O
Rei de Havana.
por Moisés Monteiro
de Melo Neto
Rum, cigarros, sexo e música de rádio:
Havana engana?
Moisés Monteiro de Melo Neto e Pedro Juan Gutiérrez
“Tú
no juegues conmigo/ que yo sí como candela” (“Não brinques comigo/que eu como
fogo”), diz uma canção cubana. Sim, os personagens do livro O Rei de Havana
(224 páginas, 32 reais, Ed. Cia das Letras, SP)do escritor cubano Pedro Juan
Gutiérrez parecem inflamados por este mote. Segundo um depoimento do autor ao
seu povo só resta “rum, salsa e sexo”. Juan não é publicado em seu país por
apresentar Cuba como um inferno miserável, como por exemplo, em sua primeira
obra em prosa Trilogia Suja de Havana.
Segundo nota da editora dele no Brasil, a Companhia das Letras alguns
dos seus leitores vêem no romance uma metáfora apaixonada da atual situação
cubana, mas a literatura dele não é engajada e “passa longe de toda intenção
política doutrinária”.
Pedro
nasceu em Matanzas, Cuba, em 1950. Mora em Havana. Começou a trabalhar aos onze
anos, como vendedor de sorvete e jornal. Foi soldado, instrutor de natação e
caiaque, trabalhador rural, técnico em construção, desenhista técnico e locutor
de rádio. Trabalhou como jornalista durante 26 anos. Dedica-se à escultura e à
pintura e é autor de vários livros de poesia.
Reynaldo,
o “Rei” do título, trocadilho com seu apelido “Rey” rei em espanhol, é um
adolescente de 13 anos que mora num quarto sujo com a mãe prostituta, com o
irmão e com a avó, num subúrbio sujo de Havana em plena crise de 1994, passam
fome e convivem com a miséria. Rey, de tanto repetir a mesma série, desiste de
estudar. Vai aí já uma crítica de Gutiérrez a uma das mais proclamadas
instituições do regime cubano: a escola. O narrador afirma que os professores
trabalham com má vontade e que o sistema está podre.
Longe
da igualdade socialista pregada pela propaganda castrista o que jorra no texto
é a miséria monocórdia e a denúncia do enriquecimento ilícito praticado por
muitos. O foco do autor é o sexo, o sexo pervertido, diga-se de passagem.
É
bem estranho para quem visitou a ilha como eu, junto com um grupo político, e
conversou com os comitês de Defesa da Revolução e outros grupos ligados ao
governo, e teve oportunidade de visitar museus e outras casas ligadas ao lazer
e à cultura (ver matéria em anexo) se deparar com uma visão tão radical quanto
esta do autor. É claro, que ficar em Havana por uma semana e desfrutar de
alguns dólares não dá a ninguém o direito de dizer que conhece aquele lugar. Vi
gente ser roubada, vi pessoas proibidas de ir à praia incomodar os turistas. Vi
pedintes, garotos sendo treinados para enfrentar o império ianque, vi o
cambalacho comercial praticado a torto e à direita. Mas principalmente Havana é
um patrimônio dos cubanos e jamais eles teriam conseguido arranca-la das mãos
dos americanos se não fosse por Guevara, Fidel e Camilo Cienfuegos, para citar
somente três dos líderes da revolução que surpreendeu o mundo no dia 1º de
janeiro de 1959.
Gutiérrez
passa bem longe da cartilha dos companheiros. Devemos observar que a desgraça
que ele expõe, de certa forma poderia acontecer em boa parte do mundo
capitalista e não ter como cenário a esplendorosa Havana.
Mas
vamos lá: é um texto bem perverso. No início da trama, com linguagem bem suja e
apelativa o narrador expõe o drama do seu anti-herói: Rey presencia o suicídio
do irmão, sabe do repentino assassinato da mão e vê a avó ter um ataque
fulminante. É levado para um reformatório onde tentam sodomizá-lo e onde ele
briga para sodomizar, disputando as bichas às tapas com outros detentos
enquanto elas se divertem vendo os “bofes” disputarem-nas entre si. Lá Rey
aprende a fazer tatuagem e rouba um alfinete de um detento, ganha assim a
simpatia de um cara da enfermaria que o presenteia com uma cirurgia que
introduz na sua glande duas pequenas esferas que dali em diante farão a alegria
das pessoas que transam com ele na narrativa, o que inclui várias mulheres e
homens. Ao fugir daquela instituição, que de educativa não exibe nada, Rey se
depara com um mundo mais cão do que já enfrentara no seu “lar” miserável.
Cocaína, rum, maconha, travestis, prostitutas, fome, doenças e muita, muita
sujeira é o que o espera.: “Pra que a gente nasce? Pra morrer depois? Se não
tem nada pra fazer, não entendo para que passar por todo esse trabalho. Viver,
disputar com os outros para não foderem você, e no fim de tudo a merda. Ahh,
tanto faz estar aqui fora como lá dentro” (p. 23), pensa quando foge do
reformatório. Poderia isso ser o que pensa o autor da relação de Cuba com o
resto do mundo? “ Ter filho pra quê?Aqui? Pra sofrer e passar fome os dois[...]
se algum dia tiver filho vai ter de ser de um homem muito especial, e fora de
Cuba”, diz a jovem prostituta Yamilê, amiga do travesti Sandra (p. 77). O
niilismo do autor não poupa ninguém: Gente que tem dinheiro é mais filha da
puta que a gente” (p. 83)
O
romance é impregnado de lirismo e crítica a Havana, mas poderia como já
dissemos acontecer em qualquer lugar, como numa narrativa beatnik, por exemplo.
