrador, quase ninguém “trabalha”: “Ganha-se mais com algum negocinho” (p. 44). Rey faz bicos: descarrega caminhões de bananas, trabalha numa cervejaria trambiqueira, dirige um triciclo, e não se detém nem diante de roubar uma pobre senhora que viajara com seus filhinhos durante 22 horas dentro de um desconfortável trem desde Santiago. Nosso anti-herói também pede esmola segurando um São Lázaro (que, ao lado de Santa Bárbara e A Virgem da Caridade do Cobre, são imagens quase onipresentes em Havana).
Às vezes a narrativa nos lembra algo de Jorge Amado: as amantes de Rey, algumas são velhas, uma delas, cartomante, quer fazer uma “limpeza” no seu corpo carregado, ele não deixa, outra de suas amante é Sandra, um travesti que incorpora uma entidade chamada “Rosa”, mas sua preferida é Magdalena, uma prostituta vendedora de amendoins, moram num prédio à beira do desabamento, o que ocorre depois de uma chuva torrencial, com quem pretende ter um filho e cujo caso termina em tragédia no final do livro. O sexo entre ele e esta última é permeado com requintes de podridão que inclui não se lavar, por falta de água e por “hábito” e usar isso como fetiche. Boa parte dos cubículos - onde transcorre a narrativa – é imunda. Defeca-se num papel e joga-se no telhado do vizinho. O narrador passa tanta fome que chega à beira da morte. Suas roupas vão se puindo com o uso e ele tem que roubar outras, muitas vezes dos turistas nos balneários. Rouba pão dos vendedores e ganha dólares em show pornô.
Os voyeurs merecem destaque, principalmente os que freqüentam o Parque Maceo, próximo ao Malecón, imenso calçadão que contorna boa parte da velha Havana. Alguns saíam “feito caranguejos”, escondendo o rosto, após a satisfação de suas necessidades.
É difícil falar sobre a miséria sem falar de zoomorfismo, mas Gutiérrez exagera. Os cubanos são comparados a porcos, macacos e por aí vai numa trajetória que inclui coveiros que roubam roupas e dentes de ouro de defuntos e esmagam cabeças dos concorrentes, necrofilia, masturbação, etc..
Uma das tradições de Havana é retratada no romance: o carnaval: “negros lutando por uma jarra de cerveja péssima, barata e avinagrada” (p. 84).
As transições do romance, que por sinal não é dividido em capítulos e tem sua narrativa quase em forma de fluxo de consciência, são bruscas e às vezes um pouco desconexas em meio à fome, trapaça e violência.
A saga de Rey parece água suja escoando lentamente numa pia engordurada e podre. Vai tomar banho de mar e sente um enorme peixe a lhe rondar e pensa que ele quer devora-lo. Aproxima-se um final nos moldes do grand guignol: medo, violência, assassinatos, horror, numa trama macabra.
Depois de perderem o quarto, Magda e Rey vão parar num container perto de um lixão onde, por ciúme, Rey e Magdalena protagonizam uma passagem cujos diálogos são violentos ao extremo. O desfecho do livro é para lê de chocante. Envolve lixo, ratos, urubus e necrofilia.
Não. Não é aquela ilha do Caribe com a qual revolucionários e turistas sonham. A Havana de Gutiérrez é pau, pedra, o fim do caminho.
ORLANDO: VIRGÍNIA WOOLF EM CORPO E LETRA
(TRECHO
DA PALESTRA CONFERIDA POR MOISÉS NETO)
Em Orlando (1928), livro de Virginia
Woolf (1882-1941), que passamos agora a analisar, há traços realistas,
mas ali se atinge principalmente os limites da consciência humana que tanto
atormentaram a autora e temos uma
complicada para quem se apega à própria imagem; o destaque fica para a
questão da androginia, da vida em si e
seu significado, a arte da poesia o e , claro, o amor.
Eis parte da
obra de Virgínia Woolf: nove romances, mais de vinte cadernos de diários, sete
volumes de ensaio, duas biografias e muitas cartas. Para esse estudo utilizamos a tradução de Cecília Meireles (Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1978).
Há mais
esteticismo do que erotismo. Elabora a noção de gênero mais forte que a de
sexo. Numa Ode à Literatura o texto retrabalha as noções de tempo e ação. Há
que se destacar o olhar contemplativo que o narrador compartilha com Orlando e
isso se dá em cada Sema (unidade mínima de significado). Poesia, enquanto
metáfora levando o leitor à epifania é o que temos a cada página, praticamente.
A narrativa posiciona-se bem além do posição positivismo e o que se tem nas
linhas e entrelinhas é a descontinuidade
da “história” refletida num enredo. A técnica da narrativa é o ponto de
vista de Orlando e a Literatura surge como um ritual, um espetáculo, simulando
uma “biografia”.
É o ser
humano bom, belo, corajoso; lembremo-nos que a Woolf padecia de amor obsessivo, que idealizava alguém como
Orlando: leal, forte, mas cheio de inocência
e pureza. Já afirmaram, com certa razão que ela inspirou-se em Vita
Sackville-West. Há um questionamento do papel das mulheres na arte e no social
como um todo. Haveria mesmo a igualdade entre sexos ou o que as mulheres querem
é uma superioridade? Orlando é mulher, mãe, inteligente e consegue
a felicidade no final do livro.
