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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

UM RETRATO DO BRASIL: A LITERATURA CONTEMPORÂNEA E A DENÚNCIA SOCIAL

 

UM RETRATO DO BRASIL: A LITERATURA CONTEMPORÂNEA E A DENÚNCIA SOCIAL

 

Arthur Paz Rios

Graduando em Letras - Universidade de Pernambuco (Campus Garanhuns)

 

Resumo:

O presente artigo busca perpassar pelos caminhos traçados pela literatura contemporânea brasileira, atentando para os aspectos sociais, políticos, metafísicos e, consequentemente, ideológicos presentes nas obras e nos jogos imagéticos constituídos e lapidados pelos autores estudados. Logo, entre estes, estão Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu, os quais terão destacadas as suas contribuições individuais para o panorama literário vigente e as suas respectivas abordagens acerca da diversidade cultural brasileira. Além disso, através de uma comparação das temáticas e estilos desses autores, investigar-se-á como suas obras dialogam com questões de identidade, marginalização social, sexualidade e sociedade de consumo, por exemplo, oferecendo uma mundividência multifacetada das experiências hodiernas do país.

 

Palavras-chave: Contemporaneidade, Literatura, Crítica Social.

 

Abstract:

This article seeks to traverse the paths traced by contemporary Brazilian literature, paying attention to the social, political, metaphysical and, consequently, ideological aspects present in the works and imagery games constituted and polished by the studied authors. Therefore, among these are Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho and Caio Fernando Abreu, who will have highlighted their individual contributions to the current literary scene and their respective approaches to Brazilian cultural diversity. In addition, through a comparison of the themes and styles of these authors, it will be investigated how their works dialogue with questions of identity, social marginalization, sexuality and consumer society, for example, offering a multifaceted world view of the country's current experiences.

 

Keywords: Contemporaneity, Literature, Social Criticism.

 

INTRODUÇÃO

 

            De início, sabe-se que a literatura contemporânea em vigência no Brasil é um campo vasto e diversificado que busca refletir as complexidades e os desafios da sociedade atual (tanto coletiva, como individualmente), e, por isso, o intuito desta pesquisa é adentrar no universo de algumas das vozes as quais ecoam no âmbito dessa realidade literária, cultural e filosófica, analisando assim, as contribuições dos autores Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu. Nessa perspectiva, ao investigar a história e o impacto social das obras desses escritores, torna-se possível observar como eles abordam seus temas e preocupações oriundos da contemporaneidade, tendo em vista que não há datas específicas para determinarem o início e o término desse movimento, também considerado como pós-modernismo por alguns autores, e, portanto, toda arte escrita que está sendo produzida nos dias de hoje ou que foi feita há poucas décadas, independente do seu viés ou estilo literário, pode se enquadrar nos moldes desmoldados do advento da literatura contemporânea.

            Ao seguir a linha de pensamento da ótica em questão, é passível de crítica e reflexão que essa manifestação artística exibe características distintas as quais refletem as complexidades e as transformações do meio social hodierno, pois, caracterizada por uma abordagem densa acerca das inquietudes humanas e, por muitas vezes, provocativa, tal literatura desafia antigos tabus e normas da sociedade, além de servir de instrumento de resistência contra os inúmeros preconceitos, o que permite explorar temas como identidade e aceitação, sexualidade, a chaga da marginalização social e as complexas relações humanas. Assim, autores contemporâneos frequentemente utilizam uma prosa sensível e disposta de poesia também, capaz de se aprofundar nas emoções e nas experiências das personagens, dando voz e trazendo à tona as camadas menos privilegiadas da coletividade. Ademais, esse tipo de escrita, em variados momentos, transcende as fronteiras e quebra determinados padrões e barreiras entre os gêneros literários, empregando técnicas experimentais e narrativas fragmentadas, a fim de coadunar a fluidez da realidade à obra em si, uma vez que uma abordagem audaciosa visa, não apenas refletir os caminhos os quais vêm sendo traçados por esse Brasil da pós-modernidade, mas também questionar, provocar e reinterpretar o real, proporcionando a união da arte erudita com a arte popular.

            Por conseguinte, ao desafiar normas e questionar as complexas contradições do país, os autores estudados passam, com o verbo no Presente do Indicativo, a promover uma representação autêntica e identitária das várias relações étnicas e sociais do Brasil.