Quando um bêbado oferece rum a Rey contra o sofrimento, ele diz que não sofre:
tem fome (p. 28). Aliás : “A única propriedade do pobre é a fome” (p.88). Ele é
um errante, dorme pelas ruas e quando entra pela primeira vez numa igreja sua
observação é a seguinte: “tinha uns bonecos grandes colocados aqui e ali. As
pessoas não falavam nada. Se ajoelhavam, sentavam , iam acender umas velas,
falavam em voz baixa” (p. 30).
Revi
pelos olhos de Rey alguns lugares que visitara em Havana: Casablanca, onde está
a enorme estátua de Cristo, em mármore de Carrara e de onde se vislumbra boa
parte da baía de Havana, Matanzas, onde está o balneário de Varadero, o Passeio
do Prado, O Malecón, a cem metros da primeira “casa” (cubículo numa cobertura
onde também se criava, outra prática cubana, animais para abate) do
protagonista. No discurso do narrador, que às vezes se confunde com o do
protagonista, Havana : “ continuava igual, bonita e maltratada, esperando ser
maquiada”.
O
narrador insiste em exaltar a virilidade de Rey: seu falo tem 22 cm e seu poder
de ereção é quase infalível e alucinante para quem prova dele, daí seu título
de “rei”. Logo o mulato se vê envolvido no tráfico e na prostituição, assuntos
tabus em Havana hoje. É um rapaz pobre num país pobre “que só espera chegar a
sua hora” (p. 37). Os turistas são tratados como idiotas que se iludem e querem
se aproveitar de Havana. Muitas vezes são traficantes de órgão que levam
prostitutas para arrancarem o que puderem delas no exterior, o que aconteceu
com uma ex- vizinha de Rey, que perdeu assim os olhos e retornou desgraçada
para Cuba, vítima de um italiano que lhe propôs casamento, objetivo de tantos
nativos. Segundo o narrador, quase ninguém “trabalha”: “Ganha-se mais com algum
negocinho” (p. 44). Rey faz bicos: descarrega caminhões de bananas, trabalha
numa cervejaria trambiqueira, dirige um triciclo, e não se detém nem diante de
roubar uma pobre senhora que viajara com seus filhinhos durante 22 horas dentro
de um desconfortável trem desde Santiago. Nosso anti-herói também pede esmola
segurando um São Lázaro ( que ao lado de Santa Bárbara e A Virgem da Caridade
do Cobre cujas imagens são quase onipresentes em Havana).
Às
vezes a narrativa nos lembra algo de Jorge Amado: as amantes de Rey, algumas
são velhas, uma delas uma cartomante quer fazer uma “limpeza” no seu corpo
carregado, ele não deixa, outra de suas amante é Sandra, um travesti que
incorpora uma entidade chamada “Rosa”, mas sua preferida é Magdalena, uma
prostituta vendedora de amendoins, moram num prédio à beira do desabamento, o
que ocorre depois de uma chuva torrencial, com quem pretende ter um filho e cujo caso termina em tragédia
no final do livro. O sexo entre ele e esta última é permeado com requintes de
podridão que inclui não se lavar, por falta de água e por “hábito” e usar isso
como fetiche. Boa parte dos cubículos, onde transcorre a narrativa são imundos.
Defeca-se num papel e joga-se no telhado do vizinho. O narrador passa tanta
fome que chega à beira da morte. Suas roupas vão se puindo com o uso e ele tem
que roubar outras, muitas vezes dos turistas nos balneários. Rouba pão dos
vendedores e ganha dólares em show pornô.
Os
voyeurs merecem destaque, principalmente os que freqüentam o Parque Maceo,
próximo ao Malecón, imenso calçadão que contorna boa parte da velha Havana.
Alguns depois de se satisfazer, saíam “feito caranguejos”, escondendo o rosto.
É
difícil falara sobre a miséria sem falar de zoomorfismo, mas Gutiérrez exagera.
Os cubanos são comparados a porcos, macacos e por aí vai numa trajetória que
inclui c oveiros que roubam roupas e dentes de ouro de defuntos e esmagam
cabeças dos concorrentes, necrofilia, masturbação, etc..
Uma das tradições de Havana é retratada no
romance: o carnaval: “negros lutando por uma jarra de cerveja péssima, barata e
avinagrada”(p. 84).
As
transições do romance, que por sinal não é dividido em capítulos e tem sua
narrativa quase em forma de fluxo de consciência, são bruscas e às vezes um
pouco desconexas em meio à fome, trapaça e violência.
A saga de Rey parece água suja escoando
lentamente numa pia engordurada e podre. Vai tomar banho de mar e sente um
enorme peixe a lhe rondar e pensa que ele quer devora-lo. Aproxima-se um final
nos moldes do grand guignol: medo, violência, assassinatos, horror numa
trama macabra.
Depois
de perder o quarto Magda e Rey vão parar num container perto de um lixão onde
por ciúme Rey e Magdalena protagonizam
um passagem cujos diálogos são violentos ao extremo. O desfecho do livro é para
lê de chocante. Envolve lixo, ratos, urubus e necrofilia.
Não.
Não é aquela ilha do Caribe com a qual revolucionário e turistas sonham. A
Havana de Gutiérrez é pau, pedra, o fim do caminho.
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