Orlando
também foi um nobre e belo rapaz. Teve
uma decepção amorosa com Sasha, uma princesa russa que o conquistou e partiu, a
traição do poeta admirado que zombou dele num poema (satírico) e pelo fato de
acreditar em felicidade só com a Natureza e a poesia.
Para alguns
críticos, Orlando seria o único dos romances de Woolf que se aproximaria da emoção sexual, ou melhor
ainda, da homossexual; pois, enquanto o personagem passa por uma transformação
física, antes um belo jovem e depois uma bela dama, a metamorfose psicológica é
bem menos completa.
As invenções estilísticas e os recursos narrativos
utilizados (pontuação, repetição de termos etc.) enquanto marcadores do texto e
do fluxo mental dos personagens estão numa linguagem simples, para tornar
palavra o discurso mental de Orlando. Mas há, sobretudo, uma espécie de
transcendência que se dá em efusão lírica onde o corpo é usado como combustível
que põe em ação uma máquina poética de alto potencial.
O intimismo,
o mergulho na consciência, escrita refinada, o ritmo peculiar woolfiano, nos
lembram as epifanias de Clarice Lispector, mas num nível diverso. Woolf dizia
que o livro era uma espécie de anedota, mas não descartou tratar-se de carta de
amor, onde o feminismo estaria numa das dobras em meio ao fantástico das suas
intenções; não podemos esquecer a questão do humor aí embutido e mesclado (por que não dizer?) à poesia, num
clima de vanguarda que põe em refinado cadinho o gênero da biografia e do
romance. O fenômeno da criação humana é aqui também
sublimação diante da pulsão, a encher o lugar vazio do sujeito da enunciação,
transformando o sexual pelo não sexual, ajudando o sujeito no combate à pulsão
de morte aí então corpo e letra unem-se numa improvável busca de sublimação,
diante de imagens e formas
traçadas à semelhança de um eu inconscientemente narcísico.
Orlando é
alegoricamente um imortal, desde nobre a serviço do seu país, num determinado
panorama histórico, mas também vai poder ser vários e viver outra vida.
Flagramos
Orlando pela primeira vez no final dos mil e quinhentos a cortar cabeças
mumificadas de mouros trazidos por parentes deles de várias “conquistas”.
Estamos na Inglaterra e sabemos logo da sua beleza e sensibilidade. Corpo e Letra já se
confundem. O belo jovem é também poeta e está a escrever um poema chamado O Carvalho. Muito luxo e riqueza o
envolvem. A rainha “Bess” (Elizabeth I) é descrita assim: “mão cheia de anéis
(...) fina (...) dedos longos sempre arqueados (...) nervosa, frenética, mórbida
mão (...) ligada a um velho corpo que recendia como um armário onde há peles
conservadas em cânfora” (p. 12). A ideia que se passa do poeta é a do “homem
que não nos vê, que está vendo ogros, sátiros ou talvez o fundo do mar” (p.12).
A tradução de Cecília acentua ainda mais a Letra, representando o espírito, em
relação ao corpo do juízo e da razão num devaneio que atravessa séculos. Da
rainha Elizabeth I vai-se direto à coroação do rei Jaime, uma festa
carnavalesca misturando classes e gêneros rodeados por humor e esplendor
poético (p.23). A figura da princesa
russa Sacha (a “flor do perigo crescendo numa fresta” -p.22) com olhos que
parecem “pescados no fundo do mar” (p.21) encanta-nos num passeio de patins
sobre o congelado rio Tâmisa, em êxtase e intimidade com nosso herói que causou
escândalo à época. Orlando desfaz um noivado para entregar-se a esse seu amor. “seus outros amores (...) comparados
àquele, tinham sido de pau, estopa e cinzas (...) [mas] entre a felicidade e a
melancolia não medeia mais espessura que a de uma lâmina de uma faca” (p.25). Em
Sacha algo parecia escondido, como uma chama parece oculta numa esmeralda, “ou
o sol aprisionado numa colina” (p.26). O que não é inglês é visto como exótico
(Orientalismo nos moldes de Edward
Said?), num determinado trecho chega-se a falar da “sociedade dos macacos nos
trópicos” (p.101). Os russos são descritos como seres que partiam carne com as
mãos, as russas usariam barbas e eles viveriam em “cabanas” (p.27). Londres é
mostrada em sua “assombrosa beleza contra as nuvens do ocaso” (p.29). Sacha e
Orlando planejam uma fuga (ideia dele) e no meio do caminho assistem a trecho
de “Otelo”: “um negro sacudia os braços e vociferava (...) acho que deveria
haver um eclipse do sol e da lua e que o mundo assustado deveria bocejar”
(p.32). No final do primeiro dos seis
longos capítulos da obra, Orlando é abandonado por Sacha e conclui seu idílio
em meio a uma das mais belas alegorias da história da literatura (o
descongelamento do Tâmisa após uma madrugada chuvosa e um amanhecer
apocalíptico). Virginia expressa o sexo não tanto com
indiferença, mas com certa incompreensão; detecta-se em sua personalidade
e em sua arte uma representação, diga-se assim, etérea, parece
mais amar o cérebro que o corpo do outro.
