UM
RETRATO DO BRASIL: A LITERATURA CONTEMPORÂNEA E A DENÚNCIA SOCIAL
Arthur Paz Rios
Graduando em Letras -
Universidade de Pernambuco (Campus Garanhuns)
Resumo:
O presente artigo busca perpassar
pelos caminhos traçados pela literatura contemporânea brasileira, atentando
para os aspectos sociais, políticos, metafísicos e, consequentemente,
ideológicos presentes nas obras e nos jogos imagéticos constituídos e lapidados
pelos autores estudados. Logo, entre estes, estão Hilda Hilst, Raimundo
Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu, os quais
terão destacadas as suas contribuições individuais para o panorama literário
vigente e as suas respectivas abordagens acerca da diversidade cultural
brasileira. Além disso, através de uma comparação das temáticas e estilos
desses autores, investigar-se-á como suas obras dialogam com questões de
identidade, marginalização social, sexualidade e sociedade de consumo, por
exemplo, oferecendo uma mundividência multifacetada das experiências hodiernas
do país.
Palavras-chave: Contemporaneidade, Literatura,
Crítica Social.
Abstract:
This article seeks to traverse the
paths traced by contemporary Brazilian literature, paying attention to the
social, political, metaphysical and, consequently, ideological aspects present
in the works and imagery games constituted and polished by the studied authors.
Therefore, among these are Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca,
Bernardo Carvalho and Caio Fernando Abreu, who will have highlighted their
individual contributions to the current literary scene and their respective
approaches to Brazilian cultural diversity. In addition, through a comparison
of the themes and styles of these authors, it will be investigated how their
works dialogue with questions of identity, social marginalization, sexuality
and consumer society, for example, offering a multifaceted world view of the
country's current experiences.
Keywords: Contemporaneity, Literature,
Social Criticism.
INTRODUÇÃO
De
início, sabe-se que a literatura contemporânea em vigência no Brasil é um campo
vasto e diversificado que busca refletir as complexidades e os desafios da
sociedade atual (tanto coletiva, como individualmente), e, por isso, o intuito
desta pesquisa é adentrar no universo de algumas das vozes as quais ecoam no
âmbito dessa realidade literária, cultural e filosófica, analisando assim, as
contribuições dos autores Hilda Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca,
Bernardo Carvalho e Caio Fernando Abreu. Nessa perspectiva, ao investigar a
história e o impacto social das obras desses escritores, torna-se possível
observar como eles abordam seus temas e preocupações oriundos da
contemporaneidade, tendo em vista que não há datas específicas para
determinarem o início e o término desse movimento, também considerado como
pós-modernismo por alguns autores, e, portanto, toda arte escrita que está
sendo produzida nos dias de hoje ou que foi feita há poucas décadas,
independente do seu viés ou estilo literário, pode se enquadrar nos moldes
desmoldados do advento da literatura contemporânea.
Ao seguir a linha de pensamento da
ótica em questão, é passível de crítica e reflexão que essa manifestação
artística exibe características distintas as quais refletem as complexidades e
as transformações do meio social hodierno, pois, caracterizada por uma
abordagem densa acerca das inquietudes humanas e, por muitas vezes,
provocativa, tal literatura desafia antigos tabus e normas da sociedade, além
de servir de instrumento de resistência contra os inúmeros preconceitos, o que
permite explorar temas como identidade e aceitação, sexualidade, a chaga da
marginalização social e as complexas relações humanas. Assim, autores
contemporâneos frequentemente utilizam uma prosa sensível e disposta de poesia
também, capaz de se aprofundar nas emoções e nas experiências das personagens,
dando voz e trazendo à tona as camadas menos privilegiadas da coletividade. Ademais,
esse tipo de escrita, em variados momentos, transcende as fronteiras e quebra determinados
padrões e barreiras entre os gêneros literários, empregando técnicas
experimentais e narrativas fragmentadas, a fim de coadunar a fluidez da
realidade à obra em si, uma vez que uma abordagem audaciosa visa, não apenas
refletir os caminhos os quais vêm sendo traçados por esse Brasil da
pós-modernidade, mas também questionar, provocar e reinterpretar o real,
proporcionando a união da arte erudita com a arte popular.
