Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa. Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos, Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco. No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me, Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me, Morto do meu próprio pensamento, destruí-me, Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me, Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo, Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria Que se deita sobre a cidade, olhando a ferrovia, a fábrica, E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais. Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz, Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar ? Meu instante agora é uma supressão de saudades. instante Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros. Cansei-me de ser visão, agora sei que sou real em um mundo real. Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse. E não olhei a ferrovia - mas o homem que sangrou na ferrovia - E não olhei a fábrica - mas o homem que se consumiu na fábrica - E não olhei mais a estrela - mas o rosto que refletiu o seu fulgor. Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto ? O mundo, companheiro, decerto não é um desenho De metafísicas magnificas (como imaginei outrora) Mas um desencontro de frustrações em combate. nele, como causa primeira, existe o corpo do homem - cabeça, tronco, membros, as pirações e bem estar... E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito. Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética Ou vaga advinhação de poderes ocultos, rosa Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora. O mundo nasceu das necesidades. O caos, ou o Senhor, Não filtraria no escuro um homem inconsequente, Que apenas palpitasse no sopro da imaginação. O homem É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo - Se podemos admiti-lo - não se redime em injustiça. Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo Entre os filhos da terra. Força - aos que o herdaram - É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora, Quando ainda sofria sobre as armações metálicas do mundo, Acuado como um cão metafísico, eu gania para a eternidade, sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo, A vida enganou a vida, o homem enganou o homem. Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento De todos: se multipliquei a minha dor, Também multipliquei a minha esperança.
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domingo, 10 de maio de 2015
Paulo Mendes Campos e o seu Poema Didático
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