No capítulo
2 Orlando dorme sete dias seguidos (isso acontecerá duas vezes , na segunda
haverá o fenômeno da mudança de sexo). Sobre isso o narrador expressa: é
“sombrio, misterioso e indocumentado” (p.37): “de que natureza são os sonos
assim? (...) devemos receber diariamente a morte em pequenas doses, para
podermos prosseguir na empresa da vida? (...) teria Orlando ressuscitado?” (p.39).
Na grande solidão do artista entre os ossos dos antepassados, os fantasmas da
sua mansão imensa, seus livros, a paixão pela literatura o dilacera, esse
projeto de transformar corpo em Letras, onde “nem todo o ouro do Peru pode
pagar o tesouro de uma frase bem torneada (...) passar pelas portas da morte e
conhecer o inferno” (p.43). A poesia, essa feiticeira, a ânsia de glória, essa
rameira, de mãos dadas faziam no coração de Orlando o “terreiro das suas
danças” (p.46). ele sentia-se mais um escritor do que um aristocrata, “a lutar
com a língua inglesa”. É ridicularizado pelo crítico Nicholas Greene e queima
todos os seus escritos em holocausto pessoal, menos o poema O Carvalho, que poderá ser sua expressão
maior.
Permeia o
livro a reflexão sobre o tempo, a passagem das horas e como ela é relativa, o
“extraordinário desacordo entre o tempo do relógio e o tempo do espírito” (p.55),
que é mais desconhecido e deveria ser melhor estudado. “Um segundo pode ser
dilatado até doze vezes seu tamanho natural” e Orlando “coloria-o com mil cores
e enchia-o com todos os resíduos do universo” (p.56). Os 365 dormitórios do palácio de Orlando ele
os ocupa com hóspedes certa vez (p.61). Mas nada preenche seu vazio: “ o amor
tem duas faces: uma branca outra negra; dois corpos: um liso outro peludo (...)
impossível separá-los (...) [é] um abutre (...) ave-do-paraíso” (p.64); assim
decide partir para a Turquia a serviço do governo inglês e naquele ácido e
penetrante cheiro das ruas de lá, ele é obrigado a conviver com a hipocrisia
das relações diplomáticas, a que atende com tanto sucesso que é condecorado
duque inglês em Constantinopla. Há um golpe e ele, depois de um affair com uma dançarina, adormece por
mais sete dias e acorda mulher no terceiro capítulo, vai viver com os ciganos,
ser pastor, mas esses se acham mais nobres que os ingleses, pois são milenares
enquanto o povo de Orlando não passava de “noveau riche” (apenas alguns séculos
de tradição familiar). Logo percebem a falha de Orlando que eles não podem
perdoar (é nociva aos ciganos): ele é contemplativo, metafórico por demais.
Pensam em matá-lo, nesse meio tempo Orlando, sem papel nem tinta continua a
escrever o poema O Carvalho,
utilizando pequenos espaços no papel e usando vinho e suco de cerejas esmagadas
como tinta. Orlando conclui com o narrador: “nenhuma paixão é mais forte, no
peito humano, que o desejo de impor aos demais a própria crença” (p.83)
De volta a
Inglaterra, agora mulher, Orlando luta para recuperar o que lhe era de direito
e logo percebe vantagens e desvantagens da condição feminina, suas belas pernas
continuam as mesmas, mas agora os homens enlouquecem só de ver seus tornozelos.
Virginia mostra o homem dentro do corpo
de mulher: “como somos loucas!”, “”graças a Deus sou mulher!”, “o choro assenta
bem nas mulheres”(p.88-92). Historicamente essa parte do livro é a época do
grande incêndio e da peste em Londres e ela admira o trabalho do arquiteto
Christopher Wren. Os empregados estranham à primeira vista; “Milord... Milady”
(p.94), mas no geral todos desconfiavam de algo (andrógino?) que a justiça
selaria oficialmente: mulher. Nem a mudança de sexo nem a passagem do tempo são
empecilhos a uma narrativa que se estrutura liricamente na visão introspectiva.
Orlando
também não tinha nenhum “comércio” com o
“Deus habitual”, tem “fé própria” e reflete sobre seus “pecados” e
“imperfeições”, pois, e aí vem mais um aforismo do livro, “uma simples canção
de Shakespeare tem feito mais pelos
pobres e malvados que todos os pregadores e filantropos do mundo” (p.96).
Corpo e
letra? Nuances entre os gêneros, fusão de corpo e espírito, reflexo da
literatura de um país e seus escritores, tendo a passagem dos séculos como pano
de fundo. Refletido, o corpo de Orlando no espelho vira poesia: “tudo em redor
do espelho eram campos nevados, tudo em redor era como fogo e ela era como
fogo, uma sarça ardente (...) o espelho era uma água verde e ela era uma sereia
recamada de pérolas, uma sereia numa gruta” (p.63).