 

HILDA HILST E O “CHOQUE” NA SOCIEDADE

 

            Hilda Hilst (1930-2004) foi uma escritora reconhecida por sua ousadia e pela exploração corajosa de temas polêmicos tanto na sua poesia, quanto no mundo da prosa, pois, ao abordar questões acerca da morte, da sexualidade, da espiritualidade e da natureza humana, ela desafiou as convenções literárias e estigmas sociais de sua época. Nesse sentido, sua escrita atingiu um nível em que transcendia os limites da expressão tradicional, no momento que traz à tona as subjetividades e certas introspecções da experiência humana, portando uma linguagem provocativa e avassaladora. Além disso, a sensibilidade psicológica e a profundidade emocional presentes nas obras de Hilst influenciaram a forma como os autores contemporâneos exploram a psicologia das personagens e as suas respectivas complexidades no que tange às relações humanas, expondo também as contradições e as angústias as quais o indivíduo, enquanto posição de sujeito, enfrenta.

            Um exemplo notável é a obra O Caderno Rosa de Lori Lamby, que aborda a sexualidade infantil de maneira polêmica, forçando uma reavaliação das fronteiras do que pode ser explorado literariamente, além das noções éticas e morais do “certo” e do “errado”. A voz que narra essa obra, é corajosa e, de certa forma, desconcertante, já que a autora utiliza uma linguagem infantilizada para dar voz a pensamentos e situações explicitamente sexuais, o que cria um contraste desconfortável em várias situações. Atrelado a isso, ela parece estar desafiando o leitor a confrontar a interseção entre a pureza da infância e a sexualidade adulta, o que pode ser enxergado como uma mistura forte de elementos literários, linguísticos e uma inovação narrativa para que o objetivo da autora seja atingido. Essa influência pode ser observada em obras que empregam narrativas não lineares, onde há a fragmentação e a linguagem poética para que se crie um impacto emocional mais profundo.

 

A DUALIDADE EM RAIMUNDO CARRERO

 

            Raimundo Carrero, por sua vez, através de sua narrativa marcada por características realistas e uma abordagem específica acerca das camadas sociais menos privilegiadas, destacou-se como um observador sensível das dinâmicas urbanas e rurais, não só do Brasil contemporâneo de maneira geral, como também se instalou como um representante do sertão pernambucano, além de migrar a sua cosmovisão para a realidade recifense, inserindo-se frequentemente no cenário da literatura atual brasileira. Carrero utiliza uma linguagem direta e poética para criar personagens vívidos e, de certa forma, condizentes com os paradoxos e antíteses da mente humana, visto que o ideal do sagrado e do profano pode perpassar pelo desenrolar da história de uma mesma personagem, o que confere autenticidade às suas histórias e provoca uma reflexão sobre as realidades vivenciadas pelas pessoas “comuns”, isto é, conflitos e questões pessoais, que mesmo que, inicialmente, pareçam ser contraditórias, mas buscam explicitar a completude das relações individuais e coletivas humanas.

            Outro aspecto importante da obra desse autor é a utilização de eu líricos e narradores femininos, característica a qual, consoante o próprio Raimundo, pode ser resultado de uma estrutura familiar majoritariamente composta por mulheres, no que se refere à sua criação. Além disso, seu impacto literário e social permite, através de suas dualidades expressadas pelas personagens, conceber para o sertão nordestino, uma questão imagética que vai além do “mero” ambiente semiárido repleto de religiosidade. Sim, essa característica faz-se inerente à sua personalidade e escrita por ser o que compõe o seu “ser” e a sua história. Entretanto, esse fato não se limita apenas em retratar esse afluente de suas obras, tendo em vista que tudo se elucida por completo a partir do momento em que o autor, de maneira cubista, estilisticamente falando, traz diversas óticas à tona para a sua obra, tratando da complexidade existencial humana e misturando elementos culturais variados no que tange a valores éticos e morais, por exemplo. Acerca dessa dualidade vivenciada por Raimundo Carrero, no tocante às amarras desamarradas da contemporaneidade, onde se inova e, concomitantemente, se reverencia o tradicional, o fragmento a seguir faz-se passível de reflexão acerca dessa temática em debate.