Por conseguinte, ao desafiar normas
e questionar as complexas contradições do país, os autores estudados passam,
com o verbo no Presente do Indicativo, a promover uma representação autêntica e
identitária das várias relações étnicas e sociais do Brasil.
HILDA
HILST E O “CHOQUE” NA SOCIEDADE
Hilda Hilst (1930-2004) foi uma
escritora reconhecida por sua ousadia e pela exploração corajosa de temas polêmicos
tanto na sua poesia, quanto no mundo da prosa, pois, ao abordar questões acerca
da morte, da sexualidade, da espiritualidade e da natureza humana, ela desafiou
as convenções literárias e estigmas sociais de sua época. Nesse sentido, sua
escrita atingiu um nível em que transcendia os limites da expressão
tradicional, no momento que traz à tona as subjetividades e certas
introspecções da experiência humana, portando uma linguagem provocativa e avassaladora.
Além disso, a sensibilidade psicológica e a profundidade emocional presentes
nas obras de Hilst influenciaram a forma como os autores contemporâneos
exploram a psicologia das personagens e as suas respectivas complexidades no
que tange às relações humanas, expondo também as contradições e as angústias as
quais o indivíduo, enquanto posição de sujeito, enfrenta.
Um exemplo notável é a obra O
Caderno Rosa de Lori Lamby, que aborda a sexualidade infantil de maneira
polêmica, forçando uma reavaliação das fronteiras do que pode ser explorado
literariamente, além das noções éticas e morais do “certo” e do “errado”. A voz
que narra essa obra, é corajosa e, de certa forma, desconcertante, já que a
autora utiliza uma linguagem infantilizada para dar voz a pensamentos e
situações explicitamente sexuais, o que cria um contraste desconfortável em
várias situações. Atrelado a isso, ela parece estar desafiando o leitor a confrontar
a interseção entre a pureza da infância e a sexualidade adulta, o que pode ser
enxergado como uma mistura forte de elementos literários, linguísticos e uma inovação
narrativa para que o objetivo da autora seja atingido. Essa influência pode ser
observada em obras que empregam narrativas não lineares, onde há a fragmentação
e a linguagem poética para que se crie um impacto emocional mais profundo.
A
DUALIDADE EM RAIMUNDO CARRERO
Raimundo Carrero, por sua vez,
através de sua narrativa marcada por características realistas e uma abordagem
específica acerca das camadas sociais menos privilegiadas, destacou-se como um
observador sensível das dinâmicas urbanas e rurais, não só do Brasil
contemporâneo de maneira geral, como também se instalou como um representante
do sertão pernambucano, além de migrar a sua cosmovisão para a realidade
recifense, inserindo-se frequentemente no cenário da literatura atual
brasileira. Carrero utiliza uma linguagem direta e poética para criar personagens
vívidos e, de certa forma, condizentes com os paradoxos e antíteses da mente
humana, visto que o ideal do sagrado e do profano pode perpassar pelo
desenrolar da história de uma mesma personagem, o que confere autenticidade às
suas histórias e provoca uma reflexão sobre as realidades vivenciadas pelas
pessoas “comuns”, isto é, conflitos e questões pessoais, que mesmo que,
inicialmente, pareçam ser contraditórias, mas buscam explicitar a completude
das relações individuais e coletivas humanas.
Outro aspecto importante da obra
desse autor é a utilização de eu líricos e narradores femininos, característica
a qual, consoante o próprio Raimundo, pode ser resultado de uma estrutura
familiar majoritariamente composta por mulheres, no que se refere à sua
criação. Além disso, seu impacto literário e social permite, através de suas
dualidades expressadas pelas personagens, conceber para o sertão nordestino,
uma questão imagética que vai além do “mero” ambiente semiárido repleto de religiosidade.