Damos
destaque também para a metalinguagem na narrativa, por exemplo: “ como o leitor
pode verificar lançando os olhos à pág. 71-73” (p. 104). Também merece destaque
a questão das roupas: “às vezes só as roupas conservam a aparência masculina ou
feminina, quando interiormente o sexo está em completa oposição” (p.105).
Orlando se atrapalha um pouco com os trajes femininos no início da sua transformação. Quanto ao humor em
Virginia: “esse negro humor que corre nas veias de toda sua raça” (p.108) é
intrincado e busca as entrelinhas, numa espécie de crítica amarga, muitas vezes
sutil, por exemplo: “a vida é um sonho e
o despertar nos mata” (p.113).
As menções
dos relacionamentos de Orlando com escritores da época como Pope e Swift
resultam em debates em torno da criação literária, por exemplo: “a parte mais
importante do estilo, que é o curso natural da voz ao falar” (p. 118).
Estampa-se
em várias passagens o preconceito da sociedade inglesa do momento em relação à
mulher: “mulheres são apenas crianças grandes... um homem inteligente apenas se
diverte com elas , agrada-as e adula-as” (p.119), o tom é meio caricato em
frase assim pinçada de chofre, mas o livro está repleto delas mixadas ao discurso
de Orlando que “olhava, sentia, falava como homem,
embora tenha sido ela mesma mulher tão tarde” (p.121); e ele pergunta:
mulheres? Sempre “tagarelando” para “distrair seus amantes” (p.121). Se elas
têm liberdade? “psiu!”, só se tiverem “cuidado de verificar se as portas estão
fechadas e nenhuma de suas palavras vai ser impressa” (p.122); a visão é
caótica e ambígua? Nem tanto. Orlando mudava de sexo muito mais frequentemente
do que podem imaginar os que só usavam uma espécie de roupa” (p.123), isso numa
época em que se acabava o século XVIII e
iniciava-se o século XIX (fim do capítulo quatro).
Uma grande
nuvem cobre as Ilhas Britânicas e tudo fica úmido, fechado, escuro no século
XIX: a Era Vitoriana prenuncia-se; da
metáfora da umidade que a tudo estraga (p.127) surge o nascimento do Império Britânico (p.128), o que se dá
na narrativa junto a páginas de alegorias, enumeração caótica, stream of consciousness, passagens
delirantes (p.129-131), o espírito da época sopra sua face e Orlando continua
trabalhando seu poema (desde 1586), nesse tempo ele foi melancólico, enamorado
da morte, amoroso, exuberante, animado e satírico, mas ficado
“fundamentalmente” a “mesma” (amor pelos animais, natureza, o campo, as
estações) conforme constatamos (p.132). Eis alguns dos versos que ela chama insípidos
versos:”sou apenas um elo desprezível/
na cadeia da vida fatigada/ mas pronunciei palavras sacrossantas/ ah, não digas que não valeram nada!” (p.133)
O que é a
inspiração ou mesmo a poesia para Orlando? “sentiu-se percorrida por um estanho
tinido e uma vibração como se fora feita de milhares de arames sobre os quais a
brisa ou errantes dedos estivessem executando escalas”, eis como o corpo recebe
as letras.
Há
brincadeiras sobre a simbologia dos anéis de ouro dos casados. E os dedos? “não
escrevemos só com os dedos, mas com a
pessoa inteira. O nervo que governa a pena enrola-se em cada fibra do nosso
ser, amarra-nos o coração, atravessa-nos o fígado” (p.136). A exigência
vitoriana de uma aliança de casamento também tomava todo o seu corpo, naquele
“antipático” (p.137) século XIX. “Devia
ser um consolo (sentia) apoiar-se, sentar-se, sim, deitar-se, nunca, nunca,
nunca mais se levantar” (p.137). Daí correr para a natureza e lá, abraçar-se
com a terra. Aí ela encontra, vindo a cavalo, seu amor e marido: Shelmerdine:
“és mulher, Shel”, “és homem, Orlando!” (eis o encontro dela com o casamento,
dias depois). Ele é aventureiro navegante, gera-lhe um filho e parte, ela
enfrenta o novo século, XX, fica-lhe dele o gosto de geleia de morango,
pastilhas de hortelã (p.141). O narrador deixa um pequeno espaço em branco para
que o leitor tire suas conclusões. Orlando conclui seu poema O carvalho e comenta-se a transação do
escritor com o espírito da época, que
deve ser de infinita delicadeza, pois dessa concordância depende a sorte das
suas obras (p.150), como está no último capítulo do romance, capítulo seis.
Na página
150, a editora de Virginia e Leonardo, a Hogarth Press, é mencionada metalinguisticamente
(“o dinheiro que ela cobra por esse livro”). E a s reflexões continuam: v”ida e
pensamento são como polos opostos”
(p. 150), vida nada tem a ver com ficar sentado numa cadeira, e mais uma vez,
sobre as mulheres, e o texto ironiza:
contanto que sejam “bilhetes”, ninguém se opõe que uma mulher escreva.