 

A literatura, na modernidade, é palavra autônoma, palavra que nasce de um sujeito que emerge da recusa a adesão à Palavra, que surge na distancia da Lei. O sujeito da literatura é um sujeito que domina os segredos da ficção. Ele não mais ausculta os mistérios e segredos do divino contidos na Palavra, ele busca escutar os mistérios e segredos do humano que vive nesse mundo. Mas Raimundo Carrero vive essa tensão entre ser sujeito de discurso religioso e sujeito de discurso literário. Ele vive na equivocidade de um lugar de sujeito que, por um lado, tende a absolutizar a linguagem e separá-la do mundo, numa ênfase formalista, que faz da linguagem literária criação autônoma do escritor, onde o escritor se faz Deus, típica dos modernismos, e por outro, vive na submissão à Palavra, à letra da Lei, que faz daquele que escreve um mensageiro de uma Palavra que não é sua, de ensinamentos e lições que vem de Outrem. O dilaceramento de seus personagens, que é também seu dilaceramento, aparece na própria forma, por vezes, fragmentada, em flashes de sua escrita. (DE ALBUQUERQUE JÚNIOR, p. 140, 2019)

 

 

A CRUEZA ARREBATADORA DE MIRÓ DA MURIBECA

 

                        A poesia de Miró é densa. Intensa. Consoante a crítica literária brasileira, de maneira geral, a poesia é expressa por poucas palavras, mas traz consigo uma vastidão de significados e interpretações possíveis acerca de um mesmo verso, por exemplo. Portanto, há de perceber-se que o poeta em questão dispõe dessas características de forma deveras marcante, tendo em vista que com o pouco, é possível se dizer muito.

                        Nesse sentido, Miró soma à contemporaneidade através da sua lírica, pois sua linguagem franca e acessível denuncia as chagas sociais existentes no meio urbano do país, especificamente, utilizando a cidade do Recife como principal fonte de inspiração para sua poesia, de certa forma, panfletária. Ele utiliza o vocabulário e as expressões das ruas, o que reverbera ainda mais sua obra, por ser sempre dramatizada e oralizada pelo autor, e acaba por transformar e democratizar suas obras a uma ampla gama de leitores, inclusive aqueles que não têm uma formação literária formal, pois a linguagem coloquial abrange todos os tipos de grupos sociais, uma vez que essas pessoas conseguem compreender a mensagem facilmente, pois seus versos são muito diretos e duros, isto é, impactam de uma forma que faz-se impossível não se sensibilizar com essa dureza em forma de literatura. Atrelado a isso, é perceptível que essa abordagem específica de Miró quebra barreiras linguísticas e culturais, promovendo a inclusão e a compreensão das realidades das periferias urbanas. Seu poema é permeado por uma consciência social aguda e um compromisso com a justiça social, visto que suas palavras não apenas documentam as lutas e as injustiças enfrentadas pelas comunidades marginalizadas, mas também convocam à ação, à militância crua, sem influências corporativistas ou liberais. Além disso, ele foi um defensor vocal da igualdade, da dignidade humana e da superação das barreiras sociais e econômicas, denunciando a violência policial, o racismo estrutural e a hipocrisia e contradições da ações do Estado. Por conseguinte, seja escrita ou encenada, sua obra se torna, assim, um veículo para a conscientização e o engajamento da coletividade contra as amarras desiguais e estratificadas do sistema. Dessa forma, o poema a seguir, de autoria de Miró da Muribeca, pode traduzir liricamente o que se está tentando ser dito por meio do linguajar acadêmico.

 

Deus, Tu que agora carregas um homem,

Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns

sacos de cimento

De cada lado um sol insuportável …

Deus,

Choves agora no meu coração

Para que eu não pense em comprar um

guarda-chuvas de balas

E fazer justiça com as próprias mãos.

 

            Sua escrita, logo, é um grito de alerta que corta o ar (tomando como referência as “lâminas” cabralinas), que denuncia a injustiça das classes sociais e a desigualdade que persistem nos becos e vielas do bairro da Muribeca e de tantos outros lugares esquecidos pelo progresso da engrenagem capitalista. A cada palavra, Miró escancara as feridas abertas da sociedade, expondo as mazelas que muitos preferem ignorar e fingir certo tipo de cegueira coletiva. Portanto, seu verso é a voz dos que não têm voz, a luz que clareia os cantos sombrios da existência, e a força que impulsiona a mudança, uma vez que a poesia, quando tingida pela realidade, torna-se uma poderosa ferramenta de transformação social e representatividade, principalmente para um artista preto, pobre e periférico.

            Exemplificando que a língua das ruas é mais viva do que nunca, os seguintes versos de Manuel Bandeira podem iluminar o ideal da ótica em reflexão.

Evocação do Recife

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada...