Sim, essa característica faz-se inerente à sua personalidade e escrita por ser
o que compõe o seu “ser” e a sua história. Entretanto, esse fato não se limita
apenas em retratar esse afluente de suas obras, tendo em vista que tudo se
elucida por completo a partir do momento em que o autor, de maneira cubista,
estilisticamente falando, traz diversas óticas à tona para a sua obra, tratando
da complexidade existencial humana e misturando elementos culturais variados no
que tange a valores éticos e morais, por exemplo. Acerca dessa dualidade
vivenciada por Raimundo Carrero, no tocante às amarras desamarradas da
contemporaneidade, onde se inova e, concomitantemente, se reverencia o
tradicional, o fragmento a seguir faz-se passível de reflexão acerca dessa
temática em debate.
A
literatura, na modernidade, é palavra autônoma, palavra que nasce de um sujeito
que emerge da recusa a adesão à Palavra, que surge na distancia da Lei. O
sujeito da literatura é um sujeito que domina os segredos da ficção. Ele não
mais ausculta os mistérios e segredos do divino contidos na Palavra, ele busca
escutar os mistérios e segredos do humano que vive nesse mundo. Mas Raimundo
Carrero vive essa tensão entre ser sujeito de discurso religioso e sujeito de
discurso literário. Ele vive na equivocidade de um lugar de sujeito que, por um
lado, tende a absolutizar a linguagem e separá-la do mundo, numa ênfase
formalista, que faz da linguagem literária criação autônoma do escritor, onde o
escritor se faz Deus, típica dos modernismos, e por outro, vive na submissão à
Palavra, à letra da Lei, que faz daquele que escreve um mensageiro de uma
Palavra que não é sua, de ensinamentos e lições que vem de Outrem. O
dilaceramento de seus personagens, que é também seu dilaceramento, aparece na
própria forma, por vezes, fragmentada, em flashes de sua escrita. (DE
ALBUQUERQUE JÚNIOR, p. 140, 2019)
A
CRUEZA ARREBATADORA DE MIRÓ DA MURIBECA
A
poesia de Miró é densa. Intensa. Consoante a crítica literária brasileira, de
maneira geral, a poesia é expressa por poucas palavras, mas traz consigo uma
vastidão de significados e interpretações possíveis acerca de um mesmo verso,
por exemplo. Portanto, há de perceber-se que o poeta em questão dispõe dessas
características de forma deveras marcante, tendo em vista que com o pouco, é
possível se dizer muito.
Nesse sentido, Miró soma
à contemporaneidade através da sua lírica, pois sua linguagem franca e
acessível denuncia as chagas sociais existentes no meio urbano do país,
especificamente, utilizando a cidade do Recife como principal fonte de
inspiração para sua poesia, de certa forma, panfletária. Ele utiliza o
vocabulário e as expressões das ruas, o que reverbera ainda mais sua obra, por
ser sempre dramatizada e oralizada pelo autor, e acaba por transformar e
democratizar suas obras a uma ampla gama de leitores, inclusive aqueles que não
têm uma formação literária formal, pois a linguagem coloquial abrange todos os
tipos de grupos sociais, uma vez que essas pessoas conseguem compreender a
mensagem facilmente, pois seus versos são muito diretos e duros, isto é,
impactam de uma forma que faz-se impossível não se sensibilizar com essa dureza
em forma de literatura. Atrelado a isso, é perceptível que essa abordagem específica
de Miró quebra barreiras linguísticas e culturais, promovendo a inclusão e a
compreensão das realidades das periferias urbanas. Seu poema é permeado por uma
consciência social aguda e um compromisso com a justiça social, visto que suas
palavras não apenas documentam as lutas e as injustiças enfrentadas pelas
comunidades marginalizadas, mas também convocam à ação, à militância crua, sem
influências corporativistas ou liberais. Além disso, ele foi um defensor vocal
da igualdade, da dignidade humana e da superação das barreiras sociais e
econômicas, denunciando a violência policial, o racismo estrutural e a
hipocrisia e contradições da ações do Estado. Por conseguinte, seja escrita ou
encenada, sua obra se torna, assim, um veículo para a conscientização e o
engajamento da coletividade contra as amarras desiguais e estratificadas do
sistema. Dessa forma, o poema a seguir, de autoria de Miró da Muribeca, pode
traduzir liricamente o que se está tentando ser dito por meio do linguajar
acadêmico.