Orlando
reflete sobre invenções modernas junto a outros personagens do romance tão
imortais quanto ele; fala também de
críticos “a soldo de livreiros” (p.156). Greene, crítico que o arrasara
trezentos anos antes, resurge e lendo O carvalho, vê ali genialidade, publica o
poema de Orlando e consegue boas críticas (p.157).
“Vida?
Literatura?” Corpo e letra? Converter uma coisa na outra? “Mas que monstruosa
dificuldade!” (p.160). “Crítico? (...) vá tudo para o inferno!”, diz Orlando
(p.161), esse burguês fidalgo intelectual em corpo de mulher.
Ela deu à
luz um menino, numa terça-feira 20 de março, às três da madrugada (p.166), essa
é a única menção à criança. Vem a invenção da luz elétrica e como ela afetou as
pessoas. O século XX também tornou difícil chorar (p.167). “Pois que revelação
mais terrível que a de sentir que este é o momento presente? Se sobrevivemos ao
choque, é apenas porque o passado nos ampara de um lado e o futuro do outro
(...) a verdadeira substância da vida agora é mágica (...) estou mortalmente
cansada desse eu. Preciso de outro”. (p.168-173); mas o eu que Orlando
necessitava pode não vir, os eus para
o narrador são como pratos empilhados na mão do copeiro, têm predileções e
simpatias e têm certas predileções: dia
de chuva, quarto com cortinas verdes, “se a Sra. Jones não estiver lá”, se
tiver um bom copo de vinho etc. “o eu verdadeiro, é, dizem, a concentração de
todos os outros que possam existir em nós, comandados e aprisionados pelo
eu-capitão, o eu-chave que a todos controla. Orlando estava procurando decerto
esse eu” (p.174). Ele estava com trinta e seis anos e o romance aproxima-se do
final. A diegese vai misturando épocas convulsivamente. Elevadores, automóveis,
Londres... o campo... era como se o espírito de Orlando tivesse se transformado
em líquido, “ela não acreditava em nenhuma imortalidade, não poderia deixar de
sentir que sua alma estaria para sempre indo e vindo” (p.178); às vezes
sentia-se “fora do presente”, “seu espírito começou a balançar-se como o mar (...)
começou a viver de novo”, e pensou:
“estou quase compreendendo”. De volta ao campo tenta enterrar (a Letra
e não o corpo) seu livro publicado aos pés do grande carvalho. Anoitece e a
duodécima pancada da meia-noite soa. É quinta-feira “onze de outubro de 1928”,
assim corpo e letra irmanam-se encerrando narrativa.
Biografia
Em 1941,
numa manhã de sexta-feira, 28 de março,
dia frio, Virginia escreveu duas cartas, atravessou os campos até o rio.
Deixou a bengala na margem, pôs uma grande pedra no bolso do casaco
e encaminhou-se para a morte;
morreu assim, aos 59 anos, jogando-se no
Rio Ouse.Ela era da alta classe média inglesa e aprendeu a
falar depois dos 3 anos. Aos 6 anos, falava bem e contava estórias deliciosas.
Ainda jovenzinha, foi bolinada pelo meio-irmão George. Pode ter sido a causa de
sua permanente frigidez sexual. Em 1904, Virginia tenta se matar, pulando de
uma janela, mas não consegue. A janela era baixa e ela se machucou muito pouco.
Em 1905, começam as noites de quinta-feira, no famoso bairro de
Bloomsbury, com a presença de Saxon Sydney-Tuner, Leonard Woolf, Lytton
Strachey (irmão do grande tradutor de Freud, James Strachey), Clive Bell e
Desmond MacCarthy. Jack Pollock, E. M. Forster, Bertrand Russell e John Maynard
Keynes também participavam da “farra” intelectual. Henry James, amigo do pai de
Virginia, não gostou do grupo de Bloomsbury, que achava de baixo nível.
Rebelde, o grupo usava roupas esdrúxulas e falava palavrão.
Em 1912, Leonard Woolf e Virginia se casam. Leonard se apaixonou por
Virginia. Doce e perdidamente. A união com Leonard aumentou o seu equilíbrio
emocional e a sua segurança como escritora. O curioso é que a família Stephen
não avisou Leonard dos problemas de saúde de Virginia. Tudo indica que a família
procurou esconder que Virginia era “meio louca” com medo que Leonard desistisse
do casamento.
Virginia “considerava o sexo não tanto
com horror, mas com incompreensão; havia em sua personalidade e em sua arte uma
qualidade estranhamente etérea, e, quando as necessidades literárias a
compeliam a considerar o prazer sexual, ela se afastava ou nos revelava algo
tão distante de bolinas e empolgações quanto a chama de uma vela é distante de
seu sebo”.
Virginia conclui “The Voyage Out” e o entrega à editora. Doente, pensa
que a libertação (a cura) está no suicídio. Toma 6,5 gramas de veronal e quase
morre. Virginia não se interessava muito por Freud. Mas Leonard achava que o
conhecimento das ideias de Freud poderia ser útil no seu tratamento.
Junto com Leonard Woolf, Virginia foi dona da Hogarth Press, que editou
grandes escritores e poetas, como Katherine Mansfield e T.S. Eliot, além do
psicanalista Freud.