 

O GLOBAL NOS ROMANCES DE BERNARDO CARVALHO

 

                        Uma das características marcantes dos romances de Bernardo Carvalho é a sua narrativa fragmentada, na qual diferentes vozes e perspectivas se entrelaçam para criar, de certa forma, uma complexidade literária rica, uma vez que esse estilo literário espelha a natureza da sociedade contemporânea, espaço de múltiplas óticas e perspectivas as quais competem por espaço e significado. Nessa perspectiva, ao explorar a complexidade humana por meio de personagens cheias de contradições existenciais e narrativas não lineares, Carvalho confronta a ambiguidade da vida moderna.

                        Acerca da temática das suas obras, frequentemente são abordadas questões de identidade em um mundo globalizado, tendo em vista que estas exploram as tensões dicotômicas entre o local e o global, o individual e o coletivo, o passado e o presente, por exemplo. Assim, o autor questiona as noções tradicionais de identidade cultural e nacional, desafiando os estereótipos e as simplificações que frequentemente permeiam o discurso acerca da globalização, estimulando uma reflexão crítica sobre como as identidades são moldadas e reconfiguradas em um meio social cada vez mais interconectado. Além disso, outro aspecto do impacto sociocultural dos romances de Bernardo Carvalho está no seu engajamento com questões ideológicas e políticas contemporâneas, pois a escrita dos seus livros frequentemente lança luz no âmbito de questões urgentes, como o meio ambiente, as desigualdades sociais e os dilemas morais da sociedade moderna, não só brasileira, como mundial, explorando, com profundidade no que tange a aspectos metafísicos também, a cosmovisão variada das personagens. Atrelada a essa perspectiva, Antônio Cândido reflete acerca da relação intrínseca entre o autor, a obra e o leitor.

 

Com efeito, entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidencia, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma "expressão". A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma "comunicação". (CÂNDIDO, p.146, 1965.)

 

                        Na obra Simpatia pelo demônio, por exemplo, o escritor traz à tona a ideia do terrorismo islâmico e sua respectiva relação com os desejos particulares do ser humano, as noções de bem e mal, com a temática das guerras religiosas e raciais também. Nesse sentido, o personagem principal, “Rato”, realiza diálogos introspectivos e o autor provoca, por meio de uma severa crítica ao terrorismo, a ideia de que essa chaga da sociedade tem uma guerra direta com o desejo, por proibir à juventude, principalmente, seu direito à liberdade e ao prazer. Logo, criando uma conexão com CÂNDIDO,1965, percebe-se que os anseios do autor se transformam nas ações e nos monólogos introspectivos de suas próprias personagens, evidenciando assim, a inerência entre o ser literário e o seu respectivo meio social.

 

CAIO FERNANDO ABREU: À FLOR DA PELE

 

                        Caio Fernando Abreu, um dos mais polêmicos e marcantes escritores brasileiros da contemporaneidade, deixou um legado literário marcado pela intensidade emocional, pela profundidade psicológica e pela crueza de suas narrativas. Sua obra, frequentemente descrita como visceral pela crítica literária, pode ser genericamente definida como um testemunho poderoso da experiência humana, visto que esta aborda temas como a alienação, a solidão, a sexualidade (mais especificamente, o erotismo homossexual) e a busca pela identidade em uma sociedade complexa e inúmeras vezes hostil. Nesse viés, uma das características marcantes da sua obra é a abordagem destemida e honesta das emoções humanas, já que as histórias exploram o lado mais complexo da psiqué humana, revelando a angústia, a melancolia e a inquietação que habitam a introspecção visceral das personagens. Portanto, essa profundidade emocional torna suas narrativas cativantes, de certa forma, pois provocam no leitor um contato com suas próprias emoções e reflexões pessoais.

                        Outro aspecto importante do autor é a sua escrita poética e lírica, onde suas palavras fluem com uma musicalidade única, criando uma atmosfera densa e evocativa que envolve quem o lê, porque frequentemente são incorporados elementos do simbolismo e do surrealismo em sua escrita, com a criação de imagens vívidas e perturbadoras que desafiam as convenções narrativas tradicionais. Ao seguir essa linha de pensamento, nota-se que essa escrita estilística única contribui para a visceralidade de sua obra, a qual é fortemente influenciada pelo contexto social e político de sua época. Ele viveu durante um período de grande turbulência no Brasil, marcado pela ditadura militar e por uma busca crescente por liberdade, principalmente, e autenticidade. Nesse sentido, é refletido também esse momento histórico, explorando temas como repressão, censura e uma resistência artística contra as restrições dogmáticas impostas pela sociedade e pelo Estado.