Deus, Tu que agora
carregas um homem,
Puxando pelas rédeas
o seu cavalo e uns
sacos de cimento
De cada lado um sol
insuportável …
Deus,
Choves agora no meu
coração
Para que eu não pense
em comprar um
guarda-chuvas de
balas
E fazer justiça com
as próprias mãos.
Sua escrita, logo, é um grito de
alerta que corta o ar (tomando como referência as “lâminas” cabralinas), que denuncia
a injustiça das classes sociais e a desigualdade que persistem nos becos e
vielas do bairro da Muribeca e de tantos outros lugares esquecidos pelo
progresso da engrenagem capitalista. A cada palavra, Miró escancara as feridas
abertas da sociedade, expondo as mazelas que muitos preferem ignorar e fingir
certo tipo de cegueira coletiva. Portanto, seu verso é a voz dos que não têm
voz, a luz que clareia os cantos sombrios da existência, e a força que
impulsiona a mudança, uma vez que a poesia, quando tingida pela realidade, torna-se
uma poderosa ferramenta de transformação social e representatividade,
principalmente para um artista preto, pobre e periférico.
Exemplificando que a língua das ruas
é mais viva do que nunca, os seguintes versos de Manuel Bandeira podem iluminar
o ideal da ótica em reflexão.
Evocação
do Recife
A
vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha
da boca do povo na língua errada do povo
Língua
certa do povo
Porque
ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao
passo que nós
O
que fazemos
É
macaquear
A
sintaxe lusíada...
O
GLOBAL NOS ROMANCES DE BERNARDO CARVALHO
Uma das características marcantes
dos romances de Bernardo Carvalho é a sua narrativa fragmentada, na qual
diferentes vozes e perspectivas se entrelaçam para criar, de certa forma, uma complexidade
literária rica, uma vez que esse estilo literário espelha a natureza da sociedade
contemporânea, espaço de múltiplas óticas e perspectivas as quais competem por
espaço e significado. Nessa perspectiva, ao explorar a complexidade humana por
meio de personagens cheias de contradições existenciais e narrativas não
lineares, Carvalho confronta a ambiguidade da vida moderna.
Acerca da temática das
suas obras, frequentemente são abordadas questões de identidade em um mundo
globalizado, tendo em vista que estas exploram as tensões dicotômicas entre o
local e o global, o individual e o coletivo, o passado e o presente, por
exemplo. Assim, o autor questiona as noções tradicionais de identidade cultural
e nacional, desafiando os estereótipos e as simplificações que frequentemente
permeiam o discurso acerca da globalização, estimulando uma reflexão crítica
sobre como as identidades são moldadas e reconfiguradas em um meio social cada
vez mais interconectado. Além disso, outro aspecto do impacto sociocultural dos
romances de Bernardo Carvalho está no seu engajamento com questões ideológicas
e políticas contemporâneas, pois a escrita dos seus livros frequentemente lança
luz no âmbito de questões urgentes, como o meio ambiente, as desigualdades
sociais e os dilemas morais da sociedade moderna, não só brasileira, como
mundial, explorando, com profundidade no que tange a aspectos metafísicos
também, a cosmovisão variada das personagens. Atrelada a essa perspectiva,
Antônio Cândido reflete acerca da relação intrínseca entre o autor, a obra e o
leitor.
Com efeito,
entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos;
obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que,
tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos.
Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma
confidencia, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma
"expressão". A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer
uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza
afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para
chegar a uma "comunicação". (CÂNDIDO, p.146, 1965.)
Na obra Simpatia pelo
demônio, por exemplo, o escritor traz à tona a ideia do terrorismo islâmico
e sua respectiva relação com os desejos particulares do ser humano, as noções
de bem e mal, com a temática das guerras religiosas e raciais também. Nesse
sentido, o personagem principal, “Rato”, realiza diálogos introspectivos e o
autor provoca, por meio de uma severa crítica ao terrorismo, a ideia de que
essa chaga da sociedade tem uma guerra direta com o desejo, por proibir à
juventude, principalmente, seu direito à liberdade e ao prazer. Logo, criando
uma conexão com CÂNDIDO,1965, percebe-se que os anseios do autor se transformam
nas ações e nos monólogos introspectivos de suas próprias personagens,
evidenciando assim, a inerência entre o ser literário e o seu respectivo meio
social.
CAIO
FERNANDO ABREU: À FLOR DA PELE
Caio Fernando Abreu, um
dos mais polêmicos e marcantes escritores brasileiros da contemporaneidade,
deixou um legado literário marcado pela intensidade emocional, pela profundidade
psicológica e pela crueza de suas narrativas. Sua obra, frequentemente descrita
como visceral pela crítica literária, pode ser genericamente definida como um
testemunho poderoso da experiência humana, visto que esta aborda temas como a
alienação, a solidão, a sexualidade (mais especificamente, o erotismo
homossexual) e a busca pela identidade em uma sociedade complexa e inúmeras
vezes hostil. Nesse viés, uma das características marcantes da sua obra é a
abordagem destemida e honesta das emoções humanas, já que as histórias exploram
o lado mais complexo da psiqué humana, revelando a angústia, a
melancolia e a inquietação que habitam a introspecção visceral das personagens.
Portanto, essa profundidade emocional torna suas narrativas cativantes, de
certa forma, pois provocam no leitor um contato com suas próprias emoções e
reflexões pessoais.
Outro aspecto importante
do autor é a sua escrita poética e lírica, onde suas palavras fluem com uma
musicalidade única, criando uma atmosfera densa e evocativa que envolve quem o
lê, porque frequentemente são incorporados elementos do simbolismo e do
surrealismo em sua escrita, com a criação de imagens vívidas e perturbadoras
que desafiam as convenções narrativas tradicionais. Ao seguir essa linha de
pensamento, nota-se que essa escrita estilística única contribui para a visceralidade
de sua obra, a qual é fortemente influenciada pelo contexto social e político
de sua época. Ele viveu durante um período de grande turbulência no Brasil,
marcado pela ditadura militar e por uma busca crescente por liberdade,
principalmente, e autenticidade. Nesse sentido, é refletido também esse momento
histórico, explorando temas como repressão, censura e uma resistência artística
contra as restrições dogmáticas impostas pela sociedade e pelo Estado.
Dia
após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito -
para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre
alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça,
como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos
miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de
novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto.
Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.
O
que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas.
As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar
de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa,
raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo.
Não
dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não
são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem
demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a
testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas
com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas
convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço
nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para
fora, entre as coisas pontudas. E quando ele abre sua boca movediça para
escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa
palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e
solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser.
(ABREU, p.44, 2019)
O trecho em destaque faz parte de um
dos contos (Eu, Tu, Ele) do livro Morangos Mofados. Há de se
perceber que sua escrita é poética e lírica, além de ser repleta de metáforas e
imagens fortes as quais criam uma atmosfera densa. Evocativa. Abreu usa uma
linguagem rica e visual, pois faz uso da experiência de leitura sensorial e gradativa,
à medida que as múltiplas emoções sentidas no ato de ler vão se aflorando. Ele
descreve as pessoas ao redor do narrador de uma maneira quase que grotesca,
enfatizando os detalhes físicos e fisiológicos das pessoas, o que passa a criar
uma sensação de estranheza e repulsa. Além disso, a ideia de "ele não se
afasta, mas é dentro dele que eu me afasto" é uma reflexão profunda,
pessoal e filosófica, provavelmente influenciada pela quietude externa e
inquietude interna de Clarice Lispector. Essa ideia sugere, por conseguinte,
que o narrador está em conflito com sua própria existência e identidade, como
se estivesse tentando se distanciar de si mesmo para escapar da opressão do
mundo exterior.
