Prof. Dr. José
Nogueira (Universidade do Vale do São Francisco)
Apresentando-se como um
romance com características memorialistas, “Palimpsesto” comprova as
considerações Freudianas, no texto “Lembranças encobridoras” (1899), acerca da
memória, uma vez que ele a encara alterando a concepção da mesma, realizando
pontes entre o influxo das fantasias, as rememorações e distorções da mesma,
além da amnésia jogando os anos iniciais do indivíduo para o inconsciente.
Assim é o texto de Moisés Monteiro de Melo Neto, sua convivência em Recife, sua
vida entre o teatro e a academia, além da produção escrita marcada pelo
pluralismo de gêneros, temáticas e técnicas somados à fuga de padrões a ponto
do ato de surpreender chegar a ser uma monotonia nada monótona. Por isso,
tomarei a liberdade de me ancorar em autores de campos epistemológicos
distintos, algo inconcebível em um texto científico, mas necessário para
descortinar um mosaico tão intenso de imagens como é essa obra.
Em sua etimologia, a
palavra “palimpsesto” vem do Grego “palin”, que significa “para trás” e “psen”,
que se entende como “esfregar suavemente”, ou seja, através dele algo era
escrito e depois poderia ser apagado para outra mensagem ser escrita, mas a
escrita anterior deixou suas marcas que se cruzam com a escrita atual. O
romance traz essas marcas ao possuir três narradores em primeira pessoa, o
primeiro é Lucas, o qual fala de Michelle, sua amada, mas que é apaixonada por
um canalha que deu o golpe do baú em uma senhora rica.
O pai dela engravidou uma
índígena de uma comunidade no interior de Pernambuco, mãe de Michelle. Um acidente
de carro, na Serra das Russas, acabou com os dois, Michelle, ainda uma garotinha
com poucos anos de vida, foi a única sobrevivente.
O enredo envolve Emerson,
garoto de rua, esperto, maquiavélico a ponto de subir na vida, fora adotado por
uma empregada da mansão do pai de Michelle o que gera ciúmes de Magno, filho
legítimo do pai dela, que o mata. Detalhe, esses três homens estão ligados a
Michelle, apesar de apenas Lucas e Magno serem apaixonados, eis um triângulo
amoroso dramático do começo ao fim.
Assim como a escrita de
um palimpsesto, a segunda parte do livro traz outro narrador: um amigo de Lucas
de nome não revelado. Nessa parte do livro, Michelle pouco é citada, a
personagem Saluá vem à cena, mulher egípcia e extremamente atraente e
intensamente atraída por Lucas, com quem vive um amor ardente enquanto o corpo
dele se encontra em estado terminal. Nesse ínterim, o romance anteriormente
passado e Recife ganha ares de romance de viagem ao ocorrer no Egito e
arredores, com ricas descrições e mobilidades que podem ou não acompanhar o
estado de espírito dos personagens. Mikhail Bakhtin em “Estética da criação
verbal” nos conta que “O tipo romance de viagens tem como característica uma
concepção puramente espacial e estática da diversidade do mundo. O mundo é uma
contiguidade espacial de diferenças e contrastes; já a vida é uma alternância
de diferentes situações contrastantes: sucesso – insucesso, felicidade –
infelicidade, vitórias – derrotas, etc” (p. 206). Apesar do romance, assim como
qualquer filosofia ou teoria da literatura, produz suas análises com base do
que está produzido, enquanto produções rompedoras de padrões necessitam de
análises também pioneiras, não é de se esperar que esse romance de viagens, ao
menos em partes, siga os padrões de romances antes produzidos. Mesmo assim,
coloca-se como mais uma narrativa do palimpsesto que é “apagado” para escrever
a terceira parte da obra.
A última parte da obra
nos traz Michelle como narradora, agora mulher madura e sem a presença de
homens que, de uma forma ou outra, foram marcantes em sua vida. Daí, sente-se
perdida e busca outros amores, mas não esperem finais previsíveis, esse romance
não é tão fiel às previsibilidades quanto Emerson era a Michelle, não estamos
falando de um conto de fadas, mas de casos amorosos com tudo aquilo que a vida
fatual nos traz: infidelidades, decepções, eternidades enquanto duram, paixões
platônicas, felicidades edificadas, enfim, um caleidoscópio de vida emoldurado
por uma escrita leve, mas com peso em suas imagens, peso a leveza, como diria
Ítalo Calvino.
Por ser um romance com
traços memorialistas, por parte dos personagens, não descarto a possibilidade
do autor, seja autor pessoa ou autor personagem, como classifica Bakhtin,
investir estrategicamente suas memórias nas narrativas, não de forma clichê e
previsível, mas imprimindo seus valores nas camadas grafadas e raspadas desse
caleidoscópio, a exemplo de Lucas quando nos diz que não deseja um vida
medíocre. Antoine Compagnon em “O demônio da teoria: literatura e senso comum”
nos fala da postura do literato perante a teoria: “É certo que o autor está
morto, a literatura não tem nada a ver com o mundo, a sinonímia não existe,
todas as intepretações são válidas, o canône é ilegítimo, mas continua-se a ler
biografias de escritores, a identificar-se com os heróis dos romances:
seguem-se com curiosidade as pegadas de Raskolnikov pelas ruas de São
Peterburgo, prefere-se ‘Madame Bovary’ a ‘Fanny’, e Barthes mergulhava
deliciosamente em ‘O Conte de Monte Cristo’ antes de dormir (p. .252)”.
No conjunto da obra,
temos um belo exemplo de um trabalho maduro, dotado de uma escrita densa, mas
“palatável” a um público tão diverso quanto a representatividade da obra. Em
suma, é subjetivo e complexo dizer o que a obra é, posto ser ser mais lógico
afirmar o que ela não é. Não se trata de uma escrita inexperiente, polarizada
entre bem e mal, com presumíveis finais felizes para bajular as expectativas do
leitor. Dessa forma, trata-se de um romance feito para quebrar padrões na
literatura e nas bases teóricas de análise da mesma, uma leitura reflexiva,
relaxante, dramática com toques de sensualidade e sexualidade, um palimpsesto
de narrativas que, ao nos tirar de nossas realidades, nos convida para novas
percepções da mesma realidade.
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