O
manuscrito de “Ulysses”, de James Joyce, foi oferecido à editora de Virginia,
que não pôde ou não quis publicá-lo. Quentin Bell tenta explicar: “Era uma obra
que Virginia não podia rejeitar nem aceitar. O poder e a sutileza da obra eram
evidentes o bastante para despertar a admiração dela e, sem dúvida, inveja.
Parecia-lhe ter uma espécie de beleza, mas também um brilho rude, arguto, de
sala de fumantes. Joyce usava instrumentos parecidos com os dela, e isso era
doloroso, pois era como se a pena, sua própria pena, tivesse sido arrancada de
suas mãos e alguém rabiscasse com ela. Mesmo assim foi
perspicaz o bastante para ver que era algo digno de ser publicado; era claro,
também, que estava absolutamente além da capacidade técnica da Hogarth Press.
Para mim, era o lado mundano de Joyce que não agradava Virginia. Ao contrário
de Joyce e de Proust, não sacava muito do lado “sujo” da vida.
O leitor pode ler mais sobre o assunto na admirável biografia de James
Joyce escrita pelo americano Richard Ellmann. “Os Woolfs disseram-lhe (à
emissária de Joyce) que não poderiam imprimir (‘Ulysses’) porque levaria dois anos
na sua impressora manual, embora dissessem que estavam muito interessados nos
quatro primeiros episódios que leram. Na verdade parecem tê-lo considerado
‘vulgar’, embora Katherine Mansfield, que deu uma olhada no manuscrito certo
dia enquanto os visitara, tenha começado ridicularizando-o e depois de repente
tenha dito: ‘Mas há qualquer coisa nisso: uma cena que deveria figurar,
suponho, na história da literatura’.”
A história de Virginia Woolf escritora é tão interessante como a de
Virginia Woolf editora. T.S. Eliot foi amigo de Virginia e a Hogarth Press
editou seus primeiros poemas e o mais famoso, “A Terra Estéril”. Virginia
tentou tirar T.S. Eliot do emprego em um banco. Mas não conseguiu. Mais tarde,
ficou irada porque Eliot se tornou editor de uma casa rival, The Criterion.
Em 1919, Virginia publica “Noite e Dia”. A crítica não gostou. E.M.
Forster (1879-1970) e Katherine Mansfield (1888-1923) odiaram. Mas Forster,
amigo, foi elegante e discreto. Disse que o livro não era melhor que “The
Voyage Out”. (Forster mais tarde ficou chateado com algumas críticas ferinas de
Virginia.) Mansfield foi dura: “Noite e Dia” era “uma mentira da alma. Falando
sobre esnobismo intelectual — o livro dela fede a isso. (Mas não posso
dizê-lo.) É muito longo e cansativo”. Virginia, que não sabia assimilar
criticas, ficou abalada.
Entre 1925 e 1928, Virginia lança “Passeio ao Farol” e concebe “As
Ondas”. Nesse período ela conhece Vita, a sua grande paixão. Vita era lésbica,
mas casada, como Virginia. Quentin Bell é discreto e diz pouco sobre o assunto.
Tudo indica que as duas não chegaram a ter um caso no sentido moderníssimo.
Vita escreveu para Virginia: Você gosta mais das pessoas pelo cérebro do que
pelo coração. Fosse hoje, o texto de Vita teria acréscimo: Você gosta mais das
pessoas pelo cérebro do que pelo coração e pelo corpo.
Na verdade, Virginia era de uma carência extremada e todo mundo que lhe
dava atenção recebia alguma esperança, de sexo ou afeto. Só que, afeto, tudo
bem, sexo, nada. Pelo menos, a se acreditar na versão do sobrinho.
Quem leu “Orlando” sabe que Vita é Orlando. Para Quentin Bell, Orlando
é o único dos romances de Virginia que se aproxima da emoção sexual, ou antes,
homossexual; pois, enquanto o herói/heroína sofre uma transformação física,
sendo no começo um esplêndido jovem e depois uma linda dama, a metamorfose
psicológica é muito menos completa. O livro vendeu bem. Mas Orlando, sabia
Virginia, não era um grande livro. Julgamento que os leitores de hoje não
partilham, sobretudo por que as questões sexuais se tornaram mais importantes,
na avaliação do romance, do que as literárias.
Virginia não gostava da crítica acadêmica, que achava estéril. Talvez
fosse uma vingança por não ter obtido educação universitária. Talvez fosse pela
percepção de que, como denuncia Gore Vidal, muitos teóricos da literatura
querem substituir a literatura pela teoria literária.
Na década de 30, alguns críticos atacam Virginia, deixando-a
desequilibrada emocionalmente. O mais virulento, Wyndham Lewis, escreve: Ela é
sobremodo insignificante. Ninguém mais a leva a sério. Os críticos de esquerda
não atacavam Virginia. Stephen Spender e Cecil Day-Lewis (pai de Daniel
Day-Lewis, ator de “A Insustentável Leveza do Ser” e “Meu Pé Esquerdo”)
gostavam de sua obra.