Ademais, a imagem do narrador
temendo ser reduzido a uma "palavra, uma gota, um hálito" quando as
pessoas ao redor se aproximam é uma representação poderosa da ansiedade social
e da sensação de ser esmagado pela presença dos outros e pela liquidez e
volatilidade das relações do meio coletivo. Essa sensação de vulnerabilidade e
fragilidade emocional é um tema recorrente em sua obra, refletindo a luta dos
personagens para encontrar sua própria identidade e uma conexão com um mundo
que muitas vezes soa contraditório e brutal.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Em conclusão, a
literatura contemporânea brasileira, representada por escritores como Hilda
Hilst, Raimundo Carrero, Miró da Muribeca, Bernardo Carvalho e Caio Fernando
Abreu, os quais foram o foco desse artigo, revela-se como um espelho das
complexidades e desafios da sociedade atual. Cada autor, à sua maneira,
contribui para essa narrativa, explorando temas profundos e, por muitas vezes,
provocativos, os quais reverberam no tocante à complexa experiência humana em
sociedade. Através de suas obras, eles desafiam normas, quebram barreiras e
questionam as contradições do Brasil pós-moderno, promovendo uma representação original
das diversas relações étnicas e socioculturais do país, visto que,
mimeticamente, refletem a realidade, mas também incitam à reflexão, à
resistência e à reinterpretação do mundo que nos cerca. A literatura
contemporânea é, portanto, um veículo poderoso para dar munição às camadas
menos privilegiadas do meio coletivo.
Através de estilos
distintos e narrativas ousadas, esses autores deixam um legado literário que
vai além de seu tempo, transcendendo fronteiras e enriquecendo o cenário
cultural e filosófico da arte do Brasil e dos diversos brasis os quais
circundam as suas regiões. Carrero e Miró, por exemplo, elevam a nível nacional
as barbáries sociais que atormentam o solo pernambucano, além de sublimarem os
seus anseios existenciais através das personagens e eu líricos, isto é, o ato
de passar para o papel da arte, aquilo que talvez não pudessem pôr em prática
nas suas vidas do cotidiano normativo, a atribuição de fingidor ao poeta ou
prosador (alusão a Fernando Pessoa). Logo, esses autores nos convidam a
desafiar as convenções sociais e a abraçar a diversidade de perspectivas cubistas
que moldam nosso mundo. Em última análise, a literatura contemporânea é um
reflexo da nossa sociedade em constante evolução, por nos ascender como
vigilantes, críticos e engajados na busca por uma compreensão mais crua de quem
somos, tanto como indivíduos e como sujeitos compositores da coletividade.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ABREU,
Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
BANDEIRA,
Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
CARRERO,
Raimundo. Somos pedras que se consomem. Editora Iluminuras Ltda,
1995.
CARVALHO,
Bernardo. Simpatia pelo demônio. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
DE
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Um emaranhado pegajoso de emblemas e
culpas: o sertão na literatura e no pensamento de Raimundo Carrero. Minas
Gerais: Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, 2019.
HILST,
Hilda. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Companhia Das
Letras, 2021.
MOTA,
Urariano. Miró da Muribeca, poeta querido e rebelde do Recife. Vermelho,
Brasília-DF, 05 de Agosto de 2022. Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/miro-da-muribeca-poeta-querido-e-rebelde-do-recife/
Acesso em: 06 de Setembro de 2023.
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