 

Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto. Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.

O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo.

Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas. E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser. (ABREU, p.44, 2019)

 

            O trecho em destaque faz parte de um dos contos (Eu, Tu, Ele) do livro Morangos Mofados. Há de se perceber que sua escrita é poética e lírica, além de ser repleta de metáforas e imagens fortes as quais criam uma atmosfera densa. Evocativa. Abreu usa uma linguagem rica e visual, pois faz uso da experiência de leitura sensorial e gradativa, à medida que as múltiplas emoções sentidas no ato de ler vão se aflorando. Ele descreve as pessoas ao redor do narrador de uma maneira quase que grotesca, enfatizando os detalhes físicos e fisiológicos das pessoas, o que passa a criar uma sensação de estranheza e repulsa. Além disso, a ideia de "ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto" é uma reflexão profunda, pessoal e filosófica, provavelmente influenciada pela quietude externa e inquietude interna de Clarice Lispector. Essa ideia sugere, por conseguinte, que o narrador está em conflito com sua própria existência e identidade, como se estivesse tentando se distanciar de si mesmo para escapar da opressão do mundo exterior.

            Ademais, a imagem do narrador temendo ser reduzido a uma "palavra, uma gota, um hálito" quando as pessoas ao redor se aproximam é uma representação poderosa da ansiedade social e da sensação de ser esmagado pela presença dos outros e pela liquidez e volatilidade das relações do meio coletivo. Essa sensação de vulnerabilidade e fragilidade emocional é um tema recorrente em sua obra, refletindo a luta dos personagens para encontrar sua própria identidade e uma conexão com um mundo que muitas vezes soa contraditório e brutal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

                        Em conclusão, a literatura contemporânea brasileira, representada por escritores como Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu, os quais foram o foco desse artigo, revela-se como um espelho das complexidades e desafios da sociedade atual. Cada autor, à sua maneira, contribui para essa narrativa, explorando temas profundos e, por muitas vezes, provocativos, os quais reverberam no tocante à complexa experiência humana em sociedade. Através de suas obras, eles desafiam normas, quebram barreiras e questionam as contradições do Brasil pós-moderno, promovendo uma representação original das diversas relações étnicas e socioculturais do país, visto que, mimeticamente, refletem a realidade, mas também incitam à reflexão, à resistência e à reinterpretação do mundo que nos cerca. A literatura contemporânea é, portanto, um veículo poderoso para dar munição às camadas menos privilegiadas do meio coletivo.

                        Através de estilos distintos e narrativas ousadas, esses autores deixam um legado literário que vai além de seu tempo, transcendendo fronteiras e enriquecendo o cenário cultural e filosófico da arte do Brasil e dos diversos brasis os quais circundam as suas regiões. Carrero e Miró, por exemplo, elevam a nível nacional as barbáries sociais que atormentam o solo pernambucano, além de sublimarem os seus anseios existenciais através das personagens e eu líricos, isto é, o ato de passar para o papel da arte, aquilo que talvez não pudessem pôr em prática nas suas vidas do cotidiano normativo, a atribuição de fingidor ao poeta ou prosador (alusão a Fernando Pessoa). Logo, esses autores nos convidam a desafiar as convenções sociais e a abraçar a diversidade de perspectivas cubistas que moldam nosso mundo. Em última análise, a literatura contemporânea é um reflexo da nossa sociedade em constante evolução, por nos ascender como vigilantes, críticos e engajados na busca por uma compreensão mais crua de quem somos, tanto como indivíduos e como sujeitos compositores da coletividade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

 

BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

 

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

 

CARRERO, Raimundo. Somos pedras que se consomem. Editora Iluminuras Ltda, 1995.

 

CARVALHO, Bernardo. Simpatia pelo demônio. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

DE ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Um emaranhado pegajoso de emblemas e culpas: o sertão na literatura e no pensamento de Raimundo Carrero. Minas Gerais: Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, 2019.

 

HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Companhia Das Letras, 2021.

 

MOTA, Urariano. Miró da Muribeca, poeta querido e rebelde do Recife. Vermelho, Brasília-DF, 05 de Agosto de 2022. Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/miro-da-muribeca-poeta-querido-e-rebelde-do-recife/ Acesso em: 06 de Setembro de 2023.

 

 

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