Em 1937, Virgínia pública “Os Anos” e sente a loucura chegando. Leonard
achou o livro ruim, mas ficou calado, ou melhor, temendo que Virginia se
matasse, mentiu: Acho que é extraordinariamente bom. Virginia sabia que o livro
era ruim. O economista Keynes gostou do livro, de forma irrestrita. Em 1939,
Virginia foi ver Freud, que estava exilado em Londres. Ele teria impressionado
Virginia como um homem alerta. Mas torto encarquilhado muito velho e a velha
chama agora bruxuleante. Freud disse a Virginia e Leonard que seria necessária
uma geração para eliminar aquele veneno [o nazismo de Hitler].
Por causa da Segunda Guerra Mundial, Leonard e Virginia Woolf chegaram a
pensar em suicídio. Obtiveram até uma dose letal de morfina. Mas, com Londres
bombardeada, Virginia deixou de falar em suicídio. Numa carta a Ethel Smyth,
escreveu: … o que tocou e na verdade feriu o meu coração em Londres [durante os
bombardeios dos nazistas] foi aquela velha mulher, suja de fuligem nos
aposentos dos fundos, preparando-se, depois de um ataque aéreo, para enfrentar
o próximo… E também a paixão da minha vida, a cidade de Londres — ver Londres
em escombros, isso também atingiu meu coração.
No início de 1941, Virginia estava desesperada, louca. Mesmo assim
tentou convencer a médica Octavia Wilberforce, uma amiga, de que não estava
doente mentalmente. Mas confessou partes de seus medos. Medos de que o passado
voltaria, de que nunca mais conseguiria escrever.
É triste e pungente como Quentin Bell fala do fim de sua tia escritora:
Na manhã de sexta-feira, 28 de março, um dia claro, luminoso e frio, Virginia
foi como de costume ao seu estúdio no jardim. Lá, escreveu duas cartas, uma
para Leonard e outra para Vanessa — as duas pessoas que mais amava. Nas duas
cartas explicava que vinha ouvindo vozes e acreditava que nunca mais ficaria
boa; não podia continuar estragando a vida de Leonard. Ela colocou o bilhete
sobre a lareira da sala de estar, e cerca de 11h30 esgueirou-se para fora,
levando sua bengala de passeio; e atravessou os prados até o rio. Leonard acreditava
que ela já havia feito uma tentativa para se afogar: assim, teria aprendido com
o fracasso, e estava decidida a não falhar de novo. Deixando a bengala na
margem, ela esforçou-se para pôr uma grande pedra no bolso do casaco. Depois
encaminhou-se para a morte, ‘a única experiência’, dissera um dia a Vita, ‘que
nunca descreverei’.
Clarice Lispector, A mulher que matou os peixes
por Moisés Neto
(trecho da palestra conferida na Livraria Jaqueira, projeto ALETRAR)
Clarice Lispector por Di cavalcanti
“Eu sei muito pouco, mas tenho a meu favor tudo que não sei e isso é
minha melhor parte, é a minha largueza”, dizia Clarice.
Ela que faz do escrever uma aventura que leva a linguagem a domínios
longínquos
Foi uma das que romperam com o narcisismo e lirismo convencionais aos estereótipos
impostos ao feminino
Seu intimismo não é simplesmente psicológico, está mais para questionamento
metafísico, introspecção que parece abismo.
No seu conto para crianças A
mulher que matou os peixes, sobre o qual vamos falar agora, escrito em
primeira pessoa, a narradora, que tem o mesmo nome da autora, vai logo buscando
a interlocução com os leitores (ou ouvintes, se alguém lê para eles), atenção:
“Essa mulher que matou os peixes
infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não
tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra.
Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer.
Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver.
Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.
Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.
Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?
E eu respondo:
- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer.
Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e me deem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” – em casa chamávamos os peixes de ‘vermelhinhos’”.
Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer.
Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver.
Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.
Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.
Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?
E eu respondo:
- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer.
Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e me deem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” – em casa chamávamos os peixes de ‘vermelhinhos’”.
Eis
a mulher que matou os peixes: prosa de
poesia, peixe como metáfora insólita, fluxo
de consciência para crianças, no espaço labiríntico da memória fazendo os
pequenos conhecerem abruptamente uma “verdade” que poderia ser chocante: um
crime, eis um dos objetivos da autora.,
mas faz do crime uma epifania: há inocência nesta ré misteriosa que
transmite o texto como MOMENTO DE ILUMINAÇÃO, processo que
ocorre a partir de cenas do seu passado, que a fazem boa, é “como se, em vez de
escrever, ela descrevesse, conseguindo um efeito mágico no refluxo da
linguagem, que deixa à mostra o ‘aquilo’, o ‘isto’, o ‘inexpressado’, o
‘inefável’.” Ela continua contando para as crianças:
“Eu sempre gostei de bichos. Tive uma infância rodeada de gatos. Eu tinha uma gata que de vez em quando paria uma ninhada de gatos. E eu não deixava se desfazerem de nenhum dos gatinhos.
O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas infernal para as pessoas grandes. Afinal, não aguentando mais os meus gatos, deram escondido de mim a gata com sua última ninhada.
Eu fiquei tão infeliz que adoeci com muita febre.
Então me deram um gato de pano para eu brincar.
Eu não liguei para ele, pois estava habituada a gatos vivos.
A febre só passou muito tempo depois.[...]
Tenho esperanças de que até o fim do livro vocês possam me perdoar.
Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e meu coração vai ouvir.”
O tom coloquial é o de quem conhece o universo
das crianças, Clarice era mãe de dois filhos e é como quisesse o leitor como u
terceiro, um agregado querido. É muito amor que ela tem (por pessoas e bichos),
em meio a tantos caminhos nessa vida. É o que mostra na história da morte de uma
macaquinha que todos amavam (Lisete) a tristeza por ter de despedir-se de dois
cachorros, tudo é como se ela quisesse repassar poeticamente para as crianças, a
sua experiência de vida, de amor e perdão. Acima de tudo temos nela a PAIXÃO
PELA EXISTÊNCIA, encantamento, doses de explicações sobre violência e ...amor
Escrever não me trouxe o que eu queira: minha paz,
confidenciou Clarice um dia
Ela
queria aprofundar em si a vida
E o fez,
nesse A mulher que matou os peixes
ela repete algo que sugerira antes: “vive mais quem vive sensivelmente, bem
próximo do mundo animal
Todo
texto reduz a paixão á razão, afasta quem escreve do coração pulsante da vida
Ou se
escreve ou se vive”.
A
linguagem para ela era uma pesquisa contínua
Mergulhar
em si e ofertar-se ao outro é o que ela mais faz
O amor
está em cada linha de A mulher que matou os peixes, a narradora que, junto com os pequenos leitores, quer
descortinar o mundo, para chegarem juntos a descobrir
o que é ser gente e bicho
Dizer que matou os peixes é apenas um eixo de tensão para excitar os
pequenos, deixá-los curiosos, mas ela, como advogada que era, sabe conduzir sua
defesa e comover os “espectadores”, numa espécie de desdobramento cheio de
poesia e afeto, algo psicanalítico, como se ela se visse pelos olhos das
crianças, como se pressentisse cada um dos seus pequeninos leitores até quando a
criança já está morando dentro do corpo de uma pessoa mais velha, neste
seu A mulher que matou os peixes:
“Vocês ficaram tristes com essa história? Vou
fazer um pedido para vocês: todas as vezes que vocês se sentirem solitários,
isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar. Escolham uma pessoa
grande que seja muito boa para crianças e que entenda que às vezes um
menino ou uma menina estão sofrendo…” Eis um conselho da narradora que
exemplifica o que estamos a dizer.
As
histórias vão se sucedendo, e à medida que as crianças vão entrando
em contato com estas temáticas, vão sendo levadas a entender que
são sentimentos e situações que realmente podem acontecer, e que apesar de
não serem boas, podem ser superadas.
Através
de matrizes poéticas, das repetições, a narradora, artífice de um astucioso
agente lírico, arma sua teia verbal e faz com que cada palavra tenha um
significado praticamente infinito. No final do livro, a narrador leva o leitor
a perdoá-la pelo crime que cometeu de
ter matado os peixes.
Segue o
trecho final do livro:
“E assim
como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando
vão ver já se queimou toda a comida – eu estava
também ocupada escrevendo história. E simplesmente fiz uma coisa parecida
com deixar a comida queimar no fogo: esqueci três dias de dar comida aos
peixes! Logo aqueles que eram tão comilões, coitados.
Além de
dar comida, eu devia sempre trocar a água do aquário, para eles nadarem
em água limpa.
E a
comida não era qualquer uma: era comprada em lojas especiais. A comida
parecia um pozinho horrível, mas devia ser gostoso para peixe porque eles
comiam tudo.
Devem ter
passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, o cachorro late,
o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas
peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz para
reclamar e me chamar. E, quando fui ver, estavam parados, magros,
vermelhinhos – e infelizmente já mortos de fome.
Vocês ficaram
muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me deem perdão. Eu
também fiquei muito zangada com a minha distração. Mas era tarde demais
para eu lamentar.
Eu
peço muito que vocês me desculpem. Dagora em diante nunca mais
ficarei distraída.
Vocês me
perdoam?”
Se o crime
não foi intencional, como nos demonstrou a “criminosa”, através de tantas
histórias delicadas sobre suas relações com
animais, falando sobre a tristeza e alegria, de forma bem didática para a infância, fazendo com que os
pequenos construam ou fortaleçam um olhar esperançoso em relação ao mundo, aos
sentimentos dolorosos. Também nós adultos parece que somos incitados a virarmos
contadores de histórias.
ESTE LIVRO INCITA
À PERFORMANCE.
A narradora
compara suas experiências com a visão das crianças aprendendo a ser e estar num
mundo cheio de possibilidades, e parece que a melhor delas é fazermos amizades,
e é isso que a narradora quer: ser amiga e que... perdoemos o seu “crime”.
Está
perdoada, Clarice, a gente sabe que você não é má, que o seu querer é de amor e
mistério...
LISPECTOR, Clarice.
A mulher
que matou os peixes; ilustrações de Flor Opazo. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1999
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